ROMANO,
R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
Os laços do orgulho. Reflexões
sobre a política e o mal
Ties of pride. Thoughts on politics and the devil
Prof. Roberto Romano* .
Nos últimos estudos de Erich Auerbach, encontramos uma densa
análise sobre a paixão mais natural do ser humano, reprovada tanto na cultura
grega quanto na judaica e que ainda conduzirá a humanidade rumo aos piores
suplícios, mesmo tendo em vista os totalitarismos do século XX. O nosso tempo
começou sua carreira sob a marca do orgulho. Auerbach escolheu para dissertar o
trecho do Purgatório dantesco:
O Saùl, come in su la propria spada
quivi parevi morto Gelboé,
che poi non sentì pioggia nè rugiada!1
* Professor
Doutor em Filosofia – UNICAMP-SP; e-mail: romanor@unicamp.br
1 “Ah,
Saul! Como ali eras visto com a tua própria espada, morto em Gilboa, que depois
não voltou a sentir tombar nem chuva nem rocio!”. As próximas considerações
devem-se todas ao texto de Auerbach, do qual extraio a súmula de suas análises.
Cf. Auerbach, Erich: ’ L’orgoglio di Saul”, in Studi su Dante, Milano,
Feltrinelli, 1995, pp. 269 e ss.
1 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
A soberba de Saul, “entalhada em
baixo relevo no solo do Purgatório”, diz Auerbach, merece pleno cuidado. Na
leitura medieval do episódio bíblico, algo mais profundo do que a melancolia
surge naquele personagem. O rei usa a própria espada para arrancar o sopro
vital que lhe foi concedido (1 Samuel, 31, 4). Apenas o Senhor pode permitir
que o alento entre ou saia dos seres naturais. E Saul era um fruto natural.
Após todas as suas desobediências, a última definiu a máxima rebelião, sem
retorno, contra o Altíssimo.
Como
entender, em primeiro plano, a referida passagem no poema sublime de Alighieri?
No pensamento doutrinário anterior ao vate, durante a Idade Média, a soberba
liga-se ao pecado original, à desobediência. Adão, por orgulho, preferiu o seu
arbítrio e recusou a ordem recebida. Nesta linha, Saul ergueu-se contra o
mandamento divino quando sacrificou na ausência de Samuel, ao manter a vida de
Agague, no instante em que guardou a melhor parte do despôjo. Neste passo, o
texto é eloqüente, sobretudo se lido em nossos dias: “Tem porventura o
Senhor tanto prazer em holocaustos e sacrifícios, quanto em que se obedeça à
sua palavra?” perguntou Samuel ao rei.2
A
superbia encontra-se na origem e na fratura final da existência régia de
Saul. Auerbach não indica, mas todos os episódios desta tragédia já se anunciam
na rebeldia do povo contra Deus. Em 1 Samuel 8, 4-7 temos a chave da maior
desobediência, da qual a vivida pelo soberano é corolário: “Vê, já estás
velho”, disseram os anciãos a Samuel, “e teus filhos não andam pelos teus caminhos;
constituí-nos, pois, agora, um rei sobre nós, para que nos governe, como o têm
todas as nações”. E disse o Senhor a Samuel: “Atende à voz do povo em tudo
quanto te dizem, pois não te rejeitaram a ti, mas a mim, para eu não reinar
sobre eles”. Estabelecida a recusa popular, os passos dos governantes humanos
são previsíveis. Tal povo, tal rei. A política entra no contexto de maneira
direta, sem nenhum caráter alusivo ou alegórico. O ensinamento requer que a
soberania divina seja acolhida sem resistências, caso oposto, o Estado caminha
para a destruição.
Auerbach
explica o sentido tipológico da exegese medieval sobre a passagem em foco,
sentido inaceitável para os leitores judeus mas importante para a cristandade.
Aquela exegese ajudou poderosamente o antisemitismo católico e cristão. A
soberba de Saul representaria o sinal precursor da recusa, por seu povo, do
Cristo. Assim como Saul, mesmo pecador, foi aceito por Davi como “ungido” (2,
Samuel, 1, 14: “como ousaste pôr
2 Segundo
a Bíblia de Jerusalém (SP, Paulinas, 1973, p. 466). Na Vulgata : “Quare non
timuisti mittere manum tuam ut occideres christum Domini?” (2 Regum, 1, 14 in
Biblia Sacra Vulgatae Editionis, S. Apostolicae Typographi Ac Editores,
Marietti, 1959, p. 233).
2 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
as mãos no ungido de Iahweh para
tirar-lhe a vida?”) , também Jesus foi morto porque os judeus recusaram, nele,
o Cristo. Ambos, Saul e Jesus, seriam ungidos do Senhor. E Auerbach comenta os
versos dantescos : “Saul é interpretado como figura de Cristo, a sua morte
anuncia a Paixão, e a montanha de Gilboa significa os corações arrogantes dos
hebreus que recusam a mensagem de Cristo, e por isto o orvalho ou a chuva da
graça divina não cairão mais sobre eles, que não mais produzirão as primícias
do campo”. O suposto regicídio (suicídio real na verdade) de Saul, amplia-se
desmesuradamente para o deicídio, o que atingiu proporções tremendas na
história moderna e contemporânea. As duas suposições se transformaram em
certezas e serviram como base teológica para a doutrina de lesa majestade,
humana e divina, que alicerçou o Estado moderno. Ambas supõem a separação entre
soberano e dirigidos. (Auerback, E. op. Cit: 270-271)
O
poder, na era da razão de Estado, concentra-se na pessoa do príncipe. O segredo
é o modo de guardar, simbólica ou realmente, a pessoa que assume o centro do
mando. Todos os que dela se aproximam para observá-la ou mover seus passos
tornam-se inimigos efetivos ou em potência, e são perigosos para o Estado. Este
é um modo terrível de se entender o famoso L´État c´est moi, com a noção
de lesa majestade. Tintas religiosas nessa experiência trazem a marca do
Cristo, quando surge após a ressurreição: Noli me tangere (João,
20, 17). A pessoa do rei, como Jesus antes de subir aos céus, é intocável,
sobretudo quando se trata de revoltas e rebeliões, possíveis assassinatos do
governante.3
Na política cristã moderna, o mesmo veto dirigido aos monarcômacos
é aplicado contra os judeus e se potencia ao infinito. Os rebeldes cristãos
desejaram matar os soberanos temporais. Os judeus teriam o desejo de assassinar
o soberano divino. As penas contra os primeiros eram severas. Uma delas foi
aplicada em Ravaillac pelo assassinato de Henrique 4 (1610). O rebelde foi esquartejado
com ajuda de facas e de espadas, os lambões de seu corpo foram, a seguir,
postos em chamas. A mão que segurou o instrumento mortal foi queimada
separadamente. Se uma pena assim foi dirigida a um fiel que matou o rei, é
possível imaginar o que se reservou, no subsolo da consciência cristã, para os
supostos deicidas.4
3 Cf.
Jean-Pierre Chrétien-Goni: “Institutio arcanae. Théorie de l´institution du
secret et fondement de la politique”. In Lazzeri, Christian, e Reynié, D. : Le
pouvoir de la raison d´état. Paris, PUF, 1992, pp. 135 e ss.
4 Para
uma análise do ponto de vista cristão, cf. Albert de Rochebrochard: “Juifs et
Chrétiens au temps de la rupture. Essai historique”, na Internet, o texto pode
ser encontrado na página http://web.wanadoo.be/rupture/frame.htm O autor
procura indicar que a idéia de um verdadeiro deicídio seria impossível para os
cristãos primitivos, pois suporia de fato pensar que Deus estivesse submetido à
força humana. Ele estuda a expressão théo-ktonoi, termo criado pelos padres da
Igreja para designar os que mataram Deus, e indica que para os padres da Igreja
os atores do suposto deicidio são vários, incluindo os
3 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
romanos,
e não apenas os judeus. De qualquer modo, trata-se de um trabalho feito por
Rochebrochard com base em autores judeus e cristãos, num espírito que parece
distante das sombras antisemitas que, infelizmente, ainda hoje são fortes no
cristianismo.
Sempre
é possível dizer, com Jules Isaac, que se trata de uma “acusação capital unida
ao tema do castigo último, a terrificante maldição que pesa sobre Israel,
explicando (e de antemão justificando) seu destino miserável, suas mais cruéis
provações, as piores violências cometidas contra ele, os rios de sangue que
escaparam de suas feridas sempre reabertas, sempre vivas. De modo que, por um
mecanismo engenhoso — alternativo — de sentenças doutorais e de furores
populares, encontra-se jogado na conta de Deus o que, vista a esfera terrestre,
seguramente pertence à incurável vilania humana, aquela perversidade,
diversamente mas sabiamente explorada de século em século, de geração em
geração, e que atinge seu ápice em Auschwitz, nas câmaras de gás e nos fornos
crematórios da Alemanha nazista. Um desses alemães, desses assassinos servis,
um dos matadores em chefe (batizado cristão) disse: ‘Eu não podia ter
escrúpulos, pois eram todos judeus’. Voz de Hitler? Voz de Streicher? Não. “Vox
saeculorum.”.5
Eric
Auerbach, no texto citado, nada diz sobre tais implicações. Mas ele tinha pleno
saber sobre semelhantes nexos. E quando alguém do seu nível humano cala sobre
alguns pontos, é porque o fato posto no silêncio traz enorme dor que ultrapassa
o suportável. Auerbach foi judeu e premido pelos tormentos de sua cultura. Com
Leo Spitzer, outro judeu da mais elevada formação espiritual, ele sempre esteve
“atento aos textos chave e aos movimentos profundos, ao essencial”(Várvaro, A.,
1987: 8). Minha pequena suspeita reside no silêncio do intérprete. O texto
sobre o “O orgulho de Saul” termina com uma análise do juízo cristão sobre a
recusa de Jesus pela comunidade judaica. Aquele juízo armou tropas e massas
contra o povo judeu e lhe abriu as portas do inferno nazista. O não dito no
texto de Auerbach, penso, foi uma advertência sobre as origens ideais pouco
explicitadas nas políticas do anti-semitismo, raízes malditas no solo de uma
religião universal — a cristã — que deve reverência máxima ao judaísmo.
O
estudo de Auerbach desce fundo, pois envolve o sombrio anti-semitismo e toca
num ponto comum entre as formas judaicas de pensamento e as cristãs, traço que
julgo estratégico para a ética dos próximos tempos. Não que ele tenha sido
irrelevante no pretérito. Pelo contrário. Refiro-me ao já mencionado tema do
orgulho. Como vimos, pela interpretação do grande crítico literário e pelas
passagens do livro de Samuel sobre Saul, a
5 Jésus
et Israel. Paris, Fasquelle, 1959, pp. 351-552. Existe tradução para a nossa
língua, realizada pela Editora Perspectiva.
4 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
soberba integra a essência do
poder, quando este imagina separar-se da soberania divina. Os resultados são
trágicos para o líder que desobedece e para o povo.
A
tradição cristã enxerga no orgulho a origem da ruptura entre Deus e o homem. Na
doutrina católica, desde os Evangelhos, o orgulho marcou uma das
piores tentações de Cristo, em passagem unida diretamente ao poder político.
Importa recordar o apelo de Satan a Jesus:
Levou-o
ainda o diabo a um monte muito alto, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a
glória deles, e lhe disse: ´Tudo isto te darei se, prostado, me adorares´.
Então Jesus lhe ordenou: ‘Retira-te, Satanás, porque está escrito : Ao Senhor
teu Deus adorarás, e só a ele darás culto’. (Mateus, 4, 8- 10)
Na
Primeira Epístola de João três coisas afastam Deus e homem, a partir dos
impulsos deste último: a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos, a
“soberba da vida” (2, 16).6 O útimo elemento liga-se ao poder
político, como enunciam os comentaristas abalizados do catolicismo.7 A
fórmula grega (alazoneia) utilizada para expressar superbia8, tem
ao mesmo tempo uma constelação de significados trágicos e ridículos. Na língua
política grega o termo implica a impostura perigosa, sobretudo nos discursos
demagógicos que mais imitam o verdadeiro. Os gloriosos são personagens
tragicômicos que usam palavras e signos para enganar os incautos (Hesk, J.,
2000: 232). A sátira, sobretudo a de Luciano, relevantíssima na cultura cristã
primitiva (Mattioli, e., 1980), nutre-se quase que totalmente da crítica à alazoneia.
(Braham, R. B., 1989)
No
Eclesiástico, livro considerado canônico pela Igreja Católica, o
tema do orgulho segue imediatamente após o do bom governo:
tal o
governante do povo, tais os seus ministros; qual o que governa a cidade, tais
todos os seus habitantes. Um rei sem instrução arruinará seu povo, uma cidade
será construída graças à inteligência dos chefes. Nas mãos do Senhor está o
governo do mundo; ele suscita, no tempo oportuno, o homem que convém. (10, 2-5)
E
logo a seguir:
o
orgulho é odioso tanto ao Senhor como aos homens, e ambos têm horror da
injustiça. O poder passa de uma nação a outra pela injustiça, pela violência e
pela riqueza (…) O Senhor derruba o trono dos poderosos e assenta os mansos em
seus lugares. O Senhor
6 Na
Vulgata: “Quoniam omne quod est in mundo concupiscentia carnis est, et
concupiscentia oculorum, et superbia vitae” (ed. Cit. P. 1214).
7 No
mundo político ocorre “um desejo incontrolado de honras, estima, hierarquia,
pompa e espetáculos, ligados aos vícios do orgulho, ambição, vanidade, e
auto-exaltação”. Cf. A Catholic Commentary on Holy Scripture, Bernard Orchard
(Ed.), London, Thomas Nelson and Sons Ldt., 1951, p. 1187.
8 Cf.
Novum Testamentum Graece et Latine (Libreria Editrice Vaticana, Vaticano, 1981)
p. 1262.
5 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
arranca
a raiz dos orgulhosos e planta os humildes em seu lugar. O Senhor destrói o
território das nações e aniquila-as até o subsolo.(10, 7-9 e 14-17)
A
chave da leitura católica encontra-se no versículo 14 desse trecho: “Initium
superbiae hominis apostatare a Deo” (O princípio do orgulho é o homem
afastar-se do Senhor). A soberba inspira o afastamento em relação a Deus, mas
também suscita a tentativa sacrílega de atingir o divino com as próprias mãos,
como na Torre de Babel. Diz o comentário católico,
o
escritor sacro foi movido pela convicção profunda de que o governo absoluto de
Deus sobre o mundo lhe ensina que a tentativa humana desagradou o Senhor e a
narrativa sugere que o pecado foi a desmesura do orgulho humano e da
auto-suficência. (A Catholic Commentary..., 1951: 192)
O
maior sinal do orgulho, unido à tentativa de exercer contra Deus o poder
absoluto sobre o universo, encontra-se na figura de Satan. No trecho que
mencionei acima, sobre a tentação de Jesus, resume-se o núcleo do cristianismo
no relativo ao nexo entre política e saber religioso. Naquela passagem, Jesus
chama o tentador com o seu nome de origem — Satan— enquanto a
tradução grega traz a palabra diábolos, cujo significado é “um
inimigo”, ou acusador legal. O diabo é o grande acusador do homem diante do
Altíssimo. (Jó, 1, 6-2,7)
Na
Cidade de Deus,9 Agostinho analisa o orgulho diabólico e o insere
na flutuação humana entre guerra e paz, exatamente o campo da luta pelo governo
dos homens. Todo ser deseja a paz. Mas também é sedento de glória. E surge o
desejo impossível de impor a todos os demais entes a paz que exalta apenas um
deles. Agostinho toma de empréstimo a Virgílio a figura de Caco, o malvado.10 Totalmente
solitário, sem mulher, filhos, amigos, sem mesmo seu pai Vulcano, ele só deseja
a paz do seu próprio corpo e nada concede aos outros e de todos arranca o que
possuem. Sua natureza se rebela contra ele. Mas até mesmo as mais ferozes
bestas, afiança o pensador cristão, das quais se deriva sua parte natural,
buscam um tipo de paz. Os poderosos que armam guerra para o domínio de outros
povos buscam transformá-los em seu povo e assim atingir uma espécie de paz. A
sua marca, assinala Agostinho, é a soberba.
Porque
a soberba é a imitação perversa de Deus. Ela odeia o companheirismo da
igualdade sob Deus e deseja impor seu próprio domínio sobre seus iguais, em
lugar do
9 Livro
29, capítulo 12.
10 Eneida,
8, 190 ss. Dante retoma a figura de Caco, o ladrão fraudulento, que procura um
outro ladrão, o qual ousou blasfemar o nome de Deus. “Ov´è, ov´è l ´acerbo?”.
Todo o campo semântico do trecho liga-se à soberba monstruosa. Cf. Inferno,
Canto 25, 13-27.
6 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
governo
divino. Logo, o soberbo odeia a paz justa de Deus, e ama a sua própria paz
injusta.11
Temos
aí todas as marcas diabólicas do poder, inclusive nas suas extensões imperiais
que se afirmam como propositoras da paz quando, na verdade, impõem apenas certa
paz adequada aos seus parâmetros, não aos divinos.
Sed
numquid, domine, qui solus sine thypho dominaris, quia solus verus dominus es,
qui non habes dominum….. “Mas Senhor, vós que sois o único que sabeis
comandar sem orgulho, porque sois o verdadeiro Senhor e porque não tendes um
Senhor…”. Todo o capítulo de Confissões que se inicia com essas
frases trata do mando político. Existem ofícios, sobretudo o governo, nos quais
os homens são obrigados a desempenhar o papel de amados e temidos pelos
dirigidos. Eles recebem a todo instante a tentação demoníaca com a lisonja.
“Ótimo, ótimo” é o que diz o diabo quando agem os líderes políticos. O inimigo
dos homens quer fazê-los “semelhantes a ele, não por uma união de amor, mas a
fim de partilhar seu suplício; pois ele quis instalar o seu trono no norte,
para fazer de nós, nas trevas e no frio, escravos do perverso e tortuoso
imitador da vossa potência”. Duas observações sobre esses pontos. Em primeiro
lugar, o termo usado por Agostinho — thypho— para definir o
orgulho: a palavra vem do grego para o latim e significa “inchaço”,
seguindo-se, metaforicamente, a soberba. Mas há um outro significado na
constelação conceitual do termo. Ele se aplica, desde o saber médico helênico,
a diversos tipos de febre marcadas pela estupidez em que se encontra o doente,
seguindo-se o embrutecimento que leva à desrazão, ilusão, jactância, vaidade. O
enunciado envia também para “enceguecer, como na fumaça” ou ficar cego pela
arrogância. As radiações da palavra já se encontram na lingua clássica com
sentido cômico Thyphedanos em Aristófanes, que quer dizer, o
estúpido que tem o intelecto nas nuvens. (Vespas, 1364).12
Segunda
observação: o neoplatonismo usou e distorceu a idéia platônica da imitação do
divino pelos homens, a assimilação ao deus. Trata-se da omoiosis na
qual o divino penetra nos humanos. Ao longo do pensamento teológico-político
medieval, o soberano é apontado como gemina persona, humano por
natureza e divino pela graça. O príncipe ostentaria uma tênue semelhança com o
Pai invisível, soberano celeste. O rei legítimo realiza uma christomimesis
que pode garantir, na obediência às suas ordens, a submissão ao Senhor
11 Cito
na tradução inglesa de R.W. Dyson. Cambridge, Univ. Press, 1998, pp. 933-936.
12 Cf. P.
Chantraine, Dictionnaire étymologique de la langue grecque, histoire des mots,
(Paris, Klincksieck, 1984), V. 2, p. 1147.
7 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
(Kantorowicks, E. H., 1970: 87 e
93-94). Na literatura cristã primitiva, o uso da mimesis entre
criaturas racionais e Deus surge na Epístola de Tiago. Nenhum homem consegue
domar a língua, pois ela é mal incontido e cheio de veneno letífero. “Com ela
bendizemos ao Senhor e Pai; também com ela amaldiçoamos os homens que foram
criados à semelhança (omoiosin) de Deus”. (3, 9)13
As
características especulares dessa noção definem, durante dois mil anos de vida
cristã no Ocidente, o governo do mundo e sua referência mimética diante do
divino. Há um diálogo entre certo jesuíta e um chinês que mostra este ponto.
Pergunta o padre ao oriental se este imagina, como blasfemador, ser igual a
Deus e acreditar-se à altura de finalizar coisas realizadas por Ele. O chinês
diz que sim, deixando entender que podia também criar o céu e a terra. O
jesuíta é obrigado a anuir, dizendo ser exato que, se falamos de uma coisa,
nossa inteligência a percebe como imagem, cujo significado na lembrança é o de
uma criação. Assim, é possível, sem vê-los, falar do sol e da lua como de uma
criação. O nexo entre modelo e reflexo é mimético, e foi estabelecido no
pensamento neo-platônico, sobretudo em Plotino. “O espelho está aí”, afirma,
“uma imagem se produz (…) o mesmo ocorre na alma. Se esta parte de nós mesmos,
na qual surgem os reflexos da razão e da inteligência não é agitada, aqueles
reflexos são visíveis ali. Mas se o espelho está fragmentado, devido a uma
quebra ocorrida na harmonia do corpo, a razão e a inteligência agem sem
refletir-se nele e ocorre então um pensamento sem imagens”. Plotino teve muita
relevância para Goethe. O diálogo acima entre o jesuíta e o chinês esteve na
mente daquele poeta, o que testemunha o projeto de uma cena do Fausto onde
ocorre o debate com Mefisto disfarçado de estudante. Rembrandt antecedeu Goethe
na ideação do Fausto especular. Uma gravura de 1652 mostra o doutor na mesa de
trabalho, ao redigir o pacto com o diabo. Atrás dele há um crânio sobre uma
fieira de livros. Na sua frente, a janela ostenta uma roda brilhante que traz a
inscrição INRI (Jesus Nazarenus Rex Judeorum) e no seu interior
vêm as inscrições ADAM + TE + DAGERAM e AMRTET + ALGA + ALGASTINA. Trata-se de
uma aparição divina cuja luz é insustentável e adverte o pactuário. Este ergue-se,
desconcertado, com a pena na mão. Fixa a imagem, não
13 Joseph
M. Willmouth: “An Exegetical Word Study and Commentary (King James Version)”
http://www.bibleteacher.org/James05.HTM. Para a idéia neoplatônica e política
do termo, cf. Ada Neschke- Hentschke: Platonisme Politique et Théorie du Droit
Naturel. (Louvain/Paris, Éditions de l ´Institut Supérieur de Philosophie,
1995), p. 97. O tema serviu, não raro, para jogar sobre o pensamento de Platão
sombras místicas alheias a ele. Maria Sylvia Carvalho Franco, em trabalho
Inédito sobre o Renascimento, discute com rigor estas mutações que fazem de
Platão um místico, ao modo de Ficino, desconhecendo a materialidade mesma dos
diálogos.
8 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
diretamente, mas num espelho
côncavo esférico, sustentado por uma sombra.14 Todos esses pontos mostram a
relevância, ao longo da cultura cristã, ou da que se edificou contra ela, da mimesis
teológica. É possível refletir a luz divina de modo correto? Se
pensarmos que o espelho sempre inverte o modelo, mesmo as imitações mais
fidedignas são infiéis ao original. Se o próprio espelho é distorcido, ou
quebrado, a imagem sagrada desaparece e surgem as trevas do ego conquistado
pelo demônio.
Quando
Agostinho afirma que o diabo imita o divino de maneira tortuosa, e que ele nos
incentiva a fazer o mesmo, estabelece que a busca de arrancar do poder as suas
luminosas bases celestiais apenas reforça as trevas do mundo. Tudo se
transforma no contrário, a partir deste momento. Todas as perversões tornam-se
previsíveis. Esta representação agostiniana encontra-se no mais profundo da
alma católica quando se trata de pensar o exercício do mando. Naudé, pensador
moderno, diz que nos golpes de Estado “tudo se inverte, os efeitos precedem as
causas, nada do que se espera ocorre: ‘nos golpes de Estado, vemos cair a
tempestade que não se esperava rugir nas nuvens, ante ferit quam flamma
micet; as matinas são ditas antes que elas soem; a execução precede a
sentença (…) um sujeito recebe o golpe que imaginava dar, outro morre quando
pensava estar seguro, outro sofre o que não imaginava; tudo se transforma em
noite, no obscuro entre as brumas e as trevas’. É cativante ouvir em Naudé os
verdadeiros acentos satânicos nesta descrição. Não é uma caraterística
diabólica que tudo se faça invertido? As missas negras não se realizam sob os
auspícios de uma cruz de cabeça para baixo? Não é possível dar melhor a
entender esta consciência da incomensurabilidade dos espaços políticos”.15 A imitação
correta supõe a legítima hierarquia vertical onde todos os entes estão em seu
lugar. Amigo dos paradoxos, Agostinho aponta os hipócritas inchados de orgulho
que fazem profissão de combater a soberba… de modo soberbo, os chamados
“campeões da humildade”, excelentes imitadores de Satan.16
O
teatro de Shakespeare apresenta semelhantes entes satânicos. Se Coriolano
apresenta-se como orgulhoso confesso, Ricardo 3 é hipócrita autor dos golpes de
Estado mais terríveis que a mente humana poderá conceber. Na peça, os soberbos
são embaídos pela astúcia do grande enganador. É o caso de Lord Hastings que se
acreditava invulnerável e defendia a
14 Para
esta passagem, cf. Jurgis Baltrusaitis, Le miroir essai sur une légende
scientifique. (Paris, Le Seuil, 1978), p. 88
15 Naudé
é citado em Etienne Thuau: Raison d´État et pensée politique à l ´époque de
Richelieu, (Athènes, Ed. de L´Université de Paris, 1966), Cf. Jean-Pierre
Chrétien Goni, op. cit. pp. 135-136.
16 Cf.
St. Augustine´s Confessions, trad. William Watts (Cambridge Massachusets,
Harvard university press, 1979, coll. Loeb Classical Library, 17, Latina),
Livro 10, capítulos 36, 37, 38. pp. 182-193. .
9 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
legalidade. Golpe de Estado sim,
imaginava ele, mas nos limites do direito. “Três horas antes, ainda, ele
defendia a legitimidade, pois recusara associar-se à sua violação evidente. Ele
quisera salvar os restos de pudor, de honra. Ele tinha sido corajoso por um
instante. Ele tinha sido…”. A cena do poder é noturna e nela “por
um curto momento apenas, um raio de sol transpassa no meio dia as nuvens
espessas”. Ricardo 3, o golpista, exige que toda a sua entronização seja feita
“segundo a vontade popular”. Assim, “ele surge no balcão e diz seu rosário. Ele
é rei pela vontade de Deus”. Na escada cósmica e política, Ricardo 3, no início
da tragédia, sente-se como um demiurgo poderoso, a exemplo do Príncipe
maquiavélico. “Mas Shakespeare é mais impiedoso do que o autor do Príncipe.
Ricardo 3, quando sobre a escada (…) deixa de ser o carrasco e se transforma em
vítima. Ele foi tomado pela engrenagem”. Nos golpes de Estado jamais se diz que
eles são feitos para o interesse dos golpistas. A exemplo do rei
monstruosamente diabólico, eles usam a legalidade como desculpa (os antigos
governantes a desobedeceriam) e as aparências são piedosas. Satan inverte
todos os sinais17 porque iniciou sua carreira na tentativa louca de
subverter a escala ontológica que vai do ser divino ao mais humilde ente natural.
Um
dos maiores pilares do pensamento católico é Tomás de Aquino. Nele, a noção do
universo como imensa hierarquia verticalizada que desce do Senhor atravessa os
arcanjos e anjos, chega aos sacerdotes e passa aos leigos poderosos para
atingir os ínfimos da natura, define a doutrina cósmica e cívica,
espinha dorsal do catolicismo religioso e político. Essa doutrina tem origem
neoplatônica, em Dionísio o pseudo-areopagita. Deus encontra-se além de todos
os nossos sentidos e apenas pelos intermediários entre Ele e nós recebemos as
suas bênçãos. A hierarquia encontra-se na mais funda determinação do ser. É o
que diz o teólogo e filósofo Paul Tillich, ao citar em Dionísio o “sistema
sagrado onde os graus referem-se ao saber e à eficácia”. E arremata o pensador
protestante: “Isto caracteriza todo o pensamento católico em grande extensão;
ele não é apenas ontológico, mas também epistemológico; existem graus não
apenas no ser, mas também no conhecimento”. Há, neste sentido, uma via para
cima e uma via para baixo da escala, e cada ente encontra-se num lugar certo e
determinado desde sempre. Deus está além de todos os nomes que a teologia lhe
atribui, além do espírito, além do Bem, numa “indizível obscuridade”. Dada esta
transcendência absoluta, a hierarquia celeste é a emanação de sua luz. Quanto
mais próxima d’ Ele, mais a entidade é luminosa, quanto mais distante, mais
escura. Os homens
17 Toda
esta passagem é extraída de Jean Kott: Shakespeare, notre contemporain. (Paris,
Payot, 1978), pp. 29- 49
10 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
não podem perceber a luz divina,
porque ela é tão intensa que os cega. Assim, os intermediários angélicos são o
caminho para o fulgor Eterno. A Igreja Católica exibe na sua forma de governo e
de pensamento social este imaginário metafísico.18 É impossível quebrar
a escala hierárquica dos anjos aos homens. Trata-se de responder à pergunta
central de todo pensamento político sobre a teodicéia: “Por que, se Deus fez
todas as coisas, ele não as fez todas iguais?”. Agostinho apresentou a sua
fórmula: non essent omnia, si essent aequalia (se todas as coisas
fossem iguais, nada seriam). Cada coisa ocupa um lugar na escada dos seres, da
mais humilde à excelsa.19 A queda do arcanjo luminoso apenas destrói
na aparência, jamais na essência, a ordem universal. Lúcifer engana-se e
procura enganar os homens sobre o poder divino.
Na
Summa contra os gentios, Tomás de Aquino comenta detalhadamente a
idealização de Satan e acentua o mesmo aspecto hierárquico ensinado por
Agostinho. O pecado maior é o desejo de igualar-se a Deus. E isto supõe “o
desejo de ser a regra dos outros e não regular sua vontade pela de um outro
superior, é querer o primeiro lugar e não querer submeter-se de algum modo:
pecado do orgulho. Assim, diz-se com justeza que o primeiro pecado do demônio
foi o do orgulho. Mas um erro no princípio é fonte de erros variados e
múltiplos; esta primeira desordem da vontade no demônio é a origem de pecados
múltiplos em sua vontade; ódio em relação a Deus que resiste ao seu orgulho e
pune com justiça sua falta, inveja em relação ao homem, e muitos outros
semelhantes”.20
Da
hierarquia celeste, segue-se a terrestre e política. Repercutem no texto de
Aquino os escritos de Dionísio, o pseudo-Areopagita, sempre pelo filtro de
Agostinho: “um soldado está sujeito ao seu rei e ao seu chefe de exército; em
sua vontade ele pode buscar o bem de
18 Estudo
há bom tempo esta doutrina hierárquica. Considero os seus detalhes desde a
minha tese de doutoramento sobre a Igreja e a política (Cf. Roberto Romano,
Brasil: Igreja contra Estado, SP, Kayrós Ed. 1979). Ainda julgo insuficientes
os elementos teóricos para publicar um livro sobre o tema. Mas penso que ele é
essencial para se entender os pressupostos da política católica, tanto no
interior quanto no relacionamento da Igreja com a sociedade civil e política.
Desde Lorenzo Valla, o estudo desse autor foi modificado, a partir do seu
próprio nome. A partir das análises filológicas de Valla, a lenda que envolveu
a suposta presença de Dionisio no areópago, quando Paulo de Tarso pregous aos
incrédulos gregos o Cristo. Todo o tema é difícil e fascinante, mas não posso
desenvolver, aqui, os seus meandros. Os leitores que desejem informações sobre
o assunto, leiam os textos do próprio Dionísio. Uso para os fins deste trabalho
a edição dirigida por Maurice de Gandillac, Oeuvres complètes du Pseudo-Denys,
l´Aréopagite (Paris, Aubier, 1943), e também a edição magistral da Hierarquia
Celeste (Cf. Roques, René, Heil, Günter, et Maurice Gandillac : Denys l
´Aréopagite, L´Hierarchie céleste, Paris, Cerf, 1958). Para uma síntese
compreensiva do problema, cf. Paul Tillich : A History of Christian Thought.
From its Judaic and Hellenistic Origins to Existentialism (NY, Touchstone Book,
1967).
19 Ainda
hoje, um livro sugestivo é o escrito por Arthur O. Levejoy: The Great Chain of
Being (Cambridge, Harvard University Press, 1936 e 1964). Para o assunto
tratado neste ponto de minha exposição, cf. o capítulo III, “The chain of being
and some internal conflicts in medieval thought”, pp. 67 e ss.
20 Summe
contre les Gentils, Trad. Bernier, R. e outros, (Paris, CERF, 1993), Livro 3,
CIX, pp.651-653.
11 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
seu chefe, e não o de seu rei, ou o
contrário. Mas se o chefe recusa a ordem do rei, a vontade do soldado será boa
se recusar a vontade do chefe em favor da real; ela será ao contrário má, se
obedece a do chefe contra a do rei, pois a ordem de um princípio inferior
depende da ordem do princípio superior.” As substâncias separadas, adianta
Aquino, “não são apenas ordenadas em relação a Deus, mas umas em relação às
outras, da primeiro até a última”.21 O universo inteiro segue, dos
anjos aos governantes, a ordem hierárquica essencial. “A bondade da criação não
seria perfeita sem uma hierarquia dos bens segundo a qual alguns seres são
melhores que os demais; sem isto todos os graus do bem não seriam realizados e
nenhuma criatura seria semelhante a Deus por sua preeminência sobre as outras.
Assim a bondade última dos seres desapareceria com a ordem feita de distinção e
disparidade; bem mais a supressão da desigualdade dos seres arrastaria a
supressão de sua multiplicidade: um é o efeito melhor do que o outro pelas
próprias diferenças que distinguem os seres uns dos outros, como o vivente e o
inanimado e o racional do não racional”. Esta escala cósmica e ontológica
(sobremodo axiológica) continua na soberania política: “a perfeição para todo
governo é prover os seus súditos no que diz respeito à sua natureza, tal é a
noção mesma de justiça nos governos. Do mesmo modo, pois, que para um chefe da
cidade opor-se — se não for apenas de maneira monentânea em função de certa
necessidade —a que os súditos cumpram sua tarefa , seria contrário ao sentido
de um governo humano, do mesmo modo a sua natureza seria oposta ao sentido do
governo divino.”22
Aquino,
com base na doutrina da hierarquia celeste, escreveu minuciosas observações
sobre o livro de Jó.23 As mais relevadoras, no vínculo entre poder e orgulho,
encontram-se em notas sobre os derradeiros versículos do poema. Diz Tomás:
“após o Senhor descrever as particularidades do diabo sob a imagem do elefante,
o maior dos animais terrestres, ele o descreve na figura do Leviatã, ou da
baleia que é o maior animal marinho”. O poder do Leviatã não pode ser evitado
ao modo humano, pela lisonja ou ameaças. Assim, “o diabo não teme o homem”. A
potência de Satan é imensa. E Aquino enfrenta, ao seu modo, o problema
arcaico da teodicéia: Deus não é cruel por ter suscitado o poder demoníaco.
“Por tê-lo suscitado não sou cruel”. A onipotência divina não poupará o
poderoso Leviatã : “todas as coisas sob o céu são minhas”.
21 Somme….ed.
cit., Livro 3, p. 653.
22 Somme,
Livro 3, LXXI, ed. cit. pp. 550-551.
23 Cf. Job,
un homme pour notre temps de Saint Thomas d´Aquin, Exposition Littérale sur le
livre de Job (Paris, Tequi, 1980).
12 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
Aquino segue para as linhas finais:
“Nenhuma potência sobre a terra é-lhe comparável. Ele foi feito para não temer
ninguém. Ele vê grande em tudo; ele mesmo é o rei de todos os filhos do
orgulho”. A versão latina, utilizada pelo doutor da Igreja, é a da Vulgata,
a mesma que suscitou o imaginário hobbesiano sobre o poder terrestre: non
est super terram potestas quae comparetur ei, qui factus est ut nullum timeret.
Omne sublime videt : ipse est rex super universos filios superbiae.24 Ao
comentar este passo, o filósofo cristão ressalta a incomparável e indizível
força do Altíssimo, infinitamente superior à do Leviatã. Quando o diabo for
vencido, “os anjos do Senhor temerão admirando o poder divino; mas nessa
admiração muitos efeitos da virtude divina são-nos conhecidos e (o autor do
livro de Jó, RR) introduz aqui ”e o terror os purificará “; com
efeito, como diz Dionísio no capítulo 6 dos Nomes divinos (na verdade, trata-se
do tratado sobre as Hierarquias Celestes, RR), os anjos são ditos
purificados não de uma impureza, mas da ignorância; como toda criatura
corporal, se comparada aos santos anjos, é pouca coisa, não se indica por aí
que os anjos celestes estão muito espantados com o cetáceo corporal, a menos
que talvez se enxergue homens nestes santos anjos; os anjos de que tratamos
assistem a decadência de Satan, o Leviatã espiritual que foi transido
pela justiça divina quando caiu do céu pelo pecado, então os anjos admiraram a
majestade divina e se purificaram ao separar-se de sua companhia”.25
Finaliza
Aquino : “…o intento do demônio é agarrar tudo o que é sublime. E como essas
coisas são próprias do orgulho (…) o diabo não só em si mesmo é orgulhoso, mas
ultrapassa todo o mundo em sua soberba e mostra-se como fonte de orgulho para
os outros, (…) ele mesmo é rei de todos os filhos do orgulho, ou seja, dos
escravos do orgulho e que o tomam por guia”. Que lições Job (e cada ser humano
após ele) tira da parábola do Leviatã? Responde Aquino: “o que mais deveria ser
temido por Jó é que o diabo pedisse para lhe tentar, levando-o ao orgulho e ao
seu reino; ser-lhe-ia necessário evitar as disposições e as palavras que
respiram orgulho”.26
24 A
Septuaginta usa o termo Basileus para indicar o Leviatã, o rei dos orgulhosos.
Cf. Septuaginta, Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 1979, p. 842. A
tradução de Lutero une o fato régio e a animalidade do poder: “…er ist König
über alle stolzen Tiere”. (…ele é o rei de todas as feras arrogantes”) Cf.
Lutherbibel erklärt, Stuttgart, Deutsche Bibelgellschaft, 1987, p. 816. Na
Bíblia do Rei Tiago 1 da Inglaterra, o enunciado diz “He beholdeth all high
things; he is a king over all the children of pride”. Cf. The New Scofield
Reference Bible, Authorized King James Version, NY, Oxford University Press,
1967, p. 599.
25 Tomás
de Aquino, Job un homme…. Ed.cit. pp. 568-569.
26 Aquino,
Job un homme…ed.cit. p. 571. Para um correto comentário sobre o livro de Jó e o
problema do governo absoluto de Deus sobre o mundo, Cf. Moshe Greenberg, “Jó”
in Robert Alter e Frank Kermode : Guia Literário da Bíblia (SP, Unesp Ed.
1997), pp305 e ss, sobretudo páginas 321-322.
13 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
Apesar dos muitos choques entre o
ensino católico, representado por Tomás de Aquino e as doutrinas protestantes
—na interpretação da origem do mal e do poder mundano— existe pouca
discrepância nas duas percepções sobre a rebelião de Lúcifer. Tudo o que
enunciei sobre o comentário tomista foi assumido nas várias igrejas e seitas
reformadas. Mesmo autores que ajudaram poderosamente a separar o Estado de seus
fundamentos religiosos, como Francis Bacon, usam o símile angélico para expor
os nexos entre conhecimento e poder político. “O desejo de poder em excesso
causou a queda dos anjos; o desejo de saber em excesso causou a queda do
homem”.27 Essa
fórmula adquire um significado grave se aproximada do aforismo baconiano
célebre: knowledge and power meet in one. Sim, desde que limites
sejam respeitados.
As
achegas anteriores permitem-nos visualizar o maior poema cristão sobre o poder
e o conhecimento, após o Inferno dantesco. Refiro-me ao Paraíso
Perdido. Milton constrói a sua trama e mantém a espinha dorsal da
hierarquia, herança do neo-platonismo, certamente de Proclus, mas com muita
segurança também de Dionísio, o pseudo-Areopagita. Sem ela, fica sem nenhum
sentido cada passo do imenso drama cósmico desenvolvido de modo épico. Sobre
Milton, tudo foi dito e tudo ainda resta a dizer. Saliento apenas o aspecto da
soberba que marca, no caminho dos versos, a Queda satânica e o campo da
política humana.28 Como sublime artesão do verso, Milton exercita um
imaginário que vai além dos textos e dos motivos encontrados na vasta história
do cristianismo ou da cultura judaica e grega que o moldaram. Assim, não se
recobrem totalmente os personagens angélicos e suas atribuições, em Dionísio
Areopagita e no poeta inglês.29 Na hierarquia celeste, os anjos ocupam os
lugares mais próximos do Altíssimo, idéia ampliada por Milton com todos os
recursos culturais a seu dispôr.
A
soberba une-se de imediato à política angélica no Paraíso Perdido. Lúcifer,
o glorioso, desejou “ombrear com Deus, se Deus se lhe opusesse” e “do
Onipotente contra o Império e trono/Fez audaz e ímpia guerra”. Sua marca, desde
então, encontra-se na “Soberba,
27 Cf.
Francis Bacon: “Of Goodness & Goodness of Nature” : “The desire of power in
excess, caused the angels to fall; the desire of knowledge in excess, caused
man to fall: but in charity there is no excess; neither can angel, nor man,
come in dan ger by it. The inclination to goodness, is imprinted deeply in the
nature of man; insomuch, that if it issue not towards men, it will take unto
other living creatures”. Cf. Francis Bacon, The Moral and Historical Works,
London, George Bell & sons, 1874, p. 33.
28 Uso
como texto base a edição de Scott Elledge: John Milton, Paradise Lost
(NY/London, W.W. Norton & Company, 1975). Será também utilizada por mim a
tradução de A.J. Lima Leitão, O Paraíso Perdido (BH/RJ, Villa Rica Ed., 1994).
29 Para
uma exposição autorizada sobre o tema, cf. West, Robert West: Milton and the
Angels. Athens: University of Georgia Press, 1955.
14 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
empedernida, ódio constante”. Na
queda, ele traz o sinal do medo, algo próximo em demasia ao exercício político:
“De sua coma fúlgido privado; Ou quando posto por detrás da lua, /E envolto no
pavor de escuro eclipse,/Desastroso crepúsculo derrama/Pela metade do orbe, e
os reis consterna/Em seu poder temendo algum desfalque./Obscurecido, mesmo
assim fulgura/Mais que os outros arcanjos, seus consócios;/Mas dos raios
profundas cicatrizes/Aram-lhe o rosto macerado, aonde/Mil cuidados contínuos se
aposentam/Sob o ouropel de intrépida coragem/De ultriz tenção, de refletido
orgulho”30.
Nas suas falas aos dirigidos, anjos de escalão menor na via ascendente dos
seres, o monarca do inferno é soberbo orador, em todos os sentidos. Domina a
retórica com maestria e nela exibe sua plena arrogância. Diante do silêncio
temeroso do exército maligno, que teme assaltar o trono divino, “Com orgulho
monárquico se expressa : ´Dos céus prole sublime, empíreos tronos, /Sois
intrépidos, sim! mas não estranho/Que hoje o silêncio e hesitação vos prendam./
É dilatado e aspérrimo o caminho/ Que à luz do Empíreo vai das trevas do Orco”.31 As
indicações do orgulho luciferino são múltiplas, ao longo do poema. Todas
conduzem ao mesmo ponto : “Guerrear nos Céus, dos Céus o Rei supremo,/ De lá me
arrojam a ambição, o orgulho,/ Mas…ai de mim! por quê ? Justo e benigno, / De
tal retribuição credor não era,/Ele que o ser me deu, que nessa altura/Me
colocou imerso em brilho, em glória”.32
No
sistema doutrinário de John Milton, a recta ratio encarna-se na
pessoa do Cristo, sinômino de harmonia e de paz, enquanto Satan é a
razão que delira e arma laços para os demais seres. Como diz um comentador,
“Cristo é o Logos da cristandade neo-platônica e o agente executivo de Deus, ao
mesmo tempo abolindo a rebelião e criando o universo e o homem de acordo com a
sua ´grande Idéia`” (Bush, D., 1977: 167). Assim, o sistema do mundo e do poder
exigem a soberania da razão e da vontade racional sobre as paixões, sobretudo
contra a libido dominandi. A grande raiz de todos os males
sociais ou éticos encontra-se no orgulho. O mesmo comentador chega a enunciar
que “o orgulho e a presunção constituem o tema inteiro de Milton”. Para tudo
resumir, “o orgulho que aspira para além dos limites e das necessidades
humanas, o desejo de poder pelo conhecimento é o motivo que se encontra em toda
a tentação de Eva por Satan”. Deste modo, Milton teria diagnosticado, na
pessoa de Lúcifer, os males todos de nossa modernidade, com o naturalismo, o
liberalismo sem peias, o orgulho irreligioso. Ele também mostrou “a
30 Paradise
Lost (I, 589-604). Ed. Scott Elledge, p. 23.
31 Paradise
Lost (II, 430 ss) Ed.Scott Elledge, p. 39.
32 Paradise
Lost (IV, 41 ss). Ed. Scott Elledge, 79.
15 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
vontade de potência, pública e
privada, a presunção intelectual, o desejo egoista, buscando seus fins pelo uso
da força e da fraude e destruindo a ordem divina e natural no mundo e na alma”.
(Id. Ibid., 171-174)
Um
trecho do poema suscita debates acalorados entre os comentadores. Trata-se dos
versos onde Cristo se dirige à primeira pessoa da Trindade dizendo: “Omnipotente
Pai, razão te assiste/Para te rires de teus vãos contrários/E seguro tratares
com desprezo/Seus tumultos e ardis, inúteis, fátuos.” 33O riso
divino não é novidade alguma na época. Recordemos Pascal: na célebre 11ª
Carta a um Provincial encontra-se toda uma teologia do riso contra a
presunção tola e orgulhosa dos homens. Segundo Pascal, a própria divindade
criou o riso para colocar Adão no seu devido lugar: “nas primeiras palavras
ditas por Deus ao homem após a Queda, encontra-se uma caçoada e uma ironia picante
(…) pois seguindo-se a desobediência de Adão (…) parece pelas Escrituras que
Deus, em castigo, tornou-o sujeito à morte e após tê-lo reduzido à miserável
condição devida ao pecado, riu-se dele (…) com palavras de brincadeira, `Eis
que o homem tornou-se um de nós`. Ironia cruel e sensível pela qual Deus o
espetou vivamente”. Deste modo, o riso foi merecido pelo homem, a quem Pascal
nomeia, em italiano, ridicolosissimo eroe !. (Romano, R., 1987:
18-20)
O
riso divino levanta a questão: todo o Paraíso Perdido armaria uma
enorme comédia na qual anjos e homens seriam apenas e tão-somente heróis
superlativamente ridículos? Esta possibilidade não é alheia à cultura ocidental
anterior a Milton. Nas Leis, Platão pede que imaginemos seres
vivos, como nós, espécies de marionetes fabricadas pelos deuses: “fomos
produzidos para o seu divertimento, ou para um fim sério? Não o sabemos.”. E.
Curtius lembra que Lutero usou, para designar a justificação, o termo Spiel
Gottes quando se trata dos homens. Se tragédia ou comédia, não está ao
alcance do homem decidir o sentido último da existência.34 Robert
Burton, a grande fonte moderna sobre a melancolia, ao falar dos demônios,
lembra o dito platônico: ludus deorum sumus. (Burton, R., 2001:
326)
33 “Mighty
Father, thou thy foes/Justly hast in derision, and secure/ Laugh´t at their
vain designs and tumults vain,/Matter to me of glory, whom their hate
/Illustrates, when they see all regal power/Giv´n me to quell their pride, and
in event/Know wether I be dextrous to subdue /They rebels, or be found the
worst in heav´n”. Paradise Lost, 5, 736-743, Ed. Scott Elledge, p. 122.
34 Cf. E.
Curtius, La littérature européenne et le moyen-âge latin. Trad. J. Brejoux
(Paris, PUF, 1956), sobretudo o capítulo VII, 5 : “Les métaphores relatives au
théâtre”, pp. 170 e ss.
16 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
É possível enxergar no Paraíso
Perdido as duas faces, a cômica e a trágica. O melhor seria percebê-lo como
terrível tragicomédia35 na qual o sentido existencial se perde ou se ganha,
conforme a situação do sujeito.36 C.S. Lewis, em ensaio clássico sobre o Satan
de Milton afirma o primeiro traço —o ridículo— como chave hermenêutica.
Razão em demasia conduz à loucura. É assim que Lúcifer —o ente em cuja
consciência mais se depositou a luz da razão— ensandeceu por completo. Sua
razão é louca. Este é o significado da epígrafe de seu texto, posta por Lewis:
…le genti dolorosi/ C´hanno perduto il ben de l ´intelleto.
(Dante).
Essa
lembrança do verso dantesco, devida a C.S. Lewis, tem enormes razões históricas
atrás de si, sobretudo no campo da medicina imediatamente anterior ao poema de
Milton. Ao estudar a prática terapêutica do século 16, Jean Ceard discute os
nexos entre melancolia e influência diabólica. O melancólico é triste como
Lúcifer, mas “se o diabo pode teoricamente nos aplicar mil doenças, ele no
entanto tem predileção pelas que ofendem o cérebro e os nervos”. Se
perseguirmos esta via, o demônio de Milton experimenta o seu próprio mal, pois é
melancólico e perdeu o siso. Ceard lista os acometidos pela enfermidade na
Bíblia, sobretudo nos escritos cristãos. Ali encontramos um lunático epiléptico
(Mateus, 17, 14 ss), um maníaco licântropo (Lucas, 8, 27 ss), um outro doente
de “convulsão da espinha” (Lucas, 13, ss). O diabo prefere “as doenças de
nervos e do cérebro, o que deve nos alertar para certo número de representações
pouco conscientes e incompletamente formuladas”. Ao analisar os médicos do
século 16, Ceard inicia com
35 Desenvolvo
algumas idéias sobre o tema no prefácio que escrevi para o livro que reúne
peças teatrais de Elias Canetti. “A crítica do narciso coletivo é uma arte
aprimorada desde a Grécia (a referência de Canetti a Aristófanes e à linhagem
dos grandes satíricos mostra-se decisiva), fincando raízes também na cultura
bíblica. Vanitas vanitatum... et omnia vanitas. Talvez nenhum refrão seja mais
repetido – e no entanto mais eficaz para descrever a tolice humana,
insuportável quando o intelecto reflete a si mesmo, entenebrecendo o mundo e
seus fundamentos. A glória, a vanglória, o saber arrogante que se confunde com
a ignorância, as análises de tudo isso foram potenciadas ao máximo no encontro,
durante o helenismo, entre a cultura grega e a judaica Renascença e Reforma,
ambas mergulhando nas águas mais profundas da Grécia e do povo israelita,
levantaram monumentos literários nos quais, até hoje, brilha a mais fina ironia
já lançada sobre os habitantes irritadiços de Babel. (…) O mundo moderno é
sandice e loucura (…). Em semelhante mundo, como num espelho mágico, tudo
aparece de cabeça para baixo, invertido e pervertido…”. Cf. Roberto Romano:
“Prefácio” a Elias Canetti: O Teatro Terrível (SP, Editora Perspectiva 2000).
36 Desde
remotas épocas a forma literária em O Paraíso Perdido confunde os analistas.
Juizos categóricos conduzem a recusas e a teses problemáticas, como a de Hegel:
“Milton parece, tendo-se em conta a sua época, um modelo digno de admiração,
seja pela cultura reunida por meio do estudo da antiguidade, seja pela correta
elegância da expressão. Ele, no entanto, é absolutamente inferior a Dante na
profundidade de conteúdo, na energia, na originalidade da invenção e fatura e
particularmente pela objetividade épica. De fato, de um lado o conflito e a
catástrofe do Paraíso Perdido pende para um caráter dramático, de outro (…) a
tendência lírica e didascalico-moral constitui um traço peculiar de se afastar
muito do assunto, no que diz respeito à forma original”. Cf. GWF Hegel,
Estetica, Trad. N. Merker e n. Vaccaro, (Milano, Eunaudi, 1976, T. 2), p. 1241.
Os “defeitos” encontrados por Hegel são pequenos, se o diagnóstico do filósofo
é comparado a outras exegeses.
17 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
Fernel, para quem a loucura, fruto
do jogo dos humores, consiste na “depravação do funcionamento da faculdade
principal da alma que reside na substância cerebral como em seu domicílio” e
cujo nome latino é desipientia e os gregos são paraphrosyne
e paranóia, ou seja, mentis alienatio.37 A
melancolia ao mesmo tempo provoca e destrói o intelecto, “ela é o seu aliado
mais eficaz e seu inimigo mais terrível” (Ceard). Segundo Jean Taxil, outro
médico da época, “os corpos que o diabo possui interiormente são melancólicos,
pois é o humor a verdadeira sede, no qual o diabo se apraz, e do qual ele
produz tão estranhos efeitos”.38
Ao
aprofundar seu estudo, Jean Ceard chega ao ponto que nos interessa mais
diretamente. A se acreditar nos médicos discutidos, “o gênio e a loucura têm um
parentesco secreto, e a inteligência constitui uma perigosa aventura. Ela,
quando se esforça por ir além no conhecimento, corre o risco da revolta e do
orgulho que ocasionou a queda do anjo Satan. O tema do Fausto pertence à
Renascença”.39
Embora
acreditem nos demônios, pelo menos para fins externos e por receio do juízo
popular e clerical, muitos médicos procuraram, no período, causas naturais que
explicariam a loucura e a melancolia. O remédio também poderia ser apenas de
ordem natural. Saul era melancólico, é verdade, mas seu arrimo veio da música
executada por David. E Vallesius afirma, com muitos outros, que a sonoridade
musical é um tratamento considerável.40 E o mesmo Vallesius cita
Avicena, numa atitude bem mais secular que enxerga o demônio como um adendo não
importante nos casos de melancolia. Diz Avicena : “alguns médicos pensaram que
a melancolia ocorre por causa do demônio, mas, quando tratamos coisas físicas,
não nos preocupamos em saber se isto ocorre por sua causa ou não, uma vez posto
que, se ocorre por ele, então ocorre de tal modo que muda a compleição e a
torna melancólica, que portanto a causa próxima do mal é a melancolia, e seja a
causa desta o demônio, ou não, isto pouco importa”.41
37 J.
Fernel, Universa Medicina, 3a-.ed. Francfort, Wechel, 1574, p. 515, citado por
Jean Ceard: “Folie et demonologie au XVIe siècle”, in Colloque International
Folie et Déraison à la Renaissance. Bruxelles, Editions de l´université, 1976,
pp. 128 e ss.
38 Jean
Taxil, Traicté de l´epilepsie, maladie vulgairement appellee au pays de
Provence, la gouttete aux petits enfants, Lyon, 1602, ch. 2, citado por Jean
Ceard, op. Cit. p. 137.
39 Jean
Ceard, op. Cit. p. 138.
40 F.
Vallesius, De iis quae script sunt physice in libris sacris, sive de sacra
philosophia, Lyon, Fr. Le Fevre, 1587, p. 77, citado por Jean Ceard, op. Cit.
p. 141.
41 O
trecho de Avicena é citado por Vallesius, op. Cit.
18 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
O palco da tristeza e da melancolia
une-se às personalidades caricatas que se imaginam no centro do universo,
perseguidas pelo mais poderoso agente do Mal. O egocentrismo passa do trágico
ao cômico. Existem mesmo na Renascença os tratamentos burlescos da melancolia,
mas a tristeza não é escondida por eles.42 A melancolia, doença de
poderosos e de intelectuais, traz a marca da loucura orgulhosa. Robert Burton
procura exorcizá-la pelo riso, remédio antigo como Luciano de Samosata. A carta
prefácio que ele publicou com The anatomy of Melancholy (“Democritus
to the Reader”) é um tratado sobre moral, política, religião falsa, saber e
soberba. Os homens desconhecem limites e, na busca de satisfação absoluta, se
parecem com bestas feras “salvo pelo fato de que as feras são melhores que
eles, pois se contentam com a natureza”. Principes, diz ele, “desejam uma vida
privada, homens privados têm cócegas por honrarias, um magistrado deseja a vida
quieta, um homem quieto gostaria de possuir seu ofício (…) e qual a causa disto
tudo, senão o seu desconhecimento próprio? Alguns se deleitam em destruir,
outros em edificar, outros em roubar um país para enriquecer a si mesmos e a um
outro. Em todas essas coisas, eles são como crianças, nas quais inexiste juízo
ou conselho”. 43
Lúcifer,
na interpretação de C.S. Lewis, seria um ente mimado que se revolta como
criança ou adolescente por não julgar-se livre do pai e não receber o
reconhecimento de seu alto valor. Hobbes, no De cive, define o
homem perverso como uma criança robusta (malus est puer robustus).
Satan, menino auto-centrado, pensa e fala apenas de si. Para ele, a
alteridade não existe. Ele quer e não quer, por exemplo, a hierarquia dos
seres. Ao destruir a si mesmo enquanto eminência celeste, serrou o galho que o
sustinha. Ele seria, diz Lewis, “como o perfume de uma flor tentando destruir a
flor”. O pobre diabo é menos um mentiroso do que bela mentira. A primeira
mentira que nutre a sua revolta é o desejo de ser como Deus, causa sui.
Ao mesmo tempo ele se orgulha de sua origem divina e se revolta contra ela,
como, repitamos, adolescentes que muitos pais chamam “aborrecentes”. Para
ilustrar a figura, Lewis cita Napoleão Bonaparte, quando o dono do mundo não
tinha mais brinquedos mortais nas mãos, exilado que estava. “Imagino”, disse o
ex-Imperador, “o que
42 Cf.
Hyacinthe Brabant : “Les traitements burlesques de la folie aux XVIe et XVIIe
siècle”, Colloque International Folie et Déraison…ed. cit. pp. 75 e ss.
43 O
texto de Robert Burton foi reeditado em várias ocasiões e muito repetido nas
análises sobre a loucura dos poderosos e dos intelectuais Cf. The Anatomy of
Melancholy, Introduction of W.H. Gass (NY, The New Yorok Review of books Ed.,
2001). Excelente apreciação do tema, que rendeu inclusive uma lúcida
interpretação de Rousseau, encontra-se em Starobinski, Jean: Histoire du
traitement de la mélancolie, des origines à 1900. (Bâle, Geigy). Com este
livro, Starobinski iniciou o que ele mesmo chama “a descida aos infernos” da
cultura moderna. Neste caminho, Rousseau, la transparence et l´obstacle (Paris,
Gallimard) é um ponto decisivo. Trata-se ali de expor os sentimentos de um
filósofo ensandecido, mas cujos enunciados são dos mais agudos, captando os
maiores problemas da sociedade e da política modernas.
19 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
Wellingnton está fazendo agora? Ele
nunca ficaria satisfeito com a situação de uma pessoa privada”. Satan e
Napoleão jamais conseguem perceber o mando na perspectiva da cidadania
“simples”.44
O demônio divide com os políticos a irresponsabilidade ética. Ele
não pode mesmo vingar-se no Altíssimo. Solução: vinga-se de Deus nas figuras de
Adão e de Eva, gente que nunca lhe fez mal. Age como o covarde dos romances,
que não ousa enfrentar um duelo e decide ir para casa bater nos empregados.
A
decadência satânica —de anjo a monstro— passa, segundo Lewis, pela sequência
cômica: “de herói a general, de general a político, de político a agente do
serviço secreto que bisbilhota janelas de banheiros ou de dormitórios, depois
desce ao nível do sapo e finalmente é serpente”. Um ser intoxicado com o veneno
de seu ego, eis Satan. Podemos rir dele, mas Lewis se apressa a dizer
que Milton produz o diabo com os materiais encontrados nos humanos. Tudo nele,
sobremodo o político, traz as marcas de nossa humanidade pervertida e monstruosa.
Infinitamente entediado por encontrar apenas a si mesmo, ele mente e discursa
numa contínua propaganda e no culto à sua personalidade. Lewis não diz
explicitamente, mas seu texto foi redigido na época do totalitarismo, quando as
figuras ridículas de Hitler e de Mussolini, aliadas à de Stalin, ainda estavam
frescas na memória. A insistência do crítico na propaganda e no culto à
personalidade indica esta situação miserável.45
Apesar
de sua força persuasiva, a tese de Lewis encontra limites, sobretudo porque o
cômico satânico resulta em tragédias como as Guerras Mundiais e o Holocausto.
Assim, sua hipótese de leitura foi corrigida por Helen Gardner num ensaio denso
e provocativo sobre Satan e a danação. A autora mostra que Milton segue
o modelo elizabetano da tragédia e que seu herói perverso pode encontrar
modelos mais do que plausíveis em Shakespeare ou Marlowe. Macbeth, pelo poder,
Dr. Faustus, pelo saber, ambos são moldes verossímeis para a construção de
Lúcifer. Enquanto o diabo era cômico na Idade Média, na era renascentista ele
se encarna nos personagens que buscam ultrapassar todos os limites do mando e
do conhecimento.
Como
o anjo caído, os reis danados do teatro shakespereano, como recordei na figura
de Ricardo 3, embora tenham livre arbítrio, desejam a danação porque ela lhes
garante a posse
44 Quantos
assim existem na política! São eles que exigem para si foros privilegiados e
determinam quem, na polis moderna, é cidadão de primeira e de segunda classe.
45 Para
toda esta passagem, cf. o ensaio completo de C.S. Lewis, “Satan”, in Arthur E.
Barker, op. cit. pp. 196-204.
20 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
ilusória da soberania perene,
imortal. No palco trágico, a danação, essencial no poema de Milton, se oferece
com todas as suas possibilidades. Uma das marcas mais graves, que também fora
enunciada por Lewis, é a solidão do poder. Satan pratica o solilóquio
com freqüência, o mesmo fazem os heróis perdidos de Shakespeare. As tentações
sobre Eva pela serpe recordam muito as falas da senhora Macbeth, as insinuações
de Iago e tantos outros caracteres mais. A busca do poder pelo poder, a solidão
do mando, as astúcias e dissimulações da raison d´état, tudo isto
traz a marca do Malefício. Se o poema de Milton fosse apenas cômico, o seu
assunto seria uma “serpente infernal”. Mas o poeta nos apresenta um arcanjo
caído. “Não haveria dificuldade se Satan fosse apenas um Iago; o difícil
surge porque ele é Macbeth” (Gardner, j., 1977: 205-217 ). Ou melhor, ele não
seria a síntese horrível de Iago e de Macbeth?
O
orgulho serviu para Hobbes e Spinoza como tema diretor da análise política.
Ambos, no entanto, transferem as sendas éticas do empíreo para o mundo finito e
abolem a noção filosófica e religiosa da hierarquia cósmica e social. Hobbes
secularizou o Leviatã, que não mais indica o protótipo do Mal mas figura a
multidão que fornece a carne do Estado.46 Com a mudança, o orgulho
mantém um estatuto pernicioso. Ele não é pecado contra o Altíssimo mas
obstáculo para a constituição da res publica. Hobbes foi leitor
da Bíblia mas também seguiu as linhas do pensamento grego. Sua tradução da Guerra
do Peloponeso o prova.47 Um dos trechos que mais o marcou, naquela
obra, é o cerco à ilha de Melos no qual toda a arrogância ateniense veio à
tona. No capítulo 5, parágrafo 85 e seguintes vemos as causas do fim inglório
do império. Os habitantes de Melos não querem ser reduzidos à servidão e
oferecem amizade aos de Atenas. Estes recusam e exigem total entrega. Melos se
recusa. Seus homens são exterminados, suas mulheres e
46 Considero
essencial nas exposições de Hobbes o aspecto secularizador. Mas reconheço que
existem outras leituras em plano contrário, as quais apresentam excelentes
argumentos. Cf.Gabriel L. Negretto: “Hobbes’ Leviathan. The Irresistible Power
of a Mortal God” na página da Internet com o seguinte endereço eletrônico:
http://www.giuri.unige.it/intro/dipist/digita/filo/testi/analisi_2001/8negretto.pdf.
O autor analisa com bastante extensão o tema do orgulho na perspcetiva do
Leviatã. Em sentido oposto ao seu, cf. Michel Villey: “Acredito que os
resultados jurídicos do sistema hobbesiano contradizem de modo direto os
primeiros princípios do Decálogo. Hobbes forjou com suas mãos um novo ídolo, um
novo Baal, uma torre sacrílega de Babel, o Leviatã, o estado, o ‘monstro fio’
(…) ele é um dos responsáveis pela descristianização da Europa (…) considero
Hobbes um precursor das novas religiões que subjugam a Europa contemporânea:
religião do homem, de sua liberdade, de sua razão, e do Estado moderno”.
“Positivisme juridique moderne et christianisme”, in Cristianesimo,
secolarizzazione e Diritto Moderno. A cura do Luigi Lombardi Vallauri e Gerhard
Dilcher (Milano, Giuffrè Ed., 1981), pp.213-215. Na leitura do autor, Hobbes
concedeu em demasia a César, em detrimento do Altíssimo.
47 Cf.
Thucydides, The Peloponnesian War, The Complete Hobbes Translation, with notes
and a new introduction by David Grene, London, The University of Chicago Press,
1989.
21 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
crianças conduzidas como escravos.
A dureza dos generais anuncia, da Grécia aos nossos dias, a face mais violenta
da raison d´État ensandecida pelo orgulho.48
Assim,
quando prepara a justificação do Estado absoluto, Hobbes tem plena consciência
dos prejuízos trazidos pela arrogância dos indivíduos. Ele freqüentou muito a República
e tem pleno domínio das razões avançadas por Platão não apenas naquele
texto, mas em todas as suas obras. Há um ponto essencial nos considerandos do
filósofo grego quando se trata de garantir a polis: o controle da
filáucia. O que produz a tirania? O amor de si mesmo. A filáucia, em Platão e
na filosofia ocidental “é o contrário da amizade efetiva. O livro nuclear neste
plano encontra-se nas Leis (Livro 5, 731 d). É sintomático que,
naquele diálogo, no trecho sobre o amor de si, o sujeito acometido de idiotismo
seja comparado ao ‘amante, cego no relativo ao ser amado, sendo péssimo juiz
das coisas justas, boas, nobres’. A paixão impede o conhecimento e a prática do
bem. A pior paixão, nós a temos quando amamos a nós mesmos acima de tudo. A
frase platônica referida à filáucia impressiona: ‘Há um grande mal, o maior de
todos, que o maior número de homens tem, e que lhes é congenital. Com ele, cada
um é cheio de auto-indulgência e ninguém dele pode escapar. Este mal chama-se
amor próprio. Acrescentemos que esta ternura do homem para consigo mesmo
pertence à sua natureza e que ele causa nossos erros, pelo afeto que temos para
conosco (…) O grande homem não acaricia nem a si mesmo, nem as coisas que são
de sua propriedade, mas o que é justo. (…) O governo tirânico é exercício de
auto-erotismo e temor generalizado.’ Uma das singularidades do tirano é
procurar suprimir não só os seus inimigos, mas também destruir os que, por
terem sido seus iguais ou cúmplices, a ele se dirigem com franqueza, o que é
sinal de uma amizade verdadeira. (República, 8, 567 b)”.49
O
pior mal da polis é o amor que os indivíduos têm para consigo
mesmos. Ele desatrela a guerra pelo mando tirânico, onde todos são inimigos de
todos. Se recordarmos que o mesmo filósofo compara o tirano ao lobo, temos uma
idéia do fundo imagético utilizado por Hobbes a fim de descrever os piores
empecilhos na busca de atenuar a luta na matilha humana e produzir a paz. A
filáucia é fonte de arrogância e esta exige ordens e precedências, impõe
hierarquias entre os seres humanos. Para instaurar o Estado, pensa
48 Na
tradução de Hobbes indicada, pp. 364-372. Friedrich Meinecke inicia o seu
tremendo livro sobre a Razão de Estado com a citação de Tucídides, exatamente
no episódio de Melos. Cf.L´Idée de la raison d´état dans l´histoire des temps
modernes, trad. Maurice Chevalier,Genève, Droz, 1973, p. 31.
49 O item
das Leis é extraído da tradução de L. Robin das Oeuvres de Platon. (La Pleiade,
p. 784). O trecho entre parêntesis é de Roberto Romano : “Uma questão de
costumes” in Lerner, Julio (ed.) Cidadania, verso e reverso. SP, Secretaria da
Justiça e da Defesa da Cidadania, 1998, pp. 192-193. Um livro importante para o
assunto é o de Jean-Claude Fraisse: Philia, la notion d´amitié dans la
philosophie antique (Paris, Vrin, 1984).
22 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
Hobbes —num ataque direto à
tradição medieval e ao pensamento aristotélico-tomista, com as citadas tintas
de Dionísio o Pseudo-Areopagita — todas as supostas hierarquias devem ser
abolidas de imediato. No ítem “Sobre o homem” do Leviatã, o autor
refere-se à nona lei da natureza contra o orgulho. “A questão de saber quem
vale mais nada tem a ver com o estado simples da natureza, onde todos (…) são
iguais. A desigualdade de hoje foi introduzida pelas leis civis. Sei bem que
Aristóteles, no primeiro livro da Política, põe como fundamento
de sua doutrina que os homens são, por natureza, uns mais dignos de mandar (…)
os outros de servir…”.
Hobbes
toca no ponto dolorido de toda a hierarquia. É importante lembrar que o
neoplatonismo resultou de uma síntese de alguns temas platônicos e de outros
aristotélicos. Nesta segunda vertente se determina uma escala hierárquica de
todos os entes em relação ao seu fim último. Assim, os homens são desiguais por
natureza. Este ponto encontra-se subsumido na escala do Pseudo-Dionísio, o que
definiu o pensamento cristão medieval, como vimos em Tomás de Aquino, com sua
idéia de uma escala hierárquica, dos arcanjos ao humilde camponês e a recusa da
igualdade. Esta corrente aristocrática gerou as ordens medievais, com todo o
seu orgulho, o que impedia, no tempo de Hobbes, a instauração do Estado
monárquico nacional. Na França, Richelieu domou os orgulhosos barões e os
colocou para adular o rei em Versalhes. Na Alemanha, conforme indica Norberto
Elias, os aristocratas resistiram mais tempo, até o século 20, como empecilhos
do Estado. Na Inglaterra, a mensagem hobbesiana foi percebida como perigo pelos
donos dos feudos e dos cargos. De Aristóteles, passando pelo Pseudo-Dionísio, a
ordem a ser destruída se baseava no orgulho e na honra dos nobres. A destruição
dessa corrente doutrinária e costumeira que imperou durante milênios na vida
social foi lenta e difícil. A Revolução Francesa definiu um marco contra a
fantasmagoria aristocrática e clerical.50
A
edição latina do Leviatã deixa explícita a recusa da hierarquia
entre os homens. Diz o autor : “Não existe hierarquia (ordo)
entre os homens no estado de natureza”.51 Desejar uma suposta hierarquia
natural ou metafísica é garantir o orgulho que impede o Estado. Assim, Hobbes
enuncia a “nova lei da natureza: cada um reconheça o outro como seu igual
50 O
autor que mais permite pensar sinteticamente a passagem do aristocratismo para
a modernidade, neste ponto, ainda é Hegel, sobretudo na Fenomenologia do
Espírito. Cf. La Phénomenologie de l ´Esprit (trad. Hyppolite, J. ), “L´Esprit”
(T.2). (Paris, Aubier, 1941).
51 Cf.
Léviathan, trad. François Tricaud de l´anglais, annoté et comparé avec le texte
latin. Paris, Sirey,1971,p..153, nota 93.
23 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
por natureza. A infração deste
preceito é o orgulho”.52 Desta lei, o autor avança para a outra
que lhe é co-essencial: na paz, ninguém pode exigir reservadamente nenhum
direito que não se exija reservadamente aos outros. Agir como se os direitos
vitais e cívicos fossem privados é arrogância. Esta última não conhece limites.
“Os que observam esta lei são os que chamamos homens modestos, os que a
desobedecem, arrogantes. Os gregos chamam a violação desta lei pleonexia,
ou seja, o desejo de ter mais do que a parte adequada”. (Leviathan, ed. Cit. p.
211-2112)
Além
das advertências bíblicas contra o orgulho e das lições platônicas, Hobbes
nutriu-se das letras renascentistas, com o ensino de elegância cortesã,
tentativas para domar os barões que impediam o nascimento do Estado moderno. Um
dos seus mais abalizados comentadores, Quentin Skinner, diz que “os moralistas
da era Tudor também se concentram num outro grupo de virtudes, que encaram
como, talvez, as mais importantes de todas. São elas a modéstia, a moderação e
a humildade, características dos que sabem agir com afabilidade e evitar todas
as manifestações de altivez, arrogância e orgulho (…) Todos encaram o pecado do
orgulho como o mais mortífero dos sete pecados mortais, ao passo que as
qualidades da humildade, da moderação e até da sprezzatura são especialmente
valorizadas”. Sem modéstia, sem Estado. Sem Estado, sempre há guerra entre
indivíduos, há tirania permanente, sempre orgulho. Assim, a vida em comum, a
política, segue a arte dos limites das ambições e das maneiras, arbitrada pelo
soberano. (Id. Ibid. p. 426)
Em
Spinoza ocorre uma outra visão do orgulho, embora o alvo também seja o de
permitir a vida política. “Acontece facilmente que o homem tem de si mesmo e da
coisa amada uma opinião mais vantajosa do que seria justo, e, ao contrário, da
coisa odiada uma opinião menos vantajosa do que seria justo. Essa imaginação
enquanto se aplica ao homem que tem de si mesmo uma opinião mais vantajosa do
que seria justo chama-se orgulho, e é uma espécie de delírio, pois o homem
sonha, com os olhos abertos, que pode fazer tudo o que atinge apenas com a
imaginação, considera-o como real, e exalta-se com isso, enquanto que não é
capaz de imaginar o que exclui a existência disso e limita a sua própria
capacidade de ação. Portanto, o orgulho é uma alegria nascida do fato de um
homem ter de
52 “That
every man acknowledge other for his Equall by Nature. The breach of this
Precept is Pride”. Leviathan, Ed. C.B. Macpherson, Penguin, 1977, p. 210.
24 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
si mesmo uma opinião mais
avantajada que o que seria justo.”53 Um dos maiores empecilhos para
a vida comum na política é o desejo que todos os indivíduos possuem de reduzir
os outros ao próprio modo de viver, de pensar e de imaginar os outros como
projeções do ego. “este apetite, num homem que não é conduzido
pela razão, é paixão, que se chama ambição e não difere muito do orgulho”.54
Apesar
de todas as diferenças teóricas entre Hobbes e Spinoza,55 notemos
que ambos conceituam o orgulho como uma ruptura dos limites, sobretudo da
modéstia. Na Ética, a definição de modéstia é todo um tratado da
política democrática em prol da liberdade e da alegria de viver em conjunto: “a
modéstia, o desejo de agradar aos homens, que é determinado pela razão,
refere-se à piedade (…) Mas se ela nasce de uma afecção, é ambição, por outras
palavras, um desejo pelo qual os homens, a maior parte das vezes , excitam
discórdias e sedições por uma falsa aparência de piedade. Com efeito, aquele
que deseja ajudar os outros, por conselhos ou por ações, a gozarem ao mesmo
tempo do bem supremo, esse procurará sobretudo conciliar o seu amor e não
fazer-se admirar por eles, de maneira que este método seja denominado pelo seu
próprio nome. Procurará também não dar, absolutamente, nenhum motivo de inveja.
Depois, nas conversas comuns, evitará referir os vícios dos homens e tomará
cuidado em não falar senão parcimoniosamente da impotência humana, mas falará
largamente da virtude, ou seja, da potência humana e da via pela qual pode
aperfeiçoar-se de maneira que os homens, levados não pelo medo ou pela aversão,
mas só pela afecção da alegria, se esforcem por viver, quanto possível, segundo
os preceitos da razão”. 56
Ao
contrário do orgulho, a alegria e o conhecimento, bases de uma sociedade
democrática, são comunicáveis e ajudam o convívio humano. Em vez da busca
auto-erótica destrutiva, o caminho do saber e do respeito mútuo leva à
tranquilidade partilhada. Segundo Spinoza, o desejo de conhecer as coisas é
contagioso: “o bem que o homem deseja para si mesmo e que ele ama, ele o amará
com maior constância se vê que outros o amam e, por conseguinte, ele se
esforçará por fazer de modo que os outros o amem, e como este bem é comum a
todos, e todos podem com ele experimentar alegria, ele se esforçará por fazer
53 “Superbia
vocatur, et species Delirii est, quia homo oculis apertis somniat….Est igitur
Superbia Laetitia ex eo oritur, quod homo de se plus justo sentit”. Cf. Bento
de Espinosa, Ética. Joaquim de Carvalho, (Lisboa, Relogio d´Agua Ed.1992), pp.
292-293. Trad. Appuhn. Charles, bilingue (Paris, Vrin, 1977), p. 293.
54 Ética,
5, proposição 4, ed. Joaquim de Carvalho citada pp. 449-450. ed. Apphun citada,
p. 179.
55 Para
as relações entre os dois pensadores, cf. Stuart Hampshire, Spinoza
(Harmondsworth, Penguin, 1951), sobretudo o capítulo “Política e Religião”.
56 Ética,
4, apêndice cap. 25, ed. Joaquim de Carvalho citada, pp. 436-437. Apphun, pp.
158-159.
25 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
com que todos experimentem
alegria”. (Ética, 4, proposição 37). A beatitude suprema, como
diz Geneviève Brykman, é comunicável a todos. (Brykman, G., 1972: 75-76)
O
orgulhoso exclusivista adora lisonjeadores, ama os parasitas sociais, e odeia
os generosos. Este é o ensino da Proposição57, do livro Quarto da Ética.
Aqui, em Spinoza, notamos a sabedoria política mais antiga, já enunciada em
Platão, sobre a filáucia e a lisonja. Retomemos o texto platônico: “Uma das
singularidades do tirano é procurar suprimir não só os seus inimigos, mas
também destruir os que, por terem sido seus iguais ou cúmplices, a ele se
dirigem com franqueza, o que é sinal de uma amizade verdadeira” (República,
8, 567 b). O bajulador, sofista ou demagogo, assume aparências de fala amiga,
mas o discurso veraz exige disciplina, sobretudo na amizade. Quem lisonjeia
deixa os amigos nas horas negras, toda pessoa franca enfrenta o próprio amigo,
para seu bem, e nunca o abandona. A lisonja acostuma, segundo Platão, o corpo e
alma aos prazeres. Spinoza? Vejamos: “os orgulhosos amarão a presença dos
parasitas ou dos aduladores (omiti as definições destes por serem assaz
conhecidas) e fugirão da presença dos generosos, que têm deles uma opinião
exata”.
Sem
falar uma palavra de Satan, personagem que ele bem conhecia por sua
cultura religiosa, judaica e cristã, Spinoza descreve todas as marcas do
Maligno, secularizando-as in totum na Ética. O
indivíduo orgulhoso é empecilho para o Estado democrático porque propaga o
culto de si mesmo, culto baseado em paixões e idéias falsas, e quebra todos os
limites da razão. Façamos uma rápida comparação, naturalmente considerando o
secularismo radical de Spinoza. Satan, por inveja, desejou o governo
celeste, só recebeu como resultado uma tristeza infinita. Ele é fechado à
alteridade, o filauta por excelência. Satan é crudelíssimo e covarde.
“Seria demasiado longo enumerar (…) todos os males do orgulho, pois que os
orgulhosos estão sujeitos a todas as afecções, mas a nenhuma menos que às
afecções do amor e da misericórdia” (Ética 4, proposição 57,
escólio). O mais importante, entretanto, na análise spinozana do orgulhoso é a
tese posta no escólio da mesma proposição: o ódio e a inveja do orgulhoso (pois
ele é necessariamente pleno de inveja) não podem ser facilmente vencidos pelo
amor ou pelo favor. O ser orgulhoso “só se deleita com a presença dos que lhe
mostram mais complacência e de estúpido o fazem
57 Cf.
Lambros Couloubaritsis: “L´un comme mesure de toutes choses”, in Jean-Claude
Beaune (ed.) La mesure instruments et philosophie. (Paris, Le Cham Vallon,
1994), p. 200). Cf. Roberto Romano, “A razão terrorista” Revista Mosaico (BH,
Fundação João Pinheiro, 2001), a ser publicado em coletânea intitulada O
Desafio do Islã e outros desafios (Ed. Perspectiva, São Paulo).
26 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
doido (et eorum tantummodo
praesentia delectari, qui animo ejus impotenti morem gerunt, et ex stulto
insanum faciunt)”.
Deleite,
um sentido assim marca o soberbo que desconhece limites para a obediência dos
outros ao seu egoísmo. Também o Satan de Milton: seu deleite é jogar
laços para os homens, enganando-os com a luz celeste, seu apanágio antes da
Queda. Baldine Saint Girons acentua a polissemia do uso, no Paraíso Perdido,
da palavra delight. A tentação maligna vem ao homem como deleite
e horror, é um delírio (de lacio, laço) luminoso que envolve o
sujeito humano.57 Satan perde o siso por orgulho e presunção. O
mesmo ocorre com o ente humano que se deixa embair nas cantilenas da lisonja e
do inchaço subjetivo. Ambos, o arcanjo de Milton e o soberbo descrito na Ética
almejam, por falta de aplausos sinceros que apenas o amor pode
garantir, tiranizar os demais entes sem nenhum obstáculo, o que é loucura.
Tanto
Hobbes quanto Spinoza insistem nos limites do ser humano, e indicam o quanto a
soberba nutre-se da ruptura com toda medida. Ambos levam adiante e modificam as
doutrinas milenares sobre a moderação no uso do corpo e da alma. A prudência
filosófica mostra o perigo da exclusividade de um dom humano sobre os demais,
especialmente quando se trata de moral ou política. No De anima, Aristóteles
diz que os sentidos ficam inativos ou se destroem, quando são ultrapassados
limites e medidas. A vista não enxerga se a luz é insuficiente e, no inverso,
ela pode enceguecer por um excesso de luz. No domínio da ética, a virtude é
algo a ser medido. Virtude em demasia, ou racionalidade em excesso passam ao
seu contrário.58 Lúcifer expande luz demasiada para os demais anjos e
para os humanos. Sua luz é sombra apenas da luz divina.
Em
Platão, a perda das medidas é corrigida através de modelos de virtude que
precisam ser imitados pelos indivíduos. Estabelecer medidas torna-se a tarefa
mais árdua dos que têm por missão guardar o Estado. O bicho homem, segundo o
coro teatral de Antígona, é a maravilha do mundo. Ele pode se conter em limites
ou fugir para o ilimitado e, neste caso, com a mesma palavra que serviu para
desenhar o ente humano enquanto benéfico (Deinos), o poeta indica
que foi ultrapassada a barreira do terror e isto se chama hybris.
Um analista daqueles versos de Sófocles enuncia coisas que hoje cabem
perfeitamente ao
58 Cf.
Lambros Couloubaritsis: “L´un comme mesure de toutes choses”, in Jean-Claude
Beaune (ed.) La mesure instruments et philosophie. (Paris, Le Cham Vallon,
1994), p. 200). Cf. Roberto Romano, “A razão terrorista” Revista Mosaico (BH,
Fundação João Pinheiro, 2001), a ser publicado em coletânea intitulada O
Desafio do Islã e outros desafios (Ed. Perspectiva, São Paulo).
27 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
terrorismo: “é pela hybris,
este movimento impetuoso, que o homem se arranca da situação que lhe foi dada,
com força e veemência que o fazem sair do curso comum da vida. Mas neste gesto
ele só chega a sair da vida comum perdendo todos os pontos de comparação que
poderiam lhe permitir ordenar a própria vida, como se ele entrasse num espaço
novo sem mapa nem bússola e, para dizer tudo, capaz do melhor e do pior. Capaz do
melhor porque é carregado pelo impulso do espírito. Capaz do pior quando se
deixa fascinar pelo exercício de sua própria violência”. (Chirpaz, F., 1994:
200)
Lúcifer
deseja atingir o Altíssimo e seu reino, e apenas consegue impor uma liturgia
pervertida em seu Estado. O orgulho impede a paz trazida pelo Leviatã em Hobbes
e a alegria democrática em Spinoza. O mundo conheceu muitos governantes que
servem perfeitamente no modelo ideado por Milton e pela filosofia ética. A
marcha da soberba é célere nos tempos modernos. Não tenho espaço nem tempo aqui
para discutir o culto do indivíduo e do satanismo político no pensamento
romântico. Uma perfeita descrição desse ideário encontra-se na Comédia
Humana. Cito E. Curtius no bonito livro sobre Balzac, exatamente o capitulo
sobre “O Poder”.“Vautrin é monstruosamente belo. Leia-se a carta de adeus de
Lucien a Vautrin: nela, Balzac resume tudo o que o apaixona naquela figura
rebelde de um esteta moral, homem luciferino: ´Existem os filhos de Caim
(escreve Lucien) e os de Abel (…) No grande drama humano, Caim representa a
oposição. Tua descendência é a de Adão por tal linha, uma linha pela qual o
diabo continuou a alimentar o fogo cuja primeira centelha foi jogada sobre Eva.
Entre os personagens demoníacos desta familia encontramos de vez em quando
natureza tremendas e poderosamente organizadas, que resumem em si toda a
energia humana e assemelham-se a certos rapinadores do deserto, cuja vida tem
necessidade de espaços desmesurados…Quando Deus quer, estes seres enigmáticos
são Moisés, Átila, Carlos Magno, Maomé, Napoleão, mas quando Ele deixa
enferrujar no fundo dos oceanos por uma geração estes instrumentos gigantescos,
eles se tornam um Pugacëv, um Fouché, um Louvel ou o padre Carlos Herrera. Eles
dispõem de um poder enorme sobre as almas fracas, as atraem e destróem. É um
espetáculo grandioso no seu gênero. É a planta venenosa e colorida que fascina
a criança no bosque. É a poesia do mal…”. Comenta Curtius, com acuidade
perfeita: “Vautrin se remete ao Paraíso Perdido de Milton, que é apenas
‘uma apologia da revolta’. Quando foi traído, caiu nas mãos da polícia, os
passantes experimentam um misto de horror e de admiração face à atitude do
‘poeta infernal’. ‘O seu olhar era o do arcanjo caído, que exige guerra
eterna’. O que Lúcifer é entre os anjos, Caim o é entre os homens.
28 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
‘Uns descendem de Caim, outros de
Abel; o meu sangue é misto: sou Caim para os inimigos, Abel para os amigos”.59
Uma
correta síntese do satanismo na literatura romântica, apesar dos anos que
passaram desde sua publicação, encontra-se no livro pioneiro de Mario Praz, La
carne, la morte e il diavolo nella letteratura romantica (1930),
especialmente no capítulo 2, “As metamorfoses de Satan”.60 Praz
acentua o traço mais saliente de Lúcifer, a sua melancolia. Este é o grande
motivo das formas românticas. A razão em demasia conduz à loucura. “O impulso
para conservar a si mesmo é o primeiro e único fundamento da virtude” ( Ética,
4, proposição 22, corolário). Este enunciado spinozano foi muito mal
compreendido na filosofia moderna. Infelizmente, autores como Adorno e
Horkheimer ajudaram muito nesta incompreensão.61 Se lida ao modo daqueles
representantes da chamada Escola de Frankfurt, a frase significaria o máximo do
individualismo burguês, um lugar comum da civilização ocidental. Mas ela
precisa ser posta no contexto da escrita (algo que para Adorno, é certo, não
conta muito visto os seus passeios rápidos em mais de dois mil anos de cultura,
que vão de Ulisses ao executivo das empresas capitalistas, como se o mesmo
impulso dirigisse os personagens) e nesta o seu lugar não é, certamente, no
mesmo sentido do egoísmo e do orgulho invejoso. A precaução de Spinoza para com
os limites, a passagem à loucura pelo excesso dos princípios que, limitados,
são perfeitamente saudáveis, deixa bem clara a sua exegese. O prisioneiro no
campo de concentração, o perseguido político, sabem muito bem que o único
fundamento é conservar a si mesmo. Mas isto não os retira da comunidade e dos
valores inter-subjetivos, muito pelo contrário. Quem chegou a ser “incômodo”
para os poderes tirânicos tem plena consciência dos seus iguais. Só que lutar
por si mesmo e por eles, em situações extremas, é uma só e mesma coisa. Por
este motivo a prudência deve guiar os seus passos, visto que a temeridade e as
bravatas apenas adiantam o fim de seus dias e, com ele, o de muitos
companheiros.
Elias
Canetti, no monumento à política e à moral chamado Massa e Poder,
mostra os limites que o mando pode encontrar, mas indica que a tendência à
auto-conservação dos tiranos é, infelizmente, a regra diabólica. O poderoso,
como Lúcifer, está sempre em busca
59 Cf.
Ernst R. Curtius, Balzac, trad. Vincenzo Loriga, (Milano, Il Saggiatore di Alberto
Mondadori, 1969), pp. 132 e 138. Apesar de seu conhecido conservadorismo, e
talvez devido a ele, o autor capta a carga demoníaca na crítica do poder
moderno em Balzac, outro conservador mais do lúcido.
60 Uso a
tradução inglesa de Angus Davidson: The romantic agony (Oxford, Oxford
University Press, 1979, 2a ed.).
61 Cf.
Theodor W. Adorno e M. Horkheimer: “Le concept d´”Aufklärung” in La dialectique
de la raison, fragments philosophiques. Trad. E. Kaufhol (Paris, Gallimard,
1974), p. 45.
29 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
de aumentar o seu reino, mas não em
proveito dos outros, apenas pensando em si mesmo. Ele percebe apenas um aspecto
do conatus sese conservandi: o egoísta. Assim, o indivíduo que
entra no círculo do poder se caracteriza sobremodo pela “sobrevivência”. Um
personagem serve a Canetti como fio condutor da mencionada sobrevivência.
Trata-se de Flavio Josefo. Ao comandar a resistência aos romanos da fortaleza
de Jotapata, ele escapa enquanto todos os defensores do lugar ou se matam ou
são mortos pelos inimigos, alguns são aprisionados. Josefo se esconde numa
cova, situada ao lado de uma cisterna. Ali, encontra quarenta homens que
pretendem resistir a qualquer custo. Mas o lugar é denunciado. Os romanos
prometem vida a Josefo, que tem uma visão profética, ou supostamente profética:
foi-lhe revelado que os judeus seriam vencidos. Os amigos de Josefo, agora, são
os romanos e os seus inimigos os que estão com ele na cova, os judeus que
desejam suicidar, para não cair nas mãos dos romanos. Ele tenta dissuadi-los
com o veto religioso ao suicídio, mas percebe que só conseguirá escapar se
todos os que estão na cova morrerem. E propõe um sorteio, no qual não fica bem
claro se houve ou não truques de sua parte. Quem retira a sorte mata o próximo,
e assim sucessivamente. Josefo não mostra escrúpulos no caso deste assassinato
plural, um suicídio coletivo. Todos morrem, para que ele possa salvar-se.
E
termina Canetti: “O engano é total. É o engano de todos os condutores. Eles
fingem estar encabeçando a marcha de seus subordinados para a morte. Na verdade
os enviam na frente para eles próprios poderem salvar a própria vida. O ardil é
sempre o mesmo. O condutor que sobreviver, ele se fortalece nisto. Quando tem inimigos
aos quais possa sobreviver, muito bem; quando não os tem, continua tendo seus
próprios companheiros. De qualquer forma, ele utiliza ambos, alternadamente ou
de uma só vez. Os inimigos são utilizados abertamente, afinal, é para isto que
eles são inimigos. Os companheiros só podem ser utilizados às escondidas”
(Canetti, G., 1986: 267). A passagem para o absoluto, o caminho rumo ao
infinito, define o poderoso, que sempre deseja mais poder, e mais poder, como Satan.
Não
existe limite no acúmulo de mando e se alguém obstaculiza este desejo, morre.
Tudo o que ultrapassa os limites atinge a loucura. Assim, diria eu, Satan não
deseja apenas o poder, mas a glória, o esplendor sublime sem nenhuma escuridão
em si mesmo, e toda obscuridade nos outros. Canetti também apresenta, como num
quadro sinótico, a proximidade entre o glorioso e o tirano. “A massa do maníaco
de glória é formada por sombras; ou seja, por criaturas que não têm outra razão
de viver senão a de pronunciar um
30 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
nome muito determinado (…) O rico
coleciona montes e rebanhos. No lugar destas coisas está o dinheiro. Os homens
não lhe interessam; para ele é suficiente o fato de poder comprá-los. O
detentor do poder coleciona homens. Os montes e rebanhos nada significam para
ele, a não ser que necessite deles para a aquisição de homens. Mas ele quer
homens que vivam, para arrastá-los ou para levá-los consigo à morte. Os que
nasceram antes e os que nascerão depois têm para ele importância seundária. O
famoso coleciona coros. Destes, quer escutar apenas o seu nome. Eles podem
estar mortos ou vivos, ou podem nem ter nascido ainda; tudo isto lhe é
indiferente. Basta que sejam numerosos e que tenham sido exercitados em repetir
seu nome”. (Id. Ibid. 462-444)
Satan
deseja
assaltar os céus, invadir o terreno que foi seu na partilha celeste e que hoje
pertence ao inimigo. Sua plena soberba se transmuta em ódio pelo Cristo e por
seu Pai. Esta é uma estratégia enlouquecida, aconselhada pelo orgulho. A
sedução de Deus é uma outra estratégia não menos louca. E agora o presidente
Schreber torna-se, na pena de Canetti, o grande modelo dos poderosos mundiais.
Eles querem sobreviver, mas o tempo fornece limites para as suas vidas. E vem a
tentação luciferina por excelência, a da eternidade. Conquistado Deus, o eterno
permite a existência plena, liberada até mesmo da sobrevivência. Os poderosos
desejam ser Deus, um novo Deus, e buscam deglutir a antiga divindade. Nota-se
um aprofundamento dessa experiência demoníaca em relação às anteriores,
dantesca ou miltoniana.
Dentre
os desejos de Schreber está o de invulnerabilidade frente à massa dos mortais,
além da volúpia de sobreviver à custa dos subordinados, a mais forte inclinação
dos poderosos. Deus é o máximo poder. Schreber termina sua delirante narrativa
com um “fato”. Enquanto juiz e poderoso, escreve, “tudo o que ocorre refere-se
a mim. Eu me converti para Deus no homem absoluto ou no único homem, em torno
do qual tudo gira, ao qual deve ser relacionado tudo o que ocorre e o qual, a
partir do seu próprio ponto de vista, também deve referir todas as coisas a si
mesmo”.
O
paranóico sempre se percebe cercado pois “seu inimigo principal jamais se
contentará com atacá-lo sozinho. Sempre procurará atiçar contra ele uma malta
odiosa, soltando-a no momento exato. Os membros da malta a princípio se mantêm
ocultos, podem estar por toda parte”. Para o poderoso, todos conspiram contra
ele. Seus inimigos são uma totalidade homogênea. Indivíduos, para os poderosos
da história, se diluem em massas compactas. O
31 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
poderoso desmascara os supostos
indivíduos, reduzindo-os ao Inimigo. Só ele, inocente, pode sentenciar milhões
à morte.62
Segundo
Canetti, a paranóia de Schreber liga-se diretamente ao poder. Ela é a
normalidade dos homens numa sociedade de massas. No delírio, o juiz alemão
insere a própria massa dos homens em seu corpo e em sua alma, digerindo-a. Os
homens não existem para ele enquanto indivíduos autônomos, mas se diluem em
multidões de pequenos entes ameaçadores. “Qualquer tentativa de análise
conceitual do poder será mais pobre do que a clareza da visão de Schreber.
Todos os elementos das circunstâncias reais estão nela: a intensa e contínua
atração sobre os indivíduos que irão se reunir numa massa, sua intenção
duvidosa, sua domesticação, sua miniaturização, o fato de se amalgamarem no
poderoso que representa o poder político em sua pessoa (...) o sentimento do
catastrófico que está vinculado a tudo isso, uma ameaça à ordem universal...”.
Com
Schreber ficamos informados de que Deus, detentor do poder, tem partidos e seu
reino reúne províncias. Para aumentar o seu mando, Deus elimina os homens
incômodos. A impressão que temos ao ler o livro do juiz alemão, diz Canetti, é
que “Deus está em guarda, como uma aranha, no centro da teia política”. Quando
se percebe que na terra um Salvador representa Deus —Schreber sintetiza em sua
pessoa o Soter religioso e o político— captamos a extensão da paranóia
instalada no indivíduo que ocupa o cargo de julgador dos homens e de mando
sobre eles.
Schreber
disputa com o artífice das leis, na tentativa de se fazer Deus. “Um doente
mental”, enuncia Canetti, “que passou seus dias vegetando numa clínica, pode,
pelos conhecimentos que proporciona, ser muito mais significativo do que Hitler
ou Napoleão, e iluminar a humanidade a respeito de sua maldição e de seus
senhores”. Nas Memórias, Schreber indica que as tentativas de dominação
que sofreu por parte de seres minúsculos se caracterizavam sobretudo pelas
perguntas e ordens. Comenta Elias Canetti: “Como instrumentos do poder, ambas
são bem conhecidas; como juiz, Schreber mesmo as tinha manipulado
exaustivamente”.
“Tudo
o que ocorre refere-se a mim. Eu me converti para Deus no homem absoluto ou no
único homem, em torno do qual tudo gira, ao qual deve ser relacionado tudo o
que ocorre e o qual, a partir do seu próprio ponto de vista, também deve
referir todas as coisas a si
62 Todos
estes passos são extraídos da coletânea a ser publicada pela Editora
Perspectiva com o título de O Desafio do Islã e outros desafios.
32 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
mesmo”. O comentário de Canetti
sobre a atitude do juiz que domina, soberano, o mundo social, e para quem os
homens nada significam a não ser que sejam integrados numa multidão, é
perfeito: “Vêm-nos à lembrança algumas representações da iconografia cristã:
anjos e santos, todos apertados lado a lado feito nuvens, às vezes como nuvens
de verdade, nas quais apenas olhando-se com muita atenção percebem-se as
cabeças individuais”. A forma angélica, definitivamente, une-se aos desejos de
mando humano, o que passa pela domesticação impossível do divino. No caso de
Schreber, “seu delírio, sob o disfarce de uma concepção antiquada do mundo, que
pressupõe a existência dos espíritos é, na realidade, o modelo exato do poder
político, que se nutre da massa e que é composto por ela”. O juiz louco sempre
pensou que Deus desejava destruir seu intelecto. Ele perdeu o siso por desejar
a preservação absoluta de seu gênio, como no lamento dantesco sobre os que
perderam a inteligência. Como nos doentes de melancolia renascentistas, o
inimigo ataca os nervos de Schreber, só que agora o adversário não é o diabo,
mas o próprio Deus. Trata-se, então, de se transformar em mulher para o prazer
divino, o que é uma forma de lisonja. O jogo entre Deus e Schereber é uma
trágica mimesis, pois o espelho da sua inteligência se quebrou. Schereber tudo
faz para desarmar Deus e isto é luciferino.
Finaliza
Canetti: no caso de Schreber “não se pode negar que seu sistema político chegou
a obter grandes honras algumas décadas mais tarde. Numa versão mais brutal e
menos ‘culta’, ele se transformou no credo de um grande povo”. O líder daquele
povo “chegou à conquista do continente europeu e, por pouco, ao domínio do
mundo”.
Nos
dias de hoje, diz Canetti, o poder é mais fugaz do que nunca. Todos
sobreviverão ou ninguém sobreviverá. Se o mando é rápido e desaparece, mais
veloz do que nunca, a escada blasfema do poder, que mira conquistar o Eterno,
torna-se cada vez mais alta e vertiginosa. “Quem subiu demasiadamente rápido ao
ponto mais elevado, ou quem de alguma forma conseguiu apropriar-se do poder
supremo, pela própria natureza de sua posição vive dominado pelo medo de mandar
e deve tentar libertar-se dele. A ameaça contínua, da qual ele se vale e que
constitui a essência propriamanente dita do sistema, volta-se finalmente contra
ele. Esteja ou não realmente ameaçado por inimigos, ele sempre se sentirá
ameaçado. A ameaça mais perigosa vem de sua própria gente, a quem sempre dá
ordens, que está mais próxima dele, que o conhece bem (…) A morte como ameaça é
a moeda do poder”.
C_o_n_c_l_u_s_ão_
_
33 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
O alvo dessas reflexões é discutir
o quanto o poder possui de luciferino, com todas as marcas do anjo terrível.
Deixamos o século 20 e logo nos portais do nosso tempo caimos na guerra
generalizada, nas lutas entre potências, no orgulho dos nacionalismos. Ao mesmo
tempo testemunhamos a razão louca de Estado, mímesis diabólica
que operou em atentados terroristas fanáticos — como os de 11 de setembro ou
dos que instalam bombas em seu corpo e alma— cuja réplica consiste na
diminuição dos direitos humanos no mundo e na própria sede do poder imperial. O
crepúsculo do século anterior reafirmou o homem como lobo sedento de sangue.
Basta recordar os milhões de mortos na África e no Camboja. A sombra
totalitária não foi exorcizada, pelo contrário, ela está mais presente do que
nunca na mídia e na propaganda, cujo nome diabólico é Mentira.
Na
luta pelo mando dos homens, religiões milenares e venerandas convivem, em seu
interior, com rebeldes ao compromisso de igualdade e respeito na fé. Alguns
chefes de Igreja, como foi o caso do Pontífice Católico, proclamam a essência
superior de seu credo sobre todos os demais. Enquanto isto, líderes de outras
tradições calam-se ou incentivam assassinatos e horrores inauditos. O fato de
que tais sentenças de morte coletiva são proibidas nos seus escritos sagrados
aumenta a violência daqueles atos. “É preciso não transformar Deus num punhal”,
disse um dia o ateu Denis Diderot. Ele sabia perfeitamente sobre o que falava,
porque grande número de crentes sucumbe à tentação por ele denunciada.
Enquanto
as querelas teológicas renascem, com a morte de milhares e a destruição da
esperança de vida melhor no planeta, ameaças políticas, econômicas, sociais,
científicas renovam o arsenal de horrores futuros, caixas de Pandora atômicas,
a partir das quais são devorados o espaço e o tempo que nos restam. Sabemos que
o nosso mundo tem um tempo, contado em milhões de anos é verdade, mas finito.
Um dia ele será pó, de onde saiu. Enquanto ele puder constituir uma casa para
nós, seria de todo necessário que nos dedicássemos carinhosamente à sua
manutenção.
O
saber cresce em escala geométrica nos países poderosos e segue ritmo lento nos
países pobres. Os primeiros, soberbos, proclamam-se “superiores”, classificando-se
como “guardiões da civilização”. Ainda não digerimos a Revolução Francesa e o
sentido da igualdade entre as nações. A ONU permanece como sonho de paz
internacional, sonho que passa todos os dias ao pesadelo das lutas e da falta
absoluta de segurança. Se Hans Jonas apelou para o sentido de nossa
responsabilidade diante do planeta, sua voz não foi ouvida e
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Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
talvez nunca o será. Os donos do
mundo julgam-se elevados o bastante para julgar o que é o Bem e o que é o Mal,
quem é bom e quem é perverso. Eles se arrogam o monopólio da Justiça. E isto é
luciferino.
A
propaganda e a mídia seguem o rumo da pior violência, ao bombardearem os
intelectos com delírios de consumo e de grandeza. No quinto exercício
espiritual, previsto para a primeira semana de retiro, Santo Inácio de Loyola
(1492-1556) diz o seguinte: “com os olhos da imaginação, veja-se o comprimento,
a largura e a profundeza do inferno... (ouça-se) os choros, os urros, os
gritos, as blasfêmias....(cheire-se) a fumaça, o enxofre, e as coisas em estado
de putrefação....(experimente-se com o paladar) as lágrimas, a tristeza, o
verme da consciência....(toque-se) as lavas de fogo que envolvem as almas e que
as queimam”. Aquelas visões foram realizadas nos campos nazistas, onde o
inferno abriu a garganta e devorou milhões de seres humanos. Na porta daqueles
espaços, a ordem moralista: “O trabalho liberta”. Canetti diz que a invenção
mais tremenda dos homens é a do inferno. Depois que ele foi produzido na
imaginação, todos os tormentos seriam previsíveis. Santo Inácio manda que os
cinco sentidos sejam exercitados, possibilitando o pandemônio na consciência.
Não bastam os olhos, são requisitados o gosto, o tato, o olfato. Todo o corpo
transforma-se em fábrica diabólica. Estamos longe, em termos de tecnologia, de
alcançar a perfeição de um aparelho que sintetize os cinco sentidos. Mas a
mídia se esforça para trazer, apenas com a vista e as orelhas, o inferno à
nossa casa, ao nosso corpo, aos nossos corações e mentes. Ainda não inventaram
uma TV com sabores, gosto, cheiro. Mas Santo Inácio poderia propor esta forma
de imprensa como auxiliar na tarefa de produzir o inferno. O cheiro e o gosto,
se eles chegassem ao público, seriam o da podridão, essencial nos excrementos
da alma.63
O
anti-semitismo cresce nos últimos tempos, disfarçado de mil maneiras, depois de
se esconder, como brasa sob as cinzas, na vergonha experimentada por um átimo
após a Segunda Guerra Mundial. Somente o diálogo poderia franquiar as portas de
um futuro pacífico para todos os povos e religiões. Mas o futuro não se define
sem plena consciência do pretérito. É por esse motivo que realizei uma anamnese
das doutrinas sobre o poder e o satanismo. Satan mora nos mesmos
palácios governamentais, habita as mesmas casernas, especula nas mesmas bancas
de sempre. E se disfarça, não raro, sob a máscara da piedade. Sem o passado,
não existe futuro. No caso do anti-semitismo, como diz Jules Isaac,
63 Este
parágrafo integra a coletânea O Desafio do Islã, a ser publicada.
35 ROMANO, R. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes
Claros, v.6, n.1, jan./jun. 2004
“enquanto as igrejas e os povos
cristãos não reconhecerem suas responsabilidades iniciais (…) o anti-judaísmo
manterá sua virulência. O arcebispo de Nova York constatou outrora que existe
na Inglaterra um anti-semitismo latente; ele existe em toda parte e seria
surpresa se ocorresse o contrário : pois a fonte permanente deste
anti-semitismo latente é o ensino religioso cristão sob todas as suas formas, a
interpretação tradicional e tendenciosa da Escritura, interpretação da qual
tenho a convicção absoluta de que ela é contrária à verdade e ao amor d’Aquele
que foi o judeu Jesus”. (Jesus e Israel).
Enquanto
religiões não dialogam, a intolerância, os ódios, tudo conspira para indicar
que vivemos sob o signo de Caim. Dormimos sobre bombas atômicas postas em
ninhos da desgraça cósmica no Oriente e no Ocidente. As finanças se dirigem à
indústria bélica, arrancam migalhas de pão dos frágeis seres humanos para
entregá-las aos especuladores do deus mercado. É preciso, diante deste quadro
dantesco, repetir com Elias Canetti que “existe algo horrível no esgotamento
dos deuses (…) Deus esperou e agora sai do átomo”.
Não
é permitido parolar sobre ética ou valores quando se atingiu o estágio presente
do mundo. Nada do que assistimos é novidade, mas tudo vem potenciado de modo
inaudito, o tráfico de armas, das drogas, da morte, da corrupção política, do
fanatismo. Como sempre, temos na Bíblia a alternativa contra a cegueira, o
espelho dos tempos: “não é possível ler a Bíblia sem indignação nem sem
deixar-se seduzir. Nela, os homens são palhaços, tartufos, déspotas! E o que
não se faz contra ela! Ela é a digna imagem e o digno modelo da humanidade, um
ser grandioso, feito ao mesmo tempo de claridade e de sombras. Ela é a
verdadeira torre de Babel, e Deus sabe disto” (Canetti). Tanto Deus sabe que
jamais deixou de chamar, para que deixássemos o orgulho que sussurra ao nosso
ouvido —extrema lisonja— a pretensa superioridade sobre os que respiram o mesmo
hálito que nos foi concedido. Ele chamou nossos pais no Paraíso, depois do
pecado, chamou os homens durante milênios. Ele chama e ouve. Emudecemos e
ficamos surdos. “Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor”. Não é
preciso nem prudente dizer mais.
R_e_f_e_r_ên_c_i_a_s_
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