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sexta-feira, 2 de abril de 2021

UMA QUESTÃO DE COSTUMES Roberto Romano. Notas sobre o antiintelectualismo.

 

CIDADANIA, VERSO E REVERSO

 

VÁRIOS AUTORES SÃO PAULO IMPRENSA OFICIAL 1997/1998

 

 

UMA QUESTÃO DE COSTUMES

 

Roberto Romano Professor Titular de Filosofia Política e Ética - UNICAMP

 

Quando falamos de educação para a cidadania, nos referimos imediatamente ao estudo. Trata-se de uma questão de costumes. E costumes são a matéria da ética. Quem deseja estudar, deve assumir uma ética da frugalidade severa, com um regime grave, sem ornamentos inúteis, sem pressa, sem escutar professores que adulam os alunos e seus pais. A ética recusa a lisonja, o regime a ser seguido requer disciplina e trabalho árduo. Esta advertência nos vem de Platão. A herança grega afirma que ensino e regime alimentar identificam-se. Uma comida engordurada, abundante e imprópria, abafa os talentos da inteligência. A pedagogia correta de corpos e almas resume-se no ditado grego: "educação ou alimento". Regime, na antiguidade e hoje, diz-se da dieta e do governo. Há no pensamento platônico um nexo entre ambos, mediado pela educação. A prática lisonjeira entre mestres e discípulos também ocorre, escreve o filósofo, entre governantes e governados na política licenciosa, um grave problema da democracia.

 

Permitam-me recordar algumas passagens platônicas, porque elas inserem-se diretamente no tema "educação e cidadania". No livro VIII da República, nas alturas das páginas 562, Platão descreve os costumes e o ensino na polis democrática. Afirma ter sido a cobiça de dinheiro e a negligência de outros elementos políticos e educativos a desgraça do governo anterior, o mando oligárquico. Agora, pergunta Sócrates, "porventura não é a voracidade daquilo que a democracia assinala como o bem supremo a causa da sua dissolução? De qual bem falamos ? Da liberdade". É o desejo deste bem e a negligência do resto que faz mudar tal forma de governo, abrindo caminho para os tiranos. No trato democrático não se misturam com prudência agua e vinho, dando-se uma bebida muito forte ao povo. Este, enternecido e embriagado de licença, diz que "servil" é quem obedece os magistrados. Neste regime, são engrandecidos e benditos os "governantes que parecem governados, e os governados que parecem governantes". Temos um nome para este parecer e não ser: demagogia. Permitam-me um ligeiro anacronismo. Ouvi no horário eleitoral "gratuito" um candidato a deputado berrando: "vocês são os patrões, nós os empregados". Conhecemos os costumes destes "empregados" quando passam os pleitos, sentimos sua arrogância, e corremos, como o fez Maquiavel, rumo à biblioteca, para ler Platão. A licença demagógica invade todos os recantos da polis. Platão diz que tal atitude chega às casas particulares e atinge os animais domésticos. Nesta democracia, "o pai habitua-se a ter medo dos filhos, desejando ser igual a eles, o filho a ser igual ao pai, sem ter respeito ou receio dos pais, a fim de ser livre". Em tal regime, "o professor teme e lisonjeia os discípulos, e estes têm os mestres em pouca conta; outro tanto se passa com os preceptores. No conjunto, os jovens imitam os mais velhos, e competem com eles em palavras e em atos; ao passo que os anciãos condescendem com os novos, enchem-se de vivacidade e espírito, a imitar os jovens, a fim de não parecerem aborrecidos e autoritários". Num regime semelhante, a liberdade é tão ampla, "que as cadelas, conforme o provérbio, são como as donas e também os cavalos e burros andam pelas ruas, acostumados à uma liberdade completa e altiva, chocando-se sempre contra quem vier em sentido contrário, a menos que saia do caminho; e tudo o mais é assim repleto de liberdade". Termina o arrazoado platônico: "A resultante de todos esses males é tornar a alma dos cidadãos tão melindrosa que, se alguém lhes ordena um mínimo de responsabilidade, eles se agastam e não a suportam; acabam por não se importar nada com leis escritas ou não escritas (...) a fim de que de modo algum tenham quem seja senhor deles". Eis, afirma o filósofo, "o belo e soberbo começo de onde nasce a tirania (...) O excesso costuma ser respondido pela mudança radical, no sentido oposto, quer nas estações do ano, quer nas plantas, quer nos corpos, e não menos nos Estados" (1)

 

Não há muito do que rir nesse retrato da democracia ateniense, feito por Platão. A lisonja, base das relações interpessoais também possibilita, no Brasil, a imitação recíproca de governantes e governados, uns vendo os outros enquanto modelos de esperteza . Demagogia, falta de respeito pelas leis, tudo isto integra nossa vida política e educacional. Docentes há que afirmam "aprender com os alunos", deles recebendo "lições de sabedoria". Na "boa" sociedade, mulheres enricadas julgam-se livres quando exibem suas celulites durante o carnaval, nas televisões, servindo como escravas da vista e do erotismo alheios, além de proporcionarem lucro aos anunciantes de cerveja, etc. Mas não só de "colunáveis" vive a polis licenciosa. Ela também suporta burros que atropelam os passantes. Se fizermos uma pequena alteração no texto platônico, onde lemos "burros", podemos enxergar espécimes da atualidade brasileira, justificando aquela imagem . O trânsito nacional está repleto de asnos no volante. Todos imaginam que não devem nem precisam obedecer as leis. A violência é maior se o idiota (no sentido grego, o que só enxerga a si mesmo) está dentro de um automóvel importado ou caro. Os anúncios criminosos são explícitos, como o que declara: "Se você enxergar este logotipo, passe para a direita". Trata-se de um incitamento irresponsável à velocidade, empurrando aço contra a carne humana. E ficam impunes os trêfegos canalhas da propaganda, e ficam impunes os por eles persuadidos. Na Unicamp, foi preciso colocar barras de ferro nas calçadas porque professores, funcionários, alunos, sobre elas estacionavam seus automóveis , impedindo mesmo a entrada para a Biblioteca Central da universidade. O número de atropelamentos no campus é assustador.

 

No diálogo Gorgias, Platão indica que a artimanha lisonjeira (e a propaganda é apenas um de seus casos) oculta-se sob uma arte efetiva. Assim, sob a medicina, surge a cozinha "que faz cara de saber quais são, para o corpo, os melhores alimentos. Se, por acaso, diante de um júri de crianças, for estabelecida a competição entre um cozinheiro e um médico, para saber quem dos dois, médico ou cozinheiro, tem competência sobre os alimentos úteis ou nocivos: o médico deveria, desde o começo, deixar-se morrer de fome!" 2 . O bajulador assume aparências de fala amiga, o discurso veraz exige disciplina, sobretudo na amizade. Quem lisonjeia, deixa os amigos na hora negra, toda pessoa franca enfrenta o próprio amigo, para seu bem, nunca o abandonando. A lisonja acostuma o corpo e a alma do estudante aos prazeres, o transforma em ser ineducável para a cidade. Certos indivíduos resistem, desde o nascimento, à educação para a cidadania. Como grãos duros , diz o filósofo, eles não amolecem na panela do ensino (Leis, 853 d, 880 e). Do mesmo modo que não se deixa "cozinhar" pela educação, um homem assim não se submete às leis, nelas ele não se funde.

 

Educar para a vida cidadã, escreve Platão, é como tingir almas. No livro IV da República , no processo de educação dos magistrados, lemos que "educar" uma pessoa é dar-lhe a melhor tintura das leis (República, 420d a 430a).Quem foi assim tingido possui uma opinião indelével sobre o que deve temer e sobre o que deve fazer, pois tal tintura resiste aos sabões tão ativos para descolorir, como o são os prazeres, a dor, o medo e a paixão. Esta imagem aparece também na Carta VII, um dos textos capitais para a epistemologia e a política platônicas. Ali, vemos que a cultura de quem não é filósofo compara-se ao colorido superficial dado pelo banho de sol.

 

A imagem mais usada por Platão é a do alimento, no processo educativo e ético. No Protágoras (35lb) diz-se que como a força física vem da natureza, e de uma boa nutrição do corpo, assim também a coragem vem da natureza e de uma boa nutrição da alma. Em multiplas obras de Platão o termo "alimentar" é tomado neste sentido (Alcibíades Iº, Critias, Protágoras, Banquete, Fedro, Teeteto, Timeu, Leis, Carta VII). Na maioria das vezes, "alimentar" une-se à educação, paideia. Este último termo designa, nos estados mais eminentes da educação, uma via para atingir o conhecimento do Bem. Mas quase sempre paideia e alimentação são usados como sinônimos. (3)

 

Poderíamos seguir longe, na busca dos entrelaçamentos , dentro da obra platônica, entre educação e cidadania. Falei acima da lisonja. Por que surge a tirania, a partir da licença democrática? Sua causa é o idiotismo, a filáucia, o amor de si mesmo, que geram o discurso enganoso e dissimulado e nos prendem nas armadilhas de oligarcas e tiranos. A filáucia, em Platão e na filosofia ocidental inteira, é o contrário de amizade efetiva. O texto nuclear neste plano, encontra-se no livro de Platão denominado As Leis (Livro V, 73l d). É sintomático que, naquele texto, no trecho sobre o amor de si, o sujeito acometido deste idiotismo seja comparado ao "amante, cego no relativo ao ser amado, sendo péssimo juiz das coisas justas, boas, nobres". A paixão impede o conhecimento e a prática do bem. A pior paixão, nós a temos quando amamos a nós mesmos acima de tudo. A frase platônica, referida à filáucia, impressiona: "Há um grande mal, o maior de todos, que o maior número de homens têm, e que lhes é congenital. Com ele, cada um é cheio de auto-indulgência, e ninguém dele pode escapar. Este mal chama-se amor próprio. Acrescentemos que esta ternura do homem para consigo mesmo pertence à sua natureza e que ela causa nossos erros, pelo afeto que temos para conosco (...) O grande homem não acaricia nem a si mesmo, nem as coisas que são de sua propriedade, mas o que é justo".4 Os leitores de Rousseau sabem a importância desta noção, o amor próprio, sobretudo quando este último irrompe na experiência política. O amor- próprio conduz à tirania plena. Como na cidade licenciosa cada um é amigo cego de si mesmo, todos exigem adesão irrestrita à sua própria egoidade. Como este projeto não pode se realizar, alguns dentre os homens, cuja arte de enganar é mais eficaz, e cujo amor de si é maior, tornam-se governantes, logo assumindo o papel de tirano.Segundo Xenofonte o tirano não pode suportar a amizade. Ele teme e odeia os cidadãos livres que usam a rude franqueza na linguagem. Os membros da polis também o temem, em contrapartida. O governo tirânico é exercício de autoerotismo e temor generalizado. "Uma das singularidades do tirano é procurar suprimir não só os seus inimigos, mas também destruir os que, por terem sido seus iguais ou cumplices, a ele se dirigem com franqueza, o que é sinal de uma amizade verdadeira (República, VIII, 567b). O tirano é cercado apenas por homens que, não sendo nem amigos nem inimigos, contentam-se em parecer o que lhe apraz que eles sejam, testemunhando, deste modo, sua ausência de caráter e uma ambição temível para seu próprio patrão".5 O tirano não possui amigos. Ele é o grande solitário, apesar dos muitos parasitas que o cercam, louvando-o com hipocrisia.

 

A oposição,na cultura grega, entre amigo e adulador, ajuda a compreender a perversidade das relações humanas sob o regime tirânico. A verdadeira amizade tem seu principio e base na adesão racional e penosa de quem busca reger a cidade segundo a justiça. Uma cidade bem administrada, pensa Platão, é regida pela philia entre seus membros. A metáfora corporal é assumida pelo filósofo. Na cidade justa ocorre algo análogo ao que se passa "quando ferimos um dedo, pois toda a comunidade, do corpo à alma (...) sente o fato, e toda ao mesmo tempo sofre em conjunto com uma de suas partes.Assim , dizemos que ao homem lhe doi o dedo. E, sobre qualquer outro órgão humano, o raciocínio é o mesmo, relativamente a um sofrimento causado pela dor, e ao bem-estar derivado do prazer". Numa cidade livre e justa, ao mesmo tempo, "se a um dos cidadãos acontecer seja o que for, de bom ou mau, a cidade proclamará sua essa sensação e toda ela se regozijará ou se afligirá juntamente com ele" (6)

 

Vimos Platão chamar, nas Leis, o amor próprio como o "maior mal" que possa ocorrer na vida humana. Na República esta peste manifesta-se na cidade cujo caminho é tirania: ela é dilacerada, tornando-se múltipla em vez de una. O maior bem reside na vida unitária, como se enunciou acima para as dores e alegrias do ser singular e do coletivo. O pior malefício vem da individualidade posta acima do socia l, o maior bem ocorre com a união proporcionada pela amizade. Somos derrotados pela tirania alheia, porque nos dobramos diante de nossa própria tirania. Porque só gostamos de ouvir elogios, proibimos nossos amigos verdadeiros de nos mostrar a verdade, somos todos semelhantes ao rei sem roupas da fábula moderna. Seria preciso uma criança, sem treino na dissimulação e na lisonja, para indicar o ridículo de nosso estado. Mas como somos reis despidos, todos nós exigimos elogios às nossas magníficas roupas. Pior: como ninguém enxerga a própria nudez, rimos com a falta de vestimenta alheia.Platão reserva o riso e a comédia para escravos. Hobbes considera o riso execrável, justo por isto: ele seria a demonstração de que somos lobos cruéis, ou hienas, nada mais. Na polis que se dirige para a tirania, cuidamos de nossos negócios, o resto não importa ou é motivo de caçoada. Nela, a nossa "liberdade" pessoal e nossos bens, materiais e anímicos, são tudo. O resto não conta. Quando leio a descrição platônica da cidade democrática, lembro-me do liberalismo ou do chamado "neo" liberalismo, com seus "executivos financeiros", jovens e belos, destruindo investimentos produtivos e produzindo apenas dividendos nas bolsas, com uma deliberada ignorância do coletivo. Os anos de individualismo desenfreado abrem caminho para o coletivismo brutal. Os anos loucos, ao redor de l920, produziram gente que dançava e bebia sobre o desemprego e o desespero de milhões. Logo após, tivemos as mais espantosas tiranias que o ser humano já conheceu. Vivemos os anos setenta e oitenta sob o signo do mercado absoluto, onde indivíduos espertos valem mais do que empreenderores e operários. Na ciranda financeira ocorreu uma glamorização que, adulando jovens executivos apresentou seu modo de vida como paradigma a ser mimetizado. Não espanta se os frutos começam a surgir, nos movimentos neo-fascistas que se tornam governo, impondo uma nova forma de controle social, abolindo a liberdade dos pobres, dos estrangeiros, dos homosexuais, em primeiro lugar. Depois, seguir-se-á a perda da liberdade coletiva. Repetindo Platão, citado acima: "O excesso costuma ser respondido por uma mudança radical, no sentido oposto, quer nas estações do ano, quer nas plantas, quer nos corpos, e não menos nos Estados". Liberdade em excesso conduz à servidão em excesso, "para o indivíduo ou para a cidade". 7 Com Platão, encontramos algumas razões da imitação perversa entre estudantes e professores, a qual insere-se numa perversão mais ampla, política, onde a lisonja desempenha papel nuclear na passagem da democracia para a tirania, com a perda do sentimento de ser cidadão.

 

O tirano mais perigoso está em nosso próprio ego, desejoso de se impor ao todo, dilacerando-o. Plutarco, num dos mais importantes tratados políticos do Ocidente, mostra que a lisonja impede o princípio fundamental da sabedoria, o "conhece-te a ti mesmo" délfico.8 Esta cegueira, individual e coletiva, marca uma ética escrava. Colaborando com ela, através da lisonja e da demagogia, professores e homens públicos preparam reinos de medo e de mentiras, baseados na propaganda e na inimizade entre cidadãos. A amizade, deste modo, é princípio político que tece uma ética da liberdade sem licença, cuja disciplina deve ser ensinada, e ministrada com o primeiro alimento. Produzir indivíduos absolutamente livres é loucura que só pode levar à ruina social e à desgraça destes pobres idiotas. Sem amizade, a vida se transforma em inferno, onde o perigo reside nos outros, para falar como Jean-Paul Sartre.

 

Se todos temos a possibilidade de nos transformar em tiranos, o governante que resulta de nossa idiotia coletiva se caracteriza pelo aspecto mais detestável de todos nós: sobreviver às custas dos outros.Este traço, que nega a amizade na política, foi discutido durante séculos no pensamento filosófico, de Platão aos nossos tempos. Se consultarmos um autor eminente, Elias Canetti, nele encontraremos uma reflexão acuradíssima sobre o problema. Lembro que amizade e inimizade foram tema de constrangimento estatal sobre povos inteiros, no século vinte dominado pelo nazismo e pelo estalinismo.No lado nazista, basta recordar as depurações étnicas geradas pela loucura "científica", a qual decidiu quem poderia ser "amigo" do povo Alemão e de seu Líder. No plano jurídico, tais sandices tiveram seu profeta em Carl Schmitt, sobretudo no texto grávido de horrores cujo título é "O conceito de Guerra e de Inimigo" (l938). Alí se diz que no período da guerra total (Schmitt é o inventor do têrmo "totalitário"), "mesmo setores extra-militares (economia, propaganda, energías psiquicas e morais dos combatentes) são envolvidos nas hostilidades. A superação do dado puramente militar comporta não só uma ampliação quantitativa, mas um reforço qualitativo, acentuando a hostilidade. (...) O conceito de amigo e de inimigo tornam-se por si mesmos novamente políticos e se liberam (...) da esfera dos argumentos privados e psicológicos" 9 Conhecemos os resultados desta teoria sobre o amigo e o inimigo: a guerra total abatendo-se sobre civís e sacrificando, com predileção assassina, seis milhões de judeus, mais os ciganos, e outros povos "inferiores".

 

No lado estalinista, do próprio Stalin até Ceaucescu, passando pela "pequena e heróica Albânia", para atingir os porões aterrorizantes da Stasi alemã, há muito o que dizer sobre a distinção entre os "que são amigos ou inimigos do Povo". O tirano da hora, o infalível Partido, declarava quem era amigável ou hostil ao proletariado. Em l939 a loucura chegou ao ponto do estalinismo proclamar Hitler amigo da massa operária mundial. "Estratégia" do gênio onisciente que dominava no Kremlin, ou cinismo de potência, o resultado foi uma enorme pilha de cadáveres na Polônia e alhures. Hitler ou Stalin, com seus êmulos menores e piores, são possibilidades sempre abertas quando não se reflete, em termos éticos, sobre a questão da igualdade cidadã, à luz das noções de amizade. Um concidadão jamais brota da natureza : ele é formado num longo processo educativo, para aprender a relativizar seus desejos e seus impulsos tirânicos. Uma pessoa que não foi educada para a cidadania, quando assume postos de governo, não pensa no coletivo, mas apenas na sua própria egoidade. Ela se torna um sobrevivente à custa de todos os demais. Para este tipo de governante, é pouco significativo que milhões morram ou sejam massacrados. o que lhes importa é sua manutenção nos cargos de mando.

 

Imanuel Kant, nos seus escritos pedagógicos, repete as lições de Platão, de Erasmo de Roterdam, de J-J.Rousseau : se uma criança de berço chora, dizem estes autores, é preciso acudí-la, para saber se experimenta alguma dor ou incômodo. Se no dia seguinte o choro se repetir, e não for encontrado motivo para ele, deve-se deixar que o infante berre a vontade. Deixar-se dominar pelo seu berro é educá-lo para a tirania de sua vontade. Se ele não encontrar obstáculos ao seu anseio de mando, e não perceber que outros existem no mundo, ele acarinhará cada vez mais o próprio ego, às expensas dos demais. Todo sujeito humano, pensa Kant, precisa encontrar limites à sua vontade, para se tornar realmente um sujeito livre, e não arbitrário e despótico. Quem se acostumou com o arbítrio do próprio eu, não imaginará ser estranho que outros sejam submetidos ao querer despótico de um professor, de um governante, ou de...um Deus. A liberdade, arremata Kant, ergue-se sobre o respeito sublime pela nossa própria pessoa, e pela pessoa de nosso igual. Erasmo de Roterdam dizia, no seu tratado sobre a educação do principe, que os cavalos seriam um ótimo exercício contra as tendências tirânicas do futuro governante: as alimárias, desconhecendo a lisonja, jogam para fora da sela quem, principe ou plebeu, não obedece as regras da equitação.

 

São translúcidas e impiedosas as páginas dedicadas por Elias Canetti à analise do amor de si, da amizade e do poderoso como sobrevivente. Lemos em Massa e Poder: "na sobrevivência, cada qual é inimigo do outro; comparado com este triunfo elementar, qualquer outra dor não tem muita importância (...) o sobrevivente deve estar sozinho diante de um ou de vários mortos. Ele se vê só, sentindo-se só, e, quando se fala do poder que o momento da sobrevivência lhe confere, jamais devemos esquecer que ele deriva da sua unicidade (os grifos são de Canetti) e somente dela". Todos ficamos satisfeitos quando nosso corpo e alma sobrevivem aos demais. Um monte de cadáveres estimula nosso sentido de sobrevivência isolada. Testemunhamos uma pedagogia assassina e genocida da imagem, na imprensa que exibe corpos de assassinados. Os que sobreviveram se comovem na pele, mas no íntimo, o mais frequente é o regozijo, inconfessável, pelo massacre dos outros. As cenas dos caixões do Carandiru ou da Candelária, excitam os que vivem. Quando ocorreu em São Paulo o incêndio do Edifício Andraus, repetido pela destruição do Edifício Joelma, a massa humana que rodeava as construções excitava-se, como num jogo erótico, todas as vezes que um infeliz se precipitava no ar, esfacelando-se nas calçadas. Não faz muito tempo, o programa "Aqui e Agora" filmou e exibiu o suicídio de uma jovem no centro de São Paulo, as cenas fariam o Marquês de Sade parecer um casto e respeitoso defensor dos direitos humanos.

 

 Laurent Dispot, escritor francês preocupado com os nexos entre a mídia televisiva, o terrorismo. a educação cidadã, dizia que o máximo da violência ocorrerá quando um refém fôr executado, pelos sequestradores, diante das câmaras, ao vivo. Não estamos longe deste evento, aumentando a audiência da televisão que tiver esta ventura. "A satisfação de sobreviver" afirma Canetti, "uma espécie de volúpia, pode transformar-se numa paixão perigosa e insaciável. Ela cresce de acordo com as ocasiões. Quanto maior for o monte de mortos diante dos quais alguém ergue-se com vida, quanto mais frequentemente se viver estes momentos, tanto mais intensa e mais imprescindível torna-se esta necessidade de sobrevivência".

 

Se todos os entes humanos partilham essa loucura, o poderoso a eleva ao máximo. Todos os governantes, de um modo ou de outro, "fingem estar encabeçando a marcha de seus subordinados para a morte. Na verdade os enviam na frente para eles próprios poderem salvar a própria vida. O ardil é sempre o mesmo. O condutor quer sobreviver, ele se fortalece nisto. Quando tem inimigos aos quais possa sobreviver, muito bem; quando não os tem, continua tendo seus próprios amigos. De qualquer forma, ele utiliza ambos, alternadamente ou de uma só vez. Os inimigos são utilizados abertamente, afinal, é para isto que eles são inimigos. Os amigos só podem ser utilizados às escondidas".

 

Uma pergunta que raramente é respondida, quando se trata da sobrevivência política, é relativa ao que ocorre depois de nossa morte física. Os poderosos querem sobreviver na lembrança dos homens, mas não raro esquecem que os me ios utilizados para este mister farão deles imagens aterrorizantes do medo, do pavor, da morte. Ou da covardia. Quando vivos, os aduladores dão-lhes uma espécie de "imortalidade" forçada. É o que se passou com o Fuhrer, com o Pai dos Povos soviético, com o Grande Timoneiro chinês, com o Pai dos Pobres brasileiro. Este último foi conduzido, pelos bajuladores, à "imortal" Academia de Letras. Mas quando seus corpos desaparecem, a verdade bíblica a seu respeito surge impiedosa : "Tu és pó, e ao pó restornarás". É preciso, no ensino da cidadania, mostrar que a imortalidade, caso não seja religiosa e aí cada crença possui uma doutrina própria e se refira à vida civil laica, secular, só pode ser atingida através da elevação da alma, e não de sua venda no leilão econômico, político, ideológico. Um país que não valoriza, na formação de seus jovens, os dotes do espírito, os dons intelectuais, está fadado à morte, à insignificância.

 

Elias Canetti termina o seu capítulo sobre a sobrevivência e as armadilhas da amizade, discutindo o trabalho intelectual, filosófico e literário. O escritor, e Canetti toma Stendhal como exemplo, escreve no presente para poucos, sabendo que muitos o lerão no futuro. Ele continuará existindo quando os outros estarão mortos. Mas o escritor não mata ou manda matar os seus rivais, como o faz o governante tirânico. Ele opta pela companhia dos que são autores de obras lidas ainda hoje, "daqueles que falam conosco, dos quais nos nutrimos". Deste modo, no mundo da escrita artística e especulativa, "matar para sobreviver nada significa (...) porque não se trata de sobreviver agora mas, sim, de entrar na liça apenas dentro de cem anos, quando já não se estará mais vivo pessoalmente e, por conseguinte, não se poderá matar. Serão as obras que se enfrentarão, e será tarde para acrescentar alguma coisa. A rivalidade propriamente dita, a que realmente importa, começa quando os rivais já não estão presentes. o combate que será travado por suas obras nem sequer poderá ser presenciado por eles. Mas esta obra precisa existir, e para que exista deve conter a maior e mais pura medida de vida. Não apenas se desdenhou a possibilidade de matar; fez-se com que entrassem para a imortalidade todos os circunstantes. Para aquela imortalidade onde tudo se torna efetivo, tanto o menor quanto o maior".

 

É fantástica essa oposição entre a sobrevivência do grande escritor e a sobrevida gozada pelo poderoso. Ensinamos, nas nossas escolas e famílias, em demasia, as artes de sobreviver no mercado econômico ou político. Esquecemos de expôr o caminho da sobrevivência verdadeira. Maquiavel afirmava entrar em seu escritório, à noite, depois de uma vida diurna prosaica e sem maiores méritos, para conversar com Platão. É semelhante reino da cultura, o qual Hegel nomeava a corrente dos grandes pensadores que definem o espírito do mundo com seus "heróis do pensamento", é este o plano visado por Canetti, ao descrever a sobrevivência almejada pelo homem de bem, o cidadão na sua plenitude. "Trata-se", diz Canetti, " do oposto daqueles donos do poder que arrastam consigo para a morte tudo o que os cerca (...) Eles matam em vida, matam na morte, um séquito de mortos os acompanha para o além". Contra as manobras para a sobrevida do político demagogico ou tirano, temos a sobrevivência do escritor. "Quem abrir um volume de Stendhal torna a econtrá-lo juntamente com tudo o que o rodeava, e o encontra aqui nesta vida. Assim, os mortos se oferecem aos vivos como o mais nobre de todos os alimentos. Sua imortalidade acaba sendo proveitosa para os vivos, nesta reversão da oferenda aos mortos, todos acabam sendo beneficiados. A sobrevivência perdeu seus aspectos negativos e o reino da inimizade chega ao fim" (10)

 

Os senhores podem perceber, agora, porque evoquei longamente o ensino, a lisonja, a amizade, a demagogia, o excesso que conduz ao regime tirânico, como intróito para a questão do vínculo entre educação e cidadania. A escola brasileira, do primário à universidade, desde seu início, colocou-se entre duas éticas opostas, a do sobrevivente político, continuada pela ética do sobrevivente dos negócios, e a ética do trabalho espiritual, com uma dimensão diversa do tempo. Mas este prisma não é privilégio brasileiro.Torna-se muito instrutivo ler os textos do Prof. Jacques Le Goff sobre o nexo entre universidade e poderes na época de sua gênese. Em meu livro intitulado Lux in Tenebris procurei acompanhar as notas do historiador , mostrando que a universidade, do Renascimento em diante, assumiu a ética da formação dos técnicos e dos manipuladores do poder. Com o reitor Gerson, a Universidade de Paris chegou a elogiar o tirano, "desde que os habitantes do reino durmam sossegados, sem perder suas galinhas". Le Goff mostra que os campi tornaram-se "polícias", servindo para reprimir os engenhos inventivos que semearam a Europa na Renascença e na modernidade.

 

Basta, para indicar o quanto os campi estiveram longe da gênese democrática e do saber moderno, enumerar os pensadores decisivos para o engendramento de nossa cultura mais elevada, notando que eles pensaram fora e contra a universidade. De Bacon até Sartre, passando por Descartes, Spinosa, Pascal e tantos outros, com raras exceções acadêmicas, como Kant e Hegel, o essencial da cultura deu-se extra muros, longe das reitorias e dos conciliábulos burocráticos da universidade. Qualquer estudioso da filosofia enrubesce ao ler a carta de Espinosa ao Eleitor Palatino, rejeitando uma cátedra em Heidelberg, porque recusava aceitar um limite para sua liberdade de pensamento. Quantos intelectuais, hoje, possuem esta coragem ética e cidadã?

 

Mesmo Kant, professor apegado às salas de aula, criticou com virulência a universidade de seu tempo, submissa à Igreja ou ao Estado e contrária ao saber.A sua obra imortal, O Conflito das Faculdades que lhe valeu muita dor de cabeça, junto com A Religião nos Limites da Simples Razão, é um libelo contra as faculdades que servem para manter a sobrevivência dos poderosos. As ditas faculdades, sabemos, eram a de Teologia, Direito, Medicina. Excluindo a Teologia, hoje um pouco desprestigiada junto aos governos, as outras continuam a tradição de produzir especialistas em domínio legal, enganando a massa com normas jurídicas não raro sofísticas, com base na força física inconfessada. As faculdades de medicina continuam produzindo milhares de pessoas interessadas no lucro a ser extraído do Estado e dos particulares. Como o governo é mau pagador, quem termina enriquecendo os discípulos de Hipócrates são os particulares.

 

Há muito que refletir sobre a união entre o ensino "especializado" nestas Faculdades, e a caixa registradora. Sempre que ouvimos a pergunta, nos consultórios médicos: "com recibo ou sem", devemos nos interrogar a respeito do ensino ético dado a estas pessoas, e acerca de nossa responsabilidade social. Num país onde 50% dos impostos são sonegados, torna-se urgente discutir os métodos e as bases axiológicas que produziram indivíduos que traficam com a saúde. Por outro lado, os que se dedicam ao público, como os professores secundários e médicos do serviço oficial, ou abreviam sua estadia nos ambulatórios e salas de aula, na busca de sobreviver com os famosos "extras", ou são tratados pelos governantes como profissionais de última categoria. Com isto, se degrada não apenas os serviços, mas o ensino sobre o valor da vida humana e da cidadania.

 

Na oposição entre os dois alvos a submissão aos poderosos ou o trabalho para a cultura reside a força que dirige a sociedade para o plano imortal, que servirá para alimentar (gostaria, se me permitem, lembrar as notas platônicas sobre a comida, as quais abordei no seu vínculo com o ensino, no começo) as pessoas que viverão daqui a mil anos, ou ajudará a produtividade que traz dinheiro e honras para os poderosos . Hoje, nas escolas, enfrentamos duas pressões. A primeira, cada vez mais tênue, é a da grande cultura científica e técnica que produziu Platão, Leonardo da Vinci, Leibniz, Espinosa, Descartes, Diderot, as Luzes. A outra vem dos que vivem para a inimizade e para a destruição do que é uno na sociedade e na política. Com isto, em nossas escolas agonizantes (não sou trágico, apenas expresso o que existe), some a idéia de unidade do saber e da prática cidadã. Com isso, enfrentamos outro problema: a educação técnico-científica das massas. Desde o Renascimento produziu-se o sonho de uma difusão universal do saber, podendo-se mesmo falar num "milenarismo" científico-pedagógico. Bacon, Comenius, Erasmo, estes nomes são conhecidos pelos historiadores da educação. Um trabalho importante, nesta linha, é o livro de Charles Webster, The Great Instauration, Science, Medicine and Reform, l626-l660.11 Nele esgotam-se as análises das sugestões da frase profética lida no livro de Daniel (l2,4): "Plurimi pertransibunt et multiplex erit scientia". Vale a pena lembrar o trecho inteiro: "Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão , uns para a vida eterna, outros para vergonha e horror eterno. Os que forem sábios resplandecerão, como o fulgor do firmamento, os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrêlas sempre e eternamente. Tu, porém, Daniel, encerra as palavras e sela o livro, até ao tempo do fim; muitos o esquadrinharão, e o saber se multiplicará" (trad. João Ferreira de Almeida). Este grito de guerra, ligando saber e vida nova, dominou a Europa científica e pedagógica, no mesmo instante em que as escolas, inclusive as universidades, serviam aos poderosos da hora, a Igreja oficial e o Príncipe. Desse brilho profético e pedagógico surgiram as Luzes, no século l8, movimento dividido entre adeptos de um saber acessível a poucos e os propagandistas de um saber ampliado ao maior número possível de pessoas. Infelizmente, no Brasil, como não pudemos recolher toda a herança das Luzes, apagadas pela repressão militar e policial na Colônia, costumamos denegrir este movimento, ligando-o unicamente à famosa burguesia. Parece-me muito estrito e estreito este juízo, sobretudo porque a ausência dos saberes foi suprida pela ignorância fabricada nos governos e nas sacristias. Perdoem-me os defensores da pedagogia jesuítica e dos supostos benefícios trazidos pelos inacianos ao Brasil. Mesmo aceitando sua contribuição para atenuar a barbárie dos colonizadores - e isto é matéria disputada em plano histórico - a política global de nosso colonizador dirigiu-se para afastar nosso povo do entusiasmo gerado no Renascimento e na modernidade européia. E isto afastou de nós a prática cidadã.

 

O resultado está aí : massas analfabetas conduzidas, na política, através de novelas e de noticiosos demagógicos. Quem, entre nós, é cristão, tem muito o que pensar sobre o peso eclesiástico nesta idiotia generalizada da massa brasileira. A crença nos milagres, que a Igreja sempre procurou administrar com prudência, aqui adquiriu foros de realidade permanente. Basta lembrarmos os anos do milagre ditatoriais, sob o mago Delfim, o plano Cruzado, a salvação collorida, a adesão a-crítica e desesperada aos "planos". A fórmula é tudo, menos raciocinada: "tem que dar certo". Esta é mais uma "épode", como diriam os gregos, um encantamento repetitivo que hipnotiza a massa e muitos intelectuais, retirando-lhes a capacidade de pensar. O pêndulo entre adesão misóloga e desencanto absoluto corrói a cidadania brasileira. Todo governante responsável, antes de impôr esperanças messiânicas ao povo, deve refletir muito sobre esta corrosão que opera em longo prazo, destruindo a fé pública, conditio sine qua non de qualquer Estado democrático. Há quem ache graça nas manifestações de cinismo no povo, do tipo: "ele rouba, mas faz.". Isto não prenuncia uma gente livre e franca. E a franqueza é atributo essencial da liberdade. Os que hoje utilizam o poder com regras casuísticas, deseducam o povo, no desejo de ganhar eleições. Esta atitude corrompe todas as fibras da república. Os poucos privilegiados pela situação econômica brasileira, estruturalmente injusta, com seus carros Audi ou BMW, suas canetas Montblanc, seus telefones celulares, o famoso "kit imbecil", não sabem que engenhocas "modernas" não substituem a lealdade e a franqueza amiga, fundamento essencial da cidadania. A classe média brasileira, sobretudo a que se alimenta dos despojos internacionais da produção efetiva, é flutuante e aduladora. Como todo segmento sem capital próprio e sem as mãos como único recurso de vida, ela vive, como diria um hegeliano, "em outro", ou, como poderíamos dizer, "de outro", como vampiro pós-moderno. Se a classe média é presa da idiotia, de outro lado não podemos esquecer as tentativas fracassadas para produzir e comunicar saberes urgentes ao povo. Num artigo sobre o pensamento de Diderot, Roland Mortier relata os projetos feitos por este último de produzir uma "filosofia popular". Um texto anônimo, atribuído a Dumarsais, lembra Mortier, intitulado Essai sur les Préjugés, enfureceu Frederico II, um dos poderosos sobreviventes mais adeptos de mentir ao povo dentre os que já existiram no planeta. Todos conhecem a pergunta, formulada por Frederico, sobre se é lícito mentir ao povo. A resposta do militar e burocrata moderno é óbvia, ela já existia antes dos textos chegarem à Academia Prussiana. Frederico lê Platão seletivamente. Dele, reteve apenas que só ao magistrado é lícito mentir ao povo. O resto e o entorno foi jogado às traças. O autor do Essai sur les Préjugés mostra que não existe política sem verdades ditas à população. O intelectual deve a verdade aos seus semelhantes, aos concidadãos, ao gênero humano. "Ele é desumano e sórdido quando recusa partilhar com eles o tesouro que descobriu". Cabe ao Estado, mantido pelos cidadãos, expandir o conhecimento descoberto pelos cientistas. Assim, a "experiência e o hábito chegam a facilitar ao homem do povo, ao mais grosseiro artesão, operações muito complicadas.Temos, pois, o direito de duvidar que o hábito e a experiência lhe facilitem do mesmo modo os conhecimentos mais simples dos deveres e da moral e os preceitos da razão, dos quais evidentemente depende sua felicidade?".Note-se a insistência no termo "hábito", tanto para a vida científica quanto para a vida moral. Não por acaso este é o termo que, em nossas linguas modernas, utilizamos para traduzir a palavra grega "ethos". Sem estes hábitos, o homem do povo fica preso as paixões dos poderosos, ou se entrega às próprias paixões. Neste ponto, nosso autor anônimo apresenta uma dúvida que até hoje, ou talvez, sobretudo hoje, atravessa nossa prática educativa. Os livros úteis, diz ele, parecem não terem sido escritos nem para os grandes, nem para os pobres. "Uns e outros quase não costumam ler. Os grandes, diga-se, acreditam-se interessados com a perpetuação dos abusos, e o povo miúdo não raciocina". Deste modo, conclui o autor, "todo escritor deve ter em mente a parte média de uma nação".12 Todo o esforço das Luzes foi o sonho de tornar acessível o saber ao maior número. Até hoje suas sugestões estão aí, recusadas que foram pelo clero conservador e seus êmulos, e assumidas pelos liberais democráticos e socialistas, herdeiros da utopia científico-pedagógica renascentista. Roland Mortier reflete, na obra citada, sobre o fracasso do "projeto" diderotiano de uma filosofia popular. Ele mostra que duas ordens de fatores definiram este fracasso. Primeiro, a separação feita sobretudo pelos ideologues, herdeiros da Enciclopédia, mas limitados nas suas pretensões pelo governo tirânico de Napoleão I entre técnica e pesquisa teórica. Esta redução extraiu a profundidade nas suas exposições "científicas". Outra causa é a que já foi indicada: imaginando-se uma elite separada e acima do povo, sobretudo na época da Contra-revolução termidoriana, o grupo dos acadêmicos separou-se das camadas populares. Se tiveram brigas com o grande tirano, não é menos verdade que tinham medo da união com o povo miúdo. O reinado das massas, com Robespierre e a máquina inventada pelo Dr. Guillotin, ainda estava fresco na memória. Depois desse momento, houve a corrida dos socialistas utópicos, todos se imaginando pastores científicos da multidão proletária, com direitos à infalibilidade na condução dos negócios sociais. Neste clima, o comtismo, com seu "poder espiritual", projetou um ensino técnico redutor da cidadania. É conhecido o mote positivista sobre o operário que é cidadão apenas no interior da fábrica. O marxismo, pensamento científico nos moldes do século passado, não escapou da separação entre elites pensantes e massa dirigida. Nas experiências ocorridas de fato, e não nos escritores vencidos, ele aprofundou o abismo entre pesquisa e população. Enquanto tudo isso ocorria, a universidade seguiu seu passo de tartaruga, imprecando as massas por sua ignorância, e aderindo sem vergonha aos vencedores da hora. O fisiologismo universitário seria matéria de uma longa pesquisa histórica e sócio-psicológica.

 

Até hoje enfrentamos um problema fundamental: como assumir o desafio da necessária formação técnica e cidadã das massas, conditio sine qua non de sobrevivência coletiva no século 2l ? Uma pergunta continua de pé: qual a base ética das nossas escolas, do ensino elementar à universidade, para produzir o ensino profissionalizante, se nelas o que se visa é a produção de elites, elites estas, diga-se, cada vez mais degradadas e proletarizadas? Estes desafios se emaranham na reflexão sobre o ensino da cidadania. Não tenho resposta para tais pontos. E considero mentiroso quem diz ter soluções rápidas e seguras para semelhantes aporias. Penso que uma saída é o empenho junto aos partidos democráticos, pelo menos em setores deles, para que se transformem em educadores coletivos, com ajuda dos mestres, visando, em prazo longo, mudar a atitude das massas diante dos donos do poder. Para isto, a receita é a mesma recomendada por Platão: disciplina e escolha criteriosa dos objetos a serem estudados. Outro ponto desta receita é fugir da lisonja e da demagogia. Outra recomendação ética é a fornecida por Elias Canetti: deixar de fornecer apoio para a sobrevivência dos tiranos que "roubam mas fazem". Se nos desinteressarmos e não enfrentarmos o problema da formação técnica e cívica das massas, ficaremos sozinhos nos campi, nas igrejas, nos partidos. Sem assumir questões como a do ensino tecnico-científico, vinculado à cidadania e aos direitos humanos, ficaremos reduzidos à situação dos estabelecimentos italianos de ensino, em l803, quando Roma estava ocupada pelas tropas francêsas. Perguntado sobre a atitude dos governantes estrangeiros face às escolas públicas, um professor respondeu: "Elas são toleradas, como os bordéis" (13)  Se optarmos pelo "realismo", e pela busca de sobrevivência política ou economica individual, certamente não impediremos que nossas escolas se transformem em prostíbulos do espírito. Elas estarão em consonância com o que ocorre, às vezes, no Congresso Nacional. Mas para mudar, rumo ao melhor, o Parlamento, urge redefinir nossa prática cotidiana no universo escolar, na sociedade, nos partidos políticos. O que fizeram de nós, retomemos Sartre, pode ser modificado. Mas para isto é preciso disciplina, rigor cívico, espírito democrático. Esperemos que estes elementos aumentem em nosso convívio, se quisermos escapar, no milênio próximo, à pura e simples barbárie.

 

1. República, trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, Gulbenkian, 1980. 2. Gorgias, 464 c-e; Trad. francesa de Robin, L. Pleiade, T. I 3. Para todos estes pontos, cf. Pierre Louis, Les Metaphores de Platon, Rennes, Imprimeries Reunies, 1945. 4. Cf. Leis, V, 731 e. Trad. francesa Robin, L. Pleiade, página 784; trad. Loeb, página 338-339. 5. Cf. Fraisse, Jean-Claude, Philia, la Notion d' Amitié dans la Philosophie Antique, Paris, Vrin, 1984, página 169. 6. República, 462 a-e, trad. Gulbenkian, páginas 23l-233. 7. Cf. República, Ed.Loeb,Oxford, página 3l2; Ed. portuguesa Fundação Gulbenkian, página 399). 8. Cf. "De Discernendo Amico ab Adulatore" , ed. Loeb, Moralia,V.1, trad. Babbit, F.C., l986, página 267. Tradução brasileira Isis Borges B. da Fonseca. in Como Tirar Proveito de seus Inimigos. SP. Martins Fontes, 1997. 9. Cf. Le Categorie del 'Político', l972, Bologna, Il Mulino, páginas l93 e seguintes. 10. Massa e Poder. Ed. Universidade de Brasilia. 1986.Páginas 251-309. 11. London, Duckworth, l97511. London, Duckworth, l975 12. Cf. Roland Mortier, "Diderot et le Projet d'une 'Philosophie Populaire'. In Revue Internationale de Philosophie, "Diderot et l'Encyclopédie -l784-l984-, nº l48-l49, fasc. l-2, l984, páginas l82-l95. 13. Cf. Hegel, G.W.F. "Prefácio" à Filosofia do Direito, trad. francêsa de R, Derathé, Paris, Vrin, l975, página 53.

 

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Ditadura e Educação. Palestra feita na Faculdade de Educação da Unicamp no dia 31/03/2021. Para lembrar o que foi sofrido no mundo e no Brasil por causa de ditaduras e ditadores. Roberto Romano

 

Faculdade de Educação/Unicamp. 31/03/2021.

 

 

Como se trata de uma alocução, usei textos meus publicados em veículos diversos, sem citar as editoras, sites, etc. Deixei apenas no pé de página as citações mais prementes. Caso venha a redigir o escrito para possível publicação farei o necessário para cumprir os requisitos básicos. Roberto Romano

 

 

A ditadura em Roma. Para enfrentar dificuldades graves era nomeado um dictator, magistrado que não obedecia a colegialidade. Seu mandato era de seis meses em geral. Ele era designado pelo cônsul e pelo Senado, muito raramente eleito pelo povo. A instituição foi usada 76 vezes . Em apenas seis casos foi movida para acabar uma guerra ou insurreição.  Digamos que a ditadura tinha similaridade com o Artigo 48 da Constituição de Weimar. Ali se colocava o presidente da república como único capaz de suspender  os direitos cidadãos diante de graves perigos públicos.  Coube a Cesar abrir caminho para o sentido mais comum no mundo moderno. Ele foi nomeado ditador por um ano, depois dez anos e finalmente ditador perpétuo. E foi assassinado três meses depois de ser reconhecido assim. Os regimes autoritários e absolutistas modernos tiram de Cesar o nome e o desejo de mando irrestrito: eles se fazem chamar de Cesar, Kaiser ou Tsar.

 

Abolido o nome de ditadura em março do ano 44 antes de Cristo, ele ressurge com conotação favorável nos tempos modernos. Maquiavel, nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio adianta que toda república precisa possuir um poder ditatorial, mas previsto e regulamentado pela lei, para evitar que se transforme em despotismo. Na Revolução Francesa a ditadura liga-se à tese da salvação nacional, pública . Marx o usa para designar o poder proletário, quando o Estado burguês estiver sendo dissolvido.  O sentido péssimo da ditadura foi usado na Grécia antiga sob o nome de tirania. Mas os gregos conheciam a função ditatorial. Por volta do século VI antes de Cristo havia o indivíduo chamado aisymneta, que dispunha de poderes excepcionais, criados para resolver situações de luta interna (stasis) e para casos graves de guerra.  O remédio seria o despotismo esclarecido, tal como propõe Platão a Dionísio de Siracusa. A palavra é ignorada em grego, salvo como tradução literal do termo romano. É preciso notar que  desde a época mais recuada são bem conhecidas as formas de poder pessoal, uma das notas da ditadura. O termo “tirano”, não presente na Ilíada, enuncia um poder com as marcas de pessoalidade. “Ter muitos chefes nada vale; que um só seja o chefe, que um só seja o rei”. Como os gregos são conhecidos pelo paradoxo, na mesma Ilíada é dito que em situações críticas vale mais que sejam dois e não um só a assumir o comando.  Na Grécia arcaica (até o final do século VI AC) existiram chefes nomeados vitaliciamente ou por tempo limitado, tendo em vista resolver crises. Eles eram chamados aisymnetas (comandantes) que dispunham de poderes excepcionais, espécies de tiranos eleitos e acusados de agir com arbítrio e injustiça. O nome de basileus era dado ao rei, o qual detinha maior ou menor força, de acordo com as cidades.

 

O tirano de início é um basileus que possui amplos poderes, mas nem por isso visto como usurpador ou bandido. A evolução deste sentido ao de péssimo governante é feita em pouco tempo. Os primeiros usos do título de tirano com conotação negativa (algo debatido até hoje, se mesmo negativa ou não) vem de Arquíloco num poema mal conservado (Fragmento 15, da edição de Lasserre-Bonnard, Ed. Les Belles Lettres).  Os séculos VI e VII são férteis em governos tirânicos e populares, contrários ao poder nobre. Por volta de 430, na peça Édipo Tirano, Sófocles não emprega ainda o termo no sentido totalmente pejorativo. Em Heródoto, na segunda metade do século V, temos a questão da tirania. O historiador relata um debate sobre o poder efetivado na corte persa. Com a morte de Cambyses, sete nobres discutem o regime a estabelecer. Com a vitória da monarquia ela é entregue a Darius. Mas são discutidas a monarquia, a aristocracia e o regime popular, com seus pró e seus contra. (Heródoto, III, 80ss). () O adversário da monarquia diz que a pessoa nela investida não precisa prestar contas a ninguém e se torna próspera e orgulhosa, abusa do poder e ordena execuções sem julgamento, usa as propriedades dos governados segundo seu capricho, viola as leis e a moral. O poder absoluto leva à tirania, máxima injustiça. O regime adequado seria a democracia, na qual os integrantes política recebem tratamento isonômico. Contra semelhante requisitório, o defensor do poder absoluto diz que se o titular é bom, tal governo é o mais adequado. Ele é mais eficaz porque nele o segredo de Estado tem mais garantias (o seu titular é um só). Solon recusa a tirania que lhe foi ofertada, a considera ausência da lei, injustiça. A tirania, no seu entender, é como uma praça forte que protege, mas aprisiona quem a comanda. Solon aceitou ser árbitro por tempo limitado.

 

Em Esquilo a tirania se identifica parcialmente à barbárie dos persas vencidos em Salamina (Os Persas, 480) ou dos egípcios (As Suplicantes, 472). Prometeu encadeado é o campeão da humanidade por lutar contra Zeus tirano que impõe sua vontade arbitrária. Em Sete contra Tebas o rei é legítimo mas  Eteócles, deseja guardar o poder por tempo maior do que o legal e não pretende ceder o comando ao  irmão, conforme a alternância prevista em termos jurídicos. A imaginação teatral, ligada ao fato tirânico, se radicaliza com Eurípides (As Fenícias) o qual coloca na boca de Eteócles a confissão do ardor pelo poder exclusivo : “Subiria aos astros, o lugar onde eles se elevam ao céu, desceria à terra, se fosse capaz, para manter em minhas mãos o poder soberano, a maior divindade”. E adiante: “Se é preciso ser criminoso, que seja pelo poder soberano, o mais belo motivo dos crimes”. (As Fenícias, 504, 524). (6)

 

Se não existe ditadura na Grécia, é possível enunciar que a noção e a prática da tirania se aproxima daquele conceito. A questão do tempo de mandato, a substituição da realeza pela magistratura que não presta contas, como o rei, é imposta por um golpe de força ou astúcia, diminui a sua legitimidade. Um exemplo modelar da tirania ilegítima, desenhado por Platão na República, se tornou o grande paradigma da tirania até os nossos dias. Trata-se do anel de Giges, o pastor lídio. É bom recordar que a primeira notação sobre tirania, como foi enunciado acima, é de Arquíloco. E tal notação é referida a Giges. “Um dia, durante violenta tempestade acompanhada de abalo sísmico o solo fendeu-se e formou-se um precipício perto do local onde apascentava o seu rebanho. Cheio de assombro Giges desceu ao fundo do abismo e, entre outras maravilhas que a fábula enumera, surgiu um cavalo de bronze, oco, perfurado com pequenas aberturas; tendo-se debruçado sobre uma, percebeu dentro um cadáver de estatura maior, parece, que a de um homem, e que trazia na mão um anel de ouro, do qual ele se apoderou (…). Ora à reunião habitual dos pastores que se realizava cada mês para informar o rei do estado de seus rebanhos, ele compareceu com o anel no dedo. Tendo tomado assento no meio dos outros, voltou por acaso o engaste do anel para o interior da mão; imediatamente tornou-se invisível ) aos seus vizinhos, que começaram a falar dele como se tivesse partido. Espantado, ele manejou de novo o anel com hesitação, voltou o engaste para fora e, assim fazendo, tornou a ficar visível. Dando-se conta do fato, repetiu a experiência para verificar se o anel possuía realmente semelhante poder, o mesmo prodígio reproduziu-se: virando o engaste para dentro, ficava invisível; para fora, visível. Desde que se certificou disso, agiu de modo a figurar entre os mensageiros que se dirigiam para junto do rei. Chegando ao palácio, seduziu a rainha, tramou com ela a morte do rei, matou-o e obteve assim o poder.”.

 

A história posta na República marca os lados da visibilidade e da invisibilidade do poder e da justiça. Na divisão dos campos opostos ocorre a maravilha, o espanto. Todos os elementos narrados pelo escritor Platão no personagem Giges, encontram-se na história dos golpes de Estado e das ditaduras, após o final da república romana e o nascimento do império. Até os nossos dias, os mais importantes pensadores políticos se aplicam a captar os sentidos da história de Giges, entre eles, o republicano Jean-Jacques Rousseau.

 

Na experiência grega, além da história de Giges, o tirano é chamado lobo sanguinário por Platão que prevê a sua morte nas mãos dos adversários. Aristóteles define o tirano como pernicioso ao coletivo.  Cicero discute a tirania, e afirma que o tirano gera ódio e sempre acaba morto de maneira violenta. O escritor discute o peso do tiranicídio, em relação aos valores éticos : “Com frequência as circunstâncias tornam o que se costuma considerar torpe, como não torpe. Existe crime maior do que matar um homem, ou um amigo? No entanto, seria mesmo um criminoso quem matou um tirano, mesmo sendo ele amigo? Tal não é a opinião do povo romano. Entre as belas ações, ele considera aquele ato como o mais belo” Pode ser encontrada em Sêneca uma atitude próxima. “Se a cura (do tirano) é desesperada, com um só gesto farei um ato benemérito para todos e de restituição, para ele. Para naturezas como a sua, deixar a vida é o único remédio, a melhor escolha é ir embora, quando não é mais possível voltar a si mesmo”.

 

No século XIV ressurge o nome da tirania quando o poder é tomado pela força nas cidades italianas do Norte. Os “senhores” tentam mandar de modo irrestrito nas cidades que comandam e buscam dominar as cidades concorrentes. É assim que temos as famílias Sforza, Medicis, Gonzaga, Carrara, e outras. Como técnica de governo os tiranos na Itália usam a intriga, a negociação secreta, a corrupção, as armas. Tirano passa a ser usado para designar não todo governante, mas os péssimos. É de se notar o tipo de regime instaurado por Savonarola, o de uma ditadura revolucionária, ao contrário da ditadura instaurada na Inglaterra por Cromwell, que acabou designando a si mesmo como Protetor Perpétuo do país. Um paradoxo: Cromwell ao mesmo tempo é fruto de um movimento revolucionário contra o Antigo Regime e um imitador do mesmo Antigo Regime. Ele seria, como diz o historiador marxista Christopher Hill “ao mesmo tempo Robespierre e Napoleão”.

 

Na viragem do século 19 para o vinte, Lenine é o teórico da ditadura e da revolução. O fascismo se quer uma revolução conservadora, ele se escora na propaganda intensa e na suposta eficácia do regime. O folclórico “os trens não mais atrasam” é ampliado para toda a máquina do poder público. Tudo funcionaria bem, desde que as ordens do Duce fosse obedecidas cegamente. O nazismo transforma radicalmente o conceito de ditadura. Ele se torna modelo de autocracia. Nele há o culto do chefe, o messias, a ideia de uma nação predestinada, a ideia de uma comunidade sem fissuras, da qual a raça é o fundamento, a raça ariana, a técnica plebiscitária, uma hierarquia social mantida do Antigo Regime com a nobreza emprestando legitimidade aos bastardos do nazismo. No ápice a recusa de toda teoria democrática, de toda ciência que não fosse dirigida pelo partido e seus doutrinadores.  O conceito de ditadura em nosso tempo foi elaborado por um jurista do nazismo, Carl Schmitt em livro justamente intitulado A Ditadura. Em seus trabalhos ele defendia que as decisões no Estado, sobretudo em matéria constitucional, deveriam ser atribuídas ao presidente da república, não ao Parlamento ou às cortes de justiça. De certa forma, ele concedia perenemente ao chefe de estado governar segundo um elemento de exceção, o parágrafo 48 da Constituição de Weimar. Jurista essencial para o Reich hitleriano ele chegou a escrever que “O Führerdecide o direito”.

 

Carl Schmitt foi conhecido no Brasil antes da ditadura Vargas. Um indício o temos no livro de Sergio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, onde se faz um citação estratégica da política como criação do inimigo. Juristas como Francisco Campos, o autor da Constituição ditatorial chamada Polaca, que definiu o Estado Novo, elabora seus textos segundo os parâmetros de Carl Schmitt. O ditador salva o Estado das ameaças internas (os opositores ao governante postos como inimigos, na Lei de Segurança Nacional) e externas. Tal linha de raciocínio esteve presente em todos os Atos Institucionais da ditadura de 64, atos aqueles em que Francisco Campos colocou suas mãos, do AI-1 ao AI-5.

 

No século 20, em termos mundiais, ocorreu uma transformação nos golpes de estado e nas ditaduras por eles instituídas. Refiro-me à passagem do bastão da hegemonia mundial da Inglaterra para os EUA. Após a II Guerra Mundial, quando o campo socialista e o capitalista se uniram para derrotar o nazi-fascismo, se inicia o que se convencionou chamar Guerra Fria. A Inglaterra, exaurida economicamente pelo conflito, enfrenta a escassez de petróleo, vital para a sua produção interna e suas exportações, além do plano militar. O Irã, próximo da URSS e distante dos países costumeiramente chamados de “ocidentais” , após tempos e tempos submetido à ganância das empresas da Inglaterra no campo do petróleo, elege lideranças nacionalistas que põem em cheque a drenagem barata do combustível do solo iraniano. A Inglaterra não tem condições de intervir no interior do Irã, por motivos óbvios que residiam na sua falta de recursos bélicos e de espionagem pós conflito mundial. O receio de que a URSS poderia receber o petróleo iraniano aumentou em Londres e em Washington. É decidido que, pela primeira vez na história, uma Agência de Segurança interna dos EUA praticaria um golpe e ajudaria a instalar uma ditadura fora daquele país. É o que foi feito contra o regime de Mosadegh.

 

A CIA, no Irã, cometeu o primeiro golpe que seria acompanhado de inúmeros outros a partir de então na Ásia, na África, na própria Europa como na Grécia e na América do Sul. O modelo usado no Irã foi seguido em todos os golpes posteriores planejados pela CIA. No primeiro momento a propaganda desabrida contra o governo legalmente eleito, a formação de centros para a propaganda que se apossam da imprensa, do cinema, do rádio, transmitindo o medo da subversão comunista e do caos sanguinário dos democratas. Ao mesmo tempo clérigos se encarregam de arregimentar massas contra o governo legal, alegando “perseguição religiosa”, ameaças às famílias e aos bons costumes. No mesmo átimo, são cooptadas lideranças militares para “deter a subversão”, etc. O cenário desenhado no Irã se repetiu exaustivamente em todos os golpes de estado supostamente dados em favor da “liberdade” e da “democracia”. Embora a dominação ocidental conhecida no mundo, por exemplo no caso da China e da Índia, tenha vindo sempre sob ordens das metrópoles, os golpes do século 20 foram além do vínculo colonial. Eles expressamente designaram um plano mundial de império. Os EUA, com ajuda dos países “do Ocidente”, muitos deles antigas potencias coloniais, dão a si mesmos o direito de atacar governos eleitos livremente, governos democráticos, porque eles significavam risco para a economia e a geopolítica capitalista. Além dos golpes contra os governos legais brasileiro, chileno, uruguaio, argentino, grego e outros, o golpe mais notório dos Estados Unidos no século vinte ocorreu na Indonésia em 1965, causando cerca de 500 000 mortos. A ditadura instaurada foi dita "A Nova Ordem".Vejam como a palavra novo, nova é de preferência dos ditadores. Estado Novo, Nova Ordem...etc. Foi deposto o presidente Sukarno, seguindo-se 30 anos de uma ditadura comandada  por Suharto .

 

Documentos abertos ao público em 2017 mostram que o massacre indonésio foi nuclear na política dos Estados Unidos na Guerra Fria.  Suharto assumiu o poder com ajuda norte americana até 1998. O serviço de publicação oficial dos EUA trouxe documentos que mostram autoridades norte americana ajudaram Suharto a fazer sua purga de 500 mil vidas.   Os documentos mostram mais, as autoridades norte americanas sabiam que a maioria das vítimas não pertenciam ao Partido Comunista. Diz um jornalista que seguiu a abertura dos documentos secretos que comparado à guerra do Vietnã e dos golpes na América do Sul o golpe na Indonésia é relativamente pouco conhecido. Mas ele foi um ponto de inflexão na Guerra Fria, com ativa participação da CIA. Durante décadas antes do golpe, os EUA treinavam os militares indonésios.  Grande parte da imprensa norte aericana apoiou o massacre Termino citando Vincent Bevens, o autor de corretas análises sobre o golpe na Indonésia : “Os métodos Suharto usados por inspiração dos Estados Unidos estiveram presentes em outros golpes no mundo. Segundo muitos relatos em Santiago do Chile, nos dias anteriores ao golpe que depôs Salvador Allende, graffitis nos muros aparecem em Santiago. Referindo- se à capital indonésia os graffitis diziam: “Jakarta chegou!”. ([1])

 

 

 

 

Educação

 

A ditaduras modernas buscaram a perenidade com o uso de um instrumento, a educação. Podemos dizer da técnica educacional de ditatorial o que disse Platão na República sobre a mentira. Para fazer as pessoas obedecerem é preciso lhes contar a mentira de que todos têm origem comum, seja qual for o lugar que ocupem na vida. O interlocutor de Sócrates pergunta: “mas as pessoas acreditarão em tal mentira?”. Responde o filósofo: “na primeira geração, não. Mas na segunda, terceira, sempre repetida a mentira, acreditarão”. Da República Goebbels, nazista erudito, tirou a tese de que a mentira repetida se transforma em verdade.

 

Para que as novas gerações acreditem é vital para as ditaduras que elas recebam mentiras tecidas com método pedagógico peculiar, sobretudo o que se baseia nas imagens. Não existe reforma educacional de nenhuma ditadura que não se ocupe da política imagética. Nas ditaduras nazista e fascista a imagem a ser transmitida às crianças e aos jovens, além dos desfiles, do teatro, das festas onde se festejavam os governantes como salvadores, os livros escolares servem como  instrumento de persuasão. Existem estudos sobre o uso de livros escolares na Alemanha nazista, na Itália fascista. Neles, o Líder é apresentado como modelo perfeito das virtudes patrióticas e de todas as superioridades populares e da raça branca. Quem se coloca contra ele são inimigos do povo e devem ser expulsos do convívio social. Na Itália fascista a doutrinação segue um plano hierárquico segundo a idade. Nas cartilhas para os mais jovens as imagens preponderam, com  sugestões de culto ao líder Mussolini. À medida que a idade aumenta, as imagens são acrescidas de slogans e preconceitos contra raças inferiores (no caso da Etiópia invadida pelos italianos, a raça negra), como é o caso dos judeus. E também se insiste sobre o culto ao Duce, a entrega absoluta aos seus ditames. Tal forma de “ensinar” segue em complexidade cada vez mais até os livros universitários nos quais se misturam doutrinas filosóficas arrancadas do Hegel e de outros pensadores de quem se deturpou o pensamento. Da creche aos bancos universitários se fecha o círculo de ferro da mentira sempre retomada e aperfeiçoada. Cada indivíduo deve se espelhar no líder, assumir sua linguagem, seus ódios. O ideal é fazer da sociedade um todo sem fissuras, sem oposições, sem lutas. A ditadura seria benéfica porque impediria a contradição na vida social e do Estado. O ditador seria o benfeitor a trazer toda harmonia.  Claro que todo esse aparato esconde as torturas, os assassinatos, os exílios, as prisões, a perda da liberdade, o estupro das culturas diferenciadas, etc.

 

Na Alemanha a nazificação do ensino começa em 1933. Num primeiro momento de 1933 a 1937 o regime toma atitudes pontuais, mas sem um plano geral.  Ele começa por impor a educação física e as disciplinas que louvam a germanicidade, fazendo dos professores propagandistas do Reich. A seguir vem a centralização burocrática e normativa. A seguir vem a uniformização radical das escolas primárias e dos liceus e a adoção de manuais “unificados”(einheitlich, uniformes e homogêneos. Os dirigentes nazistas proclamam “A educação da nossa juventude segundo os princípios nacional socialistas foi amplamente realizada”.  A escola alemã segue o Führerprinzip  e uniformiza o conteúdo dos cursos e materiais pedagógicos na doutrina nazista. O material escolar exalta a discriminação contra os doentes mentais, os não sociais, os desviantes e judeus.  Foi suprimida a circulação de livros de leitura antes em uso nas escolas. O novo livro pedagógico, dizem os dirigentes nazistas devem trazer “materiais sobre a germanicidade (Volkstum), a raça e a visão de mundo do nacional socialismo, os quais devem ser inculcados à juventude alemã. A visão de mundo nacional socialista constitui o ponto central do trabalho da educação. Ela assegura a unidade. “Por meio dessa unidade cultural (...) é a unidade  völkisch posta no centro. (...) protestante ou católico, do leste ou do oeste, do norte ou do sul, o estudante encontrará assim os fundamentos do patrimônio cultural alemão da raça, o Volkstum (...) e o patrimônio literário alemão”.. Dá-se  a tarefa de limpar as prateleiras das escolas dos livros não alemães. Toda a educação passa a seguir princípios racistas. Victor Klemperer nota o traço comum na educação e cultura nazista: « o medo de quem pensa, o ódio do pensamento”. Não por acaso a educação física e os treinos correspondentes imperam nas escolas .No plano anímico toda a energia dos professores busca inculcar nos alunos a fidelidade absoluta ao Líder e ao Partido.

 

América do Sul

 

Indiquei que o jurista Carl Schmitt defendeu o predomínio do Chefe do Estado, o presidente da república, como garantia do Estado uno, da sociedade una, do pensamento uno. No livro O Guardião da Constituição ele concentra na pessoal presidencial o direito de julgar e decidir sobre tudo o que o artigo 48 da Constituição de Weimar previa como providências para arrancar direitos da cidadania em nome da ordem pública, contra revoluções. Indiquei que os textos de Schmitt eram conhecidos no Brasil antes de 1937. Francisco Campos, na Constituição de 1937 que consagra o Estado Novo coloca, em consonância com Carl Schmitt, no Chefe de Estado todo poder decisivo. Em consequência, o culto ao presidente leva o governo ditatorial a empregar a mais ampla propaganda para impor às crianças e jovens o culto do Salvador da Pátria, Getúlio Vargas. Existem muitas pesquisas elaboradas sobre livros e cartilhas educacionais que promovem a idolatria do presidente. Não irei me estender aqui em comentá-las. Indico o artigo de Zenaide Inez Schmitz e Miguel Ângelo Silva da Costa: “Educação, infância, nacionalismo: uma abordagem a partir das Cartilhas Escolares ‘Getúlio Vargas para crianças’ e ‘Getúlio Vargas : o amigo das crianças’ . Revista Linhas, facilmente localizável na Internet. ([2]) Outro trabalho fundamental é o de Maria Helena Capelato sobre as cartilhas Vargas e Perón. Uma entrevista da professora Capelato  ilustra o tema. ([3])  E também uma resenha de um livro importante da professora ([4]) : Multidões em Cena, propaganda política no varguismo e no peronismo. ([5]) Há um artigo de Capelato que resume a questão com muita competência: “A propaganda política no varguismo e no peronismo, aspectos teórico metodológicos de uma análise sobre História Política” ([6]).

 

Após a vaga getulista vem as tentativas de mudar livros pedagógicos e  o pensamento sobre a educação com Anísio Teixeira e seu trabalho extenso e profundo em todo o país. Ele e os signatários do manifesto da Escola Nova abriram sendas para a educação democrática.Os educadores enfrentaram a resistência das escolas confessionais, muito bem aquinhoadas no período Vargas devido ao apoio da Igreja Católica ao regime ditatorial. Quem se interessa pelo assunto pode consultar o livro de Romualdo Dias, Imagens de Ordem, cuja origem é uma dissertação de mestrado defendida aqui, na Faculdade de Educação da Unicamp e de um doutoramento defendido no IFCH. As batalhas de Anísio Teixeira tiveram resultado em pensadores originais como Paulo Freire com seu método de alfabetização de adultos que usa a imagem em sentido plenamente oposto à prática imagética do fascismo, nazismo, varguismo, peronismo. Em vez de realçar a figura de um salvador providencial no ápice do Estado, Freire desperta, com imagens e vocábulos, a capacidade de pensar com autonomia, de modo crítico. Não é por acaso que a ditadura de 1964 perseguiu o pensador e educador Freire.

 

A ditadura de 64 tem uma ligeira diferença com as anteriores, como a nazista, fascista e da América do Sul.  Em vez de exaltar a figura de um salvador providencial, ela colocou nas Forças Armadas todo o peso de uma suposta regeneração brasileira. Assim, o golpe foi rebatizado como “Revolução Redentora”. O redentor não foi um indivíduo, mas a instituição militar.  Os presidentes não se apresentavam de modo isolado, eles eram apenas e tão somente exemplares do soldado ideal, o soldado que pela disciplina, honestidade, liderança é o contraponto da corrupta, indisciplinada, tíbia sociedade civil.

 

A marca da ditadura de 64 se estabelece, no campo educacional, no horizonte da Guerra Fria e do alinhamento incondicional do Brasil aos EUA. Assim como os militares seriam o modelo do verdadeiro cidadão, os Estados Unidos da América seria o paradigma de todas as virtudes no âmbito do mundo “Ocidental e cristão”. Além do elo com a CIA, o FBI e outros órgãos repressivos norte americanos que passaram a atuar aqui, a educação do Norte seria uma inspiradora da regeneração educacional brasileira. Foi a época do Acordo MEC-Usaid que moldou o ensino universitário e o ensino básico no Brasil. Há um belo trabalho do professor José de Oliveira Arapiraca, da Faculdade de Educação da UFBA (infelizmente falecido) sobre as artimanhas do referido acordo. ([7]) É partir de tal acordo que se impôs a ideologia da educação como fábrica do “capital humano”. Além disso a ditadura se dedicou à tarefa de formar mentes segundo o ideal militarizado e cheio de conceitos religiosos à guisa de adesão ao regime. Surgem os manuais de Educação Moral e Cívica com seus cursos correspondentes, obrigatórios.

 

Digamos: tais iniciativas encontraram resistências na sociedade civil, alimentada por intelectuais, artistas, clero progressista, políticos de oposição ao regime. As doutrinações ditatoriais não tiveram plena voga entre estudantes, professores, jornalistas, profissionais liberais, clero comprometido com as lutas populares.

 

Mas tal doutrinação calou fundo em setores da classe média brasileira. Os que foram “educados” segundo a ideologia ditatorial nunca deixaram os preconceitos e modelos reacionários de poder e de hábitos morais pregados naquele período. Esta é uma das causas, não a única evidentemente do fato de que largos setores da classe média e da suposta elite brasileira sempre terem apoiado governos de direita após o fim oficial da ditadura. A classe média votou em Fernando Collor (que aliás colocou a educação como algo a ser reconstruído segundo padrões da direita), apoiou o governo FHC (que aliás combateu o quanto pode as escolas oficiais, sobretudo no campo universitário). Em retirada provisória durante os governos de Luís Inácio da Silva e Dilma Roussef, tal setor alimentou todo seu ódio contra as inovações e melhorias educacionais favoráveis aos “negativamente privilegiados”. A política de abertura da escola às massas até então expulsas delas gerou animosidades e discurso sobre uma suposta meritocracia no ensino. Volto um pouco à ditadura: nela foram abertas escolas aos milhares para a população mais pobre. Mas tais escolas eram desprovidas de instrumentos pedagógicos eficazes e de pessoal humano. A massa das escolas de primeiro e segundo graus esmagou as antigas escolas oficiais cujo número de alunos era bem menor e os professores bem melhor formados. Como represa contra a ascensão social das massas pobres foi reforçado nas universidades públicas o vestibular, o que exigia recursos financeiros para pagar os famosos cursinhos ou para estar em dias com as mensalidades caras das escolas privadas. Impedidos assim de modo objetivo, os alunos de origem pobre, negros, indígenas foram jogados para o domínio das universidades privadas, desprovidas intencionalmente de recursos científicos e pedagógicos para a formação superior. O programa de cotas se tornou mais um alvo a ser atacado pela classe média e pela suposta elite.

 

A imensa multidão de estudantes praticamente abandonados em escolas desprovidas de quase tudo, naturalmente, surge para os moradores dos bairros “nobres” como ameaça aos bons costumes e....aos seus privilégios. Para resolver tais incômodos, surgem nos setores mais reacionários, herdeiros da educação da ditadura de 64, os projetos de escolas militarizadas cujo alvo principal é impor disciplina e obediência cega aos ditames do poder.

 

Os princípios ideológicos da ditadura civil/militar brotam hoje nos projetos de militarizar as escolas para fazer de cada estudante um militar na alma, alguém que obedece sem contestação as ordens superiores. Não por acaso tais planos coincidem com manifestações em favor do retorno ditatorial, com o AI-5 renovado, a recusa do debate pública, o uso de armas como fator de intimidação ideológica. Não por acaso as Polícias Militares e os escalões inferiores das Forças Armadas são requeridas para destruir os resquícios de regime civil ou passavelmente democrático entre nós. A ditadura de 64 soube se perenizar pelo adestramento de massas. E ela ameaça retornar mais dura, mais impiedosa, mas desprovida de qualquer laivo de sentimento libertário.

 

 

 

 

 



[1]   What the United States Did in Indonesia A trove of recently released documents confirms that Washington’s role in the country’s 1965 massacre was part of a bigger Cold War strategy.

VINCENT BEVINS OCTOBER 20, 2017

 https://www.theatlantic.com/international/archive/2017/10/the-indonesia-documents-and-the-us-agenda/543534/

 

[5] São Paulo. Editora Papirus, 1998.

[7] A USAID e a educação brasileira: um estudo a partir de uma abordagem crítica da teoria do capital humano.