A INSTABILIDADE DOS REGIMES POLÍTICOS. SPINOZA.
Professor Roberto Romano, Unicamp;
A doutrina política de Spinoza liga-se à
teoria das paixões. Ela pode ser lida, nos mínimos detalhes, na Ética. A paixão
compreendida permite entender também as causas e fundamentos da sociedade política
e das instituições. ( ) É a partir das paixões que Spinoza entende as disfunções
institucionais encontradas na origem da autodestruição das sociedades políticas.
As paixões geram o Estado e podem destruí-lo. Com esta plataforma, analisemos
as propostas indicadas por Spinoza para remediar a marcha da dissolução da
sociedade política. Sendo o filósofo um defensor da democracia, os remédios por
ele sugeridos integram a auto-regulagem das disfunções institucionais. Como
toda a sua filosofia, da natureza ao conhecimento e deste à administração das
paixões, é imanente (as mudanças não vêm de fora, de uma divindade ou de
valores eternos), e monista, qualquer solução externa, em vez de remediar um
status quo em declínio serve, na verdade, para piorá-lo. É por esse motivo que
as teses teológico-políticas desgastam ainda mais o Estado, conduzindo-o à
guerra das religiões, tão comuns no século 17 europeu.
Tomemos o artigo 7 do Capitulo I do Tratado
Político: “Visto que todos os homens, bárbaros ou cultivados, formam em
toda parte costumes que se dão um estatuto civil, não é dos ensinos da razão,
mas da natureza comum dos homens, isto é, da sua condição, que é preciso as
causas e os fundamentos naturais dos Estados…”. ( ) Quando Spinoza fala em
“condição comum dos homens”, refere-se a eles como seres apaixonados. Mas
submetidos a quais paixões? Todo o Tratado Político pressupõe que os
homens desejam necessáriamente bens materiais. Trata-se da avaritia,
paixão universal e constante. (TP, X/6). Eles também são necessariamente
supersticiosos. “Concluo, portanto, dizendo que os vícios inerentes ao estado
de paz (…) não devem ser combatidos diretamente, mas de modo indireto,
colocando-se princípios fundamentais de modo que o maior número se esforce não
de viver sábiamente (isto é impossível) mas se deixe dirigir pelas afecções das
quais o Estado arranca mais benefícios. É preciso tender sobretudo a fazer com
os ricos sejam senão ecônomos, pelo menos que eles desejem aumentar suas
riquezas. Pois não há dúvida que se esta avidez (avaritia) que é uma paixão
universal, e constante, seja alimentada pelo desejo de glória, a maioria se
aplicará com maior zelo a aumentar a sua riqueza sem os meios desonrosos , o
ter que eles podem pretender serem bem considerados evitando a vergonha (ignomínia)”.
O desejo de possuir bens materiais, na sua origem, é exposto na primeira metade
do livro III da Ética.
“Toda a coisa se esforça, enquanto está em
si, por perseverar no seu ser”. (Etica, III/4-9) ( ) Quando esse esforço
(conatus) é favorecido por causas externas, ele se transforma em alegria
(E, III, 11) ( ) Se o nosso corpo aumenta ou diminui sua potência de agir, a idéia
desta coisa aumenta e diminui, aumenta ou reduz a potência da nossa mente. ( )
Quando a alegria é seguida da causa exterior que lhe atribuimos, ela torna-se
amor por esta causa externa (E, III, 12-13) Amor é a alegria seguida da idéia
de uma causa externa, ódio a tristeza seguida da idéia da causa externa. Quem
ama se esforça necessariamente por ter presente e conservar a coisa que ama,
quem odeia se esforça por destruir a coisa que odeia. Se amamos algo, nos
apegamos incondicionalmente e queremos nos apropriar e conservá-lo, portanto. Nós
nos alienamos inteiramente nele. Esta alienação pode passar da coisa que nos
alegra para outras, a ela ligadas em nossa mente. Assim ocorre com os meios
para conseguí-la no futuro, como é o caso do dinheiro ou da terra.
Para conseguir o necessário para todos os
indivíduos, as forças de cada um deles não bastariam se os homens não se
prestassem serviços mútuos. O dinheiro tornou-se instrumento com o qual nos
proporcionamos todas as coisas, sendo ele o resumo de todas as riquezas, tanto
que sua imagem ocupa ordináriamente mais do que todas as outras coisas nas
almas vulgares. Elas não podem imaginar nenhum tipo de alegria, senão acompanhando
como causa a idéia da moeda. Este, no entanto, é um vício nos que estão à busca
de dinheiro, não por necessidade nem para prover as necessidades vitais, mas
porque aprenderam a arte variada de enriquecer e se honram de possuir. Eles dão
ao corpo o seu pasto, segundo o costume, mas tentando poupar, porque acreditam
perdida toda parte de seus bens dispendida para a conservação do corpo. Para os
que conhecem o verdadeiro uso da moeda, e regulam sua riqueza segundo as
necessidades apenas, eles vivem contentes com pouco. ( )
No Apêndice do livro I da Ética,
mostra-se como semelhante teoria do amor permite explicar a origem de nossa
crença em divindades antropomórficas. Deus existe necessariamente. Ele é único.
Ele age apenas pela necessidade de sua natureza. Ele é a causa livre de todas
as coisas. Tudo é em Deus e depende dele, nada pode ser concebido nem ser sem
Ele. Tudo foi prederminado por Deus, não por livre vontade, por um beneplácito
absoluto, mas pela sua natureza absoluta, ou seja, por sua potência infinita.
Os homens imaginam que todas as coisas da natureza agem, como eles, tendo em
vista um fim. E imaginam que Deus dirige tudo para uma finalidade. Deus fez o
homem para quel ele lhe prestasse culto. Isto é um preconceito. Todos nascem
sem o conhecimento das causas das coisas e todos têm apetite de buscar o que
lhes é útil. O que está em sua consciência. Daí,
1) os homens imaginam ser livres, porque têm
consciência de sua volições e de seu apetite e não pensam, mesmo em sonho, nas
causas que os dispõem a apetecer e a querer, não possuindo delas nenhum
conhecimento.
2) Eles agem sempre tendo em vista um fim,
o útil que lhes apetece. Eles se esforçam sempre e unicamente para conhecer as
causas finais das coisas completadas e se colocam em repouso quando delas são
informados, não tendo mais razões de se inquietar.
3) Se não podem conseguir tais razões
finais dos outros, refletem sobre os fins pelos quais são determinados em ações
semelhantes, e assim julgam os outros por eles. Como encontram em si mesmos e
fora de si meios que ajudam para atingir o que é útil (olhos para ver, dentes
para mastigar, ervas e animais como alimento, Sol para iluminar, mar para
produzir peixes) eles chegam a considerar tudo o que está no interior da
natureza enquanto meio para seu uso. Como tais meios não são produzidos por
eles, persuadem-se da existência de um ou vários diretores da natureza (Naturae
rectores) dotados da liberdade humana, que provêm as suas necessidades e
tudo colocam ao seu uso.
4) Como ignoram a compleição daqueles
seres, julgam-na segundo a sua própria e admitem que os deuses dirigem tudo
para uso dos homens, afim de que eles se apeguem às divindades e para serem
honrados pelos humanos. E todos, projetando a sua própria compleição,
inventaram no seu engenho diversos meios de cultuar Deus, com o fim de serem
amados por Ele acima de todos os demais. E assim, obter que Ele dirigisse a
natureza inteira em proveito de seu desejo cego e de sua insaciável avidez
(avaritia).
5) Tal preconceito se transforma em superstição e lança raizes profundas na mente humana. Tentanto dizer que a natureza nada faz em vão (segundo a sua economia, na qual eles são o fim), nada mais provam que os deuses e a natureza deliram como eles. Como a natureza comporta furacões, tempestades, terremotos, etc. coisa naturais, tanto quanto as que servem utilmente aos homens, este tentam inverter toda a fábrica natural, inventando uma outra. E admitem que os juizos divinos transcendem os humanos e, portanto, a verdade nunca seria acessível a eles. Isto seria assim, se as matemáticas ocupadas não com os fins mas apenas com as essências e propriedades das figuras, não apresentassem uma outra norma da verdade, permitindo perceber os preconceitos comuns e chegar ao conhecimento verdadeiro das coisas.
5) Tal preconceito se transforma em superstição e lança raizes profundas na mente humana. Tentanto dizer que a natureza nada faz em vão (segundo a sua economia, na qual eles são o fim), nada mais provam que os deuses e a natureza deliram como eles. Como a natureza comporta furacões, tempestades, terremotos, etc. coisa naturais, tanto quanto as que servem utilmente aos homens, este tentam inverter toda a fábrica natural, inventando uma outra. E admitem que os juizos divinos transcendem os humanos e, portanto, a verdade nunca seria acessível a eles. Isto seria assim, se as matemáticas ocupadas não com os fins mas apenas com as essências e propriedades das figuras, não apresentassem uma outra norma da verdade, permitindo perceber os preconceitos comuns e chegar ao conhecimento verdadeiro das coisas.
Além da Ética, o Prefácio do Tratado
Teológico Político analisa o mecanismo pelo qual quando somos presas do
medo (E, III/18 e Escólio 2) tal crença se transforma em superstição (E, III,
50 e Escólio). Tanto o Estado quanto as superstições, como a avaritia, a fome
de bens, são explicados pela teoria das paixões. Donde a alienação explicada
por Spinoza é dupla: ela é econômica e ideológica. No artigo 5 do capítulo I do
Tratado Político Spinoza resume as teoria das relações humanas apaixonadas, tal
como a expôs na segunda metade do livro III da Ética. As paixões analisadas são
a piedade, a ambição da glória, a ambição de mando e a inveja. Todas têm uma
origem comum : a imitação afetiva, cuja dedução é dada na Ética III/27. “Se
imaginamos que uma coisa semelhante (simile) a nós e diante da qual não
experimentamos nenhum afecção de nenhum modo, experimenta alguma afecção,
experimentamos por isto mesmo uma afecção semelhante. As imagens das coisas são
afecções do corpo humano, cujas idéias nos representam os corpos externos como
se estivessem presentes em nós, ou seja, cuja idéia envolve a natureza de nosso
corpo e ao mesmo tempo a natureza presente de um corpo externo. Se a natureza
do corpo externo é simile à do nosso corpo, a idéia do corpo externo que
imaginamos, envolve uma afecção do nosso corpo similar à do corpo externo. Por
conseguinte, se imaginamos algum semelhante a nós afetado de alguma afecção,
esta imaginação envolve um afecção similar do nosso corpo. É por isso que
imaginamos que se uma coisa similar a nós experimenta alguma afecção,
experimentamos uma afecção similar à sua. Se, pelo contrário, tivessemos ódio
uma coisa similar a nós, experimentariamos, na medida de nosso ódio uma afecção
contrária e não semelhante à sua”. ( ) Quando vemos alguem sofrer, partilhamos
a sua dor (é a piedade, E. III/27) e queremos socorrê-lo (é a benevolência, E
III/27, corolário 3). Se conseguimos socorrê-lo e ele se alegra e, pois, nos
alegramos com a idéia de nós mesmos como causa (é a glória, E III/30 e escólio)
e como se trata de um sentimento muito agradável, desejamos, para reproduzi-lo,
continuar na ajuda aos outros (é a ambição da glória, E III/29 e escólio).
Mas se desejamos fazer alguém feliz, não
queremos no entanto lhe sacrificar nossos desejos próprios. Nos esforçamos,
pois, para resolver esta contradição, e tentamos converter o outro aos nossos
próprios valores, obrigando-o a amar o que amamos e a odiar o que odiamos (E,
III/31 e corolário): a ambição de glória se transforma em ambição de mando (E,
III/31 escólio) e esta ambição de mando pode gerar a pior das intolerâncias
(Id), em especial a ideológica, a intolerância supersticiosa. Se conseguimos
fazer alguém gostar do que queremos que ele goste, se ele se apossa de alguma
dessas coisas e com ela se alegra, e se esta coisa só pode ser possuida por um
indivíduo, desejamos delas gozar sozinhos e, por conseguinte, dele arrancá-la,
esta é a inveja (E, III/3 e escólio) que se manifesta sobretudo em matéria econômica.
Mas quando conseguimos privar o outro daquilo que o alegrava, ele fica triste,
temos piedade dele e o ciclo recomeça.
No artigo I do capitulo VI do Tratado
Político Spinoza afirma que os homens vivem em sociedade política não
devido à razão, mas pelas paixões, como a do medo. Ele cita o artigo 9 do Capitulo
III, onde mostrou que os homens se unem quando o medo que sentiam em comum se
transforma em indignação. Esta é uma forma de imitação afetiva (Ética III/27,
corolário 1): ela é o ódio experimentado por quem faz mal a um ser similar a nós,
e sentimos isso por imitação dos sentimentos da vítima. Imagine-se o estado de
natureza, com um indivíduo que não consegue comida. Por piedade ou desejo de glória,
alguns o socorrem. Se a ajuda é eficaz, sua piedade ou ambição de glória se
transforma em ambição de mando e de inveja, e começa a agressão contra o
“socorrido” que não aceita ser mandado ou não aceita falar sempre do socorro,
para glória do seu “salvador”. Alguns que, até então, apenas assistiam aquelas
cenas, se indignam com o mal que lhe é feito e o ajudam. E isto se complica e
se repete muitas vezes. O agredido se torna agressor e vice-versa, levando
consigo grupos e coletivos de agressores e de agredidos. E aumenta a indignação
geral. E cada um se beneficiará e também será prejudicado pelas agressões. Cada
um tem medo de todos e espera obter ajuda de todos. Uma só coisa suscita em
todos o medo e a esperança: o poder coletivo. (TP, III/3). Mas todos julgam
esta situação intolerável e se dispõe a ajudar cada um que julga ser vítima de
agressão. Cada vez que um entra em conflito, cada um deles pede socorro aos
outros, e os que se julgam mais semelhantes ao agredido, agredirão os seus
agressores. Até que o consenso imponha normas comuns para reprimir massiçamente
os que as violam e proteger quem as respeita. Há então uma potência coletiva da
multidão que assegura os obedientes e ameaça os não conformistas. Temos o embrião
da soberania política, porque, segundo Spinoza, a soberania é “o direito que se
define pela potência da multidão” (TP, II/17).
“Este direito que define a potência da
multidão, costumeiramente chama-se poder público (imperium), e ele
possui absolutamente este poder, o qual, por consenso comum cuida da coisa pública
e estabelece, interpreta, e abole as leis, defende as cidades, decida a guerra
e a paz. Se tal cuidado pertence a uma assembléia (concilium) composta
de toda a multidão, então trata-se da democracia. Se a assembléia se compõe de
algumas pessoas de escol, aristocracia. E se o cuidado da coisa pública e por
consequência o poder pertence a um só, monarquia”. ( ) Não basta que a massa
popular se una e se torne mais forte do que os indivíduos que a compõem. É
preciso que tal poder seja reposto, de modo a poder agir com eficácia no
presente e no futuro. Esta é a tarefa da institucionalização do poder. Quais são
os problemas mais urgentes da institucionalização ?
1) O comando. O coletivo é uno. Mas quem o
dirige? Existem muitos candidatos (TP, VII/5) “É certo…que ninguem gosta de ser
governado, mas de governar. Ninguém cede voluntariamente o mando para outrem (…)
É evidente que a massa do povo jamais transferiria seu direito a um pequeno número
de homens, ou a um só, se ela pudesse concordar consigo mesma e se as discussões
que se levantam com frequência nas grandes assembléias não gerassem sedições. A
massa do povo não transferirá jamais livremente a um rei o que lhe é impossível
guardar em seu poder, o direito de acabar às discussões e tomar uma rápida
decisão. Se ocorre com frequência que se escolha um rei devido à guerra, porque
os reis são mais eximios na guerra, está aí uma tolice porque, para guerrear
com maior eficácia, consente-se à servidão na paz , supondo-se que a paz reine
num Estado onde o soberano poder foi confiado a um só devido apenas pela guerra
e porque o chefe mostra principalmente na guerra seu valor (alí ele é
proveitoso para todos). Num Estado democrático, no entanto, tem-se o fato notável
de que o seu valor é bem maior na paz do que na guerra. Mas qualquer que seja a
razão pela qual se escolhe um rei, ele não pode, sozinho saber o que é útil ao
Estado (…) ele precisa de conselheiros em grande número dentre os cidadãos….”.
( ) Assim que se forma o poder político cada um, por ambição de mando, deseja
participar dele o mais possível. Seguem-se os conflitos que decidem a sorte do
coletivo.
2) A ideologia. Não basta saber quem
comanda, é preciso saber o que será comandado. O que o bem e o mal? (TP,
II/18). Como os homens se batem porque não têm os mesmos valores, pois cada um
tende a seguir seu próprio engenho (ingenio) e cada um quer impor as suas noções
aos outros, o coletivo só pode sobreviver se a autoridade politica conseguir
fazer aceitar, de modo estável, um sistema comum de valores. Como os valores
dependem das superstições pessais, é institucionalizada a superstição. Um atributo
do Estado é decidir quais religiões são autorizadas e quais proibidas. (TP,
III/10).
3) A Propriedade. Trata-se da segunda
fonte de conflitos, a inveja econômica. Como disputam as mesmas coisas, quando
elas só podem ser possuídas por um apenas (é particularmente o caso da terra),
o grupo sobrevive apenas se o soberano definir com precisão quem tem direito a
que, ou o que pertence a cada um (TP, II/23). Para isto, ele precisa fazer com
que sejam obedecidos o regime da propriedade. Tais problemas são péssimamente
resolvidos, o que gera toda espécie de disfunção institucional, que, em prazo
longo, acabam destruindo o Estado.
Disfunções da política:
Primeiro principio geral:
Não se pode obrigar os homens a fazer
qualquer coisa, é impossível fazê-los algo sem esperança de recompensa ou ameaça
de castigo. Eles não podem ser obrigados a voar. Também a pura repressão não
adianta para fazê-los crer em coisas absurdas, a não desejar o que amam, amar o
que odeiam. Os soberanos necessariamente devem obedecer tais limites. É impossível
alterar a natureza humana e fazer com que homens deixem de ser homens.
Aqui, é preciso recordar o monismo de
Spinoza. Existe apenas uma Substância (Deus ou Natureza), da qual somos
modificações. A nossa força vem da substância divina, infinita. Assim, quanto
mais próximos de Deus (mais pensamos e agimos segundo as leis natuais/divinas)
mais livres somos. Querer nos fazer agir ou pensar contra a nossa natureza é
colocar uma força finita (a de homens, poderosos mas homens) contra uma força
infinita na qual nos movemos. Um poderoso pode tentar fazer com que um indivíduo
isolado atue contra sua natureza. Ele não consegue e pode apenas dobrar a
lingua do seu objeto de ódio, mas jamais a sua mente. Se o indivíduo une-se a
outros, com rapidez de tempo e chega à simultaneidade na união, a força
coletiva é maior do que a do tirano. Assim, quando os indivíduos estão
separados porque não seguem a lei e a força divinas (naturais) eles podem ser
dominados pela tirania. Mas ao se unirem, aproximam-se do poder natural divino,
aproximam-se do infinito. E podem vencer o tirano.
Segundo princípio geral:
Quando os dirigentes ignoram e
desrespeitam a força natural divina que está neles e nos dirigidos,
ultrapassando imagináriamente os limites do direito natural, catástrofes surgem
para eles e para o Estado. Quanto mais reprimem, mais temor inspiram. O medo é
uma tristeza (Etica, III/18-Escólio 2), que implica em ódio contra os que tememos.
Se os dirigentes não sabem se manter em limites, mesmo na repressão, erguem a
indignação geral, a máquina das paixões que instaurou a sociedade política, e
que pode causar a sua dissolução (TP,III/9 e IV/4). Quando todos percebem que
podem contar com a ajuda dos outros, porque todos estão indignados contra o mal
feito contra alguns ou muitos, unem-se contra o dirigente que, no limite, é
derrubado.
Medo=Tristeza: “A Esperança é uma alegria
inconstante, nascida da imagem de uma coisa futura ou passada cuja saída é
considerada duvidosa. O Medo, pelo contrário, é uma Tristeza inconstante
nascido da imagem de uma coisa duvidosa. Se dessas afecções extraimos a dúvida,
a Esperança torna-se Segurança, e o Medo desespero. Entendo uma Alegria ou uma
Tristeza nascida da imagem de uma coisa passada, cuja saída foi tida por nós
como duvidosa. O remorso é a Tristeza oposta ao gáudio.”
“Quando se trata de medida que provoque
indignação geral, obedecendo a natureza, os homens unir-se-ão contra ela, seja
devido a um medo comum seja por desejo de vingança de algum malefício comum e,
visto que o direito da Cidade é definido pela potência comum da multidão, é
certo que a potência e direito da Cidade diminuem, pois foram fornecidas razões
para que se forme uma liga conspirativa. A Cidade certamente enfrenta perigos e
deve temê-los; como no Estado de natureza um homem depende mais de si mesmo
quanto mais razões tem de temer, também a Cidade, pertence pertence menos a si
mesma quanto mais tem a temer.” ( ) Quando ocorrem as situações de medo? Em
qual hora os governantes e governados sentem aquela paixão de modo decisivo?
Matheron cita alguns casos ilustrativos.
1/ Uma hipótese: os homens sairam neste
instante do estado natural e acabam de instituir a sociedade política, sem nunca
ter a experiência anterior de um Estado. Esta hipótese é falsa, visto que não é
possível, na filosofia de Spinoza, chegar ao “primeiro” instrumento técnico (o
martelo) ou ao “primeiro” instrumento técnico da política ou do saber científico.
É o que já se pode ler no Tratado da Reforma do Intelecto: “[…] precisamos
indicar a Via ou Método por onde chegaremos a conhecer tão verdadeiramente as
coisas que precisamos conhecer. Para isto é reciso observar de inicio que não
haverá aqui busca ao infinito: para encontrar o melhor método pelo qual
procuraríamos a verdade, não precisamos de um método para buscar este método e
para buscar este segundo método não precisaremos de um terceiro e assim ao
infinito. Pois daquele modo nunca chegaríamos ao conhecimento da verdade e a
nenhum conhecimento. É o mesmo que ocorre com os instrumentos materiais, que
daria lugar ao mesmo raciocínio. Para forjar o ferro, com efeito, é preciso um
martelo e para ter um martelo é preciso fazê-lo. Para isto, um novo martelo, e
outros instrumentos são necessários e, para ter aqueles instrumentos, outros
ainda ao infinito. E assim poder-se-ia provar que os homens não têm nenhum
poder de forjar o ferro. Na realidade puderam, com instrumentos naturais,
chegar aquele invento, embora penosamente e de maneira imperfeita, vencendo
tarefas com procedimentos fáceis. Uma vez tendo-as acabado, executaram outras
mais difíceis com menor esforço e mais perfeitamente e assim indo por gráus dos
trabalhos mais simples aos instrumentos, destes instrumentos a outros trabalhos
e instrumentos, num progresso constante, e chegaram a executar tantos trabalhos
difíceis, com pouco esforço. Assim também o intelecto com sua força natural
produz para si mesmo instrumentos mentais que aumentam a sua força para
executar outros trabalhos intelectuais, desses últimos ele extrai outros
instrumentos, ou seja, o poder de empurrar para mais longe sua pesquisa, e
continua assim a progredir até chegar ápice da sabedoria”. ( )
Assim como não existe a regressão ao
“primeiro martelo” ou ao “primeiro método”, também não existe regressão à
“primeira coletividade política”. Com isto, Spinoza dá um tiro mortal nos
programas conservadores que indicam uma “comunidade” perfeita no início da
Humanidade. Este coletivo jamais existiu. Com prudência política, pode-se
apenas recolher e aperfeiçoar no presente e no futuro o que os homens fizaram
no passado. E com o monismo, não existe fora da natureza nenhum modelo ou
paradigma da “boa” sociedade política. Nota-se que o neo-platonismo ou mesmo o
platonismo são descartados por Spinoza neste passo. Se temos um coletivo que
nunca possuiu Estado ou política, qual soberania ele dará a si mesmo? Depende
do regime a que estavam habituados “antes” de retornar ao estado de natureza.
Os judeus habituados à escravidão no Egito, não podiam viver em democracia.
(TTP, V).
O Capítulo V, do Tratado Teológico Político
apresenta razões gerais do poder político e logo a seguir deduz as consequências
para os Hebreus recem saídos do Egito. “A sociedade é útil e necessária no mais
alto ponto, não apenas porque protege contra os inimigos, mas também porque ela
permite reunir um grande número de comodidas. Se os homens não desejassem se
ajudar mútuamente, a habilidade técnica e o tempo lhes fariam igualmente falta
para manter sua vida e conservá-la tanto quanto possível. [Recordemos a Ética :
“o esforço para se conservar é o primeiro e único fundamento da virtude”] .
Ninguém teria o tempo e as forças necessárias se fosse preciso arar, semear,
colher, moer, cozer, tecer, costurar e efetuar muitos outros trabalhos úteis à
manutenção da vida. Isto, para nada fazer das artes e ciências, que são
supremamente necessárias para a perfeição da natureza humana e para sua
felicidade. Vemos, com efeito, que os que vivem como barbaros, sem civilização,
conduzir uma vida miserável e quase animal, e no entanto o pouco que eles
possuem, miseravel e grosseiro, eles só o conseguem prestando-se mútuo socorro.
Se homens fossem dispostos pela natureza de modo que só desejassem o que ensina
a verdadeira Razão, a sociedade não precisaria de lei nenhuma, bastaria
esclarecer absolutamente os mesmos homens com ensinos morais para que eles
mesmos fizessem e com alma liberal o que é verdadeiramente útil. Mas é bem
diferente a disposição da natureza humana; todos observam seu interesse, mas não
seguindo o ensino da reta razão ; o mais frequente que os homens sejam
arrastados por seu apetite apenas de prazer e as paixões (que não se preocupam
com o futuro e só dão conta de si mesmas) que eles desejam algum objeto e o
julgam útil. Daí que nenhuma sociedade pode subsistir sem um poder de comando e
uma força, e por conseguinte sem as leis que moderam e constrangem o apetite do
prazer e as paixões sem freio. Contudo a natureza humana não suporta ser
constrangida absolutamente, e como diz Seneca o Trágico : “ninguém exerceu
muito tempo um poder violento, um poder moderado perdura”. Enquanto, com
efeito, os homens agem apenas por medo, fazem o que é mais contrário à sua
vontade, e não consideram de nenhum modo a utilidade e a necessidade da ação,
mas só se preocupam em salvar sua cabeça e não se expor aos suplícios. Bem
mais, é-lhes impossível não sentir prazer com o mal e com o prejuízo do
governante que tem poder sobre ele, mesmo em seu detrimento, de não lhe desejar
malefícios e fazer-lhe tanto mal quanto possam. Nada existe mais difícil enfim,
do que arrancar dos homens uma liberdade , após tê-la concedido.
Segue-se que toda reunião humana deve, se é
possível, instituir um poder que pertença à coletividade de modo que todos
sejam levados a obedecer a si mesmos e não aos seus similes. Se o poder
pertence apenas a alguns, ou a um só, este último deve ter algo superior à
natureza humana, ou pelo menos deve se esforçar para fazer com que o vulga
creia nisso. Em segundo, leis deverão ser estabelecidas em todo Estado de modo
que os homens sejam contidos menos pelo medo do que pela esperança de algum bem
particularmente desejado. Assim, cada um cumprirá seu mister com
ardor.Finalmente, dado que a obediência consiste no fato de se executa ordens
por submissão apenas à autoridade do chefe que comanda, vê-se que ela não tem
lugar nenhum numa sociedade onde o poder pertence a todos e onde as leis são
estabelecidas por consentimento comum. Seja numa sociedade assim, pu em outra sociedade,
as leis aumentem em número ou diminuam, o povo permanece sempre livre
igualmente, pois não age por submissão a autoridade alheia, mas pelo seu próprio
consentimento. Ocorre algo muito diferente quanto um só detem o poder absoluto.
Então, todos, sem nenhuma exceção, executam as ordens do poder por submissão à
autoridade de um só. A menos que os homens sejam amestrados a desde o princípio
a ficarem presos à palavra do chefe que comanda, será muito difícil para ele,
em caso de necessidade, instituir leis novas e arrancar do povo uma liberdade
concedida certa vez.
Depois dessas considerações gerais,
voltemos à organização política dos Hebreus. Quando sairam do Egito, eles não
eram obrigados pelo direito de nenhuma nação, e podiam estabelecer leis novas
segundo melhor lhes aprouvesse, ou seja, constituir um direito novo, fundar seu
Estado onde escolhessem e ocupar as terras que desejassem. Eles não estavam
preparados para estabelecer regras de direito e exercitar o poder coletivamente
pois todos possuiam um engenho grosseiro e deprimido pela servidao sofrida. O
poder precisou ficar, pois, nas mãos de um só, capaz de comandar os outros, de
constrangê-los pela força, de prescrever enfim leis e interpretá-las. Este
poder, Moisés pôde fácilmente continuar a detê-lo porque estava acima dos
outros por uma virtude divina como ele persuadiu o povo e mostrou por numerosos
testemunhos (Exodo, capitulo 14, último versículo, [“E Jeová salvou Israel
naquele dia das mãos do egípcios; e Israel viu os egipcios mortos no mar. E
Israel viu a grande obra que Deus fez contra os egipcios, e o povo temeu Jeová:
e eles acreditaram em Jeová e no seu servo Moisés”] e capítulo XIX, versiculo
9). Ele estabeleceu portanto, e impôs regras de direito pela virtude divina que
o distinguia. Mas tomou o maior cuidado de fazer o povo cumprir o seu ofício,
menos por medo do que expontâneamente. Duas razões principais o constrangeram :
de início, a insubmissão natural do povo (que não suportava ser dominado apenas
pela força) e a ameaça de guerra que exigia, para ser feliz, que os soldados
fossem conduzidos mais pela persuasão do que pelos castigos e ameaças. Desse
modo, com efeito, cada um se esforçou de se distinguir pela coragem e grandeza
de alma do que escapar apenas do suplício”.
Como no estado de natureza “absoluto”
hipotético, ninguém era superior a outros, a primeira suposta forma de regime
soberano é a democracia. No estado de natureza ninguém comanda duravelmente
ninguém, ninguém se impõe pela sua força ou prestígio. A ambição de mandar e a
inveja está em todos, sem nenhum constrangimento, impede que a autoridade seja
dada apenas a um só ou a alguns. Logo, apenas a assembléia inteira do povo. A
democracia é a solução mais simples, mais lógica, “mais natural” (TTP, XVI)
Mesmo os hebreus, na situação posterior ao
Egito, experimentam as bases da ordem democrática. “Dado que os Hebreus não
transferiram para ninguém o seu direito, mas todos eles, como numa democracia,
renunciaram ao seu direito, e clamaram numa só voz que fariam tudo aquilo que
Deus dissesse (sem nenhum mediador expresso), segue-se por conseguinte em
virtude desse pacto, que todos ficaram completamente iguais, no direito de
interpelar Deus, de receber e de interpretar leis e de participar em todas as
tarefas da administração do Estado”. (TTP, Capítulo 17). ( ) No Estado proposto
pelo filósofo, as formas democráticas exigem a igualdade plena dos cidadãos. (
) Para perceber o radicalismo da idéia, precisamos tecer alguns considerandos
sobre o direito natural e discutir as suas teses sobre os vínculos dos homens
com Deus e entre si.
A doutrina de Spinoza é contrária à teoria
de Hobbes. O próprio pensador enunciou as principais oposições entre ambos: “a
diferença consiste em que eu mantenho sempre o direito natural e que só concedo
numa cidade qualquer direito ao soberano sobre os dirigidos na medida em que,
pela potência, ele é mais forte do que eles; é a continuação do estado de
natureza”. ( ) Ao contrário de Hobbes, no instante em que se institui a
soberania nenhum indivíduo abdica do direito natural em prol de um arbitro
posto acima da reunião societária. A igualdade entre dirigidos e dirigentes é
garantida, modificando-se apenas o âmbito e a força das pessoas e funções. No
Estado democrático “ninguém transfere o seu direito natural para um outro, a
ponto deste nunca mais precisar de o consultar; transfere-o, sim, para a
maioria da sociedade , de que ele próprio faz parte. Portanto, nessa medida,
todos se mantêm iguais, tal como acontecia antes, no estado de natureza
Spinoza, longe de exigir o combate às paixões,
ou de recusar a sensibilidade humana, afirma a preponderância das mesmas na
vida e na política. A paixão do medo não será atenuada por uma ascese ou exercício
racional. Ela apenas será afastada com o aumento da potência de uma outra paixão,
a trazida pela alegria. Para o pensador judeu se quisermos pensar a política
precisamos reunir no intelecto os extremos da tristeza e da alegria. Quando
temos a imagem de algo o consideramos presente, mesmo que ele não exista. E o
imaginamos como passado ou futuro, apenas enquanto a sua imagem está unida à
imagem do tempo pretérito ou que virá. Considerada em si mesma, a imagem de
algo é a mesma, seja unida ao passado, seja ao futuro, ou ao presente. Em
qualquer daquelas situações, a alegria ou tristeza será a mesma. Coisa passada
ou futura: enquanto somos ou seremos afetados por ela, se algo que comemos nos
fez mal, ou nos fará, etc. Nosso corpo não experimenta nenhuma afecção que
exclua a existência da coisa, porque ele é afetado pela imagem da coisa, como
se ela estivesse presente. Como temos várias experiências, quando consideramos
uma coisa passada ou presente flutuamos e não conseguimos nos manter firmes,
vendo como duvidosa a resolução do dilema que nos ameaça. As afeccões nascidas
das imagens que flutuam em nós, também flutuam segundo as imagens de coisas
diversas, até que tenhamos adquirido alguma certeza para a solução do nosso
relacionamento com a coisa. Assim, podemos conhecer a esperança, o medo
(Metus), a segurança (Securitas), o desespero, o contentamento (Gaudium) e o
remorso. “Esperança é alegria inconstante nascida da imagem de algo futuro ou
passado cuja saída consideramos duvidosa. O medo, pelo contrário, é uma
tristeza inconstante nascida igualmente da imagem de algo duvidoso. Se destas
afecções extrairmos a dúvida, a esperança se transforma em segurança, e o medo
se transforma em desespero. Falo de uma alegria ou tristeza nascidas da imagem
de algo que nos afetou de medo e de esperança. O gaudio é uma alegria nascida
da imagem de algo passado cuja saida foi considerada por nós como duvidosa. O
remorso é a tristeza oposta ao gáudio”.
A partir desse conceito de flutuação da
alma, vejamos o que enuncia o Tratado Teológico-Político: “Se os homens fossem
capazes de governar toda a conduta de sua vida por um objetivo regrado, se a
fortuna lhes fosse sempre favorável, sua alma estaria livre de toda superstição.
Mas como eles estão sempre postos num estado incômodo que não lhes pemite tomar
nenhuma resolução razoável, como eles flutuam quase sempre miseravelmente entre
a esperança e o medo, por bens incertos que não sabem desejar com medida, seu
pensamento abre-se sempre à mais extrema credulidade. Ele oscila na incerteza.
O menor impulso o joga em mil direções diversas, e as agitações da esperança e
do medo aumentam mais a sua inconstancia. De resto, observemos os homens em
outros encontros, nós os veremos confiantes no futuro e cheios de jactancia e
orgulho”. E novamente no Tratado Teológico-Politico : “Ninguém viu os homens
sem notar que, ao estarem na prosperidade, todos se gabam, tão ignorantes
quanto possam ser, de uma sabedoria tal que julgariam uma injúria receber um
conselho. No dia da adversidade, surpreendidos, não sabem qual partido
escolher: vemos que eles mendigam ao primeiro que aparece, e por mais inepto,
absurdo e frívolo que se imagine um conselho assim, eles o seguem cegamente.
Mas logo, a partir da menor aparência, recomeçam a esperar um futuro melhor ou
temer as piores infelicidades.
Que lhes ocorra, com efeito, quando estão
presas do medo, algo que lhes recorde um bem ou mal passados, eles dizem logo
que o futuro será propicio ou funesto. E cem vezes enganados pelo evento, eles
não deixam de acreditar nos bons e maus presságios. Se testemunham um fenomeno
extraordinário e que os fere de admiração, aos seus olhos trata-se de um prodígio
que anuncia a colera dos deuses, do Ser Supremo. E não dobrar sua colera através
de preces e sacrificios, é uma impiedade para estes homens conduzidos pela
superstição e que desconhecem a religião. Eles querem que toda a natureza seja
cumplice de seus delírios e ficções ridículas, eles a interpretam de mil modos
maravilhosos”. O medo é desejo de evitar o mal maior que tememos por outro
menor. (Ética, 3, 39). Assim, definem-se todos os passos seguintes na Ética,
como a audácia, desejo que excita alguem a fazer alguma ação correndo o perigo
que os seus semelhantes temem enfrentar. A pusilaminidade é o desejo reduzido
pelo medo do perigo que as pessoas semelhantes ousam enfrentar. A pusilaminidade
é só o medo de um mal que a maioria não costuma temer. Por isto, Spinoza, não a
coloca entre as afecções do desejo. A explica apenas, porque ela se opõe
realmente à audácia, tendo em vista o desejo que ela reduz. “A consternação
diz-se daquele cujo desejo de evitar um mal é reduzido pelo espanto do mal de
que ele tem medo. Consternação seria um modo de pusilaminidade. Mas ela nasce
de um duplo medo e pode ser definida mais comodamente como o medo que contem de
tal jeito um homem ferido de estupor ou flutuante, que ele não pode afastar o
mal de si. Digo ferido de estupor, enquanto concebemos seu desejo de afastar o
mal como reduzido pelo espanto. Digo flutuante, enquanto concebemos este desejo
como reduzido pelo medo. Medo de um outro mal que também o atormenta. Donde vem
que ele não saiba qual dos dois contornar”.
É útil aos homens atar relações entre si,
forjar liames que os tornam mais aptos a constituir, juntos, um só todo e fazer
sem restrições o que contribui para afirmar as amizades. (Ética, livro 4,
capitulo 12). A concórdia, nasce da justiça, equidade, honestidade. Os homens
suportam dificilmente além do que é iniquo e injusto, o que se considera
vergonhoso. Eles suportam mal testemunharem o desprezo dos costumes recebidos
no Estado. Na mesma Ética, livro 4, capítulo 16 lemos : “a concórdia,
ordinariamente tem por origem o medo, mas sem boa fé (sed sine fide)”.
Acrescentemos que o medo nasce da impotência da alma e não pertence ao uso da
razão, não mais do que piedade, embora esta última tenha a aparência da moral.
Retenhamos a expressão, “sem boa fé”. Ela é estratégica para entender a tese de
Spinoza, eivada de maquiavelismo, na questão do pacto social e do direito
natural. O pacto, para ser válido, e durável, deve seguir algumas condições. “É
uma lei universal da natureza que ninguém renuncia ao que considera ser um bem,
salvo na esperança de um bem maior, ou no medo que resulte indiretamente num
prejuizo. Ninguém aceita um mal, a não ser para evitar um pior, ou na esperança
de um bem. Trata-se daquilo que ele considera melhor ou pior, sem
necessariamente o seja de fato. Esta lei está escrita em caracteres tão fundos
na natureza humana, que é preciso considerá-la entre as verdades eternas, das
quais ninguem pode fugir”. Consequência: ninguém pode prometer, sem engôdo,
alienar-se do direito do qual goza em todos os domínios, ( ) nem se decidir a
manter esta promessa, a menos que tenha medo de um mal maior ou esperança num
bem. “Um ladrão me constrange a lhe prometer a lhe entregar tudo o que é meu.
Meu direito natural é determinado apenas pela minha força. Se posso escapar do
ladrão por uma promessa enganosa, estou autorizado pelo direito natural. No meu
interior, posso perfeitamente não ter a intenção de manter a promessa. Ou se
prometo a alguém que passarei vinte dias sem comer. Se percebo a estupidez
desta promessa, estou na obrigação de escolher entre dois males, o menor”.
Dentre as fontes de Spinoza, neste passo, uma é certa: Maquiavel, na Primeira Década
de Tito Livio, livro 3, capítulo 42: “não existe vergonha em violar as
promessas arrancadas pela força. Serão rompidas sem desonra as convenções pelas
quais se empenhou a nação todas as vezes que a força que a obrigou a contratá-la
não existe mais”.
No Artigo 5 do capitulo 1 do Tratado
Politico, pode-se ler que as relações entre os homens ou a unidade em forma
social trazem o selo de origem das paixões. A piedade, ambição de glória, ambição
de dominação, inveja. “Só pelo fato de sua constituição, eles lamentam os seus
semelhantes infelizes, e os invejam quando felizes, inclinando-se à vingança e
pouco à misericórdia, cada um querendo fazer com que os demais adotem a sua
regra pessoal de vida, aprovar o que aprova, recusar o que rejeita. Tais homens
querem, assim, ser os primeiros, entram em rivalidade, e tentam, na medida de
seu poder, esmagar uns aos outros. O vencedor, após a luta, se gloria mais de
ter causado prejuízo ao outro, do que ter ganho algo para si. Sem dúvida, assim
agindo, todos permanecem convictos de que a religião lhes ensina algo
diferente. Ela ensina a amar seu próximo como a si mesmo, isto é, se fazer tão
ardente campeão do direito do outro quanto do seu. Mas esta convicção, como
vimos, não tem efeito sobre os sentimentos. No máximo, ela influi na hora da
morte, quando a doença triunfou sobre os sentimentos e o ser humano jaz inerme,
ou nas igrejas, onde os homens não têm relações entre si. Mas ela não prevalece
no tribunal nem nas casas dos poderosos, enquanto a sua necessidade seria
certamente sentida. É verdade que a razão é capaz de combater sentimentos e
moderá-los consideravelmente. Entretanto, a via indicada pela razão nos pareceu
muito árdua. Não iremos, pois, acariciar a ilusão de que seria possível
conduzir a multidão, nem os homens públicos, a viver segundo a disciplina
exclusiva da razão. Neste caso, estaríamos sonhando com uma poética da idade do
ouro, uma história fabulosa”. As paixões que definem a política têm origem
comum naquilo que Alexandre Matheron chama, seguindo o próprio Spinoza, “imitação
afetiva”, deduzida na Ética, 3, 27. O item imediatamente anterior à proposição
27, refere-se ao orgulho, alegria que nasce do fato de que um indivíduo se
estime de modo mais do que o justo, ele se considera melhor do que é. Aliás, o
orgulho é definido como delírio, porque nele o homem sonha com os olhos
abertos. Nele o indivíduo julga poder tudo o que abarca a sua imaginação. A
partir daí, Spinoza diz que “da imaginação que uma coisa semelhante a nós (e
que antes nos era indiferente) prova por nós algum afeto, também nós experimentamos,
por isto mesmo, um afeto semelhante.” Para demonstrar essa tese, Spinoza indica
que as imagens são afeccões do corpo humano, cujas idéias nos representam os
corpos externos como se fossem presentes a nós. Estas ideias envolvem a
natureza de nosso corpo e ao mesmo tempo (simul) a natureza presente de um
corpo exterior. Se a natureza de um corpo exterior é semelhante à de nosso
corpo, a idéia do corpo exterior que imaginamos envolverá uma afecção de nosso
corpo semelhante à do corpo exterior. Por conseguinte, se imaginamos alguém
semelhante a nós afetado de alguma afecção, esta imaginação envolverá uma afecção
semelhante de nosso corpo. Pelo próprio fato de imaginarmos que alguma coisa
semelhante a nós experimenta alguma afecção, experimentamos uma afecção
semelhante à sua. Se, ao contrário, odiássemos uma coisa semelhante a nós,
experimentaríamos na medida de nosso ódio uma afecção contrária e não
semelhante à sua. E no escólio: “Esta imitação das afecções, quando ela ocorre
diante da tristeza, chama-se comiseração, mas se é à respeito de um desejo, ela
torna-se emulação, que nada mais é que o desejo de uma coisa engendrado em nós
pelo motivo de que imaginamos que outros seres semelhantes a nós também a
desejam”.
Indica um comentador italiano de Spinoza
(Tiziano Salari “Spinoza e il mimetismo del desiderio”) ( ) a grande
superioridade da intuição spinozana sobre as Paixões da alma cartesianas, a de
sujeitar as paixões, que eram discutidas como separadas uma da outra, a um
principio unificador: o desejo (cupiditas), como “a própria essência do homem,
enquanto ela é concebida como determinada a fazer algo por um afeto qualquer,
dado nela”. Desejo é o apetite com consciência de si mesmo, é o fazer coisas
que sirvam para a conservação de si. (Cf. Ética, 3, Definição das Afecções). O
mimetismo do desejo funda a comunidade política e nesta fundação o medo adquire
relevo. Segundo Lucia Nocentini (“I fondamenti naturali della civitas. La
concezione spinoziana dello Stato, individuo di individui”), a união estatal
forma uma individualidade, só distinta das individualidades que a compõem em
quantidade e força. O indivíduo Estado (imperium) e o complexo da
individualidade político social (Civitas) se cortam, segundo um duplo
relacionamento. Ao mesmo tempo que as subjetividades concretas determinam a
existência do Estado e o setor governante e institucional, segundo uma linha
ascendente, de modo paralelo os institutos descem até às subjetividades
concretas segundo uma comunicação biunivoca de cujo equilíbrio dependem a
sobrevivência e a estabilidade de todo o corpo social. ( ) Há uma relação de
reciprocidade : “Para conservar a si mesmos os individuos precisam uns dos
outros; devem pois ser conduzidos, através da busca de seus próprios
interesses, a desejar a conservação do Estado” (Tratado Político, VII, 4, 22;
VIII, 24, 31; X, 6). Sua constituição natural, diz Spinoza, conduz os homens a
procurar apaixonadamente o interesse próprio e a julgar a justiça das leis com
parcialidade, segundo elas contribuam ou não para preservar o crescimento de
seus bens. Sabe-se também que eles só tornam-se campeões da causa alheia na
medida em que acreditam, por este meio, defender seus próprios negócios. E
“reciprocamente o Estado, para se conservar, deve tender a conservar os individuos,
garantindo-lhes a segurança que é a condição fundamental da obediência civica:
em um Estado dominado pela anarquia, ou sujeito à potência dos seus inimigos,
desaparece a lealdade. (Tratado Político., X, 9-10; e todo o cap. VI)” . Em
verdade, se um corpo político pode assegurar sua eterna conservação, diz
Spinoza, quando analisa a aristocracia, será necessariamente aquele cuja
legislação, uma vez estabelecida sob forma conveniente, permanece protegida
contra todo atentado. Pois a legislação é a alma do Estado. Se ela dura, o
Estado de seu lado preserva-se. Ora, qual deve ser a legislação para resistir a
todas as mudanças? Ela deve se apoiar ao mesmo tempo sobre a razão e sobre a
disposição apaixonada própria aos humanos. Se ela só tivesse o sustento da razão,
seria fraca e sucumbiria facilmente. Jogo das paixões. Um sentimento é vencido
por outro. “Não se vê, com frequência, o medo da morte ser vencido pela violência
de um desejo aos bens externos? Ou então alegar-se-ia, os que fogem com medo do
inimigo não seriam mais detidos por nenhum outro medo? Eles se precipitam nos
rios ou penetram num braseiro, para evitar o ferro do inimigo. Uma nação pode
ser bem organizada e suas leis excelentes, tanto quanto se quiser. Entretanto,
assim como demonstra a história, os habitantes são por vezes tomados (em situações
críticas para o Estado de um terror pânico (terrore quodam panico) que nada
mais enxerga senão o medo (metus) que se experimenta no presente. Sem nenhuma
consideração pelo futuro, nem pela simples legalidade, todos os olhos se
dirigem para um homem de guerra famoso. Ele é desligado da obediência comum às
leis, decisão desastrosa lhe prolonga o seu comando ao exército e a salvação
coletiva é totalmente posta em suas mãos. A resposta a toda esta objeção do pânico,
é fácil. Numa coletividade pública bem organizada, um terror daquele gênero não
teria nascido sem motivo verdadeiro. De modo que o terror e a confusão, se
estalam numa tal república, só decorreriam de uma causa, imprevisível mesmo
para a maior sabedoria”.
O corpo político, como os demais corpos
vivos é sujeito a coisas externas e à instabilidade interna. ( ) Estas ações
podem aumentar o seu conatus ou dominuí-lo. Este é o tema do capítulo 10 do
Tratado Político. “Desde que os homens…se fazem dirigir pelas paixões mais do
que pela razão, uma multidão de pessoas é conduzida, por natureza, a unir-se
com numa só mente, não dirigida pela razão, mas por algum afeto comum, ou seja
(como dissemos no artigo 9 do capitulo 3), por uma esperança comum, ou medo ou
desejo, de vingar um dano. Porque de fato o medo da solidão é ínsita em todos
os homens, do momento em que nenhum deles, por si só, tem força para
defender-se e dar-se o necessário para viver, assim, os homens tendem, por
natureza, ao estado civil, e não ocorre nunca que eles o destruam totalmente”
(Tratado Político., VI, 1).
Quais paixões entram em jogo no espaço político
quando este último se instaura? A piedade, a ambição da glória, a ambição do
domínio e a inveja. Todas possuem uma origem comum : a imitação afetiva, cuja
dedução encontra-se no livro 3 da Ética. ( ). Quando imaginamos —a imaginação,
como vimos, possui estatuto privilegiado na política de Spinoza ( )— que um ser
igual a nós experimenta certo sentimento, também o experimentamos. Se vemos
alguem sofrer, partilhamos a sua dor e queremos aliviá-lo. Se o fazemos com
sucesso, ele se alegra e nos alegramos com ele, ou melhor, nos alegramos com a
imagem que está em nossa mente de que somos a causa de sua alegria. Tal
sentimento é agradável e desejamos repetí-lo, o que nos joga na tentativa de
sempre ajudar os outros. Aqui temos a base da busca incessante da glória, uma
ambição primitiva. Mas se queremos ajudar, também queremos atingir nossa própria
felicidade. E isto pode ser algo contraditório. Entre os desejos dos demais e
os nossos, imaginamos que os últimos são eminentes. Assim, de pessoas que fazem
o bem aos outros desejamos, como segundo passo, convertê-los aos nossos desejos
e tentamos obrigá-los a gostar do que gostamos e odiar o que odiamos. A ambição
de glória se transmuta em ambição de mando, com a sua corrente de males como a
intolerância, o pior deles na vida em comum. Se não conseguimos dobrar o desejo
alheio em proveito do nosso, passamos a odiar quem assim resiste a nós. Se
conseguimos vencê-lo, caso ele se aproprie de uma coisa que prezamos e se
alegre com isso, desejamos a sua posse para nós mesmos e dele retirar o gozo.
Estamos jogados em plena inveja, a qual se manifesta sobretudo nas matérias
econômicas. Quando conseguimos privar o indivíduo dos bens que invejamos ele se
entristece, temos dele piedade e o círculo das paixões recomeça, definindo cada
vez mais ódio, inveja, desejos em relações complexas que se tornam como que
elementos a priori de uma vida comum.
A quantidade de paixões em jogo na política
obscurece alguns fatos essenciais para a manutenção da república, e nela a
racionalidade ocupa lugar mínimo. Se a corrente apaixonada conduz ao inferno da
intolerância, inveja, mandonismo, o único passo eficaz para atenuar o círculo
enunciado acima e que permite entender a instauração pública também encontra-se
na paixão. Os indivíduos concordam em viver na comunidade porque todos têm
medo. Este ponto é comum em Hobbes e Spinoza. ( ) O medo impulsiona, no plano
da imitação afetiva, as pessoas a se indignarem ao perceber que alguém
prejudica um ser que é seu igual. Sentimos indignação por mimesis dos
sentimentos da vítima, como vimos acima. Se, no estado de natureza um homem
sente fome, um ou vários, por piedade ou ambição de glória o ajudam. Se o
auxilio é eficaz, a piedade ou ambição de glória se transformam em dominação e
inveja. Define-se melhor a agressividade. E os que enxergam esta agressividade
se indignam e começa o ciclo das indignações que movem os indivíduos. Nele, ou
alguém é visto como vítima da agressão ou agressor que merece indignação. Neste
circuito violento cada um teme o outro e quer obter ajuda de todos os demais. O
limite do circulo encontra-se na esperança de todos no auxilio do coletivo
inteiro contra seu direto agressor ou suposto inimigo. Assim, todos imaginam
que instaurar uma potência coletiva possibilita o seu melhor socorro. Note-se
que a igualdade é um pressuposto da instauração republicana, segundo Spinoza.
Como afirma Matheron, no texto que sigo ao pé da letra, “a cada vez que dois
indivíduos entrarão em conflito, cada um deles clamará pela ajuda de todos os
demais, e cada um dos outros, respondendo ao chamado e imitando os sentimentos
de alguns dos adversários que será o mais semelhante a ele (Matheron sublinha),
se indignará e lutará contra o que lhe parecerá menos: contra aquele cujos
valores serão mais divergentes dos seus ou que possuirá mais coisas dos ques
possuidas por ele. O adversário que mais se afastar da norma majoritária (o que
menos se parecer aos outros) será pois esmagado e dissuadido de recomeçar”. ( )
Esse é o primeiro passo para a instauração da república. A igualdade define a
base do Estado. Mas tal realidade apresenta problemas, todos vinculados às paixões,
de árdua resolução. A primeira aporia reside no mando. O coletivo é força única,
superior aos indivíduos. Quem dirige aquela força? Muitos desejam comandar e
poucos obedecer. Com a força coletiva, a ambição do mando se expande e com ela
a inveja do poder usufruido pelos demais. Neste passo, não se trata apenas de
impor aos outros os desejos e opiniões próprios ou de invejar seus bens
materiais. Agora a paixão se complexifica, pois além dos desejos primordiais,
ela é carregada de aspectos políticos. Como resolver as paixões contraditórias
que se tornaram assim saturadas de sempre novos elementos ? A solução torna-se
ainda mais difícil porque não se trata apenas, na comunidade, de saber quem
manda, mas o que ele manda. Torna-se preciso saber o que é o bem e o mal para a
república. Assim, aparecem as lutas sobre as opiniões e para impôr de modo estável,
ao todo idéias éticas, um sistema comum de valores. Como neste momento
primitivo da república todos são dominados pela imaginação e não desenvolveram
a racionalidade conceitual, todos pensam segundo os padrões imaginativos, todos
são supersticiosos. Trata-se de escolher dentre as superstições particulares ou
grupais a mais forte, a que será institucionalizada pelo coletivo em forma de
culto e noções religiosas autorizadas. Mas não ficamos apenas no plano da
imaginação religiosa. O mais árduo é encaminhar a questão da propriedade, pois
uma das fontes dos conflitos reside na inveja econômica. Os homens disputam as
mesmas coisas quando elas não podem ser possuidas por um deles apenas (a questão
da terra é a mais grave). A república só permanece se o soberano define com
precisão quem tem direito a que, ou o que pertence a cada um e se ele impõe um
regime da propriedade.
Todos os problemas mencionados acima,
pensa Spinoza, são resolvidos sempre de modo precário. O filósofo, que não
pensa exibir um modelo ideal do Estado, indica alguns princípios de prudência
política para garantir a estabilidade republicana. O primeiro princípio
prudencial, do qual já falamos, diz que os governantes devem ter consciência de
que os homens, quando entram no plano político, não renunciam aos seus direitos
naturais (como vimos na carta de Spinoza a Jarig Jelles) e que existem limites
para o seu mando. Como só entram no campo da política movidos pelas paixões e não
por um cálculo racional (ao contrário do que expõe Hobbes) os indivíduos só
obedecem ou desobedecem se forem incentivados pelo medo de castigos ou esperança
de recompensas. Mas tanto o medo quanto a esperança devem ser relativos a algo
que esteja ao seu alcance. Não é possível obrigar os dirigidos a voar (na época
isto era uma ordem impossivel de ser cumprida) ou a acreditar naquilos que lhes
parece absurdo ou a não querer o que amam ou amar quem lhes faz mal e odiar os
quem lhes causa o bem. Resumo de Matheron: “é impossível ir contra a natureza
humana e fazer com que os homens deixem de serem homens”. Se os governantes
esquecem essa regra prudencial e exigem o impossível dos dirigidos, eles causam
medo neles. Mas o medo traz a tristeza e esta produz ódio pela pessoa que
tememos. Se os dirigentes não assumem a prudência máxima na repressão
(sobretudo neste caso, em que ela é desprovida de razões) o medo se transforma
em ódio e indignação contra eles. Ou seja: o mecanismo que serviu para edificar
a república serve também para dissolvê-la. Quando os dirigidos não percebem
nenhuma segurança na política e constatam as injustiças mútuas impunes e as
injustiças dos dirigentes também impunes, sendo os dirigentes arrogantes e
orgulhosos, eles não aceitam mais obedecer e sua indignação está pronta para se
transformar em revolta que pode destituir não só os dirigentes mais dissolver o
Estado.
Spinoza analisa as formas de regime que
poderiam impedir o retorno ao estado de natureza como resultado da arrogância
ou imprudência dos governantes. No Tratado Político, o filósofo discute a
monarquia, a aristocracia, a democracia mostrando as suas forças e fraquezas.
Para que o regime político seja eficaz e se mantenha (o ensino vem de
Maquiavel), é preciso que ele consiga se auto-regular, remediando os erros dos
governantes e do povo. São desse tipo as medidas prudenciais que podem servir
para a diminuição dos conflitos. No setor econômico Spinoza propõe a
nacionalização do solo. “Nacionalização não significa coletivização. O que
Spinoza diz é que a terra pertencerá ao Estado e que este a alugará aos
particulares, os quais a explorarão individualmente e venderão os produtos no
mercado. Eles serão locatários, não proprietários. A diferença é enorme. Assim
será evitada a imobilização dos capitais na compra de terras” (Matheron). Deste
modo, “o acesso ao solo será facilitado ao máximo. Mas será facilitado sob uma
tal forma que a terra, deixando de ser objeto de um investimento financeiro,
deixará ao mesmo tempo de ser objeto de um investimento afetivo” (idem).
Note-se que a marcha do pensamento político de Spinoza vai da igualdade natural
à igualdade jurídica com medidas de prudência que permitam sempre repor a
igualdade. As medidas sobre a apropriação do solo marcam este ponto. A
igualdade não é atribuida ao Estado e ao soberano de modo absoluto e total. “A
oposição do ´direito de natureza´ (jus naturale) e da ´lei da natureza´ (lex
naturalis), que constitui um dos núcleos da filosofia política hobbesiana
(Leviathan, Cap. 14) é anulada por Spinoza. Neste, vida e razão, longe de se
oporem, mutuamente se enriquecem”. ( )
Como vimos, o perigo de dissolução do
Estado é mais interno do que externo, devendo-se sobretudo à imprudente arrogância
dos dirigentes que rompem a igualdade civil e política em seu proveito. Como,
para Spinoza, o princípio e fundamento da virtude e da vida é a força possuida
por todos os indivíduos de conservar a si mesmos e se expandir, o regime que
mais garante esta segurança e expansão é a democracia. “O Estado democrático é
a resposta racional às necessidades naturais. Na sua constituição são
determinantes quer a razão quer a natureza. Mas só com a razão se constrói uma
verdadeira solidariedade, só ela estabiliza. Por ela percebemos que os
diferentes poderes nada mais são do que manifestações parcelares de uma potência
comum”. ( ) Conditio sine qua non dessa forma de Estado é a idéia spinozana do
divino e da natureza. Deus, ou natureza, é a substância única, com infinitos
atributos, dentre os quais nós conhecemos a extensão e o pensamento (que nos
constituem). Os atributos combinam-se de infinitos modos, o que é a nossa
efetividade, pois somos indivíduos que existem naqueles atributos. Deus é
imanente em toda a natureza e em nós. Não existe entre nós e Deus nenhuma
transcendência e todos estamos —se fosse possível usar esta imagem— situados
numa igual distância em relação à natureza comum e à divindade. A democracia é
o regime mais natural porque não existe, nos vínculos entre a natureza e nós
nenhuma hierarquia metafísica, ao modo grego, cristão ou judaico. Essa idéia da
igualdade causou um abalo que persiste até hoje nas teorias políticas do
Ocidente. Não por acaso o pensamento spinozano jaz sob as teses democraticas
das Luzes. ( )
Ao contrário do pensamento que afirma a
igualdade radical dos entes humanos, na perspectiva spinozana, as doutrinas
cristãs ergueram um sistema hierárquico que postula a desigualdade como
fundamento e alvo do político.Um dos maiores pilares do pensamento católico é
Tomás de Aquino. Nele, a noção do universo como imensa hierarquia verticalizada
que desce do Senhor, atravessa os arcanjos e anjos, chega aos sacerdotes e
passa aos leigos poderosos para atingir os ínfimos da natura, define a doutrina
cósmica e cívica, espinha dorsal do catolicismo religioso e político. Essa
doutrina tem origem neo-platônica, em Dionisio o pseudo-areopagita. Deus
encontra- se além de todos os nossos sentidos e apenas pelos intermediários
entre Ele e nós recebemos as suas bençãos. A hierarquia encontra-se na mais
funda determinação do ser. É o que diz o teólogo e filósofo Paul Tillich, ao
citar em Dionísio o “sistema sagrado onde os graus referem-se ao saber e à eficácia”.
E arremata o pensador : “Isto caracteriza todo o pensamento católico em grande
extensão; ele não é apenas ontológico, mas também epistemológico; existem graus
não apenas no ser, mas também no conhecimento”. ( ) Há, neste sentido, uma via
para cima e uma via para baixo da escala e cada ente encontra-se num lugar
certo e determinado desde sempre. Deus está além de todos os nomes que a
teologia lhe atribui, além do espírito, além do Bem, numa “indizível
obscuridade”. Dada esta transcendência absoluta, a hierarquia celeste é a emanação
de sua luz. Quanto mais próxima d´Ele, mais a entidade se ilumina, quanto mais
distante, mais escura. Os homens não podem perceber a luz divina, porque ela é
tão intensa que os cega. Assim, os intermediários angélicos são o caminho para
o fulgor Eterno. A Igreja Católica exibe na sua forma de governo e de
pensamento social este imaginário metafísico.( ) É impossível quebrar a escala
hierárquica dos anjos aos homens. Trata-se de responder à pergunta central de
todo pensamento político sobre a teodicéia: “Porque, se Deus fez todas as
coisas, ele não as fez todas iguais?”. Agostinho apresentou a sua fórmula: non
essent omnia, si essent aequalia (se todas as coisas fossem iguais, nada
seriam). Cada coisa ocupa um lugar na escada dos seres, da mais humilde à
excelsa. ( ) A queda do arcanjo luminoso apenas destrói na aparência, jamais na
essência, a ordem universal. Lúcifer engana-se e procura enganar os homens
sobre o poder divino. Há um heliotropismo essencial no pensamento católico onde
a hierarquia insere-se com perfeição. Embora cada ser tenha o seu lugar
natural, os homens possuem o livre arbítrio (algo que trouxe lutas penosas para
a Igreja, desde Agostinho até Jansenius e Pascal). Assim, retoma-se na Igreja a
tese de Platão de que “o divino não é culpado” pelos nossos males. O mal não
pode ser atribuído ao Absoluto. “Deus”, afirma Tomás de Aquino, “não quer que
se faça o mal, nem quer que não se faça; o que Ele quer é permitir que se faça,
e isto é bom” (Summa Theologia, 1 q. 19 a 9). O espelho terrestre foi embaçado
pelo hálito pestilento do mal, mas pode ser limpo e resplandecer novamente. A
criaturas atingem a perfeição no campo iluminado pelo brilho divino. No capítulo
sobre a luz e a visão dos homens, Aquino refuta o simile entre os últimos e o
morcego “que não pode ver o mais visível, o Sol, por causa precisamente do
excesso de luz”.Os homens não nasceram para a lamentável escuridão e seu alvo é
a perfeita alegria da vista: “como a suprema felicidade do homem consiste na
mais elevada de suas operações, a do intelecto, se este nunca pudesse ver a essência
divina, segue-se que o homem nunca alcançaria a felicidade, ou que esta é algo
distinto de Deus, o que se opõe à fé (…) uma coisa é tanto mais perfeita,
quanto mais se une ao princípio”. Assim, “os bem aventurados vêem a essência
divina” (Summa 1 q. 12 a 1). Mas como pode o homem unir-se ao divino? Os anjos
e a sua hierarquia, espelhada na hierarquia eclesiástica, dão a primeira
resposta. A segunda (a que trouxe maiores violências no debate cristão,
sobretudo entre os jansenistas e calvinistas) é explicitada por Tomás de
Aquino: “é indispensável que, em virtude da Graça, seja-lhe concedido o poder
intelectual e este acréscimo de poder é o que chamamos iluminação do intelecto,
bem como chamamos luz ao objeto inteligível. Esta é a luz de que fala o
Apocalipse referindo-se à sociedade dos bem aventurados que vêem a Deus, que a
claridade de Deus a ilumina e graças a esta luz se fazem deiformes, isto é,
semelhantes a Deus (idest Deo similes)” (Summa, 1 q. 12 a 5). Os entes humanos,
pela Graça, tornam-se iguais a Deus na contemplação beatífica, na transcendência
eterna.( ) A igualdade entre eles não é possível, visto que em cada um dos
indivíduos humanos há uma relação especial com Deus mediata pela cooperação de
cada um deles com a Graça divina, o que indica uma proximidade maior ou menor
entre a consciência e Deus.
Para que possa existir visão divina, a luz
deve ser percebida segundo graus, não de imediato. A doutrina sobre o poder político
exige a tese dos graus de visibilidade contemplativa, o que prepara o óbice
maior que se instala entre o pensamento católico e as modernas idéias democráticas
sobre a igualdade, onde o divino transcendente é posto fora do trato político
ou, como dizia Laplace a Napoleão Bonaparte quando este ao folhear o texto
sobre a Mecânica Celeste, perguntou ao cientista sobre Deus: “Je n’ai pas eu
besoin de cette hypothèse”. O tema da secularização cultural e política
produziu oceanos de livros e não pode ser discutido aqui. Mas certamente é
preciso analisar, quando falamos da igualdade, a quebra com os pressupostos religiosos
aristocráticos e a nova ordem democrática que se instaura. Um dos comentários
mais belos sobre o assunto foi realizado por Erich Auerbach sobre a Divina Comédia.
A unidade daquele poema que sintetiza o pensamento ético cristão, “descansa
sobre o tema geral, sobre o status animarum post mortem; este deve ser, como
sentença divina final, uma unidade perfeitamente ordenada, tanto como sistema
teórico, quanto como realidade prática e, portanto, também como criação estética;
deve representar a unidade da ordem divina de uma forma ainda mais pura e atual
do que o mundo terreno, ou algo que nele acontece, pois que o Além, ainda que
inacabado até o Juízo Final, não apresenta, na medida em que o faz o mundo
terreno, desenvolvimento, potencialidade e provisoriedade, mas é o ato completo
do plano divino. A ordem unitária do Além, assim como Dant no-la apresenta, é
tangível da maneira mais imediata como sistema moral, na repartição das almas
nos três reinos e suas subdivisões: o sistema segue em tudo a ética aristotélico-tomista”.(
)
Spinoza e a Razão de Estado
Visto que o mundo europeu se expande no século
17, e que as fronteiras nacionais são melhor definidas pelos Estados, o
problema da igualdade entre os cidadãos torna-se agudo. A hierarquia, a que
define precedências no feudalismo e nos primeiros inícios do Estado, tomba a
cada avanço do poder real. O poder assume uma nova ordem de referências e novos
privilégios, todos referidos ao comando do Rei. Dos impostos à justiça, desta às
normas legais, incluindo-se o poder militar e de polícia concentram-se no
ministério que responde diretamente ao soberano. Embora renitentes, as formas
aristocráticas cedem lugar à ascensão burguesa e inicia-se uma espécie de
condominio do Estado pelos vários segmentos sócio-econômicos e políticos. Se o
poder do rei é sinônimo de universalidade que abarca todos os particulares,
coloca-se o problema da relativa distância de cada indivíduo ou setor em relação
ao núcleo do poder. Desloca-se a hierarquia que se fundamenta no sagrado, o
qual por sua vez sancionou, autorizou e exigiu as três ordens feudais (clero,
nobreza, os comuns). Os nexos entre dirigidos e governantes se ordenam cada vez
mais horizontalmente : quanto mais próximo da corte, mais influência, quanto
mais distante, menor capacidade de influir. A hierarquia cede, lenta e
seguramente, à distinção entre capital e provincia. Na primeira, instala-se a
cabeça do Estado e o aparato diplomático, administrativo, militar, policial e
intelectual (a máquina de propaganda do monarca). ( ) Na segunda, fica a resistência
à máquina do poder.
Tomemos um campeão do conservadorismo,
Alexis de Tocqueville. Ele analisa o crivo da igualização crescente na França e
na Europa como uma das marcas essenciais das Revoluções Francêsa e Americana.
No Ancien Régime o Estado existe em parâmetros diferentes dos encontráveis na
Idade Média. A realeza possui “outras prerrogativas, tem um outro lugar (…) é a
administração do Estado que se amplia para todas as partes sobre os restos dos
poderes locais; a hierarquia dos funcionários substitui sempre mais o governo
dos nobres. Todos estes novos poderes agem segundo procedimentos e máximas que
os homens da idade média não conheceram ou reprovaram, e que se relacionam a um
estado de sociedade do qual não tinham sequer a idéia”. ( ) Surge “a igualdade
diante da lei, a igualdade dos cargos, a liberdade de imprensa, a publicidade
dos debates, princípios novos ignorados pela sociedade medieval.” Trata-se de
uma “nova ordem social e política, mais uniforme e simples, que tinha por base
a igualdade de condições”. ( )
O poder real, para estabelecer seu
poderio, enfrenta o poder dos municípios. Em quase toda a Europa, mas
particularmente na França, a liberdade municipal, diz Toquecville, sobreviveu
ao feudalismo. Em nações como a alemã e italiana, com caraceterísticas
diversas, resistiram ao poder central várias cidades que eram pequenos Estados
e cuja potência era maior ou menor conforme o jogo da guerra, da diplomacia,
etc. Florença, cidade de Maquiavel, era uma cidade-Estado. O poder das urbes
foi atenuado no feudalismo, sendo que alguns centros quase foram dissolvidos.
Uma característica do Estado renascente é que ele encontra nas capitais e nas
cidades maiores e mais ricas, seu ponto de apoio na reconquista de
prerrogativas antes destinadas ao clero e aos nobres.
Tocqueville mostra o quanto foi importante
para o centro do Estado sufocar a potência das cidades para impor a sua
burocracia e a igualdade de todos diante do Rei. Mesmo no feudalismo, muitas
cidades estratégicas mantiveram a prerrogativa de governar a si mesmas. Nelas,
os magistrados eram eleitos, sendo responsáveis diante da população. A vida urbana
é pública e ativa, as cidades se orgulham de seus direitos e são muito ciosas
em relação a eles. ( ) As eleições foram abolidas por volta de 1692. As funções
municipais se transformaram nos offices, cargos vendidos pelo rei, em algumas
cidades, a alguns habitantes para que governassem perpétuamente. Com o fim da
liberdade, veio o sacrifício material. Afirma o autor que a transformação dos
cargos, de eleitos para vendidos pelo rei, a primeira instituição a ser
prejudicada, em detrimento dos cidadãos, foi a justiça. “A boa justiça”, diz
Tocqueville, tem como condição “a completa independência do juiz”. Quando ela
foi independente, foi possível encontrar responsabildiade, subordinação e zelo
pela coisa pública. Os governos do monarca sabiam o quanto lhes seria
prejudicial aplicar à sua administração a receita que impunham às cidades: seus
cargos de intendentes e subdelegados nunca foram postos como ofícios venais.
Assim, “Luis XI restringiu as liberdades
municipais porque seu caráter democrático lhe dava medo; Luis XIV as destruiu
sem as temer. (…) Na realidade, eles queriam menos abolir tais liberdades, do
que traficá-las e as aboliram foi, por assim dizer, sem pensar, por puro
expediente financeiro”. O direito de eleger seus magistrados é vendido e
arrancado das cidades pelos reis. Quando elas se acostumam às liberdades, o rei
as retira, para revendê-las. E o rei confessa o fundamento fiscal desse comércio
sem nenhum rubor. Diz o Edito de 1722 : “as necessidades de nossas finanças nos
obrigam a buscar os meios mais seguros de aliviá-las”. ( ) Tcoqueville cita um
Intendente que envia carta ao Controlador Geral em 1764: “Estou espantado com a
enormidade das finanças pagas em todos os tempos para resgatar os ofícios
municipais. O montante desta finança, empregada em obras úteis, seria
proveitoso para a cidade que, pelo contrário, sentiu apenas o peso da
autoridade e dos privilégios desses ofícios”. E finaliza Tocqueville: “Esta espécie
de mercadoria se avilta cada vez mais, à medida que a autoridade municipal se
subordina mais ao poder central”.
Enquanto ainda no século XV a Assembléia
geral do municipio era composta por todo o povo, no fim do século XVII esta prática
era rarefeita. No século XVIII o governo e as decisões estavam nas mãos dos notáveis,
o povo se desinteressa pelos negócios municipais e “vive como estrangeiro no
interior de seus próprios muros”. No século XVIII o governo municipal degenera
em pequena oligarquia, “algumas familias conduziam neles os negócios, tendo em
vista fins particulares, longe do olhar público e sem serem responsáveis diante
dele: trata-se de uma doença espraiada por toda a França”. As cidades perdem a
possibilidade de “impor concessões, decidir contributos, hipotecar,vender,
disputar judicialmente, controlar seus bens, os administrar, empregar o
excedentes de sua receita, sem ordens do conselho sob relatório do intendente.
Todos os trabalhos são executados sob supervisão do conselho e aprovados por
sua ordem”. Deste modo, os oficiais dos municipios, com os cargos comprados
“sentem convenientemente o seu nada” diante do poder do Rei. “O último dos
agentes reais, o sub-delegado os fazia obedecer aos mínimos caprichos. Com
frequência, ele os multava; os aprisionava; pois as garantias que, em outros
lugares, defendiam ainda os cidadãos contra o arbítrio, não mais existiam alí”.
Paro por aqui e assinalo que os capítulos
seguintes do livro são importantes sobretudo para nós, os brasileiros, pois ele
trata da independência do poder judiciário. Mas fiquemos no problema da
igualdade. As urbes medievais eram assinaladas pela sua desigual força, poder,
prerrogativas. O poder Estatal tentou igualizá-las, tornando-as centros
desprovidos de força, venais, em favor do mando concentrado na capital. Os
cidadãos que tinha direitos, desiguais mais direitos, passam a serem nutridos
pelo castigo e pelas multas, além das taxas contra as quais não era possível
recorrer. A burocracia real sufoca a independência dos municípios.
Passemos agora ao problema do mal no mundo
humano. Os comentadores do século 20, entre eles Leo Strauss, Ernst Cassirer e
outros, criticam Maquiavel por ter este tratado a ética e a política, com o mal
no seu interior, “para usar as palavras de Spinoza, como se fossem linhas ,
planos, ou sólidos. Ele não ataca os principios da moralidade; mas ele não pode
encontrar uso para eles na vida política”. ( ) No caso de Spinoza, o problema
do mal pode ser notado na Ética e, quando se trata do mal político, na Quarta
Parte. ( ) Interessa sublinhar que neste ponto da exposição, Spinoza trata ao mesmo
tempo do antigo problema trazido pela noção de paradigma moral e político,
ligados ambos à noção do que é perfeito e imperfeito, ruim e bom, certo e
incorreto.
O que é a sociedade senão o vínculo de
indivíduos humanos ? E o que são estes últimos senão um feixe complexo de paixões
as mais diversas e conflitantes? Ao encarar tal jogo inextricável dos apetites
humanos, filósofos como Platão empreendem estabelecer um governo das afecções
pelo pensamento racional. Sigo agora as sugestões já antigas de Pierre Louis,
num estudo precioso sobre as metáforas de Platão. ( ) Segundo as Leis, a alma é
anterior ao corpo (Leis, 892a, 896 b e c), deste modo ela naturalmente ela tem
uma autoridade frente a ele, autoridade similar à do senhor diante do escravo.
“Deus fez mais antiga a alma do que o corpo tanto pela idade quanto pela
virtude de comandar como senhora, e o corpo para obedecer” (Timeu, 34 c).
Interessa notar que o mando indicado no Timeu é de ordem despótica. O corpo é
submetido à servidão (já o próprio título de Spinoza na Quarta Parte da Ética
remete a este plano) e à obediência (Fedon, 80 a). Os prazeres do corpo são próprios
ao que é servil (Fedro, 258 e). Isto estabelece uma hierarquia entre corpo e
alma. E tal hierarquia não sendo respeitada, ocorre uma guerra permanente das
afecções contra a alma despótica. A maior parte dos indivíduos são escravos do
corpo (ou seja, são escravos de um escravo) (Fédon, 66 c d). Nesta passagem,
afirma-se explícitamente que “as guerras, as dissenções, as batalhas, são trazidas
pelo corpo e pelos seus desejos; pois é devido à posse das riquezas que se
produzem todas as guerras, e, se nós somos obrigados a possuir riquezas, isto é
por causa do corpo, somos como escravos prestes a serví-lo”. ( ) O corpo é um
peso que torna lenta a alma (Fedon, 81 c; Fedro 248 c, 256 b), como se fossem
chumbo nela preso (República, 519 b).
Na dialética do senhor e do escravo, a
alma está sujeita ao corpo por vínculos que a prendem /(Fedon, 64 e, entre vários
lugares). No Fedon, trata-se de cadeias de um prisioneiro enquanto no Timeu (73
d) são amarras de um navio. No Fédon, também, são pregos que fixam-na ou ainda
no Fedro (250 c) são liames que ligam o corpo e a alma como a ostra é presa à
sua crosta. Em especial, e isto possue relevância para que se pense a diferença
entre platonismo e spinozismo, o corpo pode ser para a alma um túmulo (Górgias
493 a). Outras imagens menos sombrias são usadas por Platão, como a do corpo
enquanto terreno no qual a alma semeia e se enraíza. O corpo pode ser comparado
a um templo onde habita a alma, um ser divino (Leis, 869 b).
A psicologia que reside nessas imagens
indica o sentido das metáforas platônicas sobre os embates ocorridos no ser
humano, quando se trata das paixões. Platão distingue na parte irracional (alogiston)
da alma dois instintos, a colera ou instinto de defesa (timoeidés) e o desejo
(epitimétikon). Ela é um monstro triplo (República 588 c), sendo que o elemento
irascível é comparado a um leão. Ainda na República (411 b) o timós representa
os “tendões” da alma. Certas práticas imoderadas da música, podem afrouxá-los
ou endurecê-los. Na mesma passagem, o timós é um metal que a música pode
fundir. Finalmente, o timós é um fogo que pode ser extinto. Uma alma corajosa
entregue sem medida à música torna-se rápida para encolerecer e lenta para
diminuir seu ardor. (República, 411 c).
Junto ao leão, o timós, que não raro
torna-se aliado da razão (República 440 b) a parte apetitiva da alma é uma
besta fera e selvagem (tériodés te kai agrion), um bicho que é preciso nutrir,
mas deixar bem preso. Neste campo, o desejo é comparado por Platão à fome ou
sede. A democracia, lugar dos desejos irrefreados, é similar na sua sede de
liberdade aos homens atendidos por péssimos servidores de vinho, os seus
dirigentes. Nela, os cidadãos se embriagam de liberdade. Finalmente o desejo é
comparado à uma corrente que carrega os homens. “Quando os desejos seguem
violentamente rumo a um único objeto, sabemos, suponho, que eles têm menor força
para tudo o mai, como uma corrente desviada numa só direção” (República, 485
d).
Quando se trata da questão do Mal, Platão
também personifica os defeitos humanos. Na República, os defeitos são hóspedes
que se instalam na alma do tirano como num albergue (580 a), enquanto a injustiça
é um hóspede indesejável (367 a). A injustiça, o desprezo das leis, a desmesura
são personalizadas na República (424 d, 610 e). O próprio Mal é um ser vivo
correndo atrás dos humanos, mais rápido do que a morte (Apologia de Sócrates,
39 b). O malvado é uma fera selvagem, o filósofo no meio da multidão ignorante
do bem é similar a um homem acuado por bichos ferozes (República, 496 d). Trasímaco
é apresentado assim, antes de se jogar na discussão sobre a justiça e o direito
do mais forte (República, 336 b-e). Na mesma República (588 b-e) a imagem é
aplicada ao malvado, no sentido do monstro triplo. Conservar a calma é
permanecer sóbrio (Fedro, 230 e). Quem perde o controle está bêbado de amor
(Fedro, 240 e), de prazer (Critias, 121 a), de medo (Leis, 639 a-b). A alma serena
é como um mar calmo (Fedon, 84 a). Mas tal calma é adquirida numa guerra contra
os vícios. A virtude é um combate contra as paixões e os prazeres (Laches, 191
d).
Tendo-se em vista essas imagens do mal,
pode-se passar ao problema do Estado ( ). Este é apresentado como um organismo.
Nas Leis, o Ateniense nota que um regime político, como um corpo, tem muitas
ocasiões para se desagregar (945 c). O mundo político onde os cidadãos
desrespeitam a justiça e a moral, é doente, e o malvado é uma peste (Protágoras,
322 d, República 552 c). A sociedade adoece quando mal governada, ou quando a
discórdia a estraçalha. A grandeza de Atenas sob Péricles é descrita como um
inchaço doentio (Górgias, 518 e 519 a, República, 372 a). Tal doença torna a
sociedade fraca. Um máu governo é um corpo fraco, que o menor abalo externo
basta para adoecer (República, 556 e). O legislador deve cuidar da saúde do
corpo político, como um médico, para lhe dar ou conservar a saúde. Ou então,
ele é o dirigente de um navio, um piloto, no meio das ondas causadas pelos
outros Estados. Quando faltam os pilotos, os passageiros do Estado sentem a
flutuação do mar e têm medo, insegurança. (Leis, 758 a).
Paremos essa resenha, baseada na exploração
minuciosa de Pierre Louis, e retornemos ao texto spinozano. Embora Spinoza leve
em conta os problemas apresentados por Platão (e pela ordem moral imperante no
Ocidente), ele apresenta uma reversão perceptível de imediato no diagnóstico do
Estado, do regime político, do mal e das afecções humanas. Sigamos a parte
Quarta da Ética desde o começo.
Se Platão indica que a alma deve governar
despóticamente sobre os desejos, sendo estes últimos servos dela. Quando indivíduos
ou povos não dominam assim as suas paixões, eles se tornam escravos de
escravos. Spinoza parece seguir o mesmo pensamento quando afirma ser a servidão
humana a impotência para governar, ou moderar as afecções. Quando submetido às
afecções, o homem não é sui iuris, não segue a sua própria lei (não é autônomo,
diria um kantiano) mas obedece a Fortuna, cujo poder sobre ele é tal que o
constrange a, mesmo vendo o melhor, seguir o pior.
Spinoza propõe-se, logo, explicar a causa
desse estado em que o indivíduo, atônito, não consegue unir o que é melhor com
a sua ação, mas obedece o pior mesmo ao ver o melhor. O “melhor” seria o que o
tornaria sui iuris, o “pior” o que o joga na incerteza externa da Fortuna. Os
leitores de Maquiavel percebem que os termos usados por Spinoza são extraídos
da análise executada pelo Florentino sobre o poder, o problema da sua manutenção
ou perda. Como analisar o mando político e o controle das paixões, sem discutir
as teses tradicionais sobre a perfeição e a imperfeição do Estado e dos indivíduos,
do bem e do mal que os ameaçam ou salvam ? Para entendermos todo esse movimento
noético, recordemos o vínculo entre o mal e o poder, em Platão, como os
apresentamos acima. É nuclear, para entendermos a política platônica a ser
recusada por Spinoza, discutirmos a noção de paradigma.
“Paradigma” surge num campo da língua
grega que se liga deiknumi, cujo sentido é “mostrar”, “demonstrar”, “indicar”.
Quando acrescido da partícula “para”, significa “mostrar, fornecer um modelo”.
Termo importante na técnica dos oradores. ( ) A raiz deik-, por sua vez,
refere-se ao ato de “mostrar mediante a palavra”, mostrar “o que deve ser”,
donde a conseqüência de união com dike a lei, a regra. ( ) Uma interpretação do
pensamento platônico, pelo menos em determinadas passagens, coloca o paradigma
como ilustração de uma evidência sensível que remete para uma necessidade
inteligível. ( )
A noção de paradigma cobre, na
Antiguidade, os campos hoje distantes da ciência, da técnica, das artes. A
filosofia deu-lhe vários estatutos, todos eles capitais para as atitudes éticas
herdadas por nós. Na expressão grega, paradeigma tem a ressonância de modelo,
exemplo, plano de arquiteto. Em Heródoto (5, 62), o termo é usado para indicar
o esforço dos atenienses na construção do templo, em Delfos: “sendo muito ricos
e, como seus pais, homens de reputação, eles trabalharam no templo para que ele
tivesse uma forma mais bela do que a posta no paradigma”. ( ) O contexto dessa
passagem de Heródoto é de luta política contra o despotismo. Nela, o elemento
político une-se à ética e à estética.
Em Platão, o termo refere-se, entre vários
reflexos semânticos, ao modelo do pintor. Na República (500e), Sócrates discute
com Adimantos sobre o homem ético e sábio, cujo pensamento está fixado nas
coisas eternas e verdadeiras. Um tal homem não tem lazer para inspecionar as
mesquinharias dos indivíduos comuns mas dirige seus olhos para o eterno, com
sua ordem imutável. Quanto mais admira as coisas eternas, mais ele se produz à
sua semelhança e assimila a si mesmo a elas. Após várias considerações sobre o
povo, e seu modo inconstante de viver e opinar, Sócrates retoma a tese de que, à
semelhança do homem reto, a cidade apenas será feliz “se as suas linhas forem
traçadas por artistas em pintura, os quais usam o paradigma celeste”. ( ) No
mesmo diálogo, de 591c até 592b, lemos que o homem reto une à saúde física a
justiça sapiente, operando de modo a estabelecer harmonia entre sua alma e seu
corpo. Desse modo, ele será o músico verdadeiro, afastando a desmedida que
impera na multidão, no relativo às riquezas. Ele enxerga a harmonia de sua
alma, fuge do excesso ou da falta de bens. Tal homem fará, com prazer, em público
ou em privado, tudo o que não dissolva o hábito (de hexis, donde “ética”) de
sua alma. Assim, ele não irá voluntariamente se misturar à política. Sua
participação será dirigida para a cidade, não a de seu nascimento, mas a que é
descrita na República, “cujo modelo (paradigma), talvez esteja no céu, para
quem deseja contemplá-la e se tornar seu cidadão. Mas não faz diferença alguma
se ela existe agora ou se ela está sempre se tornando. A política dessa cidade
sempre será apenas dele, e de nenhum outro”. E assim termina o livro 9 da mais
eminente obra sobre ética e política de nossa cultura. No trecho, encontramos
vinculados exemplos das artes, da música entre outras, com a busca da medida ética
e cívica. Platão julga ser necessário forçar o homem reto e sábio a se
comprometer com a vida política, mesmo que ele, voluntariamente, respire melhor
na celeste harmonia.
No Timeu, o filósofo distingue, na teorização
do universo, o que sempre é e não tem devir e o que está em devir e nunca é. O
primeiro pode ser captado pelo pensamento com a ajuda da razão, pois é idêntico
a si mesmo, enquanto o outro é conjecturável pela opinião com a ajuda da sensação
desprovida de razão, pois é gerada e perece. Aliás, tudo o que nasce deve
necessariamente nascer de uma causa, pois nada pode, sem causa, nascer. Assim,
pois, quando o operário (demiurgo) que forma um objeto, com os olhos fixos no
imutável, toma um modelo (paradigma) desse tipo, aquele objeto, executado desse
modo, deve necessariamente ser belo; mas sempre que ele olha para o que vem à
existência e usa um modelo (paradigma) produzido, o objeto assim executado não
será belo (28 a-c). E Platão passa a discutir o Demiurgo ou Pai do cosmos,
interrogando “qual modelo (paradigma) foi usado pelo Arquiteto para construí-lo?
Foi o que é sempre idêntico a si mesmo e uniforme, ou segundo o que vem à existência?
Ora, se o cosmos é belo e seu construtor é bom, é claro que ele fixou os olhos
no que sempre é”. Portanto, “ele construiu o cosmos segundo o modelo do perceptível
pelo pensamento e pela razão, e, pois, é idêntico a si mesmo”.( )
Segundo Henri Martin, a presença constante
do termo “paradigma” reforça a interpretação do pensamento platônico segundo a
qual, para ele, com exceção de uma só essência, a indivisível e imutável, todas
as demais essências das coisas nada oferecem de estável, sendo, portanto,
estranhas ao domínio da ciência. O demiurgo, o fabricante do cosmos a partir
das idéias que ele contempla, e da matéria preexistente, é descrito no Timeu em
várias formas de trabalho técnico e artístico. Ele é um modelador de cera, um
operário que recorta a madeira, um construtor que sintetiza todos os elementos,
um fabricante (poietés). ( ) Nem é preciso recordar a polissemia de poietés, no
transcurso da história ocidental. Fala-se muito do ódio platônico aos artistas.
Mas não se toma em suficiente conta as expressões da beleza no artifício
chamado cosmos, resultado de um trabalho artístico. Conhecemos os lugares
comuns da história da filosofia sobre Platão, “inimigo das artes” e defensor da
ciência. Todas as modernas objeções à teoria platônica da arte estão centradas
na assertiva de que o seu racionalismo o impede de reconhecer o caráter específico
da criação artística. Ele é acusado de modelar a arte segundo a ciência, a qual
deve copiar a natureza do modo mais verdadeiro possível. Diz-se ter ele
esquecido que a arte verdadeira não copia uma realidade existente, mas cria uma
nova realidade que brota da fantasia própria ao artista, e que o caráter espontâneo
dessa expressão garante o valor independente das puras qualidades estéticas. Não
irei ampliar este ponto, bem discutido por W.J. Verdenius. ( )
Hans-Georg Gadamer, analisa o Timeu e
retoma a idéia de Platão de que o paradigma deve ser único, porque ele serve ao
demiurgo para moldar o universo, o qual tudo inclui em si mesmo. Entre o
paradigma e as suas cópias, estas são múltiplas, haveria uma diferença
importante. Sobretudo após a moderna hegemonia romântica, que potenciou o
cristianismo, para o qual o universo é criado por Deus a partir do nada, ( )
foi desvalorizado o difícil trabalho do “poeta” demiurgo, que luta com a matéria
rebelde e fluente para construir um artefato. O mundo da arte, como o da religião,
invoca um Deus onipotente, o qual “cria” o universo ex nihilo. Essa idéia,
aplicada ao gênio romântico, afastou os termos “modelo”, “imitação”, e outros,
essenciais no argumento platônico.
De Platão aos nossos dias, encontramos nas
teorizações sobre a natureza, a sociedade, o homem, paradigmas extraídos
especialmente do nosso próprio corpo, ou dos instrumentos por nós produzidos.
Ou projetamos o cosmos e o social como imenso corpo, e ampliamos ao máximo o
modelo do organismo, ou ideamos o universo na figura de refinada máquina,
construída por um demiurgo, cujo ato devemos repetir. À linhagem mecânica, de
Platão a Hobbes e aos philosophes das Luzes, contrapõe-se a seqüência orgânica,
seguindo de Aristóteles aos estóicos, e deles aos românticos. Evidentemente,
nenhum desses paradigmas foi utilizado, sempre, de modo unívoco ou sem
“contaminações”, pelo seu oposto. Nem tudo em Aristóteles é “orgânico”. Georges
Canguilhem mostra as dificuldades encontradas, nesse sentido, para se definir
uma ou outra perspectiva. ( )
No Renascimento teve enorme impulso o
paradigma instrumental, mecânico, o que repercutiu até no século XX. Entre
inumeráveis exemplos, tomemos o do matemático Henri de Monantheuil, que
apresentou, na trilha do Timeu, Deus como um mechanikos e mechanopoios, com o
resultado de que o mundo seria “a máquina mais eficaz, sólida e bela de todas
as máquinas” (“Mundus enim hic machina est, quidem machinarum maxima,
efficacissima, firmissima, formosissima”).( )
Mas voltemos a Platão, e ao nexo entre
paradigma e conceito. Como vimos, o paradigma abarca figuras instrumentais, ofícios,
técnicas, para tentar uma aproximação da realidade. Naquela palavra, temos uma
gama de ressonâncias plásticas, científicas, jurídicas, éticas. Nos próprios
textos platônicos, especialmente no Timeu, toda a imagética mecânica não exclui
figuras de ordem vital. ( )
Passada a inspeção do conceito de
paradigma, voltemos ao texto da Quarta parte da Ética spinozana. O filósofo
toma como fio condutor de sua análise das afecções e da ordem política, tendo
como foco o problema do mal, o fato da produção técnica e artística segundo
paradigmas. “Quem faz uma coisa e a terminou diz que ela está perfeita. E não
apenas ele, mas todos os que tiverem conhecimento exato da intenção do autor de
tal obra e o seu fim, ou que acredita ter semelhante conhecimento. Por exemplo:
se alguém enxerga uma obra não acabada e sabe que o fim do seu autor é
construir uma casa, dirá que a casa está imperfeita. Dirá no entanto que está
perfeita, quando perceber que a obra chegou ao fim que o autor queria efetivar.
Mas se alguém vê uma obra, nunca tendo visto coisa igual e desconhecendo o fim
do do artista (opificis), não poderá saber se a obra está perfeita ou
imperfeita.”. Aqui, temos a questão dos fins encontrados na mente do artesão,
como elemento fundamental das reflexões sobre o trabalho humano, de Aristóteles
até Karl Marx. Nesta longa cadeia, Spinoza ocupa um lugar comum a pensadores clássicos
e modernos.
Tomemos, em Marx, a imagem da arquitetura,
a qual se tornou um paradigma exclusivo e excludente, mesmo nas interpretações
acadêmicas do texto marxista. A nota de Marx ironiza os economistas de seu
tempo, para os quais as noções de natureza ou de arte só poderiam ser aplicadas
de modo unívoco. Assim, “artificial” seria toda instituição perempta. “Natural”
seria a sociedade burguesa. Num só golpe, Marx afirma que os conceitos de
“natural” e de “artificial” constituem algo mais cheio de matizes, e identifica
o nexo unívoco de conceitos e real como idiossincrasia dos maniqueus ou fanáticos
religiosos. A seguir, vem uma réplica da acusação, “feita por um jornal germânico-americano”,
da Crítica da economia política (1859). “Diz-se ali que a minha opinião é que
todo modo particular de produção, e as relações de produção que lhe
correspondem em cada momento dado, resumindo, a estrutura econômica da
sociedade, é a base real (die reale Basis), sobre a qual se edifica uma
superestrutura (Überbau) jurídica e política, à qual correspondem formas
determinadas de consciência social. O modo de produção da
vida material determina o processo geral da vida social, política e espiritual.
vida material determina o processo geral da vida social, política e espiritual.
Aqui temos o paradigma da arquitetura. Mas
esta última supõe um arquiteto, pelo menos desde o Timeu. Se o pensamento de
Marx ficasse no prédio, sem o seu planificador e construtor, teríamos uma tese
“objetiva”: a sociedade “é” um “edifício” que se divide em dois segmentos. Tudo
o que se passa no segundo deve-se ao primeiro. Esse modo de ler conduziu às
piores caricaturas na assim chamada “Diamat”, ensinada aos milhões de
militantes. O demiurgo só é encontrado, em O capital, se formos além desta
figura estática. O “arquiteto” é analisado por Marx quando discute a produção
da mais-valia absoluta. Aqui, o filósofo alude ao instrumento como paradigma,
para chegar ao seu produtor, o artífice. “O instrumento é uma coisa (Ding) ou
complexo de coisas que o trabalhador interpõe entre ele mesmo e o objeto
(Gegenstand) do seu trabalho, e que serve como um condutor (Leiter) de sua
atividade (Tätigkeit) sobre esses objetos”. O instrumento é
modificação de algo natural, por isso recebe o nome de coisa física (Ding) ou de um complexo de coisas. Entre o sujeito e a natureza, os “objetos” (aqui Marx não usa o termo científico, Objekt, o qual implicaria uma universalidade abstrata), o instrumento é um “condutor”.
modificação de algo natural, por isso recebe o nome de coisa física (Ding) ou de um complexo de coisas. Entre o sujeito e a natureza, os “objetos” (aqui Marx não usa o termo científico, Objekt, o qual implicaria uma universalidade abstrata), o instrumento é um “condutor”.
Um “edifício”, seja ele espiritual, científico,
social, não é construído sem instrumentos. O homem, atividade permanente,
“utiliza as propriedades mecânicas, físicas ou químicas das coisas, como
instrumentos de seu poder (Machtmittel) e de acordo com seus fins”. O contexto
político da frase é claro: um instrumento não apenas aumenta a força física do
homem mas amplia o seu poder. Do exemplo arquitetônico, passando pelo
instrumento, Marx chega ao modelo orgânico. Note-se que não há repulsa de um
pelo outro, mas ambos são integrados: com o instrumento, “a natureza torna-se
um dos órgãos da atividade humana, o qual o homem anexa aos seus próprios órgãos”.
Voltemos um pouco antes dessa descrição
fenomenológica da consciência que produz instrumentos.
fenomenológica da consciência que produz instrumentos.
Reencontramos o símile do edifício não
posto na sua exterioridade, como algo fatal a ser aceito pelos homens. O edifício,
agora, é pensado com o demiurgo, sem que Marx deixe de movimentar as figuras do
instrumentos mecânicos e as propriedades físicas, químicas etc. O conceito
fundamental, então, é o de passagem entre homem e natureza (por isso, o
instrumento é definido como um “condutor”). O “edifício”, nesse passo, é o próprio
corpo humano, modificado em relação ao animal, pela arte e pela técnica. A
forma arquitetônica adquire movimento com o ato racional. Lugar-comum do
marxismo, é o símile da abelha, da aranha, dos homens. Tal paradigma vem dos pré-socráticos,
e foi elaborado por Platão, sendo fundamental no Renascimento. Gregory Vlastos,
num ensaio fundamental sobre Demócrito, sublinha a originalidade do pensador
arcaico, especialmente na idéia de que o homem constrói a si mesmo, tanto no
plano ético quanto no seu relacionamento com o cosmos.
Marx recusa o mimetismo entre homem e
animais. O capital usa, para realçar a diferença entre homens e animais,
justamente, a consciência. Uma aranha efetiva operações parecidas com as do
tecelão, e a abelha poderia envergonhar muito arquiteto humano (Baumeister),
pela construção de suas celas. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor
abelha é que o arquiteto constrói a cela na sua cabeça antes de
construí-la na cera. No final de todo processo de trabalho, emerge um resultado
que já tinha sido concebido na representação (Vorstellung) no início, logo já
existia de modo ideal (ideell). Esse campo conceitual e imagético amplia a metáfora
arquitetônica, mas sem a carga da exterioridade “objetiva”, suposta numa
leitura isolada do trecho sobre a “superestrutura”. Nesse item, Marx retoma
Hegel. Nas Lições sobre a estética, ao se discutir a arquitetura, entre outras
artes, afirma-se que ela “não imita a natureza”. Ao redor dos conceitos filosóficos
utilizados por Marx, notemos o termo “Ideell”. Este é um ponto estratégico no
que tange ao exercício do pensamento. Não temos, em nossa língua, equivalente
para o matiz, encontrável no alemão e no francês, entre “Ideal” (modelo, protótipo),
e “Ideell” (o que está no pensamento, na representação, “Vorstellung”, de quem
concebe). Muitas hermenêuticas do texto marxista perderam esse elemento ativo,
o qual supõe o ato subjetivo de imaginar e de refletir. Ainda um trecho
supostamente “conhecido”, mas necessário para definir a consistência do paradigma
da arquitetura e do demiurgo arquiteto, no momento em que Marx rompe com o
mestre Hegel. “Meu método dialético, nas suas fundações, é não só diverso
perante o de Hegel, mas o seu oposto direto. Para Hegel, é o processo de
pensamento, o qual ele transforma, sob o nome de Idéia (Idee) num sujeito
independente, o demiurgo do efetivo (der Demiurg de Wirklichen), o qual seria
apenas a sua aparência externa figurada. Para mim, pelo contrário, o ideal (das
Ideelle) nada mais é do que o material invertido e traduzido (überzetzte) na
cabeça do homem.53 Na tradução de Fowkes, “demiurgo” é posto como “criador”,54
o que impõe ao pensamento de Marx a forma cristã e romântica, retirando-lhe as
ressonâncias filosóficas originais.