A política do fingimento - Roberto Romano*
O romano Tácito
ressurgiu na modernidade como patrono do segredo, técnica essencial em
toda razão de Estado. O “tacitismo político” vigorou no século 17 sob o
signo de Maquiavel, teórico desvirtuado por governantes como Richelieu.
Tácito revela a dissimulação principesca e as formas persuasivas hoje
intituladas “ideologias”. Para conseguir obediência do populacho os
dirigentes fingem acreditar nos valores por ele acarinhados. Uma frase
de Tácito ilustra o controle social: “Fingebant simul
credebantque”(Anais, V, 10) – os líderes ao mesmo tempo geram ficções e
nelas parecem acreditar.
O enunciado
explica a cultura política romana que alicerça a ordem jurídica e
retórica sob a qual ainda vivemos. Nele são revelados os atos que
levaram à abolição da República. Após a batalha de Actium (31 a.C.), ao
vencer Marco Antônio, Otávio estabelece a paz interna e dobra os joelhos
do Senado. Em 27 a.C. os senadores concedem-lhe o título de Augusto.
Otávio é dito Princeps senatus e controla as importantes magistraturas
militares, civis, religiosas. Ele instala prefeituras de abastecimento,
segurança e vida civil. Daí, nomeia os magistrados superiores e os
candidatos às eleições. Para obter adesão ao novo regime o líder usa a
propaganda. Sob Otávio dito Pai da Pátria, o mês sextilis é rebatizado
comoAugustus e o quinctilis passa a ser Julius em honra de Júlio César. O
império mistura fórmulas republicanas e monárquicas e nele restam como
focos do poder o Senado, o povo e o príncipe (Yavetz, Zvi: La plèbe et
le prince. Foule et politique sous le haut empire romain, 1984).
Para a eficácia
da propaganda imperial urge que o líder pareça acreditar na sua própria
divindade. Outra ficção é a soberania do povo, somada à fantasmagórica
importância do Senado. Se as instituições não funcionam, resta a
fantasia de que elas cumprem seu papel. A prerrogativa de colocar
indivíduos em cargos elevados permanece hoje nas mãos imperiais de
presidentes da República, sejam eles ditadores ou democratas. É preciso,
pois, refletir sobre a escolha dos magistrados.
Aproveitemos a
morte de um juiz da Suprema Corte dos EUA para pensar os valores, reais
ou fictícios, que norteiam a seleção para o pretório. Antonin Scalia foi
ali posto pelo Partido Republicano. Além dele vieram Anthony Kennedy e
Clarence Thomas. Tais indicações inclinaram o plenário para a direita.
Scaglia foi o primeiro ítalo-americano a chegar ao posto. A nomeação de
Clarence Thomas, magistrado negro, surgiu de exigências políticas
ligadas à cor. Com ajuda republicana Ruth Bader Guinsburg foi a segunda
mulher na Corte. Só com tais exemplos vislumbramos que a ida ao tribunal
tem vários motivos políticos, sociais, ideológicos. Diria Tácito: a
Presidência finge acreditar em valores que transcendem o âmbito
jurídico.
Em análise
sobre a indicação de um “justice”, Richard Davis (Electing Justice:
fixing the Supreme Court Nomination Process, 2005) mostra que a nomeação
é cheia de rupturas. Além dos fins presidenciais e dos lobbies
econômicos, políticos, étnicos, ideológicos, religiosos, existem outros
filtros entre a Casa Branca e o Senado. A escolha não começa na
indicação de um indivíduo, mas nos tribunais inferiores em âmbito
federal, pois gabinetes ficam vazios após a ida de magistrados para o
topo da máquina jurídica. O intervalo entre juízes comuns e a Suprema
Corte ilumina o ambiente nas altas esferas jurídicas. É o que acontece
com a morte de Scalia (Charlie Savage, "Battle Over Bench Started Well
Before Scalia’as Death",The New York Times, 16/2). Todo escolhido do
tribunal é síntese de muitos coletivos empenhados em defender interesses
maiores, ou menores, do país. O processo é violento, mas integra a
ética democrática. A nomeação deixa de ser assunto privativo do
presidente e dos senadores, pois acolhe amplos interesses opostos. O
indicado passou pelo crivo de múltiplos estratos, na sociedade e no
Estado. O segredo é enfraquecido, para infelicidade dos que seguem
Tácito.
Se deixamos a
República norte-americana e nos dirigimos ao Brasil, o panorama difere.
Quando se substitui um juiz do STF, múltiplos interesses também entram
em liça, mas fora da política visível. É o segredo segundo o tacitismo.
Grupos de pressão defendem alvos contraditórios e tentam conduzir o
processo. A Presidência da República e o Senado decidem o assunto no
sigilo do gabinete e dos corredores congressuais. Tudo se faz como se
interesses não existissem e não tivessem raízes sociais profundas. O
nomeado, após sabatina em parte fingida, é visto como devedor de
presidentes e parlamentares. Resultam suspeitas de alinhamento ao campo
oficial. Como parte deles não exerceu a magistratura, inexistem alianças
institucionais para substituir vagas nos escalões inferiores, a exemplo
dos EUA. A nomeação é alheia ao que se passa em níveis menores. Não
raro a distância se transforma em litígio, como nos embates de Joaquim
Barbosa, presidente do STF, e titulares de Cortes federais de Justiça.
Muito se
escreve sobre o modo de indicar magistrados para o STF. Propostas
diversas acodem a juristas e políticos, segundo a conjuntura dos
Poderes. Insuportável é a forma como decidem a Presidência da República e
o Senado. Agem como se não devessem partilhar – ou fingir partilhar –
valores republicanos, imaginam-se entes imperiais. Augusto indica, o
Senado aplaude. Sem licença para gravar seu nome em ruas e prédios
públicos, políticos buscam impor marcas nos magistrados que nomeiam. Se
não mudam o calendário nem se proclamam divinos, decidem como se fossem
numes que não precisam justificar seus atos. Os nomeados seguem atitude
idêntica e julgam-se acima da plebe, que para eles é a massa ignara dos
“leigos”. Todos mostram que a igualdade democrática não existe e nunca
existiu entre nós. O imaginário imperial desgraça a vida brasileira,
pois é quase impossível identificar, entre nós, uma República. Os
Poderes insistem na prática enunciada por Tácito: Fingebant simul
credebantque, ou, na ironia popular, “me engana que eu gosto”.
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*Roberto Romano é professor da Unicamp