Flores

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sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Sobre a distinção entre ética e moral, o texto que segue foi lido em parte em Congresso do Ministério Público em Salvador, Bahia.

Ética e Ministério Público

Uma reflexão em três momentos.

Roberto Romano/Unicamp.

John Greville Agard Pocock publicou há bom tempo um livro interessante, com título ainda mais atrativo: O momento maquiavélico.(1 ) Quem observa a realidade institucional brasileira, intui o nexo entre os escritos de Maquiavel e a nossa experiência coletiva. Das múltiplas passagens entre os textos do grande pensador político e o Brasil de hoje, uma é das mais significativas: a busca de atenuar (visto ser impossível abolir) a vingança, fonte grave de ingovernabilidade. Quando se tenta pensar os elos entre a ética e o Ministério Público, este veio é promissor. Em terra conturbada pela corrupção política e na qual o abuso administrativo une-se ao pânico trazido pela insegurança, o clamor pelos atos vingativos abre espaço para a anomia que torna quase impossível a aplicação da lei. Se os legisladores desobedecem a ordem legal e se as quadrilhas matam e invadem o espaço público, chega-se à pergunta inevitável : para que serve o Estado? Este último, mecanismo inteligentemente produzido no final da Idade Média, exige que se coloque nas mãos de seus operadores os conhecidos três monopólios: o da força física, da norma jurídica, dos impostos. Mas a premissa essencial destes monopólios, aceita inclusive por Hobbes, é que em troca deles o Estado garante a vida da sociedade e dos indivíduos. Se os governantes, legisladores, juízes, não podem manter tal compromisso, o Estado perde a razão de ser. 

Mede-se a eficácia do aparelho estatal pela maior ou menor taxa de insegurança e de garantias de vida. Quando diminui o índice de mortes civis e a vingança não se torna premente nem serve como instrumento de mobilização política, pode-se dizer que o Estado mantem sua legítima governabilidade. Caso contrário, ele se reduz ao estatuto de morto mecanismo. Este é o momento maquiavélico decisivo, o instante em que qualquer particular, qualquer seita ou quadrilha, ameaça os três monopólios e desafia impunente a lei. A partir daí, os cidadãos entregam-se aos primeiros grupos capazes de, pela mobilização do ressentimento, golpear a estrutura legal e democrática do mundo público. Abrem-se as portas para os golpes de Estado. Estes últimos não precisam seguir o modelo da intervenção militar. Golpes podem ser palacianos. Mas sua eficácia no desmantelamento do Estado de direito não é menor. Nota-se, portanto, a intima conexão entre os costumes éticos e a necessária manutenção e aplicação das leis. “Conatus sese conservandi primum et unicum virtutis est fundamentum”. ( 2) Se a base da virtude ética reside na conservação da vida individual e coletiva, o Estado só pode ser mantido se garantir esta cláusula. Exigir que os cidadãos submetam-se à polícia e ao exército, acatem as leis, paguem impostos, sem lhes assegurar a segurança essencial, é mais do que irrealista, pois significa ir contra os fundamentos ontológicos do humano e negar o direito e a ética na sua fonte. Assim, proponho aos membros do Ministério Público uma reflexão sobre os problemas acima indicados, partindo dos enunciados de Spinoza (o maior autor ético da modernidade) sobre o “momento maquiavélico”. O primeiro trata a questão da governabilidade, o segundo analisa a essência do fato ético, o terceiro extrai as consequências do que avanço nos dois anteriores.

A) Governabilidade.

Spinoza refere-se, no capítulo quinto do Tratado Político (3 ) a Maquiavel com três adjetivos: “acutissimus, sapiens, prudentissimus”. Os dois primeiros possuem vasta tradição no pensamento filosófico ocidental e foram valorizados na modernidade para o debate sobre o método (sobretudo em Francis Bacon, no caso do contrôle metódico dos engenhos agudos). O terceiro termo retoma a crônica política que desce aos gregos, mas que recebeu leitura estratégica em Roma e, na Renascença, determinou as doutrinas consubstanciadas no “maquiavelismo”. Vejamos o trecho citado: “Para um príncipe dirigido apenas pela paixão de domínio, quais são os meios para conservar e fortalecer seu governo? É o que mostrou exaustivamente o agudíssimo Maquiavel; mas qual seria o alvo de seu livro ? Isto não se mostra com muita clareza : se ele tinha objetivo honesto, como deve-se acreditar quando lemos um sábio, quis aparentemente evidenciar a imprudência dos que se esforçam por suprimir um tirano, quando é impossível suprimir as causas que o tornaram tirano, pois aquelas causas tornam-se mais poderosas e despertam-lhe o medo. É o que ocorre quando a multidão imagina dar um exemplo e se alegra com o parricidio, (4 ) como se ele fosse uma ação correta. Maquiavel talvez tenha querido mostrar o quanto a multidão livre deve evitar a entrega de sua confiança na salvação exclusivamente para um homem apenas, pois este último, a menos que esteja inchado de vaidade e se acredite capaz de comprazer a todo mundo, deve sentir medo cotidiano de armadilhas, o que o obriga a vigiar ininterruptamente pela sua própria segurança, ocupando mais em armar peças contra a multidão do que administrar os seus interesses. Penso assim interpretar o pensamento daquele homem prudentissimo que sempre defendeu a liberdade e proporcionou, sobre os meios de defendê-la, os mais saudáveis conselhos” ( 5)

Só nesse parágrafo temos uma pletora de problemas jurídicos e políticos que definiram a instauração do Estado moderno. No capítulo 7 do mesmo Tratado Político Spinoza apresenta o poder real jungido à potência popular. O soberano pode ser derrubado, mas semelhante fato ameaça a vida estatal. O longo raciocínio spinozano sobre o afastamento do governante começa explicitamente no § 25 e termina em pleno § 30. O elemento que mais impressiona nas frases do filósofo encontra-se na lista de assuntos intercalados entre o início e o final do raciocínio: a soldadesca, a massa vulgar, o segredo de Estado. Todos os ingredientes de um coup d´État são incluidos na penetrante análise do poder abusivo exercido pelo governante. Sigamos a exposição spinozana. 

O parágrafo 25 do Tratado Político afirma que a forma do Estado deve permanecer a mesma e que a lógica exige um só indivíduo no cargo de rei, com poder indivisível. O referido parágrafo citado apresenta um problema discutido com percuciência por Alexandre Matheron. ( 6) Trata-se das eternas disfunções políticas e institucionais. O Brasil é delas bom exemplo, pois nele a ingovernabilidade e acordos instáveis de mando político produzem leis magnas revogadas por pequenos golpes de Estado : as emendas constitucionais desfiguram a Constituição, abolem direitos e “flexibilizam” garantias, o que não resolve a falta de confiança do eleitorado nos parlamentares e governantes mas aumenta a prevenção popular contra regime democrático. (7 ) A frase de Spinoza é a seguinte : Imperii facies una eademque servari, et consequenter rex unus (…), et imperium indivisibile esse debet. Antes de aceitar a equivalência de “Facies” e “forma”, proposta na maioria das traduções do Tratado Político ( 8) observemos que num leitor atento de Maquiavel seria inconsequente usar “forma” e não “aparência” como propriedade estratégica do Estado. 

O Estado deve parecer uno, o rosto do seu governante precisa ser apreciado pelos cidadãos e não pode deixar de surgir assim, caso contrário não haveria obediência possível. Se a república tivesse diante de si o espetáculo de um poder dividido em facções, surgiria de imediato a pergunta essencial : Quem será obedecido, esta ou aquela corrente? E se ninguém pode ser acatado, quem garantiria a segurança de todos e de cada um? Logo no início dos Discorsi Maquiavel expõe o problema crucial da necessária aparência unitária do Estado, com a história de Coriolano. E nela vemos uma justificativa da promotoria pública. 

Diz o Florentino que para manter um país livre é preciso conseguir alguém cuja autoridade permita acusar os cidadãos ao povo, aos conselhos, a um magistrado sempre que ocorra algum atentado “in alcuna cosa contro allo stato libero”. A primeira vantagem dos acusadores oficiais é impedir os cidadãos —pelo medo de serem acusados— de empreenderem coisas nocivas à ordem estatal. A punição imediata dos infratores entra no rol dos encômios maquiavélicos à autoridade analisada. A segunda vantagem é oferecer um escoamento normal aos humores que aumentam na cidade, de tal modo, resultando em prejuízo de todo cidadão. Quando aqueles humores não encontram meios de escoar naturalmente, recorrem aos modos extraordinários, que arruinam a vida de uma república. 

Em Spinoza, as causas das crises políticas são conduzidas, em geral, a exemplo de Maquiavel, ao presente distanciamento e separação do Estado diante do seu principio originário constitutivo. A perda ou acréscimo de elementos ao corpo político produzem o desequilibrio ou reequilibrio do todo. “A causa principal de desagregação dos Estados é a que observa o agudíssimo florentino no primeiro capítulo do livro terceiro dos Discorsi sopra la prima Deca di Tito Livio, ou seja, que ao Estado como ao corpo humano se acrescenta algo que, por vezes, faz necessária uma intervenção curativa; e por isto, diz ele, é preciso que por intervalos o Estado seja reconduzido ao principio sobre o qual foi instituido originariamente”. O trecho de Maquiavel citado por Spinoza assume a metáfora médica para manter a saúde do corpo político. Mais particularmente, o florentino retoma o enunciado que diz Quod quotidie aggregatur aliquid, quod quandoque indiget curatione (“Que se acumula cada dia algum humor maligno o qual, de tempos em tempos, precisa ser purgado”). No décimo capítulo do Tratado Político são especificadas as causas possíveis da desagregação dos organismos políticos. A crise estatal não é definida unilateralmente face aos cidadãos, mas sobretudo diante da legitimidade do mando, a partir do metron trazido pelo consenso. A vida do Estado só vale na medida em que valem a vida dos que o compõem, esta é a sua razão de ser, esta é a soberania do corpo social. A democracia efetiva é remédio eficaz contra o pavor mútuo dos indivíduos. Assim se define a réplica de Spinoza ao pensamento dos que, a exemplo de Hobbes, indicam o pânico e a insegurança para justificar o soberano, cuja função é afastar a liberdade pública dos cidadãos. 

Vejamos a pessoa exemplar no texto de Maquiavel, a que serve de base para o pensamento de Spinoza. Coriolano pertencia à nobreza romana, a qual detestava o povo por sua pretensa ou real “troppa autorità”, com os tribunos para sua defesa. Estando o país em penúria, ele foi enviado para a Sicilia na busca de grãos. Com o povo indefeso, o aristocrata acreditou ter chegado a hora do golpe, castigando-se a plebe e dela extraindo a excessiva autoridade que prejudicaria os nobres. Bastaria não distribuir os grãos. O enunciado sigiloso de Coriolano, como todo segredo ( 9) se espalhou entre a laia miúda que se levantou contra o militar. Este, ao sair do senado sofreria um massacre. Oportunamente os tribunos —acusadores oficiais— exigiram sua presença para fornecer explicações. Maquiavel louva a citação tribunícia, porque ela salvou a república de uma luta civil dramática. Quando um cidadão privado é oprimido não resulta uma desordem na república, mesmo que ele tenha recebido injustiças. O processo, mesmo iniquo, não se faz com o uso da força e com armas estrangeiras che sono quelle che rovinano il vivere libero. Imagine-se, argumenta Maquiavel, o massacre de Coriolano, quanto male saria risultato alla republica romana se tumultuariamente ei fusse stato morto: perché ne nasceva offesa da privati a privati, la quale offesa genera paura, la paura cerca difesa, per la difesa se procacciano partigiani, da´ partigiani nascono le parti nelle cittadi, dalle parti la rovina di quelle. (10 ) A lógica da facção segue o medo e a ele retorna. No circuito da política, o Estado que parece em vias de dissolução apenas acelera a dissolução própria e a dos particulares. 

Como prevenir e evitar os choques traumáticos ou letais na república? A citada purga dos humores por meio de “filtros” institucionais (no caso de Coriolano, os tribunos e sua autoridade para acusar os particulares), este é o símile terapêutico para imaginar a política, simile movido por Maquiavel e por Spinoza. Mas porque o Estado deve parecer uno, mesmo não o sendo de verdade? Porque fora dele resta apenas a dissolução dos corpos e as facções, ou pior, o domínio de outro Estado, que pode garantir os corpos mas arranca a alma, a liberdade, dos cidadãos de certo país. É o jogo da aparência prudencial que funciona neste ponto. A passagem da aparência ao secredo define o mundo de quem se dedica à missaõ sagrada : salus populi. E a salvação do povo e da republica exigem que as facções sejam vencidas e impere a unidade do Estado. 

Conhecemos a tese de Aristoteles (Politica, V, 11): “Para um principe não é necessário ter todas as virtudes, mas é necessário parecer possuí-las e, se elas as tem e observa sem interrupção, elas são prejudiciais. Mas se parece tê-las, são úteis, como por exemplo parecer misericordioso, fiel, humano, reto, piedoso, mas sempre com uma alma prevenido, caso seja preciso deixar aquelas virtudes de lado e se transformar no contrário”. Segundo um comentador de hoje, “o ofício de rei é o de manter o Estado, a coroa, salvando as aparências. Para quem enxerga o principe envolvido por sua guarda, a pompa e o brilho do poder, um discurso conveniente é esperado e aprovado. O cinismo atrai ódio e desprezo. (11 ) Esta é uma explicação plausível. No entanto, penso que uma outra exegese pode ser dada. Denis Diderot adverte contra o trejeito de tudo destruir na vida política. É preciso, diz ele, que os cidadãos tenham esperanças na virtude cívica. Quem afirma que tudo no Estado é péssimo, enfraquece a resistência dos homens comuns. Muito fácil dizer que na teia estatal reside uma aranha voraz: difícil é produzir seres humanos capazes de vencê-la. Quando os críticos indicam apenas o pior no Estado, colaboram com a tirania: a multidão desmoralizada tende para a passividade e aceita qualquer tirania. E as tiranias, não raro, começam com os golpes de Estado que produzem extrema aparência de instabilidade aos governos, retirando as esperanças de salvação para as pessoas particulares.

Uma tarefa essencial, portanto, de todos os que possuem responsabilidades no Estado, é manter a confiança dos cidadãos. Sem isto, não ocorre governabilidade e a justiça tende perigosamente a ser definida apenas como um complexo ensandecido de vinganças. Estas, por sua vez, apenas enfraquecem a racionalidade pública e exacerbam o uso feroz da força física. Dito isto, passemos a alguns pontos essenciais sobre a ética. O que indicarei a seguir tem sido uma constante de minhas alocuções, tanto ao Ministério Público quanto aos mais variados setores da vida nacional. Após a inspeção no fato ético, terminarei deduzindo alguns pontos essenciais, no meu entender, para o Ministério Público que se deseje democrático.

B) Ética

Há na fala cotidiana e mesmo na política, para não nos referirmos aos debates jurídicos, uma passagem ambígua e pouco justificada entre a ética e a moral. O mais comum é se imaginar que a primeira possui caráter imperativo, como se ela reunisse uma tábua de valores e normas a serem aplicadas aos casos particulares. Dá-se também à moral um estatuto rígido, como se ela estivesse vinculada aos campos mais restritivos dos juízos comportamentais. Na filosofia grega, a ética integra a doutrina geral da virtude, definindo um fato coletivo. Ela reúne as práticas hoje distantes, mas na época grega conexas, da economia (uso dos recursos dos lares e gestão dos meios e riquezas comuns à família), da política (prolongamento da economia, pois trata-se de ordenar a riqueza e a pobreza da cidade/Estado). Finalmente, temos a retórica, o modo pelo qual devem os cidadãos dirigirem suas falas à assembléia na defesa de pontos de vista estratégicos, quando se tratava da guerra, interesses grupais ou jurídicos.

Se a economia e a política encontram-se em campos fixos, a retórica tem o privilégio da instabilidade. A palavra que origina o termo retórica —rhein— indica o que flui e não encontra obstáculos fixos à sua operação. Se a riqueza econômica e o bem público só podem ser tratados dentro de limites fixos, pois são a substância estável do coletivo, a palavra dos cidadãos, instável e polimorfa, não recebe limites na assembléia ou tribunais. Ser livre, na Grécia, é possuir o direito de falar sem obstáculos físicos ou anímicos. Uma virtude política por excelência —a parrhesia—, é a fala sem amarras, só concedida aos cidadãos livres. Quem tinha o costume de tratar as coisas públicas, adquiria as referidas “virtudes”, sendo nelas treinado desde o final da infância. Agir segundo os padrões da cidade nas assembléias guerreiras ou pacíficas, ou nos tribunais, tornava-se algo “natural”. Esta forma coletiva de agir, adquirida e operada sem reflexões se definia como hexis, o hábito, o costume, donde surge a palavra “ética”. A política, a economia, a retórica reunidos sob o vocábulo hexis, existiam como realidade visível. Nada podia ser escondido dos olhos cidadãos. Os atos virtuosos eram praticados nas praças públicas, nos campos de treinamento e nas guerras.

O exemplo visível possibilita a mimesis, imitação dos atos e falas livres. Aprender a cidadania é treino do olhar e dos gestos, que devem repetir o modelo, o paradigma proposto para ser obedecido e seguido. “Paradigma” surge na lingua grega unido a deiknumi cujo sentido é “mostrar”, “indicar”. Quando acrescido da partícula “para”, significa “mostrar, fornecer um modelo”. A raíz deik, refere-se ao ato de mostrar mediante a palavra, mostrar o que deve ser seguido. Daí na noção de paradigma ser estratégica a união com a palavra dike, a lei, a regra. A idéia da publicidade da lei surge daí. A lei, o modelo ou paradigma era posta diante do olhar de todos, para que ninguém a ignorasse.

O grande abalo do bloco ético visivel do qual temos notícia foi o caso de Sócrates, que desejou ter razão contra a ética da cidade. Julgado e condenado, ele inaugurou a autonomia do indivíduo diante do coletivo. Sócrates pode ser dito o pai da moral. A fonte de valores e o paradigma para a consciência invisível dos sujeitos. Esta tendência se exacerba com I. Kant. Basta lembrar a Crítica da Razão Prática: “duas coisas enchem meu coração de respeito. O céu estrelado diante de mim, e a lei moral em mim”. O céu estrelado, a visível pesquisa empreendida por Newton. A lei moral em mim, a invisível e sublime experiência dos valores, exposta por Rousseau. O céu estrelado, a ciência que opera com fenômenos, o que vem à luz. A lei moral, algo que só posso atingir, no meu íntimo. Na filosofia kantiana a ética foi atenuada em proveito da moral. Como reação a esta hegemonia kantiana da moral, o século 20 acentuo, retomando idealmente a Grécia, o ético enquanto visível e transparente coletivo.

O pensamento germânico entende a ética, coerente com as raízes gregas, como o conjunto dos costumes visivelmente adquiridos ou ensinados aos grupos sociais e aos indivíduos. Ética é a conduta que se tornou hábito. Contra I. Kant, na Filosofia do Direito Hegel indica que a ética, embora pertença ao mundo de valores e hábitos, pode ser colhida de modo não subjetivo. Ela não é de todo livre para os indivíduos de uma sociedade histórica, pois eles nascem num tempo e num espaço definidos e num coletivo cujos valores se expressam em hábitos comuns. O ethos grego é traduzido por Hegel na palavra Gewohnheit (hábito) que não se exerce apenas na invisível consciência individual mas numa sede (Sitz) comum a muitos indivíduos. Na ética os indivíduos agem em comum com os mesmos padrões de comportamento, desde os corporais até os espirituais. Eles agem de certo modo, possuem certa língua comum, usam traços semiológicos comuns para se comunicar com os semelhantes. A ética pode, perfeitamente, ser visível a todos os que compõem o universo pensante e particularmente visível e significativa para quem possui chaves de interpretação dos sinais particulares a um grupo, a uma sociedade, a um povo.

Agir no mundo ético é operar como se cada um estivesse “em casa”. Um alemão sente-se “em casa” se encontra outros alemães. Um francês idem. Um alemão católico sente-se ainda mais em casa se encontra outros alemães católicos. Quanto mais os signos utilizados (e produzidos pelos homens no tempo histórico) forem comuns, mais “em casa” está o indivíduo. E surge o problema: o hábito comum não seria um obstáculo para que os indivíduos percebessem que suas atitudes, valores, etc. poderiam ser nocivos ao grupo e aos próprios indivíduos? Um preconceito partilhado coletivamente não deixa de ser preconceito. E temos a questão da justiça e da ciência.

A partir dessa dúvida a ética se dedica à pesquisa das variações comportamentais ao longo da história dos povos e dos grupos em seu interior. Ela busca descrever os costumes de cada povo ou grupo. Descrever de modo rigoroso, sem aplicar ao grupo estudado normas e valores alheios a ele, tal é o primeiro passo da ética. Só após captar os valores de um conjunto social determinado, pode a reflexão compará-los aos hábitos de outras comunidades. Assim, a ética pretende atingir um âmbito mais amplo de valores do que a moral, sem prender-se aos indivíduos que os empregam. Se é verdade, como queria I. Kant, que a ciência não se faz com a moral, e vice versa, não é menos verdade que os hábitos integram num grupo com determinações mais amplas do que as individuais. O indivícuo possui hábitos comuns com o seu grupo de referência e pode ter seus atos e pensamentos acompanhados por este grupo. A sua comunidade, por sua vez, insere-se num determinado coletivo nacional e este integra a comunidade internacional. A passagem lógica e prática dos indivíduos ao universal não é mais, como em Kant, do exterior à moralidade, sendo um visível e a outra invisível, mas entre níveis diversos de visibilidade.

Tomemos um brasileiro. Os signos entre os quais ele se move, que definem a ética da sociedade em que ele nasceu e vive, adquirem determinada figura. Mas se ele também é protestante, os signos que determinam o seu agir diferem dos que movem os católicos, os ateus, etc. Se pertence a um grupo peculiar, como os Promotores de Justiça, os signos e atitudes que aprende, que exercita, que amplia e atualiza, são bem diversos dos que são exercidos nos demais setores do Estado e da sociedade.

O mundo social pode ser descrito como uma seqüência de esferas, cada uma com a sua lógica e com uma ética próprias. A esfera maior, o Estado, encarrega-se de administrar as demais. Em cada um destes círculos, os indivíduos aprendem sinais, gestos linguagem própria. Do culto religioso às instituições (onde se desdobram linguagens, signos, gestos paradigmáticos), eles aprendem a distinguir o que pertence a cada uma das esferas, não introduzindo por ignorância ou arbítrio o que é habitual numa delas em outras. Caso contrário, a mistificação se instala em todos estes domínios.
Nada pode ser dito dos indivíduos sem levar em conta o que eles adquiriram de maneira coletiva. Se ninguém nasce Promotor de Justiça, nem por isto deixa de ser verdade que “ser promotor” só passa a ter sentido para os indivíduos no interior da comunidade visível, ética, que se determina segundo paradigmas, linguagem, etc. daquele ramo jurídico. Não existe nenhum “promotor inefável, intangível, invisível”. Estes traços definem a ética de seu grupo, a qual é diferente da que define o coletivo dos físicos, dos artistas, dos matemáticos, etc. A ética não se imiscui de modo arbitrário, com uma tábua de valores particulares e externos à prática deste ou daquele grupo social, deste ou daquele povo, deste ou daquele segmento do saber. Ela não fala a partir do dever-ser, mas de como um determinado coletivo age e se constituiu histórica e socialmente.
Mas quando os hábitos mostram-se benéficos ou maléficos à humanidade? Apenas no campo mais amplo do Estado, onde as esferas se reúnem e se definem umas em relação às outras. Cabe ao Estado, reunião de todos os indivíduos, classes, movimentos, verificar, através da inspeção permanente dos hábitos e valores dos grupos, quais práticas e signos são adequados ou nocivos ao todo social. O Estado delimita o âmbito e as pretensões dos grupos particulares. E como os limites do próprio Estado são definidos? Esta dificuldade data da Revolução Americana e da Revolução Francesa. Sendo o Estado o impositor de limites aos grupos e indivíduos que nele se movem, a sua instituição controla os hábitos físicos e mentais dos setores que nela se movem. O Estado, não raro, ultrapassa os seus próprios limites e tenta impor padrões de comportamento e valores aos grupos particulares. A Constituição americana e os direitos dos cidadãos, produzidos na Revolução Francesa, indicam as barreiras que devem existir, protegendo do Estado os indivíduos e os grupos.

Os Estados tendem a ultrapassar as cancelas que salvaguardam as múltiplas éticas dos setores estabelecidos em seu interior. Assim, na extinta URSS, o Estado atribuiu-se o direito de impor normas éticas usando doutrinas oficiais. Mas não apenas o Estado pode querer intervir nas éticas dos grupos particulares. Movimentos religiosos julgam-se com o direito de definir o monopólio ético contra os grupos científicos, artísticos, etc. O fundamentalismo cristão ou qualquer outro fundamentalismo religioso, desconhece hábitos e signos dos grupos científicos, artísticos, etc, tentando impor-lhes, de cima e do exterior, regras alheias ao seu costume. Como harmonizar os pressupostos do Estado e dos movimentos de massa, religiosos ou ideológicos e o direito dos indivíduos e das minorias ? A resposta eficaz é o Estado de direito. Nele, nenhum grupo possui a qualidade de ser o representante único do coletivo. Todas as atitudes éticas recebem equivalência no plano do pensamento, e isto é o princípio da eqüidade. Estado de direito, porque nele a democracia se rege por leis adotadas pelo mesmo Estado, na sua face legislativa, as quais podem ser interpretadas e corrigidas pelo Judiciário. O executivo tem os dois outros poderes como limites da sua ação. Deste modo, os grupos do social podem ser ouvidos no Parlamento ou nas Cortes de Justiça. Democracia sem Estado de direito é despotismo da maioria ou de um ou outro setor social. O Estado de direito tem como conditio sine qua non a democracia.

Os limites éticos só podem ser definidos no interior do Estado de direito. E agora temos a grande importância do ideal ético e de sua visibilidade, para além da moral que reside apenas na invisível consciência subjetiva. O rigor democrático exige ampla transparência dos negócios públicos. Para Norberto Bobbio “pode-se definir a democracia dos modos mais diversos. Mas não existe definição na qual possa faltar o elemento que caracteriza a visibilidade ou a transparência do poder. Governo democrático é o que desenvolve a sua atividade própria em público, sob os olhos de todos. E deve desenvolver a sua atividade sob os olhos de todos porque todo cidadão tem o direito de ser posto à altura de formar para si mesmo uma opinião sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro modo, por qual razão deveria ser chamado periodicamente às urnas, e sob quais bases poderia exprimir o próprio voto de condenação ou aprovação?”. Governo que usa o segredo nas políticas públicas, conclui Bobbio citando Elias Canetti, “não transforma a democracia, mas a perverte. Não fere mais ou menos um ou outro órgão vital da vida democrática, mas a assassina” ( 12)

Ao contrário da moral, onde a luta de todos contra todos é infindável, visto que todo indivíduo ou grupo postula que a sua norma é a mais adequada para eles ou para o todo, a ética procura encaminhar os conflitos dos grupos através do debate social, chegando ao parlamentar, às decisões e juízos dos tribunais, definindo uma isonomia dos grupos no seu modo de ser particular. Entre o nível em que se encontram os grupos particulares e o todo do Estado, há uma escala de universalização da responsabilidade e da eficácia.

O Estado moderno foi produzido para proteger as pessoas da morte e para facilitar sua vida, ampliando o tempo da existência e adiando o mais possível o seu fim. O Estado que não provê os meios para que se produza a mais fina e abrangente rede de instituições voltadas para a proteção da vida, não cumpre a finalidade para a qual é-lhe entregue o monopólio das políticas públicas. No Brasil, nota-se um afã que aumenta em nossos dias, de aplicar códigos de ética. Antes de procurar impor limites morais à ação alheia, eu diria que é prudente verificar em qual sociedade, quais valores se impõem nos grupos que definem o coletivo envolvente. No caso brasileiro os costumes, a ética socialmente hegemônica, definem coisas odiosas. Uma sociedade onde reina a capangagem, onde quadrilhas se apossam do Estado e dele sugam, através da corrupção, o excedente econômico, uma sociedade onde o judiciário se cala diante dos abusoso do executivo e deixa incólumes notórios criminosos, uma sociedade cujo Congresso Nacional “absolve” seus integrantes criminosos e persegue cidadãos desarmados (o caso Francenildo não pode e não deve ser esquecido), é uma sociedade cujos costumes precisam ser modificados para melhor.

C) Ministério Público.

No primeiro instante analisei as pressuposições definidas por Maquiavel e por Spinoza sobre a governabilidade. Acentuei o quanto, para os dois mais profundos teóricos modernos da política e da ética, é preciso que o Estado seja provido de instituições que impeçam a vingança dos cidadãos contra os poderosos e contra a própria massa inteira da cidadania em situações de crise. Maquiavel aponta para os acusadores oficiais como instrumentos básicos de governabilidade e de salvação pública. No caso exemplar de Coriolano, nota-se a intervenção providencial dos referidos acusadores públicos, encarregados de impedir o massacre de um general poderoso, o que traria o incremento da guerra civil.

Em nossa terra, o Ministério Público cumpre (ou deve cumprir) o papel de acusador oficial que, sine ira et studio, indica os que violam a lei e providencia para que a massa dos cidadãos não sinta insegurança na aplicação das normas universais do direito. Cabe-lhe um papel estratégico na governabilidade, portanto: sem o Ministério Público, os operadores dos três poderes e os que movem a sociedade civil tendem a desconhecer os limites de seu mando e legitimidade. Sem a vigilância do Ministério Público as autoridades constituidas tombam na imprudência e desafiam a opinião pública com atos e providências que escandalizam, em primeiro lugar, mas produzem a sensação de que as leis e que o próprio Estado são instrumentos de alguns contra a maioria dos cidadãos. O Ministério Público, portanto, ajudando poderosamente na aplicação imparcial da lei, também auxilia o mundo democrático a não se perder na ineficácia. É preciso, no entanto, que os integrantes do Ministério Público saibam ler os sinais dos tempos, o “momento maquiavélico”. Sem isto, eles não conseguem operar com destreza o ofício que lhes é essencial: acusar sem preconceitos ou corporativismos todos os cidadãos, governantes ou governados, que desobedeçam a norma universal. O Ministério Público, sobretudo em terras onde a política é excessivamente corrompida, como é o caso do Brasil, constitui uma das fontes mais vitais de governabilidade e da legitimidade estatal.

No que diz respeito ao segundo ponto, o da ética, o Ministério Público não pode esquecer que o mundo social é uma policromia de valores e que todas as esferas sociais possuem o direito à diversidade axiológica. E mais, que ele mesmo, Ministério Público, é uma instância diversa das demais, com uma linguagem, gestos, juízos e costumes específicos. Para bem cumprir seu papel de acusador isento, os promotores de justiça não podem ignorar que as ordens sociais possuem costumes e valores éticos específicos, além dos gerais que definem a sociedade mais ampla. Se um promotor de justiça, no trato com uma esfera particular da vida ética, digamos, uma igreja ou universidade, deixa de respeitar os valores alí imperantes e procura lhes impor normas axiológicas, ele trai ipso facto o seu papel e sua missão. Se um promotor se dirige a um bispo católico não lhe concedendo os títulos que seus liderados lhe atribuem, trata-se de uma violência em termos antropológicos e éticos. Esta falta de prudência pode trazer ao Ministério Público uma perda considerável de legitimidade. O mesmo numa universidade. Se um promotor de justiça trata o dirigente máximo do campus sem os títulos e a reverência que os docentes lhe tributam, com certeza será visto como um estranho arrogante, perdendo o respeito e a legitimidade no mundo da ciência. O mesmo pode ser dito para o trato do Ministério Público com todas as esferas sociais e estatais, dos bairros pobres aos mais ricos, dos que não têm poder econômico aos palácios. O promotor público não é um sacerdote da ética, sobretudo não é apóstolo de uma ética particular. Ele deve conhecer e respeitar o pluralismo ético que impera numa sociedade democrática, para assegurar a mais límpida e inquestionável passagem das éticas das esferas menores para as normas do Estado e vice-versa. Se determinado grupo social segue regras éticas nocivas ao coletivo maior, e viola a Constituição, só um ministério público isento possui autoridade legítima para acusá-lo públicamente. No debate parlamentar e nas cortes de justiça, a lei pode ser modificada ou não, segundo pareceres prudenciais rigorosos. Antes disso, nenhum promotor de justiça pode se arrogar o papel de inquisidor ético. A experiência negativa, trazidaa por casos notórios no cenário nacional recente, não trouxe legitimidade para o Ministério Público, muito pelo contrário. Antes de imaginar que o Ministério Público é o portador “da” ética, é preciso que os promotores públicos individuais percebam a imensa paleta das éticas vigentes na sociedade, respeitando-as. Quando os costumes de uma ou de outra esfera social ou estatal colidem gravemente com as leis, cabe ao Ministério Público examinar as causas do fato e denunciá-lo ao Estado. Mas isto deve ser feito sem circunscrever os costumes éticos dos acusados ao campo ético do próprio Ministério Público. Quanto mais livre de subjetivismo corporativo, mais a ação dos promotores de justiça será eficaz na tarefa árdua de resgatar a confiança da cidadania no Estado democrático de Direito. 

Notas

(1) The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought and the Atlantic Republican Tradition (New Jersey, Princeton University Press, 1975).
(2) “O esforço para se conservar é o primeiro e único fundamento da virtude”. Spinoza, Ética, livro IV, Proposição 22, Corolário. Cf. a tradução portuguêsa de Joaquim de Carvalho (Lisboa, Relógio d´Água Ed., 1992), página 379.
(3) Sempre que possível sigo a edição do Tratado Político traduzida por Charles Apphun (Paris, Flammarion, 1966). O cotejo é com o texto latino on line (http://home.tiscali.be/rwmeijer/spinoza/works.htm?lang=F) hoje acessível universalmente.
(4) Visto que o Rei era o Pai do Povo, o costume jurídico era designar os atentados contra ele como extensão do parricídio. A literatura sobre o caso é amplíssima. Cf. Roland Mousnier: L´assassinat d´Henry IV (Paris, Gallimard, 1964). E também Lutaud: Des Révolutions d´Angleterre à la Révolution Française. Le Tyrannicide & Killing no Murder (La Haye, Martinus Nijhoff, 1973).
(5) “ Quibus autem mediis princeps, qui sola dominandi libidine fertur, uti debet, ut imperium stabilire et conservare possit, acutissimus Machiavellus prolixe ostendit; quem autem in finem, non satis constare videtur. Si quem tamen bonum habuit, ut de viro sapiente credendum est, fuisse videtur, ut ostenderet, quam imprudenter multi tyrannum e medio tollere conantur, cum tamen causae, cur princeps sit tyrannus, tolli nequeant, sed contra eo magis ponantur, quo principi maior timendi causa praebetur; quod fit, quando multitudo exempla in principem edidit et parricidio quasi re bene gesta gloriatur. Praeterea ostendere forsan voluit, quantum libera multitudo cavere debet, ne salutem suam uni absolute credat, qui nisi vanus sit et omnibus se posse placere existimet, quotidie insidias timere debet; atque adeo sibi potius cavere et multitudini contra insidiari magis, quam consulere cogitur. Et ad hoc de prudentissimo isto viro credendum magis adducor, quia pro libertate fuisse constat, ad quam etiam tuendam saluberrima consilia dedit.”
(6) Cf. Matheron, Alexandre: “Passions et institutions selon Spinoza”, in Lazzeri, Christian e Reynié, Dominique: La raison d´état: politique et rationalité (Paris, PUF, 1992), páginas141 e seguintes.
(7) Relatório do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (21/04/2004) indica o Brasil em primeiro lugar na melhoria do processo eleitoral e no acesso pelo voto a cargos públicos, mas fica em 15º lugar, no total de 18 países pesquisados, na adesão popular aos princípios democráticos.
(8) “La forme de l´État doit demeurer la même et en conséquence le roi doit être unique, toujours du même sexe, et le pouvoir doit être indivisible”. Trad. Charles Appuhn Spinoza, Oeuvres (Paris, Garnier-Flammarion, 1966), T. 4, página 65; “A forma do Estado deve permanecer a mesma e, por consequência, o rei deve ser único, sempre do mesmo sexo, e o poder deve ser indivisível”. Trad. Norberto de Paula Lima (São Paulo, Icone Ed.,1994), página 92; “The form of the dominion ought to be kept one and the same, and, consequently, there should be but one king, and that of the same sex, and the dominion should be indivisible” De Spinoza, Benedict Political Treatise Electronic Text Center, University of Virginia Library http://etext.lib.virginia.edu/toc/modeng/public/SpiPoli.html
Uma tradução próxima do original é a de Madeleine Francès nas Oeuvres complètes (Paris, Gallimard, Ed. Pléiade, 1954), página 1039: “Un État doit continuer à presenter toujours la même apparence extérieure. Par suite, un seul roi d´un sexe invariable y doit toujours régner et l ´État doit rester indivisible”.
(9) Cf. Plutarco: De garrulitate in Oeuvres morales (Paris, Les Belles Lettres, 1975), T. VII. Plutarco apresenta muitos casos de perda política causada pela garrulice e pela circulação de rumores. A leitura destes escritos é vital para se entender a raison d´Éta, o segredo, os golpes de Estado.
(10) Cf. “Quantos males teriam resultado à república romana se tumultuosamente ele fosse morto: porque nascia a ofensa dos privados aos privados, e esta ofensa gera medo, o medo busca defesa, a defesa proporciona as cumplicidades, delas nascem os partidos na cidade, dos partidos vem a ruina da mesma cidade”. N. Machiavelli: Discorsi sopra prima decada di Tiro Livio, Livro primeiro, 8, in Opere a cura do Corrado Vivanti (Torino, Eunaudi/Gallimard, 1997), I, páginas 217-218.
(11)Cf. Marcel Lamy : Machiavel et la raison d’État. Conférence prononcée au lycée Chateaubriand de Rennes le mardi 3 décembre 2002.No site http://cru.chateau.free.fr/textescru.htm
(12) Cf. Bobbio, Norberto: “Il potere in maschera”, in L´utopia capovolta. (Torino, La Stampa, 1990), páginas 61 a 64.

Para quem se interessa pelo problema ético no esporte e na terra, este texto que serviu para a palestra a um Encontro Nacional de Pós graduação em Educação Física.

Ética, guerra e esporte.

Ética, guerra e esporte.


Roberto Romano/Unicamp.


Vivemos no tempo rápido e perdemos referências históricas, políticas, éticas, religiosas. Sob nossos olhos, também os temas acadêmicos sucedem-se em voragens cada vez mais tensas de análises e perspectivas. O sábio Montaigne, criador da transposição imagética do mundo financeiro para o campo da racionalidade escrita, recorda que o termo “pensar” tem o mesmo conteúdo de “pesar”. E com base neste símile ele gerou a idéia de que a tarefa dos intelectuais era a de pesar as palavras na balança do juízo. Frases ou se gastam muito velozmente e perdem sentido e peso, ou são adulteradas e nada valem.

Evoco um tema estratégico do mundo antigo e atual onde são indicados alguns elos entre o esporte e o treino para a guerra. O tema, como é sabido, assume caraterística nuclear nas culturas antigas, as que deram nascimento à própria ética e política, tal como as conhecemos. Refiro-me sobretudo à Grécia. Cito um clássico analista da educação grega: “Em nossos dias é a escola, as letras, que se associam automáticamente à palavra ´educação´; para os gregos, era primeiro, e permaneceu por muito tempo, a palestra e o ginásio, onde a criança e o adolescente treinavam nos esportes”. (1 ) O grande analista “esqueceu” de mencionar a violência guerreira, unida aos exercícios e jogos pedagógicos.

Torna-se preciso, hoje, quando o fato bélico mostra sua face múltipla (do terrorismo clandestino e bandido ao terror tradicional do Estado com o abuso de seu monopólio da força física), meditar sobre os elos entre educação, esportes, guerra. Indicarei apenas alguns pontos a serem meditados quando nos preocupamos com a questão ética em nossos dias.

Iniciemos com a Grécia. Poder-se-ia dizer, com R.B. Branham, que o atletismo e a educação nele exigida tornou-se um ideal ético grego, sendo inclusive superior às artes marciais. Numa civilização como a que se tornou célebre por legar ao Ocidente a própria concepção de história, racionalidade, ciência, técnica e guerra, não é pequeno aquele ideal. (2) Como disse o grego Melancomas “na guerra o escopo é a coragem apenas, enquanto o esporte produz coragem, força física e auto-controle, simultâneamente”. Como a guerra, entretanto, a paixão pelos esportes e pela educação física possui críticos na própria Grécia. Tanto Xenófanes quanto Eurípides advertem contra a “tribo dos atletas”. Pergunta Eurípides: “que bem faz à sua terra um homem que vence corridas, lança discos, ou dá no adversário um soco certeiro? Lutarão contra o inimigo com os discos nas mãos? (…) um homem útil será o que recebe educação para a sobriedade e a justiça e pode considerar o que é melhor para a polis” (Eurípides, Autolycos). (3 ) Os esportes, em escala amplíssima como a praticada nas terras helênicas, seria inclusive nocivo à saúde física e mental. Galeno, médico nuclear da cultura grega, escreve que o modo de vida atlético é semelhante ao dos porcos “mas com esta exceção, que os porcos não exercitam ou forçam a si mesmos a comer”. Para Galeno o atletismo não traz saúde física, beleza, ou poder aos seus praticantes, é inútil para a comunidade, não é fonte de prazer.

Uma síntese dessas avaliações contraditórias do atletismo, a encontramos no diálogo de Luciano dedicado aos esportes e ao ensino ético dos jovens atenienses. O debate se realiza entre Anacarsis, um semi-heleno (filho de estrangeiro e de grego) e Solon, o grande instaurador das leis e da ética na Grécia. Anarcasis estranha os jogos atléticos e apresenta razões contra eles. A cada invectiva do “bárbaro”, Solon responde em defesa da educação física como o primeiro passo (e fundamental) para a formação ética da cidadania. Ele assegura a Anacarsis que os esforços para melhorar os corpos —com toda a dureza que eles trazem, como mergulhar no pó e na lama vencendo as dificuldades naturais— ajuda a formar bons cidadãos e bons guerreiros. “Nós fazemos todos estes exercícios físicos como preparação para a luta com as armas”, diz Solon com orgulho. Os corpos cobertos de óleo, para as lutas, são assim preparados para as batalhas, nas quais se exigem flexibilidade e rapidez, adquiridas na educação física. Anarcarsis, na pena de Luciano, caricatura o argumento de Solon, levando-o ao ridículo: “Muito bem, Solon, quando um inimigo invade sua terra, vocês untam seus corpos com oleo e jogam poeira sobre si mesmos, e seguem adiante os desafiando; eles, naturalmente, correm de vocês com medo de que a areia que está em vocês entre nas suas bocas….”. ( 4)

Um aspecto não risível no texto de Luciano é a exposição do fato essencial na pedagogia grega, fato que segue dos esportes para a guerra: a sua violência “tigresca” como disse um dia Nietzsche ao se referir aos helenos. O cidadão é formado para ser amável, simpático, educado para com os seus iguais. Como o cão, ele deve cuidar ternamente dos que pertencem ao clube político chamado polis. Mas ele deve aprender, nas lutas e no treino militar, o uso da violência, como os lobos. No próprio texto de Luciano sobre o atletismo, nota Braham, ressaltam termos anafóricos que retomam incansavelmente o caráter virulento da educação ética grega: a palavra agon, repetida incansavelmente, resume o caráter daquela cultura herdada por nós e analisada por Victor Davis Hanson, sobretudo em um livro recente cujo nome já diz tudo : Carnage and Culture. A “superioridade” grega encontra-se na sua força de combater os “bárbaros” com a violência mais racional, técnica, irrefreada. Pouco importa que Aristóteles e outros filósofos tenham criticado a educação física sem a formação axiológica como algo brutal (“A honra, não a ferocidade deve ser a primeira parte da educação; pois não é lobo nem algum outro animal selvagem que fará nobres aventuras, mas um bom homem. Os que conduzem os meninos a seguir exercícios árduos em demasia e não os treinam nas coisas necessárias na realidade os fazem vulgares, baixos”).(5) A violência animalesca da sua cultura não era percebida pelos próprios educadores e políticos helênicos. Para eles, bárbaros seriam “os outros” enquanto a beleza, a bondade (o mesmo termo designa na Grécia o bem e o belo, kalós), teriam morada na terra grega. A sátira impiedosa de Luciano desvela aos leitores gregos o quanto se iludiam sobre o caráter “superior” de sua democracia, de sua cultura, de sua ética. Aristóteles critica a tortura real dos jovens, que os torna aptos apenas a um lado do mando político, o uso da força desprovido da prudência e da reflexão. A ética efetiva deveria reunir tanto a formação física quanto a axiológica. Mas a truculência ateniense revelou toda a sua insanidade na guerra do Peloponeso, magníficamente descrita por Tucídides. Não por acaso, aquele texto foi traduzido por Thomas Hobbes, como exercício preliminar para entender o conceito de guerra de todos contra todos, na qual o homem é o lobo do homem.

Assim, temos um preâmbulo da questão ética que une a educação física e a guerra. Produzir bons cidadãos éticos, enuncia-se em muitos sentidos. Um deles é o grego, cuja superioridade consiste em matar com violência e sem freios os “inferiores”, os “bárbaros”. A ciência, a técnica, a racionalidade estratégica, a coragem dos lobos, conduz a Grécia e os seus herdeiros, no Ocidente, ao colonialismo e ao imperialismo modernos. As análises de Victor Davis Hanson, um defensor do Ocidente e atual apoiador de Georg W. Bush, são lúcidas neste ponto: a educação física ocidental integra um sistema complexo e amplo de hábitos assassinos, voltados para a carnificina eficaz. ( 6) Este é um desafio para os que pensam conduzir a educação física e mental dos nossos dias para horizontes menos letíferos e menos cruéis. E, sobretudo, para não conduzir jovens dos estádios diretamente aos campos de batalha, onde o treino físico é um requisito a mais no ato de destruir vidas “inferiores”.

Passo agora a um problema interno das culturas ocidentais. A tendência a espacializar o tempo nasceu na Grécia. A racionalidade grega, incluindo-se a condução da guerra para vencer o tempo, reduziu os fenômenos físicos e espirituais ao plano do espaço. Deste modo, tornou-se possível a medida e o controle dos atos humanos. Esta gênese da espacialização é solidária com a técnica e a ciência que transformaram os homens em objetos passíveis de mudança, correção, “educação”.

Os “bárbaros” orientais, para os gregos e para os europeus até os dias recentes, estavam presos ao mundo externo, não o dominavam. E o primeiro passo para dominar a natureza é dominá-la em nosso corpo, eis a lição grega. Este ideário etnocêntrico e preso ao controle dos corpos (e das mentes) foi enunciado de maneira perfeita por Hegel, o pensador da história e da suposta superioridade européia. “A História Universal”, diz ele, “vai do Oriente ao Ocidente. A Europa é o seu término. A Ásia é o principio…na Ásia nasce o sol exterior, o físico, e se põe no Ocidente; mas em troca, é aqui que se levanta o sol interior da consciência de si, o qual expande para todos os lados um brilho mais intenso. A história universal é o domínio da violência desenfreada com que se manifesta a vontade natural; é a educação da vontade para o universal e para a liberdade subjetiva”. ( 7)

Na seguência acima de frases, a história universal é a educação (Zucht) da vontade, temos a idéia da disciplina atlética e guerreira, mas com todos os elementos criticados por Aristóteles na sua análise da educação física unilateral. Notemos que na lingua alemã utilizada por Hegel, Zucht relaciona-se com a repressão dos desejos e vontades dos indivíduos e grupos sociais. “Uma zuchthaus é uma casa de correção, uma cadeia. Zuchtigen implica em açoitar, castigar. O indivíduo bem-comportado, educado, honesto e casto é o portador de uma zuchtigkeit. Zuchtmeister pode ser tanto o preceptor quanto o carcereiro. Finalmente, o vocábulo adquire seu pleno sentido de apuro, de refinamento das potencialidades naturais, quando se lembra que zuchtvieh é gado de raça”. (8 )

Passamos, na história recente do mundo ocidental, por experiências tremendas em termos éticos, para conseguir o delirante “apuro” da raça humana. Os esportes a educação física uniram-se, não raro, à tentativa de “melhorar a raça”. E os “inferiores” (os pobres habitantes das montanhas norte-americanas, os judeus, os ciganos, os homosexuais, os asiáticos, os negros) sofreram uma guerra de extermínio cujo nome é eugenia. Não irei me deter neste aspecto, ele mesmo legítimo herdeiro da Grécia e de sua visão pedagógica e bélica. (9 )

Importa, do ponto de vista ético lembrar a tecnologia de controle de corpos e de almas, consubstanciadas em campanhas de extermínio dos “inaptos” (assim decretam os “superiores”) (10) para a vida no espaço de nosso planêta. As pesquisas médicas, de engenharia e genética de nossos dias podem seguir (isto não é necessário, nem está definido na essência do saber científico) o rumo determinado pela antiga e renitente história do “aperfeiçoamento” dos pretensos superiores e das ameaças mortais contra os supostos inferiores. Existe uma tentação de se reduzir o fato educacional no sentido grego e hegeliano, de “apuro” e de disciplina para a seleção dos “melhores”. Mas eu gostaria de argumentar, contra o receio que esta via sempre trará, sugerindo ser possível pensar caminhos diferentes, na ética e na própria concepção da ciência. Esta última, mais as técnicas, não se destinam apenas à tarefa que frutificou na guerra ocidental ou nas lutas pela eugenia. Vejamos se consigo me expressar sobre este quesito. Uso, para isto, a análise de um escritor de nossos dias, em livro ainda recente. (11 )

Massimo De Carolis discute a engenharia cognitiva e biológica, tentando fugir do risco reducionista comum às análises favoráveis ou contrárias às ciências e técnicas. É redutor, no seu entender, todo exame que, na trilha da separação entre disciplinas humanísticas e ciências da natureza, procura fugir do fato de que o mundo humano tem sentidos que podem ser compreendidos científicamente. E para isto, é necessária que a informação sobre a humanidade seja tão acessível quanto a informação sobre os demais campos da natureza. Existe, constata ele, informação e existe rumor (existe palavra com sentido, existe palavrório, diriam os filósofos clássicos).

Os homens conseguem distinguir informações e rumores nos campos da natureza e no seu campo específico. Eles distinguem a si mesmos no ambiente natural. E conseguem efetivar sentidos sobre a sua vida. Nesta faina, De Carolis distingue três aspectos essenciais: a performatividade, a virtualidade, a auto-referência. A performatividade é a capacidade de constituir sentidos por atos fundadores. A virtualidade é a marca dos eventos de sentido nunca finalizados definitivamente, mas re-definidos sempre, em novos nexos entre signo e rumor. A auto-referência é a força de representar a si mesmo e distinguir-se do mundo externo.

Os animais parecem incapazes de constituir e reconstruir o sentido dos signos, eles movem-se num circulo automático de resposta aos estimulos. ( 12) Este hábito, um automatismo perene, permite responder aos estímulos de modo sempre mais perfeito, excluindo rumores, a massa de signos supérfluos. Esta é a base da técnica, partilhada pelos humanos. (13 ) Esta não pode ser vista como um elemento fundamental dos animais e dos homens. Nela não se encontram a performaticidade, a auto-referência, a virtualidade, três elementos básicos do ato ético livre. E sublinho esta última palavra.

Desde o pensamento grego, o universo e a política (com todos os seus conteúdo, das artes à educação e destas à guerra) foram entendidos com a metáfora da máquina, da reunião técnica. Assim, o mundo ocidental encontrou na idade moderna o símile do automatismo para explicitar a essência do ser humano: tool making animal. Produzimos os nossos corpos como instrumentos de nossa mente e a sociedade como instrumento de nossos alvos, inventamos máquinas de guerra e paz. E nos habituamos a este horizonte, como se as máquinas tivessem sentido em si mesmas.

Com a globalização, percebemos que o sentido performático tende a desaparecer e somos presos do automatismo definido pela grande máquina, a técnica de transmitir informações —esta inclui a Internet mas soma a midia, o cinema, etc.— que nos retira as pretensões de sentido e de liberdade. No campo do aperfeiçoamente corporal, por exemplo, máquinas são oferecidas como substitutas eficazes da ação volitiva, operando de maneira a dispensar os intentos humanos. De modo próximo, o Estado e o mercado não precisam de seres voluntariosos que decidem este ou aquele rumo coletivo. A política econômica e a política ampla são técnicas, nada mais. Estas técnicas determinam automatismos éticos que operam como se fossem instrumentos infalíveis que devem ser obedecidos imperativamente. (14 ) As guerras resultantes são vividas como espetáculos televisivos ou fílmicos, e também na internet, pelos que não as sentem na epiderme, pelo menos nos seus primeiros instantes. O treino para o automatismo conduz às mesmas atitudes dos antigos gregos diante dos outros povos e culturas, vistos como estranhos, perigosos e inferiores. É “natural” que eles sejam exterminados em batalhas “científicas”, com bombas “inteligentes” e mais do eficazes na ação letífera. Mas um traço pouco discutido, neste âmbito, é o nexo entre a vida esportiva, o ensino, a guerra. Vejamos um exemplo.

Em trabalho publicado em 1983, portanto com data superior a vinte anos, E. Pozzi analisa a tendência ao controle maquinal das atividades lúdicas e do esporte, com resultados graves no plano do ensino ético. Refiro-me ao artigo intitulado “Giochi di guerra e tempi di pace”. (15 ) O texto move-se no plano da espacialização do tempo cujos exemplos mais relevantes, no mundo contemporâneo, são os jogos de guerra e o esporte. As duas formas de diversão expõem formas da consciência ética automatizada e prestes a ser movida no interesse do extermínio dos “inferiores”.

Os jogos de guerra surgem com a transformação do Estado em uma grande fábrica de controle político, como enunciou Max Weber. A essência estatal assumiu no século XX uma densidade inaudita na história política da humanidade, com as tentativas totalitárias. No mesmo século, no plano teórico, surge o dilema enunciado por Max Weber.

Se a burocracia mecânica é o destino do mundo e a razão calculadora tomou posse da política e da economia, a política desaparece. O Estado transforma-se num maquinismo planificador que funciona como se fosse máquina, seguindo o paradigma platônico e hobbesiano. O desalento diante deste obstáculo, evidente em Max Weber, foi acolhido pelos seus ouvintes de vários modos. G. Lukács viu na revolução proletária mundial, baseada na vontade das massas, o antídoto para o “poder dos escritórios”. No outro extremo, Carl Schmitt indicou na vontade do chefe o caminho da salvação para o ato político. O caminho do Estado soviético e nazista foi complexo e cheio de desvios, bem mais do que no sonho daqueles teóricos (16 ) A burocracia recrudesceu, mesmo após as aventuras totalitárias e o breve interregno antes da guerra fria, quando foi instituída a ONU.

Desde Platão, como recordei acima, a idéia de que o universo físico e humano constituem instrumentos produzidos com arte e técnica, os quais devem ser dirigidos por sábios competentes, habita as mais importantes teorias políticas. Basta que se pense em Thomas Hobbes. Essa maneira de imaginar os entes políticos e sociais foi recusada de modo peremptório no pensamento conservador do século XIX e início do século XX. O Estado-máquina é um desafio importante : não por acaso Platão o ideou contra a democracia ateniense, lugar onde nasceu a nossa sensibilidade política. Confiantes na eficácia dessa polis dirigida pelos sábios (máquina de viver em comum é a melhor definição da República platônica), contra a instabilidade das assembléias cidadãs, os grandes nomes do pensamento não tiveram dúvidas. O impulso do cálculo e do automatismo que aniquila a política em nome da eficácia atravessou os séculos e se ofereceu para Weber —quando este último caracterizou o Estado e a sociedade burocráticos— na figura da fábrica onde todas as conexões são artificiais e mecânicas. A essência burocrática seria o resultado lógico dos séculos de razão mecânica (17).

A mesma lógica que ajudou a contruir o Estado máquina, com as burocracias civis e militares modernas, gerou no século 17 os jogos de guerra. Eles foram produzidos para ensinar aos jovens cadetes das Academias militares o modo mais certeiro de se mover no espaço em tempo rápido e destruir assim os inimigos. O cálculo e os intrumentos são o essencial, a natureza inteira é pensada como obstáculo ou meio para destruir todas as vontades adversas. A ética da Grécia opera em sua plenitude nos jogos de guerra.

E. Pozzi, depois de expor a origem histórica daqueles jogos, indica algo importante para os que desejam viver em democracias políticas. Os pensamentos liberais clássicos, sobretudo os do século 19, defendem a separação entre mundo civil e universo militar. Ledo engano. A ordem militar reside no coração da sociedade industrial. Não é possível pensar a segunda, sem a primeira. Outra nota relevante de Pozzi: o que servia para a educação do oficial militar, nos séculos 17 e 18, tornou-se no século 20 um fenômeno de massa, a forma emergente do jogo na sociedade ocidental. Em 1983 os dados já eram alarmantes. Entre 1978 e 1983 foram vendidos um milhão, quinhentos e setenta e três, seiscentos e vinte e sete jogos nos EUA, e quase dez milhões foram vendidos a 12 paises ocidentais. Com a Internet e o aperfeiçoamente técnico, os jogos de guerra subiram ao plano de uma visão de mundo guerreira, na qual as crianças e adultos aprendem as artes lógicas e imaginativas do aniquilamento. Longe de ser uma atividade apenas militar, a guerra determina, assim, os pensamentos e corpos de seres humanos aos bilhões. A midia ajuda poderosamente nesta tarefa, bem como a indústria de Holywood cujos filmes exaltam o fato bélico e os heróis que matam de maneira fulminante os pretensos ou reais inimigos da “civilização cristã e ocidental”.

Vejamos a lógica dos war games. Neles, um cenário define o evento que determina o jogo, construído segundo um paradigma hipotético (se ocorre X, então Y deve acontecer). A sua estrutura reúne atores que na realidade movem forças e motivos e regras para o movimento dos atores. Além disso, existe o final, com objetivos primários e secundários e os meios adequados aos objetivos. Depois, temos o mapa, o espaço guerreiro totalmente cartesiano: geométrico e sem vida, absolutamente definível, sem resíduos (ou ruídos de sentido biológico, ético, etc.). Trata-se do espaço condividido com as observações televisivas policiais, onde ocorrem os rastreamentos. Assim, some o espaço vivido com todas as experiências humanas que definem sentidos, livres ou apaixonados. Somem o medo, o pânico, a fuga, a deserção, o heroísmo, o sacrifício. Todos esses fatos perdem sentido, são “apenas interferências irracionais com as quais não se sabe o que fazer. É significativo o status que os jogos de guerra reservam aos civis: nenhum”. (18 )

Como o espaço é apenas geometria, o tempo entra numa sucessão cronológica pura, onde contam os segundos, sendo o tempo uma somatória de átomos temporais, com a marca de serem, no entanto, parceláveis quase ao infinito. O tempo, logo, também abstrai tudo o que é irracional, vivido. Nele não existe a duração porque esta é experimentada biológica, psicológica, éticamente, na indecisão e na reflexão. Sempre que penso neste ponto, recordo-me da época em que prestei o serviço militar. Na ordem unida, o sargento gritava alto para que não houvesse dúvidas: “rápido, ligeiro, para não pensar, para não perder tempo”.

Temos, então, uma atividade educacional planetária que ensina as regras da razão técnica, cujo alvo é a morte de milhões, sem que nela exista sangue, excrementos, dor, paixões, vida. O filme relevante de Stanley Kubrick, Dr. Strangelove, traz a sátira e a crítica desse imaginário que se desenvolveu sobremodo na Guerra Fria, mas que hoje é dirigido para a afirmação de uma potência hegemõnica, acolitada pela maioria dos países ocidentais.

Chego à parte mais interessante, no meu entender, do trabalho publicado por Pozzi, o item “Esporte, guerra e festa degradada”. (19 ). Em primeiro lugar é preciso definir os nexos entre o esporte moderno e a revolução industrial. É comum unir-se o mercado e o esporte moderno. Este último seria a redução dos corpos à forma mercadoria, em consonância com a universalidade racional burguêsa. Mas semelhante tese possui um impecilho: o esporte moderno foi inventado, exaltado e organizado não pela burguesia, mas pelos aristocratas, sobretudo a gentry latifundiária. Para esta última, a chamada landed gentry, o esporte era claramente a forma sublimada da guerra, a modalidade lúdica das virtudes guerreiras.

Retornemos à Grécia. Tanto na Inglaterra, quanto na Alemanha e na Itália dos séculos 19 e 20, consolidou-se o paradigma grego e latino como base das “nacionalidades superiores”. Assim, o ideal de educação física naqueles países une-se ao renascimento grego, com o classicismo, e com ideias de Estado imperialistas. Norbert Elias mostra o quanto a aristocracia européia resistiu no Exército, na Marinha sobretudo, à novas regras liberais e burguesas, com selvageria que muito ajudou na gênese do totalitarismo nazi-fascista. (20) O culto aos esportes era um lado da ética guerreira que apresentava os seus praticantes como “superiores” aos demais e não submetidos às leis vigentes para as pessoas comuns.

Esse movimento de idéias, onde se cultivou a preeminência dos campeões ocidentais dos esportes e da guerra, tem sido estudado, no seu relacionamento com a Grécia antiga e com os ideais guerreiros e de superioridade cultural e política. (21) Também não é por acaso que no mesmo período a tentativa de “apurar” a raça dos “superiores” e exterminar a dos inferiores teve o seu apogeu. (22 )

Pozzi apresenta uma síntese dos valores aristocráticos guerreiros e os mercadológicos burgueses. O belicismo dos aristocratas, por meio do esporte, ajudou a formar a própria Weltanschauung burguêsa colonial ou imperial dos séculos 19 e 20. Cito o autor: “a guerra se coloca no centro da ordem burguêsa, como constitutiva de sua visão de mundo e de construção da realidade (…) A sociedade militar produziu em parte a sociedade industrial, e uma arqueologia do saber militar deve reconstruir este papel decisivo e escondido”.

Pergunto se temos consciência, na sociedade atual e na política que nos é imposta, dos nexos pretéritos entre guerra, esporte, violência etnocêntrica. E também pergunto: temos idéia do quanto as formas de distração esportiva e de educação idem, diminuem as possibilidade performática dos entes humanos (na perspectiva trazida por De Carolis) o que segue a redução da auto-referência em prol dos espetáculos onde, como diz Theodor Adorno, a consciência já é dada como a priori insuperável ? Depois, se nos acautelamos o bastante face aos jogos de guerra, com a sua racionalidade cartesiana, que transforma o ato mais primitivo do ser humano, o de matar, em puro cálculo desapaixonado. Depois, se prestamos atenção suficiente para os elos entre a indústria armamentista e a prática dos jogos aos milhões. E se observamos o esporte que chega às massas pela TV e sua redução do jogo a regras idênticas do mercado e da guerra. Não seria surprêsa, neste ponto, a persistência de torcidas guerreiras, na Inglaterra mas também no Brasil, que chegam ao assassinato e truculências, tendo em vista que o seu único papel ativo, naqueles esportes como o futebol, limita-se à torcida. Deste modo, a essência guerreira presente no esporte é assumida de modo “selvagem”, mas perfeitamente lógico, pelas ditas torcidas organizadas com seus gritos de guerra e bastões idem. E finalmente, como desvincular o esporte e a educação para ele, da guerra? Como ensinar formas pacíficas de luta? Esta não seria uma fórmula que se auto-destrói? Pensar e pesar perguntas assim pode ser incômodo, mas necessário.



Roberto Romano/ Depto de Filosofia/Unicamp.

Notas

(1) H.I. Marrou : “Education and Rhetoric” in The Legacy of Greece (M.I. Finley Ed.), Oxford, 1981, p. 186. Cf. Branham, R.B. Unruly Eloquence. Lucian and the comedy of Traditions. London, Harvard, 1989, p. 87.
(2) Victor Davis Hanson: The Western Way of War. Infantry Battle in Classical Greece. Berkeley, University of California Press, 1989. E do mesmo autor Carnage and Culture. NY, Random House, 2001.
(3) Cf. Branham, op. cit. p. 87.
(4)Cf. Lucian: “Anacharsis, or athletics”, in Loeb Classical Library, Lucian, Volume IV, (Translated by A.M. Harmon, Harvard University Press, 1969.
(5) Cf. Aristóteles, Política (1338 b9). Uso a edição da Loeb Classical Library, Aristotle, Volume 21, (translated by H. Rackham), Harvard University Press, 1990, páginas 646-647.
(6)Integro o número dos que, embora discordando absolutamente de um autor, levam em conta suas análises para a reflexão. Como diz o Concilio Vaticano 2, “a Igreja muito aprendeu com os seus inimigos”. Pessoas que só abrem os livros dos que pensam como elas entram, rápido, para o domínio da crença e da tautologia, repetindo “verdades” evidentes apenas para os ligados à sua grei. No caso de Hanson, apesar de suas atitudes agressivas em defesa do império norte-americano, seus livros trazem informações preciosas para o exame da cultura bélica ocidenta.
(7) Lições sobre a Filosofia da História. Cito na tradução de J. Gaos, Madrid, Revista de Occidente Ed., 1953, T. I, páginas 210-211. Cf. Romano, Roberto : Conservadorismo romântico, origens do totalitarismo (São Paulo, Ed. Unesp, 2a edição, 1997).
(8) Roberto Romano, Conservadorismo romântico, origem do totalitarismo, Ed. citada. , pp. 28-29.
(9) Cf. Edwin Black: A guerra contra os fracos. A eugenia e a campanha norte-americana para criar uma raça superior. Tradução Tuca Magalhães, São Paulo, A Girafa Ed., 2003.
(10) Cf. Roberto Romano: “A igualdade, considerações críticas”, in Revista Brasileira de Direito Constitucional, número 2, Julho/Dezembro 2003, pp. 30-49. E no Foglio Spinoziano.
(11) Cf. Massimo de Carolis, La vita nell´epoca della sua riproducibilità tecnica. Torino, Bollati Boringhieri, 2004.
(12) Todos esses aspectos do trabalho produzido por De Carolis são discutidos por Fabio Lelli, no site especializado Swif, do Laboratório de Epistemologia, Informática e Ciências Filosóficas da Universidade de Bari. Remeto toda a seguência dessas minhas considerações para a crítica de Lelli no número 4/5, ano VI, dezembro de 2003 a janeiro de 2005, do site oficial mencionado, cujo título é Sito Web Italiano per la Filosofia.
(13) Existem outras concepções do elemento técnico, como as avançadas por Andre-Leroi Gourhan, Elias Canetti, e outros analistas da vida humana em sociedade. Discuto estes autores em artigos espalhados nos livros que publiquei. Cf. entre outros, Roberto Romano: “Ciência e tecnologia no Brasil, questões de Estado” in O desafio do Islã e outros desafios. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2004, páginas 245-266. E também Roberto Romano: “soberania, segredo, Estado democrático” in Política Externa, Vol.13 número 1, Julho/Agosto 2004, pp. 15-28.
(14) Esta problemática da política e da cultura enquanto técnicas, a crítica que semelhante concepção no século 20, conduziu, tanto na “esquerda” mundial, quanto na “direita” a situações trágicas e genocidas. Cf. o excelente texto de John P. McCormick : Carl Schmitt's Critique of Liberalism Against Politics as Technology. Cambridge University Press,1999
(15) Publicado pela revista La critica sociologica. Numero 67, outono de 1983, nas páginas 42-55.
(16) McCormick, op. cit. Cf. também Roberto Romano, “Reflexões sobre impostos e Raison d´État” in Revista de Economia Mackenzie, Ano 2, número 2, 2004, pp. 75-96.
(17) “Do ponto de vista da sociologia, o Estado moderno é uma ‘empresa’ com o mesmo título de uma fábrica. Nisto consiste precisamente seu traço histórico específico. E também deste modo se acha condicionada de maneira homogênea a relação do mando (Herrschafttsverhältnis) no interior da empresa”. Cf. Wirtschaft und Gesellschaft. Fünfte Revidiert Auflage (1972, p. 825). A separação (Trennung) entre os meios de administração e o seu operador, tanto na empresa quanto no Estado, define a burocracia que opera sine ira et studio, maquinal e hierarquicamente. No Estado, o maquinismo segue a lógica do cálculo, sem que a sua marcha possa receber modificações políticas. É desse desencanto que Weber partilha e legou aos seus herdeiros de “esquerda” ou “direita”, como Lukács ou Schmitt. Este último, com enorme importância em autores estratégicos do chamado “neo” liberalismo, como F. Hayeck.
(18) E. Pozzi, op. cit. p. 47.
(19) Op.cit. p. 53 e seguintes.
(20) Elias, Norbert e Dunning, Eric. Quest for Excitement: Sport and Leisure in the Civilizing Process. Oxford, Basil Blackwell, 1986. Elias, Norbert: Os alemães. A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. RJ, Zahar Ed., 1996.
(21) Cf. Luciano Canfora: Ideologie del Classicismo. Torino, Einaudi, 1980, um clássico no tema.
(22) Cf. o livro de Edwin Black, citado acima.

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Considerações sobre o Projeto de Lei que procura aprimorar o combate à Corrupção no Brasil. Câmara dos Deputados-Brasilia 23/08/2016


Prof. Roberto Romano da Silva Unicamp.

Considerações sobre o Projeto de Lei que procura aprimorar o combate à Corrupção no Brasil.
Câmara dos Deputados-Brasilia

23/08/2016

Agradeço o convite para me dirigir a representantes do povo brasileiro. Deixarei de tocar nos ítens com os quais concordo e outros, onde me falta competência. Não me deterei nas penas e dosimetria propostas. Juristas podem analisar com apuro tais elementos. O projeto, se elevado à norma, trará benefícios à sociedade, ao Estado e à política, neles escoimando desvios. O texto é bem ordenado e oportuno. A justificativa, no meu entender modesto, traz problemas que merecem atenção. Peço sua paciência para os pontos que enumero, pois eles brotam de um apelo à prudência.

“O poder corrompe. O absoluto corrompe absolutamente”. O enunciado de Lord Acton serve hoje como clichê. Se o contextualizamos no entanto, sua tese ajuda a refletir sobre a presente crise mundial de Estados e nações. Em carta ao bispo Creighton, Acton discute a responsabilidade de quem dirige os poderes. Suas frases sobre o mando corrosivo se complementam do seguinte modo: “O poder absoluto desmoraliza”. O bispo Creighton dizia ser preciso evitar a corrupção. É a atitude comum em coletivos prejudicados por malfeitores públicos. Leis seriam ideadas para prevenir costumes imorais. “Eu não me preocupo”, replica Acton, “em evitar a corrupção, mas em saber como ela surge”. Muitos analistas se limitam à atitude de Creighton, poucos seguem o malefício até sua gênese.

Infelizmente, noto no projeto de lei traços do bispo Creigthon e não os de Acton. E nele percebo notas que podem levar, não ao reforço da ética pública, mas à desmoralização. A paciência que solicito dos senhores é necessária porque devemos passar pelas nossas origens quando se trata do regime democrático. A maioria dos atuais conceitos políticos vem da Grécia clássica, e dela também nos chegam defeitos a serem vistos com prudência.

A isonomia, o princípio da responsabilização nos cargos públicos, a accountability e outros aspectos democraticos surgem na Grécia e foram redescobertos na Renascença a partir do século 15. Todo país moderno usou os textos históricos, jurídicos, filosóficos gregos para inventar o Leviatã, o Estado soberano que a todos obriga a seguir as leis. A accountability, lema da revolução puritana inglêsa, base essencial nos Estados Unidos, na França, e outras terras livres, retoma as lições de Platão na República e nas Leis. Montesquieu, suposto idealizador da harmonia entre forças estatais, extrai a tese e muitas outras das Leis platônicas. Em artigos, livros e trabalhos acadêmicos, insisto no ponto. Até aí, o lado positivo da nossa herança grega.

Passo aos ângulos negativos. A democracia ateniense caiu por vários motivos. Decisivo foi o desmedido poder imperial que ela se arrogou e teve o ápice na guerra do Peloponeso. SegundoTucídides, a ambição corrupta do povo ateniense levou às aventuras imperiais que destruíram a hegemonia de Atenas e o regime democrático. A cidadania, desde que os oligarcas perderam o controle financeiro e político, teve com Solon restituida a sua pequena propriedade, condição para entrar no gozo dos direitos cívicos. Os cidadãos de média e pequena posse, para cumprir a liturgia dos cargos públicos, deixam o interior do país e se mudam para a capital. Dalí, não cuidam mais das colheitas, o que os faz carentes de recursos próprios. Cleon, o campeão democrático, aumenta os subsídios para que eles exerçam seus cargos. Exemplo: alguns óbulos eram pagos pela presença nos julgamentos com centenas de juízes. Como garantir a constância de tais honorários? Apontando cidadãos como culpados de vários crimes, o que inflaciona o número de processos e consequentes dinheiros aos que participam do tribunal.

Os críticos do regime, sobretudo Aristóphanes e Platão, mostram que tais práticas levam à corrupção e desmoralizavam a democracia. Aristófanes, na peça As Vespas, denuncia a prática de manter os cidadãos às custas dos cofres públicos. Como vespas, os juízes populares picam uns aos outros e aos cidadãos comuns, produzem inchaço no coletivo. Eles adoecem o corpo político. É preciso inventar processos, culpados, sentenças, para garantir o óbulo dos que integram o tribunal. Algo similar ocorre na Ekklesia, a assembléia do povo, ancestral da nossa Câmara dos Deputados. O pagamento de cidadãos privados para cumprir ofícios públicos inverte a ordem do poder, anuncia os seus limites éticos e administrativos. Platão se refere à cidade inchada de humores por culpa da incessante luta de todos contra todos na disputa pelo controle das finanças públicas. Hobbes brota, ao mesmo tempo de Platão e de Tucídides, pois o tema da guerra de todos contra todos pertence ao campo essencial daqueles pensadores. Assim, quanto mais processos, quanto mais culpados, mais o sistema de justiça democrático segue para a ruína.

Uma técnica para obter réus para os tribunais era o uso de sicofantas. Segundo um historiador da Grécia democrática, o recurso aos delatores ocorre sobretudo nos séculos 4 e 5 AC. As práticas ligadas a eles, segundo o autor, mostram similaridade com o sistema da chantagem (black mail) nos sistemas democráticos modernos. Italo Calvino indica a Itália como sociedade onde todos se aproveitam do dinheiro público e depois criam uma ética interior e pessoal para justificar a corrupção generalizada. Ou seja, da cidadania comum aos políticos, poucos escapam do usufruto que empobrece os cofres públicos. A democracia parece sustentar-se em atos ilegítimos, proibidos pelos seus próprios princípios, como o da accountability. Norberto Bobbio tem lúcidas páginas sobre o comércio político a que se reduz boa parte dos Estados contemporâneos. ([1])

A sociedade troca favores e presentes com os magistrados, políticos, ministros. Tal mercadejo na Grécia clássica se chama doro, presente. A tradução portuguesa é suborno. O poeta Hesíodo chama o rei corrupto de δωροφάγους, comedor de presentes (Trabalhos e os Dias, 38-40). Platão intitula os funcionários corrompidos como “tomadores de presentes e amantes do dinheiro”(República, 390d). E cita a frase poética: “Os presentes movem deuses / presentes persuadem péssimos reis”.

Se o poder é movido pelos favores e a base democrática é o não favor, mas a isonomia, como combater subornos? Recordemos que os próprios cidadãos na democrática Atenas sobrevivem com os presentes da polis que os sustenta nos cargos. Como vencer a corrupção e a troca de presentes? Caçando corruptos e aliciadores de benesses e, se necessário, inventando culpados ou atribuindo culpas a inocentes. ([2]) O instrumento para tal fim era o sicofanta. A palavra, desde tempos remotos, significa a pessoa que acusa falsamente.([3]) Lysias, político e pensador da época, explica o sicofanta. A sua prática, diz ele, “é acusar, mesmo contra os que nada fizeram de errado, porque destes últimos eles arrancam mais lucro”. Sicofantas ajudam a combater a corrupção, mas eles próprios são corruptos, entre outras coisas pela prática da chantagem. ([4])

Dada a experiência histórica, não só da Grécia mas de múltiplos regimes democráticos e autoritários modernos, tenho dúvidas de ordem ética sobre o Art. 38 do projeto. “O terceiro que, não sendo réu na ação penal correlata, espontaneamente prestar informações de maneira eficaz ou contribuir para a obtenção de provas para a ação de que trata esta lei, ou, ainda, colaborar para a localização dos bens, fará jus à retribuição de até cinco por cento do produto obtido com a liquidação desses bens. Parágrafo único. A retribuição de que trata este artigo será fixada na sentença”. Foi refletido, na redação do artigo, o passivo moral que a prática instaura ou reitera? Não estaríamos retomando a lide das vespas atenienses e dos sicofantas? A definição de Lisias é forte e tenho dúvidas sobre se ela não se aplicaria à sociedade brasileira. Diz ele, repito, que os inocentes chantageados dão mais lucros aos sicofantas, do que os verdadeiramente corruptos. É contra a fé pública mover profissionais da delação paga.

O segundo ponto que preocupa no projeto é o teste de integridade, no artigo 48. O Estado democrático moderno, apesar de preso nas malhas da burocracia com o seu segredo do cargo inexorável, busca romper com a raison d’État e o sigilo. A transparência deve comandar os poderes e os meios administrativos. Estados onde imperaram a exceção, afastada a transparência, mantiveram o sigilo e o ampliaram em detrimento da liberdade cidadã. Se o legislativo, o executivo, a justiça devem prestar contas de seus atos aos cidadãos, como instaurar um modo de percepção da provável desonestidade de funcionários com base no segredo? “Artigo 50: Os testes de integridade consistirão na simulação de situações sem o conhecimento do agente público, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para cometer ilícitos contra a Administração Pública”. Poderes secretos seriam atribuídos a Corregedorias, Controladorias, Ouvidorias ou órgãos congêneres de fiscalização e controle. Tais organismos devem dar ciência, de modo sigiloso, ao Ministério Público, para que este recomende medidas complementares. E ainda mais segredo: Artigo 55: A administração Pública não poderá revelar o resultado da execução dos testes de integridade, nem fazer menção aos agentes públicos testados. A frase “respeitado o direito à intimidade” surge como algo estranho no contexto.

Deixando de lado a eficácia do teste, algo muito discutido pela literatura especializada, ([5]) insisto no segredo e na sua manipulação. Os organismos movidos para aplicar os testes estão acima de qualquer inspeção no ato mesmo em que o efetivam? E o termo “simulação” no projeto? Um mestre político, jurídico e científico é Francis Bacon. No ensaio sobre “Simulação e Dissimulação” ele indica a essência da palavra e da coisa: “A simulação é profissão falsa e a mais culpável e menos política, exceto em matérias eminentes e raras. E um costume generalizado de simulação (em seu último grau) é vício”. O principal erro dos atos simulados, termina Bacon, é que eles privam “a pessoa de um instrumento principal de ação: a confiança e a crença”.

Uma técnica ética e moral estabelecida por Kant, para testar a prática baseada em máximas, é perguntar se elas podem ser universalizadas, omnia et singula. Caso contrário, ela não é moral. Os procedimentos do teste de integridade podem ser universalizados para toda a cidadania e todos os que, nos poderes, exercem cargos? Por exemplo, na Justiça ? A resposta é negativa. Volto a Platão: nas Leis ele instaura pela primeira vez na história jurídica e política a tese dos checks and balances, depois herdada por Montesquieu. Abusos de um poder devem ser controlados pelos outros, coletivamente dispostos. No teste de integridade o indivíduo está solitário, sem apoio de seus representantes como os sindicatos e associações, diante de um poder invisível que só responde a posteriori, mas deve silenciar o nome e as condições do interrogado. Perdoem, mas estamos no domínio do Processo, escrito por um autor que denunciou o abuso do segredo.

Finalmente, passo à boa fé que, diz Bacon, desaparece com práticas de simulação e dissimulação no poder e na sociedade. Noto um ponto : os partidos políticos poderão ser punidos pelo uso de recursos ilícitos. Existe, no entanto, quem julgue encontrar nas suas direções boa fé na admissão daquelas finanças (Cf. Editorial de O Estado de São Paulo, “Quando só a boa-fé não basta”, 19/08/2016, p. A3). É árduo separar o tesoureiro ou integrante de um partido e a totalidade da agremiação. Mas seria de todo relevante, no caso, provar a conivência do todo partidário em casos específicos. Algo similar ocorre na coleta de provas não assistidas pela ordem legal, mas realizadas em boa fé pelos investigadores e/ou acusadores.

Importa refletir um pouco sobre o significado da locução “boa fé”que herdamos do latim bona fide. O exemplo que vem à lembrança é o do autor da mais profunda ética ocidental, Bento de Spinoza. No Tratado Teológico-político, ao elogiar a cidade de Amsterdã ele exalta o quanto a liberdade é fundamental para a sua vida pública. Naquela urbe, diz ele, “pessoas de todas as nações e seitas vivem em concórdia e se preocupam apenas, para dar crédito a alguém, rico ou pobre, se ele costuma agir como pessoa de boa fé ou dolosamente”(num bona fide, an dolo solitus sit agere”. (TTP, capítulo XX). Spinoza distingue os sentidos da fé e da boa fé. Do religioso ao político, ele segue a ligação entre fé e obras: “a fidelidade no Estado como a fidelidade para com Deus só é conhecida pelas obras”. Spinoza parte do conceito jurídico vigente na época, a idéia de bona fides cujo significado é confiança, crédito. ([6])

Como a maioria de nossos conceitos jurídicos, o lema da boa fé vem da Grécia e de Roma. Em Atenas o termo original para tal situação é πίστις. ([7]) Já a Fides designa confiança recíproca entre contratantes e aparece nos mais antigos textos conhecidos. ([8]) Em Cicero, a boa fé se define “como o fundamento da justiça. Ela é a verdade e a constância nas promessas e acordos. E devemos seguir os estoicos, que diligentemente investigam a etimologia das palavras. E devemos aceitar seu argumento de que a ‘boa fé’ é assim chamada porque promete ‘fazer o bem’ embora alguns possam achar que esta derivação é um erro”. ([9])

É preciso notar que o termo “boa fé” não é unívoco e sem ambiguidades. Como enunciam trabalhos jurídicos –antigos e recentes–, trata-se de uma noção vaga. Tal fato não impede que ela tenha acolhimento em vários setores do direito. Mas não há consenso algum “sobre a exata natureza legal da boa fé. Esta imprecisão terminológica afeta inevitavelmente a função preenchida pela boa fé no direito contemporâneo”. E no entanto, “parece que um bom número de sistemas considera que a boa fé se aplica às leis que tratam das obrigações em geral, e não apenas às leis do contrato”. ([10])

No comercio e na política pode-se falar com maior propriedade de boa fé, porque existe algo que vai além dos que fazem o acordo: a mercadoria, o dinheiro, o poder estatal que efetiva obras em proveito dos governados. Quando o ato é unilateral e não beneficia como no contrato a outra parte de modo evidente, com dificuldade podemos separar o conceito de boa fé do seu aspecto subjetivo.([11]) Ele reside no íntimo do indivíduo que age, não é fenomênico para usar a linguagem kantiana, mas apenas noumênico, se limita à consciência do agente. Mas consciência não se revela sem equívocos no mundo visível. Aliás, neste ponto Rousseau, emulado por Kant, é mais claro: “Toda a moralidade de nossos atos está no juízo que trazemos em nós mesmos. Se é verdade que o bem seja bem, ele deve estar no fundo de nossos corações como em nossas obras e o primeiro prêmio da justiça é sentir que a praticamos”. ([12]) Para que a consciência própria seja reconhecível no e pelo coletivo é preciso indicar as obras resultantes. E tais obras, na investigação criminal, não podem negar a lei positiva. A sequência que vai dos quid facti ao quid iuris deve ser estabelecida sem quebras subjetivas. Não é preciso seguir Hans Kelsen para notar as dificuldades de uma visão subjetiva que, ampliada, pode se tornar equívoca e arbitrária. ([13])

Pergunto se a noção de bona fides, no projeto, não deveria ser mudada por uma outra, a de equidade, a epieikeia formulada por Aristóteles, o corretivo para as leis positivas que regem a sociedade e o Estado. ([14]) Em certos casos a lei comum não consegue ser obedecida in totum, os casos precisam ser considerados como exceção à regra geral. É preciso retificar a lei devido à sua generalidade. A epieikeia reside na retificação prudente da lei geral. Ela não nega a lei geral, mas a corrige quando é preciso aplicá-la a casos particulares anômalos. ([15]) Mas aí temos outro problema: se o conceito de epieikeia vale para o acusador, ele também pode ser movido pela defesa, pois a justiça e a equidade o exigem. A bona fides deveria ser atribuída aos que investigam e acusam e aos acusados, por exemplo os partidos políticos.

Tais pontos são trazidos por mim não para obstaculizar o trabalho que levou ao atual projeto, subscrito por dois milhões de compatriotas e apresentado pelo Ministério Público, ao qual me alio desde longa data. São observações de prudência ética, para que conceitos problemáticos não sejam tomados como imperativos, o que pode suscitar, em médio ou longo prazo, autoritarismos oriundos da luta contra a corrupção. A experiência jacobina nos alerta contra o excesso no combate à corrupção: a guilhotina não é um instrumento idôneo para atenuar o fato corrupto. ([16]) Este é a coisa mais amplamente partilhada pelos seres humanos. Lutar para que a corrupção se atenue é dever ético. Sem autoritarismos, no entanto, porque regimes autoritários que alegadamente foram impostos para lutar contra a corrupção, produziram apenas corrupção sigilosa, a exemplo do que ocorreu em nossa terra nas ditaduras do século 20.

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[1] “No mercado político democrático o poder se conquista com votos, um dos modos de conquistar votos é
comprá-los e um dos modos para se livrar das despesas é servir-se do poder conquistado para conseguir benefícios mesmo pecuniários daqueles que possam receber vantagens daquele poder (…) Considerada a arena política como uma forma de mercado, onde tudo é mercadoria, ou coisa comprável e vendível, o político se apresenta num momento como comprador (do voto), num segundo momento como vendedor (dos recursos públicos dos quais, graças aos votos se tornou potencial dispensador)”. “Quale il Rimedio?” In L’Utopia Capovolta (Torino,La Stampa, 1990), p. 32 e ss
[2] MacDowell, Douglas M. The Law in Classical Athens (Ithaca/NY, Cornell University Press, 1978), p. 34.

[3] Matthew R. Christ, The Litigious Athenian (Baltimore:  The Johns Hopkins University Press, 1998).


[4] “Sicofanta era o homem que fazia processos sem justificação, seja porque ele tinha esperança de pegar um réu inocente e dele obter a paga devida a um promotor bem sucedido, ou porque ele tinha a esperança chantagear o réu ao idnuzi-lo a pagar proprina para fazer o processo terminar”. Douglas M. MaDowell, op. cit. p. 62. Todo o capítulo de MacDowell sobre o sicofanta é muito ilustrativo dos perigos por ele trazidos. Não tenho tempo para analisar todo o ponto aqui, remeto ao estudo de Donato Loscalzo, “Doro Fig-Sandaled’ (Cratin.Fr. 70 Kassel-Austin and Aristoph. Eq. 529) and other aspects of comic Sycophantia”, in Classical Association of South Africa, Acta Classica Supplementum IV, Corruption and Integrity in Ancient Greece and Rome, Classical Association of South Africa. 2-12.

[5] Wiley, C. e Rudley, D. L. : “Managerial issues and responsabilities in the use of integrity tests”. In Labor Law Journal (1991); Coyne I., e Bartram, D. “Assessing the effectiveness of integrity tests, a review”. In International Journal of Testing.  in https://www.researchgate.net/publication/247502634_Assessing_the_Effectiveness_of_Integrity_Tests_A_Review também Lisa L. Harlow, Stanley A. Mulaik, James H. Steiger: What If There Were No Significance Tests? Mahwah, NJ, Lawrence Erlbaum Associates, 1997. Também: Harold M. Hyman, To Try Men’s Souls: Loyalty Tests in American History, (Berkeley, CA, University of California Press, 1959) .



[6] Carlo Guinzburg : “Tolérance et Commerce. Auerbach lit Voltaire”in Tortonese , Paolo (Ed.) : Erich Auerbach la líttérature en perspective, (Paris, Presses Sorbonne Nouvelle, 2009), p. 119-120.
[7] Cf. J. Hellegouarch’h : Le vocabulaire latin des relations et des partis politiques sous la république (Paris, Les Belles Lettres, 1972), p. 25. Em Platão o termo pode significar fé ou crença que resulta da retórica (persuasio ou Glaube). No Lexicon Platonicum, sive vocum platonicarum INDEX, (Lipsae, Libraria Weidmanniana, 1838) ,V. III, p.106, ele designa a fidei, a fiducia. É bom recordar que nos manuais de retórica forense gregos, no momento clássico, “pistis” era uma das partes do discurso do logógrafo, o avô dos nossos advogados. A defesa contava com o prooimion (introdução), a diegésis (narrativa), a pistis (provas), epílogos (conclusão). Cf. Lanni, Adriaan: Law and Justice in the Courts of Classical Athens (Cambridge, University Press, 2006) p. 45. Se fôssemos estritamente platônicos, teríamos bastante relutância em aceitar o termo “boa fé” em campos do agir e do pensar. O filósofo coloca aquela posição como a penúltima na escala do saber, apenas superior à eikasia (conjectura). Acima dela situam-se a dianóia (raciocínio) e finalmente a noesis ou epistême (conhecimento). República, 511e a 511d.
[8] Hellegouarch’h, op. cit. p. 27.
[9] “Fundamentum autem est iustitiae fides, id est dictorum conventorumque constantia et veritas. Ex quo, quamquam hoc videbitur fortasse cuipiam durius, tamen audeamus imitari Stoicos, qui studiose exquirunt, unde verba sint ducta, credamusque, quia fiat, quod dictum est, appellatam fidem”. M. Tullius Cicero. De Officiis. With An English Translation. Walter Miller. (Cambridge. Harvard University Press) 1913 in Perseus Project, http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A2007.01.0047%3Abook%3D1%3Asection%3D23

[10] “Good Faith” in Principes Contractuels Communs, projet de Cadre Commun de Référence, v. 7, cap. 5. Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française, Société de Législation Comparée, dirigée para Bénédicte Fauvarque-Cosson. http://www.legiscompare.fr/web/IMG/pdf/0-Couvertures_4_de_couv_vol_7.pdf

[11] Cf. Chris Coope : “The doctor of philosophy will see you now”, in Anthony O’Hear (Ed.) : Conceptions of Philosophy. (Cambridge, University Press, 2009).

  1. 212.
[12] Jean Paul Sartre foi um dos pensadores modernos que mais percebeu a complexa relação entre boa fé e má fé, ambas enquistadas na consciência e diante do mundo opaco . A boa fé, diz ele em O Ser e o Nada, “busca fugir da desagregação íntima de meu ser rumo ao em si que ela deveria ser e não é”. A má fé, “busca fugir do em si na sua desagregação íntima de meu ser”. Em seu movimento comum, “a má fé reassume a boa fé e desliza rumo à origem mesma de meu projeto”. Ou seja, a boa fé traz a má fé no seu ventre, como diz Sebastião Trogo: “Má fé e conversão, dois pilares da antropologia sartreana”Revista Síntese, número 37, 1986, pp. 51-59.
[13] Não apenas no positivismo jurídico, mas em pensadores como Hegel a presença e a obediência da lei estabelecida é conditio sin qua non para deixar o arbítrio. “Sem o direito, a fraude e o crime são juízos. Julgar, para Hegel, é um ato especulativo, não de reflexão, mas um agir para o sujeito para quem dizer é fazer, fazer é dizer, o ato do corpo e da alma. Calar pode ser um juízo, bem como ‘julgar com os pés’ indo embora. Posso negar que o direito seja respeitado, quero então fazer reconhecer o não respeito do direito pelo direito, que então quero respeitar : o juízo é então, no essencial, uma ato de palavra do gênero : ‘não estou de acordo’ ou ‘não é conforme à lei’ ou ainda ‘a lei me dá razão’. Na fraude, o direito também é reconhecido, mas a minha ação consiste em fazer passar a aparência pela essência, afirmo que é conforme ao direito fazer tal coisa ao fazer a coisa, mas sei muito bem que não é verdade e a ação que compreende um dizer faz aparecer meu intento mentiroso. O exterior é desmentido pelo interior, minha hipocrisia abre minha subjetividade”. Hervé Touboul, “Le crime et le sujet dans la philosophie du droit de Hegel” in Philosophique, Annales littéraires de l ‘Université de Franche-Comté, 15, 2012, pp. 25-44. http://philosophique.revues.org/542

[14] Os autores dos Principes Contractuels Communs, projet de Cadre Commun de Référence, citados acima, chega à conclusão próxima à que adianto, ao indicar o conceito de “fairness” : “Contractual fairness is protected by a reliance on notions which are different from, and to a certain extent, more precise than, the notion of good faith”.
[15] Anton-Hermann Chroust, Aristotle’s Conception of Equity (Epieikeia), 18, Notre Dame Law. Rev.119 (1942).Available at:http://scholarship.law.nd.edu/nd lr/vol18/iss2/3


[16] Durante o governo jacobino, dirigido por um líder cujo apelido era “O Incorruptível”, existiu o uso da coisa pública para fins partidários e pessoais, crimes praticados por grupos que afirmavam defender a moral política. Cf. Michel Benoit 1793 La République de la tentation : Une affaire de corruption sous la Ière République (Paris, Ed. de l’Armançon, 2008). “Ninguém pode garantir que um partido, governo ou mesmo Estado (para não falar no coletivo religioso) seja hegemonicamente honesto ou desonesto. A pesquisa e análise exigem rigor epistemológico e prudência moral”, Roberto Romano, Entrevista MPD Dialógico, http://mpd.org.br/a-mpd-dialogico-roberto-romano-afirma-que-brasil-beira-caminho-sem-volta/