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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Escola Paulista da Magistratura

31/03/2015

Paz e justiça entre as nações são debatidas no curso “Teorias da Justiça”

O professor Roberto Romano ministrou ontem (30), a aula “Paz e justiça entre as nações” no curso de formação continuada Teorias da Justiça da EPM. A exposição teve a participação do subcoordenador do curso, professor Luiz Paulo Rouanet.

“Paz e justiça entre as nações é algo muito complicado. Eu não me refiro aos últimos eventos beligerantes no mundo, e sim à história da humanidade. Se quisermos perceber a profundidade desse tema, temos que descer bem fundo nos dias em que estamos no planeta, pois este tema envolve assuntos que atormentam a sociedade desde os primórdios da história”.

O professor iniciou a preleção com a análise de uma obra de arte contemporânea, o filme 2001: Uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick. Depois, regressou à antiguidade clássica e discorreu sobre as obras História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides e A República, de Platão. Teceu, finalmente, considerações sobre alguns teóricos da guerra, da Justiça e da paz.

As observações do palestrante sobre a filmografia de Kubrick buscaram o fundamento da ideia da perpetuação da beligerância entre nações, fator de interdição da realização ou o simulacro da Justiça. “Nas cenas iniciais, assistimos o nascimento da humanidade, e com ela, o parto da violência (...). Entre a ciência e a literatura, temos o porrete; há uma  evolução que refina a força corrosiva da técnica e da ciência. E não existe salvação nos sentimentos, pois eles são tirânicos por natureza. A Justiça surge como sombra enganosa que preside o nascimento do Estado e habita os sonhos dos homens; mas quando eles acordam, o pesadelo da violência estatal ou particular reaparece com a sua figura assustadora. A razão de Estado impera em 2001. Nele, a violência se refina e se torna a cada instante mais cruel e profunda. O medo controla as decisões de homens e máquinas. Em Kubrick, o ente humano deseja a morte, e a técnica é um instrumento para atingir tal fim”.

Na análise que desenvolveu sobre a obra de Tucídides, o professor sublinhou que, de acordo com o historiador, os atenienses foram levados à guerra que destruiu Atenas por razões de Estado, mas por interesses particulares. “Somos levados a discutir o funcionamento estatal das instituições, mas esquecemos muitas vezes os interesses privados que estão na guerra, na diplomacia, etc., observou o filósofo”. Adiante, fez uma reflexão sobre a “delicada passagem das razões de Estado para as razões do interesse privado”, analisando o período do governo democrático de Sólon.

Discorreu também sobre o discurso de Trasímaco, na República, de Platão, em que se discute o conceito de Justiça como algo imutável e perfeito e se debate sua concepção como conveniência dos mais fortes ou dos mais fracos.

Em prosseguimento, Roberto Romano falou sobre a questão de política interna do relacionamento da cidadania com os poderes de Estado. Flagrou, no Renascimento, o poder de Estado nascente centralizado, examinado por François Hotman (1524-1590) intelectual e jurista protestante, no livro clássico do Direito Público Franco-Gallia, “em que se encontra a tese que procura manter os direitos da cidadania contra os magistrados, um embrião daquilo que chamaríamos soberania popular “.

A recidiva da “guerra de todos contra todos”

Na perspectiva do movimento pendular da “guerra de todos contra todos”, tese defendida por Thomas Hobbes (1588–1679), o professor  discorreu sobre a obra de autores considerados críticos do projeto de paz perpétua kantiano, “quase caracterizando como irrealizável ou infundado na natureza humana”. Ele citou Georg Wilhelm Friedrich Hegel (17701831) e Johann Gottlieb Fichte (17621814), este último autor de Sobre Maquiavel como escritor e excertos de seus escritos, onde recupera e desenvolve pressupostos da força definidora da relação entre as nações, já hauridos por Tucídides e Platão.

“Segundo Fichte, se as nações se descuidam um minuto de expandir o seu território, outras concorrentes aumentam. Esse é um ponto básico, e não adianta falar de Justiça ou de Direito, pois é essa lei que define o padrão do relacionamento internacional”, sustentou o professor.

Roberto Romano examinou o termo “pleonexia”, “que significa vontade de ter mais – mais poder, mais riqueza, mais honra, etc., mencionado pelo historiador grego Tucídides (460 a.C.400 a.C.) na História da Guerra do Peloponeso, e recuperado  por Hobbes como um erro inerente à condição humana”. De acordo com o professor, esse impulso opera na alma humana 24 horas por dia, com intensidade, e não se encontra limites para essa expansão, tanto do ponto de vista dos interesses dos estados quanto de particulares.

O filósofo sustentou finalmente que, desde a antiguidade até os nossos dias, ensaios de controle do poder político fracassaram quase inevitavelmente. “A Liga das Nações e a ONU fracassaram na tentativa de impor normas de conduta às potências, sobretudo as de grande porte. Vivemos uma situação perene, em que os interesses privados de grandes corporações econômicas ditam as regras dos poderes estatais nas guerras: o fornecimento de armas, crédito para sua compra, a arregimentação de mercenários, ideologias fundamentalistas cristãs ou islâmicas, enfim, todo um complexo de interesses privados afasta os entes estatais da justa paz mundial”.

Em suas considerações finais, Roberto Romano asseverou que, no sistema de poderes, o medo entre Estados é mantido, mesmo após o final oficioso da Guerra Fria. “Até hoje, os homens convivem com a ausência de uma autoridade que, acima dos estados, poderia proteger uns dos outros. Nenhum Estado deixa de possuir forças armadas, sinal de insegurança diante de inimigos atuais ou potenciais. A cautela ronda os poderes, o que os leva a fabricar, ainda na frase de Hobbes, “teias de espiões em todas as esferas da vida pública e privada”.

Curso

Iniciado no dia 9 de março, com aula inaugural do presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo e coordenador do curso, desembargador José Renato Nalini, o curso Teorias da Justiça teve continuidade no dia 16, com a palestra “Contratualismo moderno”, proferida por Rolf Kuntz, e no dia 23, com aula ministrada pelo professor Anderson Vichinkeski Teixeira sobre o tema “Concepção de Justiça em Hobbes e Kant”. O módulo inicial do curso, “Fundamentos Modernos da Justiça”, prossegue até o dia 13 de abril.

ES (texto e foto)

Tortura Blindada, de como existem promotores e juízes que ignoram este crime. E se tornam dele cúmplices.

Tortura blindada

Revista ihu on-line

17 Fevereiro 2017
Pesquisa inédita mostra negligência de promotores e juízes diante de casos de tortura.

Do nada te agrediram? A troco do quê? Havia algum motivo para isso? Tapa na cara, só? O senhor conhecia os policiais? Essas folhas que você assinou são mentira? Os policiais estão mentindo?

Com frases similares, às vezes ditas aos brados, juízes e promotores esvaziam um dos principais instrumentos para prevenir e combater a tortura no Brasil: as audiências de custódia, que ocorrem em até 24 horas após uma prisão em flagrante.

A reportagem é publicada por Conectas, 16-02-2017.

Um dos principais objetivos dessas audiências, instituídas há exatamente dois anos em São Paulo por iniciativa do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), é justamente averiguar casos de violência por parte dos agentes públicos no momento da detenção. Uma pesquisa inédita da Conectas mostra, no entanto, que esses episódios são negligenciados, naturalizados e até justificados pelos representantes do Ministério Público e da Magistratura.

Segundo o estudo "Tortura blindada", que será lançado na próxima terça-feira (21/2) em São Paulo, um terço dos juízes não questionaram os custodiados sobre a ocorrência de violência no momento da prisão, mesmo quando a pessoa apresentava marcas no corpo. Entre os promotores, o descaso foi ainda maior: a pesquisa mostra que, na grande maioria dos casos, os representantes do Ministério Público não fizeram qualquer tipo de pergunta para apurar os relatos de violência.



O levantamento também evidencia fragilidades no atendimento prestado pela Defensoria Pública. Apesar de nenhum defensor ter justificado a violência ou questionado a veracidade dos relatos, a instituição tampouco enfrentou os juízes e promotores nas ocasiões em que estes foram coniventes com a tortura ou agressivos com as pessoas presas.

Também há críticas ao trabalho do IML (Instituto Médico Legal), responsável pelos exames de corpo de delito realizados nas pessoas presas depois da audiência. De acordo com o estudo, os relatórios produzidos pelos médicos legistas nem sempre reproduzem com fidelidade o relato das vítimas.

"A violência policial no momento da detenção não é novidade no Brasil, mas essa pesquisa nos dá evidências sólidas de que a prática é negligenciada - e por vezes respaldada - pelos atores do sistema de Justiça, o que é gravíssimo e contraria as leis e normas nacionais e internacionais", afirma Rafael Custódio, coordenador de Justiça da Conectas.

O evento de lançamento de "Tortura blindada" acontece na próxima terça-feira (21/2) às 9h e já tem as presenças confirmadas da procuradora federal dos direitos do cidadão, Deborah Duprat, do jornalista Bruno Paes Manso, do presidente da AJD (Associação Juízes para a Democracia), André Augusto Salvador Bezerra, e do coordenador de Justiça da Conectas, Rafael Custódio.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Previsível, tratando-se do Supremo Subserviente e, sobretudo, de um juiz cuja máxima qualificação foi dada por Saulo Ramos. Juiz de....

Celso de Mello garante Moreira Franco ministro de Temer

Decisão acaba com a briga de liminares que vinham ocorrendo graças a decisões de juízes de primeira instância e desembargadores, ora afastando, ora mantendo Moreira

Rafael Moraes Moura e Breno Pires, de Brasília
14 Fevereiro 2017 | 17h58

celso
Em uma vitória para o Palácio do Planalto, o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu na tarde desta terça-feira, 14, manter a nomeação de Moreira Franco (PMDB) para a Secretaria-Geral da Presidência da República. O ministro negou os pedidos apresentados pelo PSOL e pelo Rede Sustentabilidade, que recorreram ao STF para barrar a nomeação.

Documento

A decisão acaba com a briga de liminares que vinham ocorrendo graças a decisões de juízes de primeira instância e desembargadores – ora afastando, ora mantendo Moreira – em resposta a ações populares movidas em todo o País.
Em sua decisão, Celso de Mello não mencionou explicitamente a decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) que retirou o foro privilegiado de Moreira Franco. O Decano da Corte, no entanto, ressaltou que a prerrogativa de foro é “consequência natural e necessária decorrente da investidura no cargo de ministro de Estado”.
Homem de confiança de Temer, Moreira Franco tomou posse como ministro no dia 3 de fevereiro, quatro dias depois de a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, homologar as delações de 77 executivos e ex-executivos da Odebrecht. Apelidado de “Angorá” na planilha da empreiteira, o peemedebista foi citado mais de 30 vezes na delação de Cláudio Melo Filho, ex-diretor de relações institucionais da Odebrecht.
“A nomeação de alguém para o cargo de Ministro de Estado, desde que preenchidos os requisitos previstos no art. 87 da Constituição da República, não configura, por si só, hipótese de desvio de finalidade (que jamais se presume), eis que a prerrogativa de foro – que traduz consequência natural e necessária decorrente da investidura no cargo de Ministro de Estado (CF, art. 102, I, “c”) – não importa em obstrução e, muito menos, em paralisação dos atos de investigação criminal ou de persecução penal”, escreveu Celso de Mello em sua decisão.
“E a razão é uma só: a mera outorga da condição político-jurídica de Ministro de Estado não estabelece qualquer círculo de imunidade em torno desse qualificado agente auxiliar do Presidente da República, pois, mesmo investido em mencionado cargo, o Ministro de Estado, ainda que dispondo da prerrogativa de foro ‘ratione muneris’, nas infrações penais comuns, perante o Supremo Tribunal Federal, não receberá qualquer espécie de tratamento preferencial ou seletivo, uma vez que a prerrogativa de foro não confere qualquer privilégio de ordem pessoal a quem dela seja titular”, concluiu Celso de Mello.
De acordo com Celso de Mello, a nomeação de qualquer pessoa para o cargo de ministro de Estado “não representa obstáculo algum a atos de persecução penal que contra ela venham eventualmente a ser promovidos perante o seu juiz natural, que, por efeito do que determina a própria Constituição (…), é o Supremo Tribunal Federal”.
“A investidura no cargo de Ministro de Estado, em contexto como o ora exposto na presente impetração mandamental, em que inexiste qualquer conexão de suposta prática delituosa com o Presidente da República, não representa obstáculo jurídico à normal e regular sequência de eventual procedimento de índole criminal contra Wellington Moreira Franco, litisconsorte passivo necessário”, ressaltou o ministro.
Foro. Ministro, Moreira Franco ganha foro privilegiado perante o Supremo. Ele negou que tenha sido nomeado para obter o benefício do foro especial.
Moreira Franco é citado na delação premiada do ex-executivo da Odebrecht Cláudio Mello Filho, e disse que sua situação é distinta à de Lula, que teve sua nomeação para a Casa Civil barrada pelo STF. O novo ministro seria o ‘Angorá’.
“Há uma diferença”, disse Moreira Franco, após a cerimônia de posse. “Eu estou no governo, eu não estava fora do governo”, completou.
O ex-executivo da Odebrecht Claudio Melo Filho afirma em seu anexo de delação premiada com a força-tarefa da Operação Lava Jato que tratou com Moreira Franco negócios da empreiteira na área de aeroportos.
Elo entre a empresa e políticos em Brasília, o delator relata pedidos da empreiteira e suposta pressão por parte do peemedebista, que é homem de confiança de Temer.
Moreira Franco foi ministro da Secretaria de Aviação Civil (SAC) no governo Dilma.
“Em algumas oportunidades me reuni com Moreira Franco para tratar sobre temas afetos à aviação civil”, afirmou Claudio Melo. “Moreira Franco é um político habilidoso e se movimenta muito bem nas ações com seus pares. Acredito que há uma interação orquestrada entre ele e Eliseu Padilha (ministro da Casa Civil) para captação de recursos para o seu grupo do PMDB.”
Segundo o delator, Moreira Franco era identificado nas planilhas da propina com o codinome “Angorá”. O ministro teria solicitado a ele “um apoio de contribuição financeira, mas transferiu a responsabilidade pelo recebimento do apoio financeiro para Eliseu Padilha”.
As investigações sobre o setor aéreo e as concessões de aeroportos no governo Dilma Rousseff e as obras nos terminais integram uma das frentes de investigação da Lava Jato iniciada em 2015. O setor aeroportuário foi comandado no governo Dilma por Moreira Franco, a partir de 2013, quando assumiu como ministro da Secretaria de Aviação Civil (SAC) em 2013.
O delator afirmou que seu relacionamento com Moreira Franco é antigo, tendo ele ‘parentesco distante’ com o ministro. “Figura expoente do PMDB, esteve presente em vários momentos importantes do país. Tenho uma relação pessoal com Moreira Franco e a utilizei nos momentos que precisei.”
Esclarecimentos. Em resposta ao STF, o presidente Michel Temer encaminhou na última sexta-feira (10) um documento com 50 páginas com explicações sobre a nomeação de Moreira Franco para o cargo. Os textos, assinados pela Casa Civil e pela Advocacia-Geral da União e subscritos por Temer, alegam que “os vazamentos ilegais da Operação Lava Jato não se prestam como provas nem evidências para decisões judiciais ou administrativas” e que “não houve qualquer má intenção do Presidente da República em criar obstruções ou embaraços à Operação Lava Jato”.
A nomeação de Moreira Franco foi alvo de uma “guerra de liminares” ao longo dos últimos dias.
Na última sexta-feira, o juiz federal Alcides Martins Ribeiro, do Tribunal Regional Federal da 2.ª Região (TRF-2) decidiu atender apenas parcialmente ao pedido do Palácio do Planalto, determinando a manutenção de Moreira Franco como ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, mas sem a prerrogativa de foro privilegiado. A decisão do ministro Celso de Mello se sobrepõe às anteriores. (Rafael Moraes Moura e Breno Pires)

Suprema subserviência Roberto Romano

Suprema subserviência

Quando a autoridade é perdida, um Poder deve sorver até a última gota da abjeção
*Roberto Romano
10 Dezembro 2016 | 03h32

O Supremo Tribunal é conhecido como Corte política. Não raro se excede na faina de agradar ao Executivo e ao Legislativo. Em sua história os brasileiros encontram sentenças que envergonhariam qualquer toga do planeta. 

A Constituição de 1934 proíbe tribunais de exceção no capítulo 2, 25: “não haverá foro privilegiado, nem tribunais de exceção”. Instaurada o Tribunal de Segurança Nacional, o deputado João Mangabeira apresenta recurso ao Supremo. Por voto unânime os juízes declaram o invento tirânico “em perfeito acordo com a Constituição da República”. Um atalho na Carta permite a hermenêutica liberticida: “admitem-se, porém, Juízos especiais em razão da natureza das causas”. E a bênção dos magistrados é concedida sem data venia. O referido tribunal persegue 1.420 pessoas: 533 no Distrito Federal, 222 do Rio Grande do Norte, 165 em São Paulo, 95 em Pernambuco, 85 da Bahia. Entre os “julgados”, Armando Sales, José Antônio Flores da Cunha, João Mangabeira, Otávio Mangabeira, Luís Carlos Prestes, defendido pelo grande Sobral Pinto. No caso de João Mangabeira ocorre façanha incomum na história jurídica internacional: empatada a decisão, o presidente Barros Barreto decide contra o réu. O Supremo Tribunal Militar corrige em parte o escândalo e concede habeas corpus ao parlamentar. 

Depois vêm as manobras em prol do parlamentarismo, com a demissão de Jânio Quadros. O STF se cala, apesar do notório golpe aplicado por militares. Em 1964, o mesmo silêncio tíbio quando Hermes Lima e Evandro Lins e Silva são expulsos da Excelsa Corte pelo governo de fato. Procura em vão quem busque nos anais daquele colégio uma nota mais dura contra o AI-5, que suspende o habeas corpus em casos de crime político e contra a ordem econômica, a segurança nacional, a economia popular. Tais crimes são tipificados com pressuroso auxílio de quem redige uma Constituição como a Polaca, o notório Francisco Campos. Nada relevante é dito pelo Supremo contra a censura prévia em jornais, revistas, livros, peças de teatro e músicas. 

E seguimos a trajetória pouco sublime do Supremo. Por exemplo, no apagão do período FHC. Questionada a constitucionalidade da multa (os usuários não eram responsáveis pela imprudência governamental, que não providenciou melhorias na rede), os juízes do STF definem que, sem penalidades pecuniárias, os cidadãos deixam de colaborar. Logo… Na reforma da Previdência sob Luiz Inácio da Silva, Joaquim Barbosa, o herói da futura Ação 470, decreta em seu voto que “não existem direitos adquiridos, caso contrário ainda estaríamos em regime de escravidão”. Nenhuma data venia é apresentada por seus pares contra o sofisma, de enrubescer estudantes ainda no primeiro ano acadêmico. 

O que acontece na tarde de 7 de dezembro de 2016 ressuscita o velho serviçal dos outros dois Poderes, com resultado ainda pior para os togados. Sob o ultimato de Renan Calheiros e do governo – chantagem solta, pois sem a vitória de Renan surge a ameaça de não se votarem cortes orçamentários – o Supremo se coloca como trampolim para ações contrárias à cidadania que lhe paga e a quem deve servir. 

Antes de continuar, uma reflexão. Illibatus, a, um, no latim maltratado pelos membros do STF, tem o sentido de algo ou alguém íntegro, inteiro, completo, ao qual nada falta, não enternecido pela perversão ética. Como o candidus, do qual se origina o atual “candidato”, o vocábulo indica a propriedade de não ser conspurcado, de seguir um parâmetro virtuoso. Illibatus designa um ser sem travestimentos, enfeites, dissimulação. Seu antônimo é o termo improbus, aplicado a quem “comete uma falta contra a fides, sendo o equivalente de iniustus. A improbitas é a ruptura da fides, é o defeito de quem não honra promessas e corresponde ao francês malhonnêteté”. (J. Hellegouarc’h: Le Vocabulaire Latin des Relations et des Partis Politiques sous la République). 

No Brasil, todo cargo público exige do candidato a “ilibada reputação”. Esta lhe concede a efetividade plena do múnus encerrado no ofício. Ninguém pode exercer uma função em fatias, pois tal fato seria improbidade ética e política. Como, então, os juízes do STF guardam Renan Calheiros no cargo de presidente do Senado, mas lhe retiram o direito e o dever de substituir o chefe do Estado? Ocorre aí improbidade de alguém. Ao ser empossado como senador, aquela pessoa promete cumprir fielmente tudo o que seu cargo exige. Como não pode cumprir tal promessa, existe improbitas de sua parte. E tal coisa é autorizada, ou melhor, sacralizada pelo guardião da Carta Magna? 

Outro problema: Calheiros não pode substituir o chefe do Executivo porque é réu e, portanto, sua reputação não é inteira, é quebrada por algo muito grave. Mas numa República democrática o soberano é o povo. Renan não pode assumir a Presidência, mas pode legislar para os cidadãos, obrigando-os a cumprir normas das quais ele mesmo é acusado oficialmente de se abster? Para os juízes do STF, quem é mesmo o povo? A presidente Cármen Lúcia, num rasgo agora provado como demagógico, proclama ao ser empossada algo assim como “Sua Excelência o Povo”. Triste excelência, obrigada a seguir leis definidas por quem a elas não obedece! O competente e sério jornalista José Nêumanne Pinto define a decisão do fatídico dia 7/12 como “cusparada no povão”. Ele é muito gentil com os integrantes da Suprema Corte. 

No espetáculo de subserviência o STF faz mais: retoma sua amarga história de instrumentum regni. Esquecem os magistrados: quando a autoridade é perdida, um Poder deve sorver até a última gota da abjeção. A Câmara dos Deputado prepara medidas contra as sentenças do STF. A continuar o sumiço de sua própria auctoritas, aquela Corte logo terá membros seus nas penitenciárias. Por ousar a condenação de larápios do dinheiro público. 

O realismo político à custa da cidadania sempre termina em tragédia. Ou comédia. 

*Autor de 'Razão de Estado e Outros Estados da Razão',Editora Perspectiva

Considerações sobre o Projeto de Lei que procura aprimorar o combate à Corrupção no Brasil. Câmara dos Deputados-Brasilia 23/08/2016



Prof. Roberto Romano da Silva Unicamp.


Considerações sobre o Projeto de Lei que procura aprimorar o combate à Corrupção no Brasil. Câmara dos Deputados-Brasilia

23/08/2016


Agradeço o convite para me dirigir a representantes do povo brasileiro. Deixarei de tocar nos ítens com os quais concordo e outros, onde me falta competência. Não me deterei nas penas e dosimetria propostas. Juristas podem analisar com apuro tais elementos. O projeto, se elevado à norma, trará benefícios à sociedade, ao Estado e à política, neles escoimando desvios. O texto é bem ordenado e oportuno. A justificativa, no meu entender modesto, traz problemas que merecem atenção. Peço sua paciência para os pontos que enumero, pois eles brotam de um apelo à prudência.

“O poder corrompe. O absoluto corrompe absolutamente”. O enunciado de Lord Acton serve hoje como clichê. Se o contextualizamos no entanto, sua tese ajuda a refletir sobre a presente crise mundial de Estados e nações. Em carta ao bispo Creighton, Acton discute a responsabilidade de quem dirige os poderes. Suas frases sobre o mando corrosivo se complementam do seguinte modo: “O poder absoluto desmoraliza”. O bispo Creighton dizia ser preciso evitar a corrupção. É a atitude comum em coletivos prejudicados por malfeitores públicos. Leis seriam ideadas para prevenir costumes imorais.  “Eu não me preocupo”, replica Acton, “em evitar a corrupção, mas em saber como ela surge”. Muitos analistas se limitam à atitude de Creighton, poucos seguem o malefício até sua gênese.

Infelizmente, noto no projeto de lei traços do bispo Creigthon e não os de Acton. E nele percebo notas que podem levar, não ao reforço  da ética pública, mas à desmoralização. A paciência que solicito dos senhores é necessária porque devemos passar pelas nossas origens quando se trata do regime democrático. A maioria dos atuais conceitos políticos vem da Grécia clássica, e dela também nos chegam defeitos a serem vistos com prudência.

A isonomia, o princípio da responsabilização nos cargos públicos, a accountability e outros aspectos democraticos surgem na Grécia e foram redescobertos na Renascença a partir do século 15. Todo país moderno usou os textos históricos, jurídicos, filosóficos gregos para inventar o Leviatã, o Estado soberano que a todos obriga a seguir as leis. A accountability, lema da revolução puritana inglêsa, base essencial nos Estados Unidos, na França, e  outras terras livres, retoma as lições de Platão na República e nas Leis. Montesquieu, suposto idealizador da harmonia entre forças estatais, extrai a tese e muitas outras das Leis platônicas. Em artigos, livros e trabalhos acadêmicos, insisto no ponto. Até aí, o lado positivo da nossa herança grega.

Passo aos ângulos negativos. A democracia ateniense caiu por vários motivos. Decisivo foi o desmedido poder imperial que ela se arrogou e teve o ápice na guerra do Peloponeso. SegundoTucídides, a ambição corrupta do povo ateniense levou às aventuras imperiais que destruíram a hegemonia de Atenas e o regime democrático. A cidadania, desde que os oligarcas perderam o controle financeiro e político, teve com Solon restituida a sua pequena propriedade, condição para  entrar no gozo dos direitos cívicos. Os cidadãos de média e pequena posse, para cumprir a liturgia dos cargos públicos, deixam o interior do país e se mudam para a capital. Dalí, não cuidam mais das colheitas, o que os faz carentes de recursos próprios. Cleon, o campeão democrático, aumenta os subsídios para que eles exerçam seus cargos.  Exemplo: alguns óbulos eram pagos pela presença nos julgamentos com centenas de juízes. Como garantir a constância de tais honorários? Apontando cidadãos como culpados de vários crimes, o que inflaciona o número de processos e consequentes dinheiros aos que participam do tribunal.

Os críticos do regime, sobretudo Aristóphanes e Platão, mostram que tais práticas levam à corrupção e desmoralizavam a democracia. Aristófanes, na peça As Vespas, denuncia a prática de  manter os cidadãos às custas dos cofres públicos. Como vespas, os juízes populares picam uns aos outros e aos cidadãos comuns, produzem inchaço no coletivo. Eles adoecem o corpo político. É preciso inventar processos, culpados, sentenças, para garantir o óbulo dos que integram o tribunal. Algo similar ocorre na Ekklesia, a assembléia do povo, ancestral da nossa Câmara dos Deputados. O pagamento de cidadãos privados para cumprir ofícios públicos inverte a ordem do poder, anuncia os seus limites éticos e administrativos. Platão se refere à cidade inchada de humores por culpa da incessante luta de todos contra todos na disputa pelo controle das finanças públicas. Hobbes brota, ao mesmo tempo de Platão e de Tucídides, pois o tema da guerra de todos contra todos pertence ao campo essencial daqueles pensadores. Assim, quanto mais processos, quanto mais culpados, mais o sistema de justiça democrático segue para a ruína.

Uma técnica para obter réus para os tribunais era o uso de sicofantas. Segundo um historiador da Grécia democrática, o recurso aos delatores ocorre sobretudo nos séculos 4 e 5 AC. As práticas ligadas a eles, segundo o autor, mostram similaridade com o sistema da chantagem (black mail) nos sistemas democráticos modernos. Italo Calvino indica a Itália como sociedade onde todos se aproveitam do dinheiro público e depois criam uma ética interior e pessoal para justificar a corrupção generalizada. Ou seja, da cidadania comum aos políticos, poucos escapam do usufruto que empobrece os cofres públicos. A democracia parece sustentar-se em atos ilegítimos, proibidos pelos seus próprios princípios, como o da accountability. Norberto Bobbio tem lúcidas páginas sobre o comércio político a que se reduz boa parte dos Estados contemporâneos. ([1])

A sociedade troca favores e presentes com os magistrados, políticos, ministros. Tal mercadejo na Grécia clássica se chama doro, presente.  A tradução portuguesa é suborno.  O poeta Hesíodo chama o rei corrupto de δωροφάγους,  comedor de presentes (Trabalhos e os Dias, 38-40). Platão intitula os funcionários corrompidos como “tomadores de presentes e amantes do dinheiro”(República, 390d). E cita a frase poética: “Os presentes movem  deuses / presentes persuadem péssimos reis”.

Se o poder é movido pelos favores e a base democrática é o não favor, mas a isonomia, como combater subornos?  Recordemos que os próprios cidadãos na democrática Atenas sobrevivem com os presentes da polis que os sustenta nos cargos. Como vencer a corrupção e a troca de presentes? Caçando corruptos e aliciadores de benesses e, se necessário, inventando culpados ou atribuindo culpas a inocentes. ([2]) O instrumento para tal fim era o sicofanta. A palavra, desde tempos remotos, significa a pessoa que acusa falsamente.([3]) Lysias, político e pensador da época, explica o sicofanta. A sua prática, diz ele, “é acusar, mesmo contra os que nada fizeram de errado, porque destes últimos eles arrancam mais lucro”. Sicofantas ajudam a combater a corrupção, mas eles próprios são corruptos, entre outras coisas pela prática da chantagem. ([4])

Dada a experiência histórica, não só da Grécia mas de múltiplos regimes democráticos e autoritários modernos, tenho dúvidas de ordem ética  sobre o  Art. 38 do projeto.  “O terceiro que, não sendo réu na ação penal correlata, espontaneamente prestar informações de maneira eficaz ou contribuir para a obtenção de provas para a ação de que trata esta lei, ou, ainda, colaborar para a localização dos bens, fará jus à retribuição de até cinco por cento do produto obtido com a liquidação desses bens. Parágrafo único. A retribuição de que trata este artigo será fixada na sentença”.  Foi refletido, na redação do artigo,  o passivo moral que a prática instaura ou reitera? Não estaríamos retomando a lide das vespas atenienses e dos sicofantas? A definição de Lisias é  forte e tenho dúvidas sobre se ela não se aplicaria à sociedade brasileira. Diz ele, repito, que os inocentes chantageados dão mais lucros aos sicofantas, do que os verdadeiramente corruptos. É contra a fé pública mover profissionais da delação paga.

O segundo ponto que preocupa no projeto é o teste de integridade, no artigo 48. O Estado democrático moderno, apesar de preso nas malhas da burocracia com o seu segredo do cargo inexorável, busca romper com a raison d’État e o sigilo. A transparência deve comandar os poderes e os meios administrativos. Estados onde imperaram a exceção, afastada a transparência, mantiveram o sigilo e o ampliaram em detrimento da liberdade cidadã. Se o legislativo, o executivo, a justiça devem prestar contas de seus atos aos cidadãos, como instaurar um modo de percepção da provável desonestidade de funcionários com base no segredo? “Artigo 50: Os testes de integridade consistirão na simulação de situações sem o conhecimento do agente público, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para cometer ilícitos contra a Administração Pública”. Poderes secretos seriam atribuídos a Corregedorias, Controladorias, Ouvidorias ou órgãos congêneres de fiscalização e controle. Tais organismos devem dar ciência, de modo sigiloso, ao Ministério Público, para que este recomende medidas complementares. E ainda mais segredo: Artigo 55: A administração Pública não poderá revelar o resultado da execução dos testes de integridade, nem fazer menção aos agentes públicos testados. A frase “respeitado o direito à intimidade” surge como algo estranho no contexto.

Deixando de lado a eficácia do teste, algo muito discutido pela literatura especializada, ([5]) insisto no segredo e na sua manipulação.  Os organismos movidos para aplicar os testes estão acima de qualquer inspeção no ato mesmo em que o efetivam? E o termo “simulação” no projeto? Um mestre político, jurídico e científico é Francis Bacon. No ensaio sobre “Simulação e Dissimulação” ele indica a essência da palavra e da coisa: “A simulação é profissão falsa e a mais culpável e menos política, exceto em matérias eminentes e raras. E um costume generalizado de simulação (em seu último grau) é vício”. O principal erro dos atos simulados, termina Bacon, é que eles privam “a pessoa de um instrumento principal de ação:  a confiança e a crença”.

Uma técnica ética e moral estabelecida por Kant, para testar a prática baseada em máximas, é perguntar se elas podem ser universalizadas, omnia et singula. Caso contrário, ela não é moral. Os procedimentos do teste de integridade podem ser universalizados para toda a cidadania e todos os que, nos poderes, exercem cargos? Por exemplo, na Justiça ? A resposta é negativa. Volto a Platão: nas Leis ele instaura pela primeira vez na história jurídica e política a tese dos checks and balances, depois herdada por Montesquieu. Abusos de um poder devem ser controlados pelos outros, coletivamente dispostos. No teste de integridade o indivíduo está solitário, sem apoio de seus representantes como os sindicatos e associações, diante de um poder invisível que só responde a posteriori, mas deve silenciar o nome e as condições do interrogado. Perdoem, mas estamos no domínio do Processo, escrito por um autor que denunciou o abuso do segredo.

Finalmente, passo à boa fé que, diz Bacon, desaparece com práticas de simulação e dissimulação no poder e na sociedade. Noto um ponto : os partidos políticos poderão ser punidos pelo uso de recursos ilícitos. Existe, no entanto, quem julgue encontrar nas suas direções boa fé na admissão daquelas finanças (Cf. Editorial de O Estado de São Paulo, “Quando só a boa-fé não basta”, 19/08/2016, p. A3). É árduo separar o tesoureiro ou integrante de um partido e a totalidade da agremiação. Mas seria de todo relevante, no caso, provar a conivência do todo partidário em casos específicos.  Algo similar ocorre na coleta de provas não assistidas pela ordem legal, mas realizadas em boa fé pelos investigadores e/ou acusadores.

Importa refletir um pouco sobre o significado da locução “boa fé”que  herdamos do latim bona fide. O exemplo que vem à lembrança é o do autor da mais profunda ética ocidental, Bento de Spinoza. No Tratado Teológico-político, ao elogiar a cidade de Amsterdã ele exalta o quanto a liberdade é fundamental para a sua vida pública. Naquela urbe, diz ele, “pessoas de todas as nações e seitas vivem em concórdia e se preocupam apenas, para dar crédito a alguém, rico ou pobre, se ele costuma agir como pessoa de boa fé ou dolosamente”(num bona fide, an dolo solitus sit agere”. (TTP, capítulo XX). Spinoza distingue os sentidos da fé e da boa fé. Do religioso ao político, ele segue a ligação entre fé e obras: “a fidelidade no Estado como a fidelidade para com Deus só é conhecida pelas obras”. Spinoza parte do conceito jurídico vigente na época, a idéia de bona fides cujo significado é confiança, crédito. ([6])

Como a maioria de nossos conceitos jurídicos, o lema da boa fé vem da Grécia e de Roma. Em Atenas o termo original para tal situação é πίστις. ([7]) Já a Fides designa confiança recíproca entre  contratantes e aparece nos mais antigos textos conhecidos. ([8]) Em Cicero, a boa fé se define “como o fundamento da justiça. Ela é a verdade e a constância nas promessas e acordos. E devemos seguir os estoicos, que diligentemente investigam a etimologia das palavras. E devemos aceitar seu argumento de que a ‘boa fé’ é assim chamada porque promete ‘fazer o bem’ embora alguns possam achar que esta derivação é um erro”. ([9])

É preciso notar que o termo “boa fé” não é unívoco e sem ambiguidades. Como enunciam trabalhos jurídicos –antigos e recentes–, trata-se de uma noção vaga. Tal fato não impede que ela tenha acolhimento em vários setores do direito. Mas não há consenso algum “sobre a exata natureza legal da boa fé. Esta imprecisão terminológica afeta inevitavelmente a função preenchida pela boa fé no direito contemporâneo”. E no entanto, “parece que um bom número de sistemas considera que a boa fé se aplica às leis que tratam das obrigações em geral, e não apenas às leis do contrato”. ([10])

No comercio e na política pode-se falar com maior propriedade de boa fé, porque existe algo que vai além dos que fazem o acordo: a mercadoria, o dinheiro, o poder estatal que efetiva obras  em proveito dos governados. Quando o ato é unilateral e não beneficia como no contrato a outra parte de modo evidente, com dificuldade podemos separar o conceito de boa fé do seu aspecto subjetivo.([11]) Ele reside no íntimo do indivíduo que age, não é fenomênico para usar a linguagem kantiana, mas apenas noumênico, se limita à consciência do agente. Mas consciência não se revela sem equívocos no mundo visível. Aliás, neste ponto Rousseau, emulado por Kant, é mais claro: “Toda a moralidade de nossos atos está no juízo que trazemos em nós mesmos. Se é verdade que o bem seja bem, ele deve estar no fundo de nossos corações como em nossas obras e o primeiro prêmio da justiça é sentir que a praticamos”. ([12]) Para que a consciência própria seja reconhecível no e pelo coletivo é preciso indicar as obras resultantes. E tais obras, na investigação criminal, não podem negar a lei positiva. A sequência que vai dos quid facti ao quid iuris deve ser estabelecida sem quebras subjetivas. Não é preciso seguir Hans Kelsen para notar as dificuldades  de uma visão subjetiva que, ampliada,  pode se tornar equívoca e arbitrária. ([13])

Pergunto se a noção de bona fides, no projeto, não deveria ser mudada por uma outra, a de equidade, a epieikeia formulada por Aristóteles, o corretivo para as leis positivas que regem a sociedade e o Estado. ([14]) Em certos casos a lei comum não consegue ser obedecida in totum, os casos precisam ser considerados como exceção à regra geral. É preciso retificar a lei devido  à sua generalidade. A epieikeia reside na retificação prudente da lei geral. Ela não nega a lei geral, mas a corrige quando é preciso aplicá-la a casos particulares anômalos. ([15]) Mas aí temos outro problema: se o conceito de epieikeia vale para o acusador, ele também pode ser movido pela defesa, pois a justiça e a equidade o exigem. A bona fides deveria ser atribuída aos que investigam e acusam e aos acusados, por exemplo os partidos políticos.

Tais pontos são trazidos por mim não para obstaculizar o trabalho que levou ao atual projeto, subscrito por dois milhões de compatriotas e apresentado pelo Ministério Público, ao qual me alio desde longa data. São observações de prudência ética, para que conceitos problemáticos não sejam tomados como imperativos, o que pode suscitar, em médio ou longo prazo, autoritarismos oriundos da luta contra a corrupção. A experiência jacobina  nos alerta contra o excesso no combate à corrupção: a guilhotina não é um instrumento idôneo para atenuar o fato corrupto. ([16]) Este é a coisa mais amplamente partilhada pelos seres humanos. Lutar para que a corrupção se atenue é dever ético. Sem autoritarismos, no entanto, porque regimes autoritários que alegadamente foram impostos para lutar contra a corrupção,  produziram apenas corrupção sigilosa, a exemplo do que ocorreu em nossa terra nas ditaduras do século 20.

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[1] “No mercado político democrático o poder se conquista com votos, um dos modos de conquistar votos é
 comprá-los e um dos modos para se livrar das despesas é servir-se do poder conquistado para conseguir benefícios mesmo pecuniários daqueles que possam receber vantagens daquele poder (…) Considerada a arena política como uma forma de mercado, onde tudo é mercadoria, ou coisa comprável e vendível, o político se apresenta num momento como comprador (do voto), num segundo momento como vendedor (dos recursos públicos dos quais, graças aos votos se tornou potencial dispensador)”. “Quale il Rimedio?” In L’Utopia Capovolta (Torino,La Stampa, 1990), p. 32 e ss
[2] MacDowell, Douglas M. The Law in Classical Athens (Ithaca/NY, Cornell University Press, 1978), p. 34.

[3] Matthew R. Christ, The Litigious Athenian (Baltimore:  The Johns Hopkins University Press, 1998).


[4] “Sicofanta era o homem que fazia processos sem justificação, seja porque ele tinha esperança de pegar um réu inocente e dele obter a paga devida a um promotor bem sucedido, ou porque ele tinha a esperança chantagear o réu ao idnuzi-lo a pagar proprina para fazer o processo terminar”.  Douglas M. MaDowell, op. cit. p. 62. Todo o capítulo de MacDowell sobre o sicofanta é muito ilustrativo dos perigos por ele trazidos.  Não tenho tempo para analisar todo o ponto aqui, remeto ao estudo de Donato Loscalzo, “Doro Fig-Sandaled’ (Cratin.Fr. 70 Kassel-Austin and Aristoph. Eq. 529) and other aspects of comic Sycophantia”, in Classical Association of South Africa, Acta Classica Supplementum IV, Corruption and Integrity in Ancient Greece and Rome, Classical Association of South Africa. 2-12.

[5] Wiley, C. e Rudley, D. L. : “Managerial issues and  responsabilities in the use of integrity tests”.  In Labor Law Journal (1991); Coyne I., e Bartram, D. “Assessing the effectiveness of integrity tests, a review”. In International Journal of Testing.   in https://www.researchgate.net/publication/247502634_Assessing_the_Effectiveness_of_Integrity_Tests_A_Review também Lisa L. Harlow, Stanley A. Mulaik, James H. Steiger: What If There Were No Significance Tests? Mahwah, NJ, Lawrence Erlbaum Associates, 1997. Também: Harold M. Hyman, To Try Men's Souls: Loyalty Tests in American History, (Berkeley, CA, University of California Press, 1959) .

 



[6] Carlo Guinzburg : “Tolérance et Commerce. Auerbach lit Voltaire”in  Tortonese , Paolo (Ed.) :  Erich Auerbach la líttérature en perspective,  (Paris, Presses Sorbonne Nouvelle, 2009), p. 119-120.
[7] Cf. J. Hellegouarch’h : Le vocabulaire latin des relations et des partis politiques sous la république (Paris, Les Belles Lettres, 1972), p. 25. Em Platão o termo pode significar fé ou crença que resulta da retórica (persuasio ou Glaube). No Lexicon Platonicum, sive vocum platonicarum INDEX, (Lipsae, Libraria Weidmanniana,  1838) ,V. III, p.106, ele designa a fidei, a fiducia. É bom recordar que nos manuais de retórica forense gregos, no momento clássico, “pistis” era uma das partes do discurso do logógrafo, o avô dos nossos advogados. A defesa contava com o prooimion (introdução),  a diegésis (narrativa), a pistis (provas), epílogos (conclusão). Cf. Lanni, Adriaan: Law and Justice in the Courts of Classical Athens (Cambridge, University Press, 2006)  p. 45. Se fôssemos estritamente platônicos, teríamos bastante relutância em aceitar o termo “boa fé” em campos do agir e do pensar. O filósofo coloca aquela posição como a penúltima na escala do saber, apenas superior à eikasia (conjectura). Acima dela situam-se a dianóia (raciocínio) e finalmente a noesis ou epistême (conhecimento). República, 511e a 511d.
[8] Hellegouarch’h, op. cit. p. 27.
[9]Fundamentum autem est iustitiae fides, id est dictorum conventorumque constantia et veritas. Ex quo, quamquam hoc videbitur fortasse cuipiam durius, tamen audeamus imitari Stoicos, qui studiose exquirunt, unde verba sint ducta, credamusque, quia fiat, quod dictum est, appellatam fidem”.  M. Tullius Cicero. De Officiis. With An English Translation. Walter Miller. (Cambridge. Harvard University Press) 1913 in Perseus Project, http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A2007.01.0047%3Abook%3D1%3Asection%3D23

[10] “Good Faith”  in Principes Contractuels Communs, projet de Cadre Commun de Référence, v. 7, cap. 5. Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française, Société de Législation Comparée, dirigée para Bénédicte Fauvarque-Cosson. http://www.legiscompare.fr/web/IMG/pdf/0-Couvertures_4_de_couv_vol_7.pdf

[11] Cf. Chris Coope : “The doctor of philosophy will see you now”, in Anthony O'Hear (Ed.) : Conceptions of Philosophy. (Cambridge, University Press, 2009).

p. 212.
[12] Jean Paul Sartre foi um dos pensadores modernos que mais percebeu a complexa relação entre boa fé e má fé, ambas enquistadas na consciência e diante do mundo opaco . A boa fé, diz ele em O Ser e o Nada, “busca fugir da desagregação íntima de meu ser rumo ao em si que ela deveria ser e não é”. A má fé, “busca fugir do em si na sua desagregação íntima de meu ser”. Em seu movimento comum, “a má fé reassume a boa fé e desliza rumo à origem mesma de meu projeto”. Ou seja, a boa fé traz a má fé no seu ventre, como diz Sebastião Trogo: “Má fé e conversão, dois pilares da antropologia sartreana”Revista Síntese, número 37, 1986, pp. 51-59. 
[13] Não apenas no positivismo jurídico, mas em pensadores como Hegel a presença e a obediência da lei estabelecida é conditio sin qua non para deixar o arbítrio. “Sem o direito, a fraude e o crime são juízos. Julgar, para Hegel, é um ato especulativo, não de reflexão, mas um agir para o sujeito para quem dizer é fazer, fazer é dizer, o ato do corpo e da alma. Calar pode ser um juízo, bem como ‘julgar com os pés’ indo embora. Posso negar que o direito seja respeitado, quero então fazer reconhecer o não respeito do direito pelo direito, que então quero respeitar : o juízo é então, no essencial, uma ato de palavra do gênero : ‘não estou de acordo’ ou ‘não é conforme à lei’ ou ainda ‘a lei me dá razão’. Na fraude, o direito também é reconhecido, mas a minha ação consiste em fazer passar a aparência pela essência, afirmo que é conforme ao direito fazer tal coisa ao fazer a coisa, mas sei muito bem que não é verdade e a ação que compreende um dizer faz aparecer meu intento mentiroso. O exterior é desmentido pelo interior, minha hipocrisia abre minha subjetividade”. Hervé Touboul, “Le crime et le sujet dans la philosophie du droit de Hegel” in Philosophique, Annales littéraires de l ‘Université de Franche-Comté, 15, 2012, pp. 25-44. http://philosophique.revues.org/542

[14] Os autores dos Principes Contractuels Communs, projet de Cadre Commun de Référence, citados acima, chega à conclusão próxima à que adianto, ao indicar o conceito de “fairness” : “Contractual fairness is protected by a reliance on notions which are different from, and to a certain extent, more precise than, the notion of good faith”.
[15] Anton-Hermann Chroust, Aristotle's Conception of Equity (Epieikeia), 18, Notre Dame Law. Rev.119 (1942).Available at:http://scholarship.law.nd.edu/nd lr/vol18/iss2/3


[16] Durante o governo jacobino, dirigido por um líder cujo apelido era “O Incorruptível”, existiu o uso da coisa pública para fins partidários e pessoais, crimes praticados por grupos que afirmavam defender a moral política. Cf. Michel Benoit 1793 La République de la tentation : Une affaire de corruption sous la Ière République (Paris, Ed. de l’Armançon, 2008). “Ninguém pode garantir que um partido, governo ou mesmo Estado (para não falar no coletivo religioso) seja hegemonicamente honesto ou desonesto. A pesquisa e análise exigem rigor epistemológico e prudência moral”, Roberto Romano, Entrevista MPD Dialógico, http://mpd.org.br/a-mpd-dialogico-roberto-romano-afirma-que-brasil-beira-caminho-sem-volta/

 


Falar o que, se o mundo e o Brasil, em seu horror, são indizíveis?

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Os religiosos e a fecundidade da profecia. "Não há necessidade de se tornar cardeal para se acreditar príncipe! Basta ser clerical", diz o Papa Francisco aos religiosos

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13 Fevereiro 2017
“O papa está atrasado”, dizem-me na entrada da Sala Paulo VI, no dia 25 de novembro de 2016. Dentro, no lugar onde são realizados os Sínodos, estavam à espera 140 superiores gerais de ordens e congregações religiosas masculinas (USG) reunidos no fim da sua 88ª Assembleia Geral. Fora, uma chuva leve. “Ide e dai frutos. A fecundidade da profecia”: esse foi o tema da assembleia, que ocorreu de 23 a 25 de novembro no “Salesianum” de Roma.

A introdução é do jesuíta Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica, n. 4.000, de fevereiro de 2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Não é comum que o pontífice chegue tarde. Às 10h15, eis que chegaram os fotógrafos e, em seguida, o papa, em passos rápidos. Depois do aplauso de saudação, Francisco começa: “Desculpem pelo atraso. A vida é assim: cheia de surpresas. Para entender as surpresas de Deus, é preciso entender as surpresas da vida. Muito obrigado”. E continuou dizendo que não queria que o seu atraso influenciasse no tempo fixado para estar juntos. Por isso, o encontro durou três horas cheias.

Na metade do encontro, houve uma pausa. Havia sido preparada uma salinha reservada para o papa, mas ele exclamou: “Por que vocês querem que eu fique totalmente sozinho?”. E assim a pausa viu o papa alegremente entre os gerais tomando um café e um lanche, saudando a um e a outro.

Não houve nenhum discurso preparado com antecedência, nem da parte dos religiosos, nem da parte do papa. As câmeras do Centro Televisivo Vaticano gravaram apenas as saudações iniciais e depois foram embora. O encontro devia ser livre e fraterno, feito de perguntas e respostas não filtradas. O papa não quis lê-las com antecedência. Depois de receber uma brevíssima saudação do Pe. Mario Jöhri, ministro-geral dos Freis Capuchinhos e presidente da USG, e do Pe. David Glenday, comboniano, secretário-geral, o papa ouviu as perguntas da assembleia.

E se houvesse críticas? “É bom ser criticado – afirmou o papa –, eu gosto disso, sempre. A vida também é feita de incompreensões e de tensões. E, quando são críticas que fazem crescer, eu as aceito, respondo. As perguntas mais difíceis, porém, não são feitas pelos religiosos, mas pelos jovens. Os jovens colocam você em apuros, eles sim. Os almoços com os jovens nas Jornadas Mundiais da Juventude ou em outras ocasiões, essas situações me colocam em apuros. Os jovens são atrevidos e sinceros, e eles perguntam a você as coisas mais difíceis. Agora, façam as suas perguntas.”

Eis o diálogo.

Santo Padre, nós reconhecemos a sua capacidade de falar com os jovens e de inflamá-los pela causa do Evangelho. Nós sabemos, também, do seu empenho para aproximar os jovens da Igreja. Por isso, o senhor convocou o próximo Sínodo dos Bispos sobre os jovens, a fé e o discernimento vocacional. Que motivações o levaram a convocar o Sínodo sobre os jovens? Que sugestões nos oferece para ir ao encontro dos jovens hoje?

No fim do Sínodo passado, cada participante deu três sugestões sobre o tema a ser abordado no próximo. Depois, foram consultadas as Conferências Episcopais. As convergências foram sobre temas fortes, a juventude, formação sacerdotal, diálogo inter-religioso e paz. No primeiro Conselho pós-sinodal, foi feita uma boa discussão. Eu estava presente. Eu sempre vou, mas não falo. Para mim, o importante é realmente escutar. É importante que eu escute, mas deixo que eles trabalhem livremente. Desse modo, eu entendo como as problemáticas emergem, quais são as propostas e os nós, e como são enfrentados.

Eles escolheram os jovens. Mas alguns sublinhavam a importância da formação sacerdotal. Pessoalmente, trago muito no coração o tema do discernimento. Eu o recomendei várias vezes aos jesuítas: na Polônia e, depois, na Congregação Geral. O discernimento reúne a questão da formação dos jovens para a vida: de todos os jovens e, em particular, com mais razão, também dos seminaristas e dos futuros pastores. Porque a formação e o acompanhamento ao sacerdócio precisam do discernimento.

No momento, esse é um dos maiores problemas que temos na formação sacerdotal. Na formação, estamos acostumados às fórmulas, aos brancos e aos pretos, mas não aos cinzas da vida. E o que importa é a vida, não as fórmulas. Devemos crescer no discernimento. A lógica do preto e branco pode levar à abstração casuística. Em vez disso, o discernimento é seguir em frente no cinza da vida, de acordo com a vontade de Deus. E a vontade de Deus é buscada de acordo com a verdadeira doutrina do Evangelho, e não no fixismo de uma doutrina abstrata. Raciocinando sobre a formação dos jovens e sobre a formação dos seminaristas, eu decidi o tema final assim como foi comunicado: “Os jovens, a fé e o discernimento vocacional”.

A Igreja deve acompanhar os jovens no seu caminho rumo à maturidade, e somente com o discernimento e não com as abstrações é que os jovens podem descobrir o seu projeto de vida e viver uma vida realmente aberta a Deus e ao mundo. Portanto, eu escolhi esse tema para introduzir o discernimento com maior força na vida da Igreja. Outro dia, tivemos a segunda reunião do Conselho pós-sinodal. Discutiu-se muito bem sobre esse assunto. Eles prepararam o primeiro esboço sobre os Lineamenta, que logo deverá ser enviado às Conferências Episcopais. Religiosos também trabalharam. Saiu um esboço bem preparado.

Este, no entanto, é o ponto-chave: o discernimento, que é sempre dinâmico, como a vida. As coisas estáticas não são boas. Especialmente com os jovens. Quando eu era jovem, a moda era fazer reuniões. Hoje, as coisas estáticas, como as reuniões, não vão bem. Deve-se trabalhar com os jovens fazendo coisas, trabalhando, com as missões populares, o trabalho social, com o fato de ir a cada semana para dar de comer aos sem-teto. Os jovens encontram o Senhor na ação. Em seguida, depois da ação, deve-se fazer uma reflexão. Mas a reflexão sozinha não ajuda: são ideias... apenas ideias. Então, duas palavras: escuta e movimento. Isso é importante. Mas não somente formar os jovens à escuta, mas sim, acima de tudo, escutá-los, aos próprios jovens. Essa é uma primeira tarefa importantíssima da Igreja: a escuta dos jovens. E, na preparação do Sínodo, a presença dos religiosos é realmente importante, porque os religiosos trabalham muito com os jovens.

O que espera da vida religiosa na preparação do Sínodo? Que esperanças o senhor tem para o próximo Sínodo sobre os jovens, à luz da diminuição das forças da vida religiosa no Ocidente?

Certamente, é verdade que há uma diminuição das forças da vida religiosa no Ocidente. Certamente, ela está ligada ao problema demográfico. Mas também é verdade que, às vezes, a pastoral vocacional não responde às expectativas dos jovens. O próximo Sínodo nos dará ideias. A diminuição da vida religiosa no Ocidente me preocupa.

Mas também me preocupa outra coisa: o surgimento de alguns novos institutos religiosos que levantam algumas preocupações. Não estou dizendo que não deve haver nenhum novo instituto religioso! Absolutamente não. Mas, em alguns casos, eu me interrogo sobre o que está acontecendo hoje. Alguns deles parecem uma grande novidade, parecem expressar uma grande força apostólica, arrastam muitos e depois... fracassam. Às vezes, descobre-se até que, por trás, havia coisas escandalosas... Há pequenas fundações novas que são realmente boas e que fazem as coisas seriamente. Vejo que, por trás dessas boas fundações, às vezes, há grupos de bispos que acompanham e garantem o seu crescimento. Mas há outras que nascem não de um carisma do Espírito Santo, mas de um carisma humano, de uma pessoa carismática que atrai por causa dos seus dotes humanos de fascínio.
Alguns são, eu poderia dizer,restauracionistas: parecem dar segurança e, em vez disso, dão apenas rigidez. Quando me dizem que há uma congregação que atrai muitas vocações, confesso, eu me preocupo. O Espírito não funciona com a lógica do sucesso humano: ele tem outro modo. Mas me dizem: há tantos jovens decididos a tudo, que rezam tanto, que são muito fiéis. E eu digo a mim mesmo: “Muito bem, vamos ver se é o Senhor!”.

Alguns, depois, são pelagianos: querem voltar à ascese, fazem penitência, parecem soldados prontos para tudo pela defesa da fé e dos bons costumes... e, depois, estoura o escândalo do fundador ou da fundadora... Nós sabemos, não é verdade? O estilo de Jesus é outro. O Espírito Santo fez barulho no dia de Pentecostes: estava no início. Mas, normalmente, ele não faz tanto barulho, traz a cruz. O Espírito Santo não é triunfalista. O estilo de Deus é a cruz que se carrega em frente até que o Senhor diga “basta”. O triunfalismo não vai bem de acordo com a vida consagrada.

Portanto, não coloquem a esperança no florescimento repentino e maciço desses institutos. Em vez disso, busquem o caminho humilde de Jesus, o do testemunho evangélico. Bento XVI disso isso muito bem: a Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração.

Por que escolheu três temáticas marianas para as próximas três Jornadas Mundiais da Juventude que conduzirão à Jornada Mundial do Panamá?

Os temas marianos para as próximas três Jornadas Mundiais da Juventude não foram escolhidos por mim! Da América Latina, pediram isto: uma forte presença mariana. É verdade que a América Latina é muito mariana, e me pareceu uma coisa muito boa. Eu não tive outras propostas e fiquei contente assim. Mas a Nossa Senhora verdadeira! Não a Nossa Senhora chefe de uma agência dos correios que, a cada dia, envia uma carta diferente, dizendo: “Meus filhos, façam isto e, depois, no dia seguinte, façam aquilo”. Não, não essa. A Nossa Senhora verdadeira é aquela que gera Jesus no nosso coração, que é Mãe. Essa moda da Nossa Senhora superstar, como uma protagonista que coloca a si mesma no centro, não é católica.

Santo Padre, a sua missão na Igreja não é fácil. Apesar dos desafios, das tensões, das oposições, o senhor nos oferece o testemunho de um homem sereno, de um homem de paz. Qual é a fonte da sua serenidade? De onde vem essa confiança que lhe inspira e que também pode apoiar a nossa missão? Chamados a ser líderes religiosos, o que nos sugere para viver com responsabilidade e paz a nossa tarefa?

Qual é a fonte da minha serenidade? Não, eu não tomo comprimidos tranquilizantes! Os italianos dão um bom conselho: para viver em paz, é preciso um sadio menefreghismo [não estar nem aí]. Eu não tenho problemas em dizer que o que eu estou vivendo é uma experiência completamente nova para mim. Em Buenos Aires, eu era ansioso, admito. Sentia-me mais tenso e preocupado. Em suma: eu não era como agora. Tive uma experiência muito particular de paz profunda desde que fui eleito. E não me deixa mais. Vivo em paz. Eu não sei explicar.

Para o conclave, me disseram que, nas apostas em Londres, eu estava no número 42 ou 46. Eu não previa isso, de fato. Também deixei a homilia pronta para a Quinta-feira Santa. Nos jornais, se dizia que eu era um king maker, mas não o papa. No momento da eleição, eu simplesmente disse: “Senhor, sigamos em frente!”. Eu senti paz, e essa paz não foi embora.

Nas Congregações Gerais, falava-se dos problemas do Vaticano, falava-se de reformas. Todos as queriam. Há corrupção no Vaticano. Mas eu estou em paz. Se há um problema, eu escrevo um bilhete para São José e o coloco debaixo de uma estatueta que eu tenho no meu quarto. É a estátua de São José que dorme. E agora ele dorme sobre um colchão de bilhetes! Por isso, eu durmo bem: é uma graça de Deus. Eu sempre durmo seis horas. E rezo. Rezo à minha maneira. Eu gosto muito do breviário e nunca o deixo. A missa, todos os dias. O rosário... Quando rezo, eu sempre pego a Bíblia. E a paz cresce. Não sei se esse é o segredo... A minha paz é um presente do Senhor. Que Ele não a tire de mim!

Eu acredito que cada um deve encontrar a raiz da eleição que o Senhor fez por ele. Aliás, perder a paz não ajuda em nada a sofrer. Os superiores devem aprender a sofrer, mas a sofrer como um pai. E também a sofrer com muita humildade. Por esse caminho, pode-se ir da cruz à paz. Mas nunca lavar as mãos dos problemas! Sim, na Igreja há os Pôncios Pilatos que lavam as mãos para ficar tranquilos. Mas um superior que lava as mãos não é pai e não ajuda.

Santo Padre, nos seus discursos, o senhor nos disse muitas vezes que o específico da vida religiosa é a profecia. Debatemos por muito tempo sobre o que significa ser radical na profecia. Quais são as “zonas de segurança e de conforto” das quais somos chamados a sair? O senhor falou para as freiras de uma “ascese profética e credível”. Como a entende em uma perspectiva renovada de “cultura da misericórdia”? Como a vida consagrada pode contribuir para essa cultura?

Seja radical na profecia. Para mim, isso importa muito. Vou tomar como “ícone” Joel. Muitas vezes ele me vem à mente, e sei que vem de Deus. Ele diz: “Os anciãos terão sonhos, e os jovens profetizarão”. Este versículo é um núcleo da espiritualidade das gerações. Ser radical na profecia é o famoso sine glossa, a regra sine glossa, o Evangelho sine glossa. Ou seja: sem calmantes! O Evangelho deve ser tomado sem calmantes. Assim fizeram os nossos fundadores.

Devemos encontrar a radicalidade da profecia nos nossos fundadores. Eles nos recordam que somos chamados a sair das nossas zonas de conforto e segurança, de tudo aquilo que é mundanidade: no modo de viver, mas também em pensar caminhos novos para os nossos institutos. Os caminhos novos devem ser buscados no carisma fundacional e na profecia inicial. Devemos reconhecer, pessoal e comunitariamente, qual é a nossa mundanidade.

Até mesmo a ascética pode ser mundana. Mas, ao contrário, deve ser profética. Quando eu entrei no noviciado dos jesuítas, eles me deram o cilício. Tudo bem com o cilício também, mas atenção: ele não deve me ajudar a demonstrar como sou bom e forte. A verdadeira ascese deve me fazer mais livre. Eu acho que o jejum é algo que conserva atualidade: mas como eu faço o jejum? Simplesmente não comendo? Santa Teresinha também tinha outro modo: nunca dizia o que lhe agradava. Não se lamentava e tomava tudo que lhe davam. Há uma ascese cotidiana, pequena, que é uma mortificação constante. Vem à mente uma frase de Santo Inácio que ajuda a ser mais livre e feliz. Ele dizia que, para seguir o Senhor, a mortificação ajuda em todas as coisas possíveis. Se uma coisa ajuda você, faça-a, até mesmo o cilício! Mas somente se ajuda você a ser mais livre, não serve para que você mostre a si mesmo que é forte.

O que envolve a vida comunitária? Qual é o papel de um superior para conservar essa profecia? Que aporte podem dar os religiosos para contribuir com a renovação das estruturas e da mentalidade da Igreja?

A vida comunitária? Alguns santos a definiram como uma contínua penitência. Existem comunidades em que as pessoas se descascam e se depenam! Se a misericórdia não entra na comunidade, não é bom. Para os religiosos, a capacidade de perdão muitas vezes deve começar na comunidade. E isso é profético. Sempre se começa com a escuta: que todos se sintam escutados. É preciso escuta e persuasão também da parte do superior. Se o superior repreende continuamente, ele não ajudar a criar a profecia radical da vida religiosa. Estou convencido de que os religiosos estão em vantagem para dar uma contribuição para a renovação das estruturas e da mentalidade da Igreja.

Nos conselhos presbiterais das dioceses, os religiosos ajudam no caminho. E não devem ter medo de dizer as coisas. Nas estruturas da Igreja, entra o clima mundano e principesco, e os religiosos podem contribuir para destruir esse clima nefasto. E não há necessidade de se tornar cardeal para se acreditar príncipe! Basta ser clerical. Isso é o que há de pior na organização da Igreja. Os religiosos podem contribuir com o testemunho de uma fraternidade mais humilde. Os religiosos podem dar o testemunho de um iceberg de cabeça para baixo, em que a ponta, ou seja, a cúpula, a cabeça está invertida, está embaixo.

Santo Padre, nós temos esperança de que, através da sua liderança, desenvolvam-se melhores relações entre vida consagrada e Igrejas particulares. O que nos sugere para expressar plenamente os nossos carismas nas Igrejas particulares e para enfrentar as dificuldades que às vezes surgem nas relações com os bispos e com o clero diocesano? Como vê a realização do diálogo da vida religiosa com os bispos e a colaboração com a Igreja local?

Há muito tempo, pede-se para rever os critérios sobre as relações entre os bispos e os religiosos estabelecidos em 1978 pela Congregação para os Religiosos e pela Congregação para os Bispos no documento Mutuae relationes. Já no Sínodo de 1994, tinha-se falado disso. Esse documento responde a um certo tempo e não é mais tão atual. O tempo está maduro para a mudança.

É importante que os religiosos se sintam plenamente dentro da Igreja diocesana. Plenamente. Às vezes, há tantas incompreensões que não ajudam a unidade, e, então, é preciso dar um nome aos problemas. Os religiosos devem estar nas estruturas de governo da Igreja local: conselhos de administração, conselhos presbiterais... Em Buenos Aires, os religiosos elegiam os seus representantes no conselho presbiteral. O trabalho deve ser compartilhado nas estruturas das dioceses. Os religiosos devem estar nas estruturas de governo da diocese. Isolados, não nos ajudamos. Nisso, deve-se crescer muito. E assim também o bispo é ajudado a não cair na tentação de se tornar um pouco príncipe...

Mas a espiritualidade também deve ser difundida e compartilhada, e os religiosos são portadores de fortes correntes espirituais. Em algumas dioceses, os sacerdotes do clero diocesano se reúnem em grupos de espiritualidade franciscana, carmelita... Mas que o estilo de vida possa ser compartilhado: alguns padres diocesanos se perguntam por que não podem viver juntos para não ficarem sozinhos, por que não podem viver uma vida mais comunitária. O desejo surge, por exemplo, quando se tem o bom testemunho de uma paróquia administrada por uma comunidade de religiosos. Portanto, há um nível de colaboração radical, por ser espiritual, de alma. E estar perto espiritualmente na diocese entre o clero e os religiosos ajuda a resolver as possíveis incompreensões. Podem ser estudadas e repensadas tantas coisas. Entre elas, também a duração do serviço como pároco, que me parece breve, e se mudam os párocos muito facilmente.

Eu não escondo que, além disso, há tantos outros problemas em um terceiro nível, ligado à gestão econômica. Os problemas surgem quando se tocam os bolsos! Eu penso na questão da alienação dos bens. Com os bens, devemos ser muito delicados. A pobreza é medular na vida da Igreja. Seja quando ela é observada, seja quando ela não é observada. As consequências são sempre fortes.

Santo Padre, assim como a Igreja, a vida religiosa também está empenhada em enfrentar as situações de abusos sexuais de menores e de abusos financeiros com transparência e determinação. Tudo isso é um contra-testemunho, provoca escândalos e tem também repercussões sobre a proposta profissional e sobre a ajuda dos benfeitores. Que medidas nos sugere para evitar tais escândalos nas nossas congregações?

Talvez não haja tempo para uma resposta muito articulada, e confio na sabedoria de vocês. Deixem-me dizer, porém, que o Senhor quer muito que os religiosos sejam pobres. Quando não o são, o Senhor manda um ecônomo que leva o instituto à falência! Às vezes, as congregações religiosas são acompanhadas por um administrador considerado “amigo” e que, depois, as faz falir. No entanto, o critério fundamental para um ecônomo é o de não ser pessoalmente apegado ao dinheiro. Uma vez, aconteceu que uma freira ecônoma desmaiou, e uma coirmã disse aos que a socorriam: “Passem uma nota de dinheiro debaixo do nariz, e ela certamente vai se recuperar!”. É de rir, mas também de se refletir. Depois, é importante verificar como os bancos investem o dinheiro. Nunca deve acontecer que haja investimentos em armas, por exemplo. Nunca.

Sobre os abusos sexuais: parece que, de cada quatro pessoas que abusam, duas foram abusadas, por sua vez. Semeia-se o abuso no futuro: é devastador. Se padres ou religiosos estão envolvidos, é claro que está em ação a presença do diabo que arruína a obra de Jesus mediante aquele que devia anunciar Jesus. Mas falemos claramente: essa é uma doença. Se não estivermos convencidos de que essa é uma doença, não se poderá resolver bem o problema. Portanto, atenção ao receber em formação candidatos à vida religiosa sem se certificar bem da sua adequada maturidade afetiva. Por exemplo: nunca receber na vida religiosa ou em uma diocese candidatos que foram rejeitados por outro seminário ou por outro instituto sem pedir informações muito claras e detalhadas sobre as motivações do afastamento.

Santo Padre, a vida religiosa não está em função de si mesma, mas da sua missão no mundo. O senhor nos convidou a ser uma Igreja em saída. Do seu ponto de vista, a vida religiosa, nas diversas partes do caminho, está operando essa conversão?

A Igreja nasceu em saída. Ela estava trancada no Cenáculo e depois saiu. E deve permanecer em saída. Não deve voltar a se trancar no Cenáculo. Jesus quis que fosse assim. E “fora” significa aquelas que eu chamo de periferias, existenciais e sociais. Os pobres existenciais e os pobres sociais impulsionam a Igreja para fora de si. Pensemos em uma forma de pobreza, aquela ligada ao problema dos migrantes e dos refugiados: mais importante do que os acordos internacionais é a vida dessas pessoas! E precisamente no serviço da caridade, é também possível encontrar um ótimo campo para o diálogo ecumênico: são os pobres que unem os cristãos divididos! Esses são todos desafios abertos para os religiosos de uma Igreja em saída. A Evangelii gaudium quer comunicar esta necessidade: sair. Eu gostaria que se voltasse a essa exortação apostólica com a reflexão e a oração. Ela amadureceu à luz da Evangelii nuntiandi e do trabalho feito em Aparecida. Contém uma ampla reflexão eclesial. E, por fim, recordemos sempre: a misericórdia é Deus em saída. E Deus é sempre misericordioso. Vocês também, saiam!