Flores

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quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Sobre poesia, política e poder. Algumas reflexões importunas. Roberto Romano. Texto sem as notas de referência. Em cada uma delas, o espaço vazio indica o autor ausente. O escrito é preparatório à uma palestra feita no Instituto de Artes da Unicamp milênios atrás. RR




A poesia contemporânea tateia o silêncio numa espécie de paranóia da palavra escrita, desconfiança renovada em indefinidos modos desde Platão. Sabemos bem a crítica do faraó Thamus ao deus Teuth, o fabricante das letras. Sócrates,  no Fedro () recorda que em tempos pretéritos muitos sábios escreveram sobre a retórica, incluindo a sábia Safo. No entender de Sócrates um de seus interlocutores, Lisias, escreve em demasia, sendo preciso aprender a julgar os textos para não lhes dar uma consideração maior do que a merecida por eles.   Os estadistas, pessoas prudentes, não costumam escrever e deixar falas escritas, pois elas poderiam ser examinadas com muito rigor pelos pósteros. Se escrevem, tentam ser exímios na arte das letras. É assim que Sócrates enquadra o invento chamado escrita. Esta seria ideada pelo deus Teuth, que por sua vez a comunicara ao faraó Thamus, soberano de Tebas. O rei não se entusiasma com o feito e diz temer que a escrita, em vez de tornar as pessoas mais sábias as prejudique, fazendo-as crer que sabem o que enxergam nas letras. E temos o mais conhecido símile entre artes e texto, um lugar comum da Grécia clássica, entre o significado das palavras redigidas e copiadas e as artes: "Os produtos da escrita são como os da pintura. Interroguem os quadros; eles responderão por um majestoso silêncio. Interroguem os livros; eles sempre darão a mesma resposta. Vocês podem acreditar, ao escutá-los, que eles são muito sábios. Mas, uma vez escrito, um discurso gira por todos os lados, mas nãos dos que o compreendem como daqueles para os quais eles não foram escritos. Ele nem sabe a quem deve falar, ou com quem deve se calar. Desprezado ou atacado injustamente, ele sempre precisa de um pai que o socorra; pois ele não resiste nem ajuda a si mesmo". O poeta, o prosador, todos corrigem o que escrevem. Mas todos eles precisam da palavra interior, e devem cultivá-la com enorme atenção, para merecer o nome de filósofo, o amante da sabedoria.

Saltemos os milênios que nos separam de Sócrates e consultemos Camille Mauclair, o amigo de Mallarmé: "O credo do artista moderno, é o silêncio". Também Octavio Paz : "a atividade poética nasce do desespero diante da impotência da palavra e culmina no reconhecimento da onipotência do silêncio". O mundo moderno, ainda segundo Paz, é presa do "discurso do afásico". Com o esfacelamento da teologia e do sistema newtoniano do universo, a escrita que deles falava também se desintegra, sendo que hoje a função profissional do escritor é a de ser "jardineiro de epitáfios".

Esses testemunhos foram recolhidos por Diana C. Niebylski, num bonito livro (se é possível, com tais confissões, escrever e publicar...) intitulado O poema no fio da palavra: os limites da linguagem e o uso do silêncio na poesia de Mallarmé, Rilke e Vallejo. () Na verdade, tal desagregação da escrita própria à racionalidade mecânica rumo ao silêncio teve forte impulso no romantismo e, mesmo, das Luzes no século 18. ()

Ao se referir à superstições verbais (o desejo de manter o próprio nome em segredo, por exemplo), autores que publicaram nos inícios do século 20 afirmam que o mesmo século "sofre de uma forma ainda mais penosa do que qualquer época anterior" naquele ponto. "Devido ao desenvolvimento dos métodos de comunicação e à criação de muitos sistemas simbólicos especiais, a forma da enfermidade se alterou consideravelmente; e, além da peculiar sobrevivência da apologética religiosa, toma agora formas ainda mais insidiosas que no passado. As influências que favorecem sua ampla difusão são a tediosa complexidade do aparato simbólico a nós disponível hoje; a posse, entre os jornalistas e letrados, de um imenso vocabulário semi-técnico, e sua falta de oportunidade, ou de vontade, de buscar o seu uso adequado; o exito de pensadores analíticos em campos limítrofes aos das matemáticas, tornando ainda mais pronunciado o divórcio entre símbolo e realidade e mais atrativa a tendência à hipóstase ; a extensão de um conhecimento das formas mais toscas da convenção simbólica (os três R inglêses, ler, escrever, aritmética) combinado com um alargamento do abismo entre o público e o pensamento científico de sua época; e finalmente, a exploração, com fins políticos e comerciais, da imprensa, mediante a disseminação e reiteração dos clichés". ()


Com esse comentário, somos conduzidos a outro limite da escrita, da fala e do silêncio, o equívoco. A filosofia, desde seus primórdios, tenta arrancar o equívoco da linguagem comum e dos enunciados científicos. No "Plano de Universidade para o governo da Rússia", Diderot imagina a geometria como "a melhor e a mais simples de todas as lógicas, a mais própria para fornecer inflexibilidade ao juízo e à razão". Os mal-entendidos da linguagem seriam reparados pelas matemáticas: "se nossos dicionários fossem tão bem feitos ou, o que é o mesmo, se as palavras usuais fossem tão bem definidas quanto as palavras 'ângulos' e 'quadrados', sobrariam poucos erros e disputas entre os homens. É a este ponto de perfeição que todo trabalho sobre a língua deve tender”. O pensador logo percebeu que o seu alvo, como o de Platão, Aristóteles, bem como dos filósofos medievais e modernos, era inatingível. Mas a tarefa de sanar a lingua escrita e falada continua hoje, em setores como a filosofia e a lógica determinadas por escritores como Carnap, Quine, Wittgenstein e outros. Ainda agora no entanto, em especial no plano da ética e da política, segue válida a advertência diderotiana : "é do idioma de um povo que precisamos nos ocupar, quando queremos dele fazer um povo justo, razoável, sensato. Isto é tão importante que, se o senhor refletir um momento sobre a rapidez incompreensível da conversa, o senhor conceberá que os homens não profeririam vinte frases num dia, se eles se impusessem a necessidade de ver distintamente em cada palavra por eles dita qual é a idéia ou a coleção de idéias que a ela se apegam". ()


Em Ser e Tempo (§ 37) Heidegger analisa a fala equivocada (Die Zweideutigkeit) não apenas entre cientistas e público, mas na própria "comunidade acadêmica". O saber, na era de sua divulgação máxima, tornou-se dificilmente distinto das suas várias expressões vulgares. Com a imprensa "tudo assume a aparência de ter sido o verdadeiro captado, colhido, expresso, mas no fundo, nada o foi". Num mundo onde a informação se acelera ao máximo, a parolagem dogmática de intelectuais e jornalistas é a norma : "Cada um, não apenas conhece e discute o que se passou e o que está vindo, mas cada um sabe também falar sobre o que deveria ocorrer, sobre o que ainda não ocorreu, mas deveria 'evidentemente' ser feito. Cada um sempre farejou e pressentiu de antemão o que os demais farejaram e pressentiram. Este modo de seguir pelos traços e pelo ouvir-dizer ... é insidioso o bastante para que o equívoco faça entrever ao existente possibilidades que, ao mesmo tempo, ele abafa no germe". Na sociedade da informação os termos científicos e acadêmicos circulam de modo imediato. ()

Heidegger, como boa parte dos nossos filósofos contemporâneos, se nutre de Platão e dos seguidores de Platão, embora faça parecer que os combate. Citarei apenas dois textos, dos mais influentes na formação da ética ocidental, do helenismo aos nossos dias. São dois tratados complementares de Plutarco, um sobre a fala em excesso e imprudente e outro sobre a curiosidade. No primeiro () o médico e filósofo Plutarco propõe alguns remédios para a cura do equívoc e da garrulice. Trata-se de uma tarefa quase impossível, pois o tratamento supõe o uso do remédio (pharmakon) que, no adoecido de palavrório, perdeu validade. De fato, o que fala em demasia gastou o poder do logos. Para retirá-lo de sua doença é essencial o uso do mesmo logos. Como fazê-lo ouvir a razão (na lingua grega, logos e razão identificam-se) se ele apenas fala e não ouve e, portanto, não arrazoa antes de jogar palavras ao vento ? Tal é o primeiro sintoma, diz Plutarco, do nosso adoecido : “a lingua mole torna-se impotência do ouvido”. Mas é pior: a surdez do falador é deliberada, o que o faz criticar a natureza que lhe deu apenas uma lingua e dois ouvidos. () Na parolagem sem freios a cura é árdua. O remédio a ser usado, neste caso, é o próprio veneno: trata-se do logos, ele mesmo doente. Se as demais insanidades podem ser curadas pela palavra ou podem ser entendidas (), neste caso a situação é “embaraçosa”, como traduz Amyot, ao ler o paradoxo inicial do texto plutarquiano. O logos adoecido, fluxo instável, não tem solidez alguma. No acometido de logorréia ele é menos remédio e mais veneno. Naquelas pessoas só a boca opera, enquanto o ouvido permanece trancado.

A palavra tem como serventia trazer a credibilidade. Se ocorre uma inflação de palavras, elas perdem força. O perigo maior é quando à garrulice somam-se outras doenças, como o culto do vinho. “O que está no coração do sóbrio está na lingua do ébrio”. Dos locais a serem temidos, quando um governo possui tagarelas a seu préstimo, a barbearia é a mais ameaçadora. O rei Arquelau respondeu assim ao barbeiro gárrulo que lhe perguntou como desejava cortar o cabelo : “em silêncio!”. Marius dominava a região de Atenas, mas um bando de velhotes, conversando no barbeiro, deu a entender aos espiões que um setor da cidade estava desguarnecido. Sylla, sabedor do ponto fraco, ataca à noite por ele e quase arrasou a cidade, a qual ficou cheia de cadáveres ao ponto de um riacho de sangue invadir o Cerâmico.  Quando ocorreu a conspiração para assassinar Nero, um inconfidente ao ver passar certo prisioneiro rumo à cela, cochichou para o infeliz que ele deveria tudo fazer para resistir um dia a mais, pois então estaria libertado. O condenado achou de bom aviso contar o que ouviu para Nero. O resto é conhecido. Conselho de Plutarco: “se deixas escapar o segredo para depositá-lo em outra pessoa, recorres à discreção  alheia, mas renuncias à tua. Se o parece parece contigo, tua perda é justa; se ele for melhor do que tu, salvas-te contra toda lógica ao encontrar, para teu bem, um outro mais seguro do a tua pessoa. ´mas o amigo é um outro eu !´ () Sim, mas ele também possui um amigo, a quem confidenciará… e que confiará em outro… (…) a palavra que permanece na primeira pessoa é um segredo de verdade, mas desde que passou para uma segunda, adquire o estatuto de de rumor público”. 

O texto de Plutarco traz muitos exemplos unidos aos rumores políticos. O Senado romano manteve reuniões secretas e a mulher de um senador exigia de seu marido informações sobre os encontros. O politico finge anuir e diz-lhe  o “segredo” seguinte : tratava-se de uma ave, com lança e capacete dourado, que surgira na cidade. O rumor seguiu até o forum, antes do homem que o inventou. Para punir sua mulher, ao chegar em casa fingiu que a coisa era séria e que, pela inconfidência, seria levado ao exilio. “Que desejas partilhar comigo?”. A resposta do poeta Filipides ao rei Lisímaco é a correta: “Tudo, menos teus segredos”.
Enfim, a “cura” do palavrório, segundo o médico e filósofo Plutarco, não pode ser conseguida de modo violento, mas criando-se outros hábitos, costumes. O autor insiste nesse ponto, essencialmente ético : o falador deve ser treinado para ficar em silêncio, prestar atenção ao dito (treinar o ouvido), e fugir das conversas que mais agradam aos faladores. Se militar, o falador deve ser afastado das narrativas heróicas e assim por diante. Diríamos que os pescadores devem ser afastados de histórias de pescaria… Isso porque se entram no fluxo discursivo predileto, podem falar mais do que o necessário para engrandecer e embelezar o relato, o que dirige a lingua ao exagero sem o controle do pensamento. Basófias são fonte segura de segredos que se escoam. Um conselho: quando não se puder deixar de vez as rodas palavrosas, tente-se passar da oralidade à escrita. A literatura, embora ainda possa exercer a indiscrição (certo filósofo foi chamado “pena que berra” em Atenas)  pode ser mais controlada pelo autor. Outra cura: fazer o linguarudo frequentar pessoas diferentes dele e deixar o círculo dos seus iguais. O respeito de opiniões ponderadas lhes fornecerá o hábito de calar.
Além da cura ética (mudança da postura, héxis) Plutarco recomenda reflexão e vigilância antes de falar. Diante da possível enunciação, perguntar sempre: “qual o propósito? É urgente? Que se ganha ao falar? O que se perde?”. A via régia foi aberta por Simonides, o poeta: nos arrependemos com frequência do que falamos, mas nunca do que silenciamos () e que o treinamento tudo pode dominar. Muitos pensadores modernos, para falar do segredo e da necessária disciplina que ele exige, usam Plutarco mas esquecem de indicar a fonte. É o que se passa com Heidegger. Em sua análise da comunicação moderna, o filósofo sublinha a perda radical do segredo na ordem da publicidade. No mundo em que reina o “se”, todos os indivíduos estão sujeitos à discrição alheia. Ou seja, o que em Plutarco era uma doença de alguns, em nossos dias tornou-se pandemia. Mas o alheio, agora, o outro, não possui deteminação certa, ele pode ser alguém e ninguém ao mesmo tempo. Quando o indivíduo fala algo, ou faz, afirma de imediato  sempre a culpa como advinda “dos outros”.  Trata-se de um truque bem conhecido pois a fórmula “os outros” recolhe também quem fala ou faz. “Os outros” surgem na imprensa, no ônibus, nos passeios, nas reuniões sociais, e neles todos são dissolvidos, eu incluido. Trata-se de uma indiferença ou indistinção generalizada, na qual pouco importa o que eu ou você fala, porque ambos “falamos” o que “se fala” e “como se” fala. O discurso perde o sabor individual. Mesmo no “escândalo”, não ocorre falha entre o público e o privado: ambos são diversificações do indistinto modo de agir e julgar pré-estabelecido, o “se” (fala-se, diz-se, ouviu-se dizer que, etc).  Julgamos escandaloso o que “se” (o público) julga escandaloso.
Heidegger, como indiquei,  identifica na midia a grande força de pasteurização ou esmigalhamento dos individuos e da linguagem. Na midia nada é secreto, porque nela inexiste o contacto efetivo com o que é, mas apenas com a média das percepções e da linguagem sobre os eventos e os seres. A mediania não desce fundo nas coisas e nas palavras, ela inscreve-se num horizonte medíocre que “facilita” a compreensão de todos. Desse modo, a midia não admite exceções, ela é absolutamente democrática e igualitária. Assim, ela não autoriza a surpresa diante de novos conhecimentos. Se aparece algo assim, ela sempre procura “mostrar” que o saber alegado é antigo. Na midia não existe reconhecimento do que foi conquistado em muito tempo e pesquisa. A novidade é a sua regra, o instantâneo o seu procedimento, o público é o seu alvo e a sua pressuposição. Com a mediania, “todo segredo perde a força e o mistério. A preocupação da media evidencia uma nova tendência do existente (Dasein), e nós a chamaremos o nivelamento de todas as possibilidades de ser”. Esse nivelamente constitui a essência da “opinião pública”. O referido público, como o freguês no mercado, sempre está com a razão e “decide” a correta interpretação de tudo : aplausos mais ou menos  longos decidem a verdade, a beleza, a maestria técnica dos candidatos, nos programas de auditório. O mesmo ocorre nas pesquisas de opinião pública que decidem quais são os melhores aspirantes ao governo do Estado. O que é o “público” no qual imperam os hábitos encobertos pela  forma do  “se” ?
O “se” é a impessoalidade coletiva que “descarrega” os indivíduos de si mesmos, deixando-os sem qualquer responsabilidade ou culpa. Eles “fazem” ou “fizeram” o que “se” faz. Desse modo, nada é serio para os indivíduos, nada é grave, tudo é frivolo. Eles jamais têm culpa e tudo é objeto de risadas, comentários, falatórios, fofocas. A covardia penetra o comportamente mediano obediente ao “se”. Nada, alí,  que não pudesse encontrar em Rousseau uma descrição cortante. ()  Quanto mais o “se” parece manifesto em toda parte, mais ele é imperceptível e dissimulado. E agora entramos na parte de Ser e Tempo que retoma, sem citar, o texto de Plutarco indicado acima, o De garrulitate. O § 35 escrito por Heidegger tem a mesma estrutura e andamento igual ao do tratado plutarquiano. Indiquei, ao passar por aquele texto que o primeiro ponto nele inscrito é a dificuldade de curar o palavrório, visto que a doença está inserida no instrumento da cura, o logos que deve ser ouvido pelo enfermo. Este não escuta porque tem toda a sua alma voltada para a lingua. Heidegger, no início de seu parágrafo distingue entre escutar e ouvir. Ouvir e compreender agarram-se ao que se diz, enquanto se diz. Não ocorre preocupação imediata com o objeto, com o que se diz. Quando alguém fala sem prestar atenção ao que é falado, apenas transmite e repete a fala. Quanto mais pessoas ouvem um discurso, mais ele toma um carater autoritário, isto é assim porque assim se diz. Essa parolagem chega ao máximo quanto rompe-se todo elo entre a palavra e o objeto que ela deveria colher. E a parolagem oral ou escrita, é nutrida por leitura maquinais. Temos então a compreensão média, repetitiva, pública. () Tal forma de compreender é dogmática e dispensa todas as distinções entre a fala e os objetos. Ela é a verdade em andamento. A garrulice não dissimula, não se esconde em nenhum segredo, porque ela mesma já é dissimuladora. Quando um linguarudo fala, ele esconde sem saber ou desejar o que deveria ser dito, joga um veu de sons acima dos entes que deveriam ser pensados. Quando fala o tagarela, ele impede toda discussão posterior. “Tudo está dito”. E nada deve ser perguntado. Desaparece o segredo no mais banal, na opinião publica. ()
No De garrulitate, Plutarco afirma que uma doença muito próxima, ou gêmea do falatório é a curiosidade. () O tratado em que o moralista analisa a curiosidade possui acentuado sentido político entre os gregos. Como indica Dumortier () a prática da polupragmonsune () reside na tendência a se imiscuir indiscretamente nos assuntos alheios, sejam eles privados ou públicos. Os atenienses criaram inclusive um termo para designar o sujeito que especula o que não lhe diz respeito:  sicofanta (na origem, com bastante probabilidade, sicofanta era o delator dos que roubavam figos, nas comédias de Aristófanes os delatores e os sicofantas são ridicularizados). O emprego de alcagüetes marcava os tiranos. Na República, justamente quando Platão traça a pintura sinistra do tirano, entra a imagem dos mercenários que, caso sua terra possua cidadãos prudentes e sábios, dela saem para servir em terra estranha “como ladrões, furadores de muralhas, cortadores de bolsas,  afanadores de roupas, pilhadores de templos, praticantes de tráfico escuso; por vezes, caso sejam capazes de falar, tornam-se sicofantas, falsas testemunhas, agentes da corrupção”. () Esta gente é empregada pelo tirano para dominar os cidadãos livres da polis. De importância estratégica, no entanto, a atividade de sicofanta, delator a soldo do tirano. Mas para delatar é preciso seguir o segredo onde ele se encontra.

Afirmei que a diatribe de Heidegger contra o palavrório (Gerede) tem origem em Platão, por mais que o pensador germânico se coloque em sentido contrário ao autor dos Diálogos. No que tange ao palavrório da massa, da imprensa e dos universitários modernos, combatido por Heidegger, a origem da crítica se localiza em Platão, tanto na República quanto nas Leis. No caso das Leis, a base do processo contra o falatório situa-se na crítica endereçada aos poetas, quando estes últimos abalam a medida prudencial a que deveriam se submeter, ameaçando a vida pública.

A justa medida, diz Platão, é essencial na ordem política como também nas relações do corpo (alimentos) ou técnicas (nos navios, não se pode usar mais velas do que o preciso), na alma não podem ser usufruídos direitos excessivos. Sem justa medida tudo se inverte. Alí a abundância de carnes que leva à doença, aqui a ilimitação (hybris)  que gera a  injustiça (adikia). A alma dos jovens não pode suportar o peso do poder, logo ela é infectada da mais grave doença, a desrazão (anóia). Contra tais excessos cabe ao legislador prudente, graças à justa medida, tomar precauções.

E chega o instante dos pesos e contra pesos do poder. Em Esparta, em vez do rei único, existia uma dupla de reis, o que restringe o poder à justa medida. Além disso, o voto de 28 anciãos que possuem, nos assuntos mais graves, poder igual ao dos reis. Há um terceiro salvador (σωτήρ), com o poder dos Eforos, um poder que se aproxima do sorteio. Assim, o governo de Esparta é uma combinação de poderes que leva à salvação própria. Juramentos não controlam a alma de um jovem candidato à tirania. Importa limitar a medida dos poderes, fundir num só os três poderes.

No mundo conhecido, adianta Platão,  existe de um lado o poder autocrático dos Persas e o temperado de Esparta. É preciso sempre o tempero, o acorde correto. Esta teoria do poder tem como pressuposto uma visão do universo e da sociedade como harmonia. E na ordem política, deve ser mantida a ordem antiga sob o domínio das antigas leis. Nela o povo não tinha soberania (ele não era κύριος) nos assuntos, mas era escravo voluntário ( ἑκών) das leis.

Quais leis seriam as referidas? As relativas à música. Na época antiga a música era dividida segundo espécies e formas próprias. As preces aos deuses eram uma espécie de canto, os hinos. Depois havia uma espécie de canto oposto: lamentos chamados “trenos”. Os peans (paiones) eram uma espécie distinta, outra ligada ao nascimento de Dionisos seria o ditirambo, etc. Reguladas as coisas não era permitido abusar de uma das formas, transpondo-a para outras. O poder de julgar sobre elas e julgar com conhecimento de causa e punir os transgressores não pertencia às vaias ou aplausos, mas era decidido por homens sábios naquela cultura que tudo ouviriam em silêncio e, com a varinha nas mãos, estabeleceriam a ordem e advertiriam as crianças e a seus professores. Esta a ordem aceita pelos cidadãos, sem que eles tivessem a audácia de recorrer à gritaria para dar sua opinião.

Os poetas foram os primeiros a quebrar as leis da música. Eles eram dotados para a poesia mas nada conheciam da Musa enquanto fonte de legitimidade e fé pública, eles misturam as formas e levam tudo a se confundir, pretendem mentirosamente, em sua desrazão involuntária, que na música não existe lugar para alguma retidão e que, além do prazer que se encontra no seu gozo, não existe meio correto de decisão, melhor ou pior. Eles inculcam na massa (πολύς) o hábito de infringir as leis e a audácia de se acreditar capaz de decidir.  Resultado: antes, o público não falava no teatro (era ἄφωνος), depois, começou a falar como se entendesse para saber o que é belo na música, ou não, surge então uma “teatrocracia” (θεατροκρατία) depravada que substitui o poder dos melhores juízes. Se apenas em música, e em música apenas, surgisse uma democracia composta por indivíduos de uma cultura liberal, não ocorreria algo tão desastroso. Mas na verdade é pela música que se iniciou, entre nós, com a crença na sabedoria de todo mundo para julgar, a atitude subversiva. Nenhum medo os retinha, pois se acreditavam sábios, e esta ausência de medo gerou a impudência, na audácia de não temer a opinião de quem vale mais do que nós, eis a impudência detestável, efeito da audácia de uma liberdade cuja arrogância é levada ao excesso.

Embora seja possível recolher nos textos platônicos muitos elementos no sentido de nos aproximar sobre o silêncio (A Carta Sétima é um passo decisivo na condenação da escrita e da fala excessivas) também é permitido ler os Diálogos como prelúdio do mundo em que são votados ao silêncio involuntários todos os que se encontram no terreno da alteridade, todos os que não entram no campo do que supostamente é normal. Platão propõe um papel ativo para as mulheres, à diferença de outros filósofos como Aristóteles (). Shoshana Felman, em certa altura de seu livro intitulado A loucura e a coisa literária começa um capítulo importante (“As mulheres e a loucura: História literária e ideologia”)() com uma epígrafe assustadora: “O silêncio dá às mulheres as suas graças próprias”. Trata-se de uma passagem de Sófocles na peça Ajax. E Felman aponta o truque muito comum dos que falam sempre “em nome de” () Ela se refere ao “gesto opressivo da representação pelo qual, na história do logos, o homem ocidental reduziu, precisamente, o outro (a mulher) a objeto silencioso e subordinado”.

Felman analisa, sob esse ângulo, um conto de Balzac chamado “Adeus”. Dois caçadores se perdem numa floresta e perguntam a duas mulheres onde estavam. Uma delas é surda e muda e a outra é louca afásica. As duas estão mergulhadas no silêncio. A única palavra que a triste afásica repete é “adeus”. Um dos homens, diante da palavra, desmaia, pois reconhece uma amante que o seguira para a Rússia nas guerras napoleônicas. Quando a situação se tornou insuportável, ele a colocou numa jangada e dela se despediu com um adeus. O sujeito tenta curar o antigo amor. O tratamento começa com pequenos grãos de açucar dados à senhora, uma espécie de amestramento. O alvo era fazer com que ela o reconhecesse. Ele resolve montar uma cena, exatamente a última que ocorreu entre eles na Rússia, com direito ao rio, à jangada, ao adeus. E na cena, ele pergunta se ela o reconhece. O falocentrismo é mais do que evidente. Ela não é, ele é e deve ser reconhecido. Ele fala, ela mergulha ainda mais no silêncio da morte. “Não me reconheces? Sou eu, teu Filipe!”. Filipe, na verdade, não articula a questão “quem é ela?” mas sim “Quem sou eu”. E a resposta vence joga o silêncio sobre ela. E a coisa piora quando ele afirma, ansioso: “Tu és a minha Stefânia”, ou seja, uma propriedade perdida de Filipe...

Mas o outro, além da mulher, pode ser o judeu e o homossexual. Em sua meditação sobre o papel da alteridade na literatura moderna e romântica, Hans Mayer, ao falar do segundo sexo e seus marginalizados, se refere as femmes fatales do romantismo, todas “inatingíveis, infantis, fatais, impossíveis de serem afetadas pela palavra e pela razão masculina”. E adiante : “só se pode discutir a femme fatale como se ´discute´ bruxaria”. Em relação ao homossexualismo a estrutura de marginalização se retoma, com matizes tão sombrios quanto no caso da mulher. E quanto aos judeus, algo próximo se apresenta. Não irei analisar o livro de Mayer, rico quando se trata de perceber as armadilhas supostamente libertárias dos que se erigem em “salvadores” da alteridade, mas que de fato instituem dominações apenas mais sutis dos que as anteriores, mantendo a capa de silêncio jogada sobre os que não entram na senda do que é normal, comum, correto. ()

Tomemos a exigência platônica de silêncio dos não especialistas em filosofia ou música (para Platão, as duas ordens se confundem). Poderíamos nos espantar se no século dezoito, na Inglaterra e França, o teatro seja uma ocupação destinada ao consumo da elite nobre ou econômica. Os lugares são caros. Mas existe espaço para os “negativamente privilegiados” (o termo é de Max Weber), como em Paris, na platéia, os lugares em pé para os da classe média, estudantes e intelectuais. Em 1781 a Comédie-Française se instala em novo edifício e a platéia é provida de assentos. Com a nova disposição do mobiliário, aumenta o silêncio no teatro. Como diz um comentador, “não existem mais gritos vindos do fundo da sala, nem gente que comia em pé, assistindo as peças. O silêncio do público parecia diminuir o prazer de assistir uma representação. Esta reação nos permite adivinhar o sentido da participação do público”. Na Inglaterra, os nobres tinham assento no palco. Eles faziam o que quisessem naquele espaço: gritavam para seus amigos, misturados aos atores. Havia uma troca de conivências, não apenas entre atores e nobres, como entre atores e público geral. Este, por sua vez, mantinha o auto-controle. “Era objetivo e muito crítico em relação aos atores e atrizes que o faziam chorar. O público queria interferir diretamente com o ator; e o fazia graças a um sistema de ´pontos´ e um sistema chamado settling (literalmente, regulação de contas)”. Voltando a Paris, ainda no século 18. Numa das Cartas Persas o herói de Montesquieu vai à Comédie-Française e alí “não distingue os atores na cena e os espectadores na sala. Todo mundo se exibe, assume poses, se diverte. A distração, a tolerância cínica, os prazer partilhado em companhia dos outros, tais são alguns dos sentimentos contidos na concepção comum do homem ator”. ()

No século 19 as mutações do espaço social e das artes, permite o surgimento de um desdobramento dos indivíduos, entre atores e não atores. “Quando a personalidade irrompe no domínio público, a identidade do homem público se desdobra. Certa minoria de indivíduos continua a se exprimir ativamente, perpetuando a tradição de homem ator instaurada no Antigo Regime. No meio do século 19, esta minoria é constituída de atores profissionais. Mas, paralelamente, se forma uma nova espécie de espectador. Este espectador não participa da vida pública, mas se abriga para melhor observá-la. Pouco seguro de seus próprios sentimentos (...) este homem à diferença do homem do Antigo Regime tem sua realização pública não mais em seu ser social, mas em sua personalidade. Se ele se mantem disciplinado e sobretudo silencioso em público, ele viverá coisas que não pode viver por si mesmo”. O espectador, indivíduo isolado, ao se tornar passivo, espera sentir mais. “Olhar a vida que passa em silêncio, eis o que significa para este indivíduo a ´liberdade´ ”. Então, “observadores silenciosos freqüentam o espaço público (...) as necessidades projetadas sobre o ator se transmutam, os espectadores se fazem voyeurs. Eles se isolam uns aos outros e se liberam por uma espécie de fantasia ou sonho desperto, olhando a vida que passa na rua. Temos aqui, em germe, o paradoxo moderno do isolamento no interior da visibilidade”. ()

Em Ser e Tempo, não por acaso, a análise da existência cotidiana, onde se exerce o domínio do "se" sobre as vidas públicas e particulares, antes de entrar no domínio do falatório Heidegger examina o olhar. Como sempre, seu empréstimo não confessado a Platão e a Plutarco faz o leitor não perceber que se trata, no caso do olhar, do velho tema da vista curiosa, maldosa, que busca ver o que se passa na casa alheia, ignorando a própria. Em Plutarco, os olhos reúnem duas formas de atenção: a pesquisa (zetesis) e a curiosidade, a chamada polupragmosine. Enquanto o zetetés, o investigador, usa os olhos para captar o permanente e atinge um conhecimento dificilmente comunicável, o curioso atarefado recolhe informações sobre tudo e todos, sobremodo das coisas e atos sem relevância para o Bem. Ao redor da mesma imagem, vemos se produzir, na crítica do conhecimento e da moral, duas atitudes diferentes. A mente curiosa, afirma Plutarco, é como a Lâmia mitológica. "Quando dormia em sua casa, ela depositava os olhos num vaso. Saindo, Lâmia os colocava em seu rosto e podia ver". Todos os homens, quando não se dedicam à pesquisa e à virtude, são Lâmias : "cada um de nós...pratica a indiscrição maldosa com o olho, esquecendo as próprias faltas e taras por ignorância (agnóia), porque não tem o meio de vê-las e de esclarecê-las". (De Curiositate, 2).

A pesquisa leva ao descobrimento de tudo, trazendo para os olhos as formas permanentes das coisas. Enquanto isso, "curiosidade é a paixão de  conhecer o escondido e o dissimulado. Mas ninguém esconde o bem que possui. Às vezes nos atribuímos um bem que não temos. O curioso, em seu desejo de saber o que vai mal entre os demais, é tomado pela maldade, irmã da inveja e da calúnia. Porque a inveja é a tristeza causada pelo contentamento alheio e a maldade é alegria pela sua infelicidade. Ambas nascem de uma cruel paixão, a ruindade" (De Curiositate, 6). Plutarco tem cura para a curiosidade : a própria pesquisa. Quem se acostumou ao mal curioso, deve curá-lo de modo homeopático. O tratamento consiste em "transferir a curiosidade, transformando-a em gosto da alma por assuntos honestos e agradáveis : seja curioso do que se passa no céu e na terra, nos ares e no mar, os segredos da natureza, pois esta não se enraivece quando eles são roubados...". (De Curiositate, 5). ()

Como último elemento a ser tratado, recordo o imenso autoritarismo presente em todos os projetos de impor o silêncio aos que escapam ao controle da boa norma. Poderia falar sobre a censura, o segredo, molas da razão de Estado moderna, sempre com o fito de fornecer aos governantes maior força física, impostos, leis contra os governados. Carl Schimitt chama a burguesia de "classe discutidora" () retirando este epíteto de Juan Donoso Cortés, o famoso autor do Discurso sobre a Ditadura que inspirou não apenas o fascismo e nazismo ao modo de Schmitt mas também todas as ditaduras que infernizaram o século 20, em especial na América do Sul e no Brasil. Com os tanques, a discussão termina, vem o golpe de Estado "redentor". 

"Uma boa parte do prestígio de que gozam as ditaduras deve-se ao fato de lhes ser concedida a força concentrada do segredo, que nas democracias se reparte e se dilui entre muitos. Com sarcasmo diz-se que nas democracias tudo se dilui em palavrório. Todos falam demais, todos se intrometem em tudo, nada acontece que não se saiba previamente. Tem-se a impressão de que a queixa se origina da falta de decisão, quando na verdade a decepção tem sua origem na falta de segredo. Estamos dispostos a tolerar muitas coisas, desde que elas sejam impostas com violência e em segredo". Estas frases tremendas de Elias Canetti são precedidas de outras, não menos temíveis no capitulo intitulado "O segredo", de Massa e Poder : "uma das características do poder é a distribuição desigual do calar das intenções. O poderoso cala, mas não permite que os demais se calem. Ele mesmo deve ser o mais reservado de todos. Ninguém pode conhecer suas convicções nem suas intenções". E adiante, ao falar dos tiranos antigos e modernos, diz Canetti que "o poder do silêncio sempre é altamente apreciado. Significa que se é capaz de resistir aos incontáveis motivos externos que nos induzem a falar (...) o silêncio pressupõe um conhecimento exato daquilo que não se diz. Como na prática não se emudece para sempre, faz-se uma opção entre o que se pode dizer e o que não se diz. Silencia-se o que melhor se conhece. É algo mais preciso e também mais precioso (...) o silêncio isola, quem cala está mais solitário do que os que falam. Assim, atribui-se a ele o poder da singularidade. Ele é o guardião do tesouro e o tesouro está dentro dele".






 

      





segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

A imprensa como alcoviteira, uma recordação de Karl Kraus. Roberto Romano


A imprensa como Alcoviteira (Karl Kraus)

A imprensa como Alcoviteira (Karl Kraus)

Roberto Romano


A luta pela imprensa livre entra no campo das iniciativas democráticas. Os dois conceitos —democracia e livre imprensa— são indissociáveis . Mas é preciso, para não cair em ilusões, determinar o que se entende com os dois vocábulos. Além da censura governamental, judiciária, econômica, política e ideológica (não raro constituindo um todo uníssono) é preciso levar em conta o que a “imprensa” significa para quem a opera. Aqui, soma-se com frequência o interesse econômico, político e ideológico dos proprietários dos meios de comunicação, com o efeito mimético e repressivo —censor, no limite— dos subordinados, os funcionários da redação que, tendo alcançado cargos decisivos na tarefa de selecionar o que o leitor deve ter diante dos olhos assumem atitudes ditatoriais na escrita. Só é publicado o que aqueles ditadores (sempre obedientes às ordens dos proprietários do jornal, rádio ou televisão) permitem.

A função “nobre” da midia impressa nem sempre suscita análises compreensivas. Basta recordar o crítico Karl Kraus, “o branco pontífice da verdade” como o designou o poeta Georg Trakl. Em artigo intitulado “A imprensa como alcoviteira” (1). Kraus compara a jovem prostituta e o articulista econômico do jornal. A primeira, no seu entender, é moralmente superior ao segundo, pois ela “nunca deu a entender, como ele, assumir altos ideais”. Assim, também superior ao diretor do jornal é a alcoviteira. O intermediário da opinião, “que vive da prostituição espiritual de seus dependentes, prejudica o mister da alcoviteira no terreno que mais lhe compete”. É conhecida a guerra do autor contra os anúncios eróticos postos nos jornais. Tal luta, diz ele, não se baseia em um desdém puritano. Aqueles anúncios são imorais apenas em relação à pretensa missão ética da imprensa, como seria inconveniente uma liga em defesa da moral em jornais que pregam a liberdade sexual. “Como, de resto, seriam imorai os acessos de moralismo de uma alcoviteira, não em si mesmos, mas relação ao seu múnus”. E fulmina Kraus: “moral, nesse sentido, é a defesa da alcoviteira contra a concorrência desleal dos editores dos grandes jornais, que exercem aquele ofício sob riscos bem menores”.

Assim, “o Estado que desaloja os casais de amantes de uma casa de encontros, não tutela o bem jurídico da moralidade pública mas o da ética profissional da alcoviteira. Mas que numa casa a fachada se consagre à educação do povo e por trás se efetivem proveitos materiais combinando rendez-vous, lhe parece a mais natural e moral das destinações do edifício como casa de meretrício, e basta. Viúvas miseráveis, que vivem dos ´encontros clandestinos´, são levadas aos tribunais. Os proprietários dos jornais colocam ao dispor e põem sua administração no desenvolvimento da mais vivaz atividade erótica, em toda a sua variedade e continuam a trabalhar imperturbados”. O meretrício hoje, termina Kraus, “se prostitui agregando-se ao mais sórdido jornalismo, e se é penoso ver os mais famosos expoentes da ciência colocar-se sob ele, como colaboradores (...) arrastando o carro da patifaria financeira e intelectual. Envilece encontrar em comprometida moral filistina uma legião de honestos servidores do sexo”.


É clara a condenação de Kraus à imprensa, qualificada por ele como prostituição espiritual dos intelectuais, proxenetismo dos proprietários e editores. Mudou alguma coisa desde o libelo de Karl Kraus?


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1 Uso a tradução italiana do
texto, saído na coletânea Morale e Criminalità (Milano, Rizzoli, 1976), página 71 e seguintes.