Flores

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segunda-feira, 20 de maio de 2019

Roberto Romano texto lido e comentado no 1º Seminário de Ética e Decoro Parlamentar. 2003. No momento em que os partidários do presidente da república clamam pelo fechamento do Congresso e do STF, talvez valha a pena retomar as reflexões feitas no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados em.....2003. O tempo apenas indica o quanto estamos longe de pensar a ética e a democracia. RR


Roberto Romano texto lido e comentado no 1º Seminário de Ética e Decoro Parlamentar. 2003


DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO
NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES
Câmara dos Deputados.
CONSELHO DE ÉTICA E DECORO PARLAMENTAR
EVENTO: Primeiro Seminário Nacional de Ética e Decoro Parlamentar
DATA: 09/12/03 - INÍCIO: 14h18min - TÉRMINO: 17h57min


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O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Agradeço ao Subcontrolador-Geral da União e ex-Deputado Jorge Hage. 

A sociedade brasileira toda faz grande aposta no controle daquilo que o senso comum identifica como um dos 5 maiores problemas nacionais, que é a corrupção. Avançar nesse sentido é muito importante. Tenho certeza de que V.Sa. e o Ministro Waldir Pires, pela história de vida, são os mais capacitados para liderar esse controle, que também tem de ser da sociedade. Muito obrigado.

Ato contínuo, já instalo nosso último painel, com largo atraso, ressaltando que quem esperou não se arrependerá. Convido o Prof. Roberto Romano, da UNICAMP, e o Prof. Ricardo Caldas, da UnB, para comporem a Mesa e iniciarmos nossos trabalhos. 

Registro a presença do Deputado Elimar Máximo Damasceno, de São Paulo. Já estiveram aqui conosco os Deputados Júlio Delgado, João Almeida, Gustavo Fruet, Fernando Gabeira, além da importante presença do Deputado Orlando Fantazzini, que, com sua equipe do Conselho de Ética organizou este tão importante seminário. Parabéns a S.Exas.

Iniciaremos o último painel, porque sei que nossos debatedores têm horário. Torço para que a Ordem do Dia não se inicie no plenário. De qualquer forma, tenho convicção de que será muito proveitoso.
Com a palavra aquele a quem me permitirei chamar de Roberto pela nossa amizade de quase meio século. Muito prazer, Roberto, em vê-lo aqui.

O SR. ROBERTO ROMANO - Em primeiro lugar, agradeço ao Deputado Orlando Fantazzini o convite. O que o Chico disse é verdade: conhecemo-nos em 1966, no Rio de Janeiro.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - No jardim de infância, digamos, nas primeiras letras.
O SR. ROBERTO ROMANO - Fizemos muita passeata, lutamos contra a ditadura e outras coisas mais. Quando me foi proposto esse tema, lembrei de 2 autores que me parecem estratégicos para pensar a questão tanto do decorum quanto da ética e, sobretudo, que permitem fazer a ligação da ética parlamentar com a vida civil. 

O primeiro é o autor da maior ética moderna: Spinoza, que tem 2 tratados políticos absolutamente importantes: o Tratado Político e o Tratado Teológico-Político. No caso de Spinoza, parece-me importante reter a lição que destaca o respeito e a reverência que os cargos públicos devem suscitar na população. Spinoza tem uma idéia contrária à de Hobbes: quando se faz o pacto político, não se abre mão do direito de natureza; continua-se plenamente um ser natural e um ser pensante. Não existe possibilidade de separar essas qualidades dos seres humanos, porque elas não são só destes; nós somos atributos da substância divina.

Spinoza é monista. Então, quando pensamos, de certo modo, é Deus quem pensa; quando agimos, é Deus quem age. Não existe poder humano capaz de limitar a força dos homens quando pensam e quando agem. Portanto, alienar essa força é um absurdo, no pensamento de Spinoza e contrariamente ao de Hobbes.

Isso leva Spinoza a dizer no Tratado Político que o poder tem que contar com a atitude natural dos homens e não pode modificar sua natureza. É esse ponto que me parece importante. Ele diz: "O Estado tem a força e, portanto, o direito de fazer com que os homens tenham asas para voar ou, o que é tão impossível quanto, que eles considerem com respeito o que excita o riso e o desgosto". Não se pode esperar, exercendo cargo público, que os homens deixem de observar as pessoas.

Por que são importantes o medo e a reverência? Em primeiro lugar, porque nunca — e aí ele também se coloca contra Hobbes — abrimos mão do nosso poder. Cada indivíduo tem poder, cada grupo tem poder, que se exerce no interesse próprio — esse também é um ponto importante —, e apenas e tão-somente por questão de cálculo racional os homens aceitam abrir mão desse poder em função do coletivo. Quer dizer, se essa cessão de poderes não é retribuída e se o Estado não retribui essa confiança, ele deixa imediatamente de existir.

Por isso, uma autoridade que se apresente, do ponto de vista público, como um legislador que não segue a lei é o pior criminoso dentro do Estado; é aquele que impede a existência do Estado; é pior do que o ladrão; é pior do que o assassino, porque a existência do Estado é a única tranqüilidade e segurança dos cidadãos. 

Quando os cidadãos, diz Spinoza, percebem que seu interesse, a segurança, a expansão do corpo, a alegria, os saberes, etc., não estão sendo cumpridos pelo Estrado, eles agem de maneira imediata na busca dos seus interesses. Esse é um ponto que me parece importante. O texto está com os senhores e não me estenderei.

Spinoza é leitor e seguidor de Maquiavel. Sobre essa busca dos interesses grupais ou individuais, quando o Estado e os legisladores — ele insiste nisso —, aqueles que fazem as leis, não devolvem aos cidadãos aquilo que se espera do Estado, os indivíduos permanecem na sua situação de massa. Spinoza faz uma distinção muito clara entre povo e vulgo. O povo reunido, obedecendo às leis e contemplando o exemplo dos legisladores e dos governantes, é o povo democrático; o vulgo é quando ele não tem mais essas determinações nem esses exemplos e se torna uma massa furiosa. O povo é temível, diz ele, nessa hora.

Isso é perfeitamente possível de entender quando vemos a situação de países que não conseguem estabelecer o regime democrático, com certeza, e que têm autoridades que não legislam em função do interesse público, mas usam o interesse público para seu interesse particular. 

Deixo Spinoza com um pedido aos senhores, sobretudo aos que trabalham com a questão da ética no Parlamento, para que realmente aprofundem a leitura de Spinoza, porque se trata não apenas de um pensador realista, ao modo de Maquiavel, mas do maior pensador democrático do Ocidente. Não estou exagerando. Nesse caso, temos efetivamente uma fundação de pensamento democrático extremamente realista. Os senhores sabem que boa parte das críticas feitas à democracia, desde Platão, assumidas por Hobbes e pelo pensamento conservador, têm fundamento, não são despropositadas. Nesse caso, temos na profundidade de Platão uma defesa da democracia e, ao mesmo tempo, um enorme realismo no trato dessa questão.

Passo ao mais importante monumento político sobre a sociedade contemporânea e a violência societária, que é o livro de Elias Canetti: Massa e Poder. Trata-se de um expositor frio dos fenômenos que levaram aos desastres nazistas e fascistas e a todas as formas totalitárias e genocidas do século XX. Canetti mostra até que ponto a voragem das massas pode ser conduzida nos genocídios dos campos de concentração onde milhões foram abatidos. 

O capítulo de Massa e Poder mais grave para a questão da ética e do decoro parlamentares é o intitulado A essência do sistema parlamentar. Nele, Canetti mostra que a política no Parlamento continua a guerra geral por outros meios. Os senhores sabem que essa tese vem de Clausewitz e define até hoje o pensamento estratégico das potências imperiais. A continuação da política na guerra, como a continuação da guerra na política, são lados complementares, teorizados por Hobbes, por Maquiavel, por Platão e por Tucídides. Mas Clausewitz deu aos dois enunciados sua abrangência máxima. 

Em Massa e Poder, o Parlamento é um campo de guerra prolongado. Os partidos constituem a extensão da estrutura psicológica dos exércitos combatentes. A essência parlamentar encontra-se nesse elemento bélico. A diferença encontra-se no fato de que a guerra no Parlamento é feita para evitar a guerra civil. Enquanto nesta última todos podem ser mortos, no Parlamento são escolhidos indivíduos que lutam em nome dos interesses dos seus eleitores, mas não podem ser mortos. Este é o pleno sentido da imunidade parlamentar: em vez das balas e das baionetas, os votos no plenário. Essa garantia repercute na vida civil, que vive sempre em guerra, dando-lhe condições de prolongar a vida.
Citando Canetti: Numa votação parlamentar não há nada a ser feito senão verificar a força de ambos os grupos num mesmo lugar. Não basta que se conheça isto desde o princípio. Um partido pode contar com 360 delegados e o outro com 240; a votação continua sendo decisiva em todos os instantes em que existe uma verdadeira medição. Ela é o resquício do choque sangrento que se expressa de múltiplas maneiras com ameaças, insultos e agressão física, que pode levar a golpes ou a lutas. Mas a contagem dos votos representa o final da batalha. Supõe-se que os 360 tenham triunfado sobre os 240. A massa dos mortos fica fora do jogo. Dentro do Parlamento não deve haver mais mortos. Esta intenção é expressa da maneira mais clara na imunidade parlamentar, que tem um duplo aspecto: fora, em relação ao governo e aos seus órgãos; dentro, entre os seus pares (este segundo ponto geralmente não recebe a devida atenção).

Ninguém jamais acreditou realmente que a opinião da maioria numa votação seja, devido ao seu maior peso, também a mais sensata. Vontade confronta-se com vontade, como numa guerra; cada uma dessas vontades tem a convicção do maior direito próprio e da própria razão. O sentido de um partido consiste justamente em manter vivas esta vontade e esta convicção. O adversário que fica em minoria não se submete porque de repente tenha deixado de acreditar em seu direito, mas apenas porque se dá por vencido. É fácil para ele dar-se por vencido, pois nada lhe sucede. Ele não é castigado por sua atitude hostil anterior. Caso se tratasse de colocar sua vida em jogo, ele reagiria de forma complemente diferente Ele conta porém com batalhas futuras. E o número destas batalhas não tem limite fixado e ele não morre em batalha alguma. 

Esta imunidade contra a morte é a essência de todas as demais imunidades parlamentares e a fonte de todas as garantias dadas aos cidadãos que seguem a lei redigida pelo Parlamento, sancionada e imposta pelo Executivo, julgada pelo Judiciário. O sistema representativo só funciona se ela existir. "Ele desmorona", diz Canetti, "assim que algum posto seja ocupado por alguém que se permita contar com a morte de qualquer um dos membros da corporação" parlamentar. Nada é mais perigoso do que ver mortos entre vivos. Uma guerra é uma guerra porque inclui mortos em seu resultado. Um parlamento só é um parlamento enquanto excluir os mortos. 

Com a imunidade parlamentar vive e morre o Parlamento de qualquer país. 

Na eleição geral, a imunidade estratégica ainda não é a dos eleitores, mas a das cédulas de votação. É permitido influenciar os eleitores de quase todas as maneiras, até o momento em que eles se comprometem definitivamente com o nome de sua preferência, que o escrevem ou que o assinalam. O candidato oposto é ironizado e entregue ao ódio generalizado de todas as maneiras possíveis. O eleitor pode parecer que não se decide em muitas batalhas eleitorais; se ele tiver orientação política, seus destinos variáveis têm para ele o maior dos encantos. 

A sacralidade do voto nas cédulas e a votação sem mortes, a imunidade parlamentar afastam a matança que se mantém na vida civil. Todos os votos, o dos cidadãos e dos parlamentares, são anotados em números. Quem joga com estes números, quem os adultera, quem os falsifica, volta a dar lugar à morte e nem sequer se apercebe disto. 

Os entusiasmados amantes da guerra, que gostam de fazer pouco das cédulas de votação, confessam desta forma suas próprias sangrentas intenções. As cédulas de votação, da mesma forma como os tratados, não passam de simples pedaços de papel para eles. Como estes papéis não estão manchados de sangue, não têm valor para eles; para eles valem apenas as decisões pelo sangue. O Deputado é um eleitor concentrado; os momentos muito isolados em que o eleitor existe como tal acumulam-se muito mais para o Deputado. Ele existe justamente para votar com freqüência. Mas também é muito menor o número de pessoas entre as quais o delegado vota. Sua intensidade e o seu exercício devem substituir em excitação o que os eleitores extraem de seus grandes números. 

Tanto o pensador político do século XVII, quanto o prêmio Nobel no século XX mostram a importância da ética e do decoro parlamentar para a vida em segurança mínima dos homens reunidos em sociedade. Segundo ambos, a guerra de todos contra todos não é abolida com o advento do Estado. Ela continua na vida civil, com toda a violência. O meio para atenuá-la é justamente a tarefa dos legisladores e dos governantes, os quais têm imunidade como se fossem portadores de bandeiras brancas no debate que suspende, no âmbito dos parlamentos, a matança, a cobiça, a rapacidade, os truques que os indivíduos e grupos usam uns contra os outros. Se existe fraude na bandeira, se existem pessoas que se julgam acima dos regimentos e das leis porque investidas da função parlamentar, se existe atentado à ética e ao decoro, desaparece o Estado, instaura-se a morte e a guerra como fruto daqueles atentados. Os senhores conhecem como ninguém a violência tradicional da sociedade brasileira, que se prolonga e agrava em nossos dias. Em nossa vida civil, a morte ronda as relações de vizinhança, de parentesco, comerciais, políticas, ideológicas. A capangagem, a prática do escravismo, o uso de mão-de-obra barata e jovem no tráfico de drogas, a barbaridade do trânsito urbano e nas estradas, as fraudes, o assassinato de mulheres pelos maridos em nome da pretensa honra, o estupro de crianças em pleno lar, os abortos clandestinos que jogam o nada sobre embriões e corpos de jovens mulheres aos milhares, as lutas ao redor da terra, o desprezo pelos pobres postos em mãos médicas canhestras ou de má-fé, o descontrole das polícias cuja opção preferencial é pelos negros e demais negativamente privilegiados, os plágios universitários, a espionagem industrial, e temos uma lista infindável de crimes e práticas letais saídas da caixa de Pandora chamada sociedade civil brasileira. 

Nesse universo de tristeza infinita, a confiança na palavra dos governantes e dos legisladores é o único meio de fazer com que os cidadãos abandonem as suas armas ou deixem de ser cúmplices ou vítimas dos que estão fora da lei. Quem frauda um painel de votação ou mente da tribuna, quem se apodera de bens públicos no Orçamento Nacional, quem desvia recursos para sua conta privada comete crime de lesa fé pública e de golpe contra o Estado. Quem promete algo nos palanques e pratica o seu oposto nos palácios dá um passo tremendo rumo à redução do povo soberano ao estatuto de vulgo sem dignidade. Ensina que a palavra dada não tem substância. E sem palavra confiável não existe Parlamento, porque o próprio nome, Parlamento, é o lugar que sucedeu a prática racional grega do logos, do discurso racional que tranqüiliza e protege os cidadãos. É isto que diz Canetti ao criticar os que adulteram votos. Eles, na verdade, desejam regimes sem votos, regimes onde o único voto permitido é a morte na guerra de cada um contra todos. 

Citei o ensinamento de Spinoza e de Canetti para introduzir o nosso problema, justamente numa Casa abalada nas últimas décadas por gravíssimos atentados à ética e ao decoro. Em termos pessoais, como professor de ética na universidade pública, não me furtei à crítica e à análise pública daqueles problemas. Fui inclusive processado por um de seus pares porque não me calei diante de atentados às exigências éticas. Absolvido pela Justiça, continuo acreditando que o Parlamento é a via para atenuarmos a guerra de todos contra todos, gravíssima no Brasil. Se o Estado perde sua força e a fé pública, ganham terreno as potências da morte genérica, vencem os bandidos. É sintomático que as quadrilhas organizadas dominem parte do território de nossas grandes cidades, definam espaços de quase soberania — inclusive arregimentando colaboradores nos 3 Poderes oficiais — na mesma proporção em que a cidadania perde a confiança no regime democrático e na política. Se fracassar no Brasil a vida dos parlamentos, a voragem da morte levará nossa esperança de vida, em primeiro lugar, e de vida livre e digna. 

É por esse motivo que saúdo os promotores deste evento e todos os senhores. Saúdo na iniciativa de se discutir a ética e o decoro parlamentar, o Estado democrático de direito, sonho dos cidadãos honestos de nosso País.

Muito obrigado. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Agradecemos ao Prof. Roberto Romano a participação.
Convido o demiurgo deste encontro, um lutador em prol da ética pública, a assumir lugar à Mesa.
Com a palavra o Prof. Ricardo Caldas. 

O SR. RICARDO CALDAS - Antes de começar a exposição, quero agradecer ao Deputado Orlando Fantazzini, aqui representado pelo Deputado Chico Alencar, o amável convite, e também dizer que, para mim, é uma honra e um privilégio estar nesta Comissão.

Fiquei muito honrado em ter participado da Comissão de Reforma Política e muito satisfeito em saber que ela já aprovou, em texto preliminar, ponto que tive a oportunidade de defender na própria Comissão: a reforma global. Havia ficado um tanto surpreso ao perceber que a reforma estava sendo discutida pouco pontualmente. Na minha visão, ela tinha de ser discutida sob perspectiva global, voltada para o cidadão. Na ocasião, disseram que a minha visão era minoritária, que não teria nenhuma possibilidade de ser aprovada. No final das contas, acho que a sociedade brasileira foi a vencedora.

É sobretudo uma honra estar ao lado de pessoa tão ilustre quanto o Prof. Roberto Romano. Tenho certeza de que minha apresentação não terá o mesmo brilhantismo da de S.Sa. Ainda assim, peço aos presentes que sejam pacientes e me cedam cerca de 15 ou 20 minutos de seu tempo. (Pausa.)

Pretendo mostrar um pouco da visão histórica da ética e como a ética, de certa forma, não mudou ao longo do tempo. Pretendo mostrar também como se conceitua a ética hoje e qual a nossa necessidade de ética. Falarei ainda sobre o que, no meu entendimento, se denomina de crise da ética moderna — não sei se o Prof. Roberto Romano terá oportunidade de me corrigir.

Basicamente, falarei da origem do termo, do que poderíamos entender por ética, e de como ela evoluiu. 

Vamos passar para o segundo (inaudível). Isso pode se traduzir de duas formas... (inaudível) e também outros valores e propriedades de caráter. Esse tipo de tradução dá origem também a entendimentos diferenciados sobre o que viria a ser a ética.

Se analisarmos do ponto de vista dos costumes, o que teríamos? O estudo dos costumes não nos auxilia a conhecer a moral nem a compreender a ética. Ou seja, simplesmente falar quais são os costumes de uma sociedade não nos diz o que é certo ou o que é errado. Costumes referem-se simplesmente a usos e tradições e, em princípio, deles não poderiam vir, ou advir, uma noção de ética, ou de ética pública, o termo sobre o qual me convidaram a falar.

Na tradução para o alemão, por exemplo, utilizou-se algumas vezes a palavra sitten, que refere a costumes, mas no sentido de moral superior baseada nas tradições e costumes. Daí também a dificuldade em se obter conceito ou visão do que realmente seria a ética.

Outra visão, a que de certa forma prevaleceu, foi a de Aristóteles, de que ética seria a propriedade de caráter. Nessa perspectiva, a ética representa os estudos sobre o ethos nesse sentido ou sobre a propriedade de caráter, porque essas poderiam ser boas ou más. E daí vem todo o estudo que os antigos chamavam de virtudes ou vícios.
É interessante que o conceito de ética ficou tão difundido ao longo do tempo que se formos verificar, por exemplo, no Dicionário de Política, de Bobbio, talvez a fonte mais conhecida, mais legítima e mais bem vista na área de Ciência Política, ele nem sequer menciona o termo ética.

Na acepção corrente, poderíamos entender ética simplesmente como o estudo dos juízos da conduta humana, a qual pode ser qualificada como boa ou má, seja de forma relativa, ou seja, vendo de sociedade para sociedade, ou vendo a conduta como boa ou má de uma forma absoluta.

A grande dificuldade da ética antiga e da ética moderna, já adianto, é a questão de como definir bom ou ruim, boa ou má. Quer dizer, o que é uma atitude boa, o que é uma atitude má? Esse aspecto terá reflexos tanto na vida privada do indivíduo quanto também na vida pública da pólis, ou no caso aqui, do Parlamento.

Observamos uma grande confusão das pessoas entre o que é ética e o que seria moral. A ética seria, como vimos, o juízo da conduta humana. E o que seria então moral? A moral poderíamos definir como um conjunto de regras, costumes e valores que prevalecem ao longo do tempo em um certo período: a moral vitoriana, a moral nazista, a moral helênica, etc. Ou seja, ela está associada a uma dada sociedade, a um certo período.

Aí chegamos ao ponto de o que seria a ética na Antigüidade. Para os gregos, a ideia de ética está diretamente associada com a política. Como já foi mencionado pelo Prof. Romano, a questão da ética e da política é porque ela permitia os grandes debates. Então, os conflitos deveriam ser trazidos a público e ser manifestados na pólis. Daí a importância da oratória, que era a maneira como as pessoas poderiam se manifestar, e até mesmo havia, de certa forma, uma luta, mas só que era uma luta oral, não era uma luta das armas. Isso já foi mencionado aqui.

O que seria então a política na visão antiga? A política visa ao bem-estar da sociedade. Esse conceito é tão importante, tão caro e tão difícil de ser definido. O que é bem-estar? Diria que os conceitos mais importantes da Ciência Política, especialmente a Ciência Política contemporânea, têm dificuldades em serem definidos. O que é um bem público? O que é um bem comum? Existe ou não uma vontade geral? Essa é uma das grandes discussões em Ciência Política.

Com essa perspectiva de bem-estar da sociedade, então, a ação de governar e propor leis estaria comprometida com a preservação dessa mesma cidade, combinada com a aptidão para comandar com sabedoria e justiça.

Outro conceito quase que praticamente impossível, e talvez o Prof. Romano tenha outra opinião sobre isso, é definir o que seria justiça. A justiça é algo que as pessoas têm a impressão se ela existe ou não, mas é difícil medir, é difícil definir, é difícil quantificá-la. O que acho interessante nessa visão é a política voltada para o bem comum, o bem-estar, e baseada na idéia de sabedoria e justiça.

O que seria político na Antigüidade? Acho importante resgatarmos esse conceito — fico me considerando cada vez mais um saudosista, eu já me considero um defensor dos velhos tempos nesse sentido, o professor falou dos conservadores —, o político é o homem de bem. Então, diria que perdemos essa noção tão simples, tão básica e tão importante na Grécia Antiga, na Antigüidade, etc. E hoje temos até dificuldade. Quando as pessoas falam isso, as pessoas pensam: "O fulano é um ingênuo, ele não sabe das coisas que estão acontecendo". Mas, na verdade, essa era a razão verdadeira da política, era a essência da política. Trouxe aqui, mesmo correndo o risco de, ao final, ser taxado de ingênuo, ultrapassado, etc. Não faz mal.

Esse político converte a experiência na disposição para a prudência, entendida como a ciência prática do legislador. Vejam então algo mais interessante: o legislador tem que estar voltado para o bem-estar da sua cidade; logo tem que legislar com prudência. 

Aqui, a tradução perante cada situação, ou problema descoberto, a virtude de deliberar com pertinência a respeito do existente e do eventual, a fim de esclarecer o critério justo de ação política. Vejam novamente a idéia de justiça implícita na ação política. Ou seja, o legislador atua em função dos casos existentes, mas também em função de casos futuros. A intenção é que haja uma lei geral, justa e que seja aceita por todos.
É claro, é óbvio — não precisaria dizer, porque todos sabem disso —, que a Justiça é um dos princípios gerais do Direito, mas, às vezes, as pessoas não percebem isso. Então, o que seria a lei? A lei seria a prudência aplicada ao governo da cidade. É interessante essa visão.
Como poderíamos relacionar ética e política? A política estaria associada a uma vida bem conduzida. Vejam que aqui, mais uma vez, temos a idéia de uma ação valorada, o que seria uma vida bem conduzida ou mal conduzida? Novamente a idéia de valores, ou seja, alguém opinará sobre esse valor. E aqui discuto outro ponto, já mencionado pelo Prof. Romano, a política unindo-se à ética na retórica. Assim, a retórica seria o objeto do debate. Para Aristóteles, ela contribui para definir, digamos, uma potência humana, ou dito de maneira mais moderna, para potencializar o indivíduo.
Os torneios oratórios substituíram a resolução violenta dos conflitos, como bem disse o professor aqui, o Parlamento dá origem a lutas, a brigas, etc., mas em muitos casos são lutas por valores, lutas por idéias, lutas por ideais. Enquanto as pessoas estiverem lutando no Parlamento, a harmonia social está garantida.
O uso da palavra enuncia um projeto. A palavra pode ser de crítica, de denúncia, de reforço da autoridade e até de constituição da capacidade de manifestar o justo e o injusto. Vejam novamente a idéia de justiça trazida à vida política. Ou seja, não se pode falar em vida política sem se ter em mente o conceito de justiça ou conceito de ética.

A política ética na teologia medieval. 

Outro ponto interessante, porque já se tem uma mudança de perspectiva. Na Idade Média, havia a idéia de uma ordem superior imposta a todos por Deus, sob a forma de lei. Ou seja, todo Poder vem de Deus. O advento e o sucesso do cristianismo acabou levando essa nova perspectiva a tomar corpo na Filosofia. Pouco antes, em Roma, havia o reino de César, temporal. Na Idade Média, surge mais um: o reino de Deus, espiritual. Ambos seriam continuação dessa perspectiva de visão divina. Nasce uma nova forma de governo: a teocracia. Hoje, alguns dizem: a teocracia é uma coisa ultrapassada, velha. Mas até hoje existe no Irã, Arábia Saudita e em outros países. A legitimação do regime se dá então pela palavra de Deus. Passa-se então dos civitas para o de regnu, de cidadão para o de reino, ou seja, a idéia de reino onde o cidadão passa a ser um súdito. Haverá um senhor para o qual se presta um serviço de vassalagem, e o reino, a idéia de Cristo Rei, a idéia da cidade de Deus.

Não preciso nem dizer que o maior defensor dessa perspectiva foi justamente Santo Agostinho. Forma-se então uma espécie de oposição entre a lei divina e a lei humana. O que seria a cidade ideal na concepção de Santo Agostinho? O que ele diz? Aquilo é modelo de cidade, mas nós nunca vamos alcançá-lo. Porém, isso não quer dizer que não devamos perseguir esse ideal. Ele é o nosso objetivo.
Uma cidade perfeita seria aquela baseada nas escrituras, que se contraporia à decadente cidade humana, onde a lei divina foi degradada. Esse modelo, o sonho de cidade ideal, também está presente em Platão. 

São Tomás de Aquino retomou a visão aristotélica de bem comum. Difere na parte em que São Tomás de Aquino diz que política consiste no aprendizado da legislação justa, do ordenamento das coisas e dos homens, tendo em vista o bem coletivo e a justiça divina.

Vejam que independentemente do período histórico, alguns conceitos são perenes, ou seja, a ideia de justiça permanece, a idéia de legislação voltada para o bem comum permanece. Apenas na perspectiva medieval, ou logo depois, Deus é o legislador de todas as coisas. Ele vai impor a lei eterna, a lei divina.

Existe o governo divino que visa o bem comum. Não se trata de mais um modelo, agora é uma possibilidade. Então, para São Tomás de Aquino, as pessoas deviam implantar esse governo divino na Terra.

Com o advento da modernidade e o nascimento do Estado moderno, surgem outras correntes de pensamento, como o humanismo e o racionalismo. Essas formas de pensamento reestruturarão completamente a perspectiva política. É o início da separação do religioso e do político, como já havia ocorrido de certa forma na Grécia Antiga e em Roma. Agora, volta a se separar dentro de uma nova perspectiva.

Alguns autores, e não desejava entrar nessa discussão, talvez a maior parte deles, apontam O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, como o ponto de referência dessa divisão. Por que Maquiavel? Porque ele busca a verdade das coisas. Maquiavel não aceita mais a ideia de uma verdade divina, de uma lei divina. A política é governada por outras leis que não as leis divinas. As leis políticas são próprias. Aí Maquiavel estabelece a divisão entre a moral e a política. A partir daí, certos atos realizados pela política estariam justificados. Não seriam justificados do ponto de vista do indivíduo, mas politicamente são aceitáveis. Então, como mencionei, política e moral estão separadas. E o príncipe — talvez seja o melhor exemplo disso —, para se manter no poder, pode recorrer a várias artimanhas, como exercer todo o mal de uma vez só e o bem aos poucos.

Surge então Spinoza, bastante citado aqui. Não quero me alongar neste ponto, apenas chamar a atenção para um aspecto interessante. Ele muda e por isso é considerado um dos maiores pensadores da questão ética. Ele muda o conceito de Deus e de ética. Começa a falar que Deus é o Universo, e alguns autores dizem que a posição dele se aproxima de algo que lembraria o panteísmo. No entanto, ele vai mais além, e esse é o ponto interessante, porque ao mesmo tempo em que diz que Deus é tudo, Deus acaba não sendo nada; se Deus está presente em todas as coisas, ele também não está presente em nenhuma, ou seja, ele acaba tirando o aspecto divino de Deus. Tanto isso é verdade que ele diz: o homem existe para ser feliz. Ora, se Deus nunca disse isso, a perspectiva é mundana, não é mais divina — essa é uma interpretação. 

O que o homem busca para ser feliz? Ele busca o prazer e a ausência de dor, que não são conceitos divinos, mas conceitos individuais, completamente opostos àquela perspectiva. O homem bom e feliz, o homem sábio que busca o conhecimento também não são objetivos de perspectiva divina. Todo homem deve amar a si mesmo e procurar o que é útil. É a concepção utilitarista da sociedade centrada no homem e não em Deus. Ao mesmo tempo em que Spinoza fala da importância de Deus acaba de certa forma dessacralizando o Divino, ao mencionar e valorizar princípios humanos.
Nietzsche é outro autor que merece ser citado, e evidentemente não posso citar todos. Talvez Nietzsche represente o fim de um ciclo quando diz que Deus está morto. Ele acaba completamente com qualquer elo possível e imaginário, qualquer associação entre Deus e a sociedade. Ele considera o cristianismo uma doença social destrutiva, porque transforma homens em ovelhas, em pessoas passivas. Afirma ainda que não é isso que precisamos; na verdade, precisamos de super-homens. Ele radicaliza bastante sua vida, sua perspectiva. Para Nietzsche, o homem deve atingir o seu mais alto potencial e sem nenhum limite, vejam só. Aqui ele menospreza completamente qualquer noção de ética. O que é ética para Nietzsche? A moralidade do indivíduo está acima do bem e do mal. Isto é, o indivíduo está livre para agir conforme a sua consciência determina. Esse ponto me lembra muito, não sei se o Prof. Romano concorda, a idéia do Leviatã, de Hobbes: o imperador, o soberano não tem limitações; ele age conforme a sua consciência. Então, esse super-homem está acima do rebanho. Ele não é mais prisioneiro dos costumes nem da moral. Toma suas decisões éticas baseado em sua própria moralidade, que não é imposta pela sociedade.

Vejam o risco a que chegamos: é o completo o desaparecimento da ética. Não preciso dizer — a maioria dos senhores e senhoras sabe disso — que Nietzsche é considerado por muitos, e me incluo nesse grupo, como um dos principais inspiradores do regime nazista. Vejam então que a idéia de ética, de bondade ou de moralidade simplesmente desaparece, em razão desse super-homem que, no caso, alguns autores consideram como o homem ariano, o homem nazista.

Próximo. Chegamos à ética na sociedade política contemporânea. E tomo a liberdade de citar Marx Weber, um dos autores que considero dos maiores sociólogos de todos os tempos, não só século XX, mas talvez de todo o período contemporâneo. Weber dizia que existem dois tipos de ética: a ética da convicção e a ética da responsabilidade. O político jamais pode ter a ética da convicção. O político, por exemplo, jamais pode ser um pacifista. Por quê? Porque em alguns momentos ele pode ter de tomar uma decisão que vai acarretar a morte de pessoas, como no caso de uma guerra. Se ele for um pacifista, ele vai pensar: não posso agir dessa forma, porque contraria os meus princípios. Weber diz que o homem político tem de ser pragmático. E eu poderia citar como exemplo Gandhi, ótimo para libertar a Índia da dominação britânica, mas talvez um mau Primeiro-Ministro em virtude das decisões que teria de tomar. 

E o que ele diz ? Que o político deve atuar em razão da ética da responsabilidade. E o que seria essa ética da responsabilidade? Ele deve estar consciente de que suas ações terão efeitos nas gerações seguintes.

Aproveito a oportunidade para citar um caso real. Durante a Segunda Guerra Mundial, Churchill recebeu informações de que os nazistas iriam bombardear uma cidade próxima a Londres. Ele tinha também a informação de que nessa cidade haveria um culto com cerca de 300 pessoas no momento do bombardeio. Se houvesse o bombardeio, essas pessoas certamente morreriam. Sempre um exemplo nas discussões sobre ética, a pergunta é a seguinte: o que Churchill deveria fazer? Avisar as pessoas sobre o iminente bombardeio e, com isso, salvar vidas humanas, ou permitir o bombardeio e manter em segredo a decifração do código dos nazistas e, com isso, possibilitar que futuros segredos militares fossem desvendados? 

Não preciso dizer qual foi a opção do Churchill. Ele fez a opção pela última alternativa. Ou seja, deixou a cidade ser bombardeada; talvez centenas de vidas tenham sido afetadas pelo bombardeio nazista. Mas o que ele poderia argumentar a seu favor? Eu agi com a ética da responsabilidade. Aquelas vidas humanas perdidas no bombardeio foram a contribuição do Reino Unido para a derrota do regime totalitário nazista. Então, ele não agiu conforme a ética da convicção, mas conforme a ética da responsabilidade proposta por Marx Weber.

Próximo. Chegamos ao ponto final. Quero manter-me fiel à minha promessa de falar em torno de 15 minutos, para não perder a atenção das senhoras e dos senhores. Quero referir-me agora à crise da ética que vivemos hoje.
Por que existe essa crise da ética? Porque não temos mais nenhum referencial. Como não existe mais uma relação entre moral, religião, bons costumes, o que é certo, o que é errado, as pessoas se sentem sem ter que dar satisfação dos seus atos. Ah! Mas existe a lei. É claro que existe a lei. Mas sabemos também que nem todas as pessoas seguem a lei na esfera privada. 

Então, quais são as grandes questões do nosso tempo, tanto no final do século XX, quanto no início do século XXI? Eu ousaria dizer que as grandes questões do final do século XX e do século XXI são as questões éticas. Quem em parte traz para nós essas discussões, por exemplo, mas não apenas eles, são os ecologistas. Quando os ecologistas falam: temos de pensar nas próximas gerações, eles estão atuando de maneira ética, ou seja, estão preocupados com a ética da responsabilidade no sentido weberiano. Não sei se eles sabem disso, mas estão seguindo a segunda versão da ética do Weber.

Direitos humanos. Neste particular, quero destacar o papel importantíssimo das organizações internacionais, da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Quando alguém cria uma carta de direitos humanos, traz a questão da ética para o primeiro plano. Se, em muitos casos, o príncipe abandonou a moral para simplesmente seguir a razão do Estado, as organizações internacionais tentam resgatar essa moral e ética perdidas.

Não quero entrar na discussão se os direitos humanos devem ser vistos de uma perspectiva universalista, globalista ou se são relativos, variam de cultura para cultura — essa é outra discussão —, o que quero ressaltar a importância de se resgatar o conceito de direitos humanos. Por exemplo, a questão do aborto. Deve haver aborto legal ou não? Nos Estados Unidos, até hoje não há legislação federal sobre aborto — alguns Estados possuem, mas a União, não. Todas as decisões importantes sobre aborto nos Estados Unidos foram tomadas pela Suprema Corte. A questão da eutanásia, também uma grande polêmica, a questão da bioética, a questão de transgênicos ... Vejam o paradoxo do final do século XX, início do século XXI: a ciência avançou tanto, é até capaz de criar vidas em laboratórios, e o cientista, que não tem de dar satisfação a ninguém dos seus atos, agora está sendo premido por questões éticas. 

Até que ponto ele pode criar uma vida humana? Não temos resposta para essas questões, porque a ética está em crise. Por isso, é importante resgatarmos o conceito de ética.

Estamos vivendo a questão da guerra no Iraque. Quantas vidas foram perdidas em virtude da política externa ou do interesse nacional de uma potência imperial?! Como a sociedade internacional reage a esse fato? 

"Ora, mas existe a Organização das Nações Unidas", dirão alguns. Com certeza, existe a ONU, mas o que a ONU fez relativamente à atuação concreta de um Estado? Nada. Ela se viu paralisada. E somos novamente obrigados a resgatar Hobbes: quem falou mais alto foi aquele que tinha a força, o poder, tinha o maior exército do planeta. 

Mas será que é esse tipo de sociedade que queremos? Será que nós queremos ser governados pela força, por um modelo de democracia, por um estilo de vida que não é o nosso? Não quero entrar no mérito da questão — se gosto ou não do Governo Bush; não tenho nada contra nem a favor, pelo contrário —, mas quero mencionar uma ação específica sobre a qual acho que vale a pena todos refletirem. Uma das primeiras ações que ele tomou após a vitória, não para Presidente em 2000, mas para a Câmara e o Senado em 2002, foi uma nova lei que restringe os direitos humanos. Hoje, nos Estados Unidos, qualquer indivíduo pode ser detido pelos órgãos de segurança baseado apenas em forte suspeita, para ser investigados se praticou algum ato terroristas ou se nele está envolvido. E o indivíduo pode ficar — não sei quantos exatamente — talvez mais de 30 dias preso sem ter um processo constituído contra ele. Isso é gravíssimo. Nem em nosso regime militar chegamos a esse ponto. 

Agradeço mais uma vez ao Dr. Pinotti e aos senhores a presença. Estou à disposição, caso haja alguma pergunta. 

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Agradecendo aos Profs. Ricardo Caldas e Roberto Romano, reiteramos que as exposições foram riquíssimas, muito instigantes e valiosas, produziram um nível de reflexão que, no pragmatismo do Parlamento, nem sempre acontece. 

Temos 30 minutos para os debates, respeitando o horário de partida dos nossos convidados e o da sessão plenária da Casa, que terá Ordem do Dia. Vou insistir na sistemática que o Deputado José Thomaz Nonô, de forma rebelde — S.Exa. é um revolucionário do PFL —, impediu, que é um conjunto de indagações. Peço aos debatedores para registrarem as perguntas. Depois, faremos as considerações finais.
Está franqueada a palavra ao Plenário para a formulação de perguntas.
Com a palavra a Sra. Adísia Sá. Seja bem-vinda.
A SRA. ADÍSIA SÁ - Boa-tarde. Eu sou a professora e jornalista. Valeu a pena ter saído ontem do Ceará e retornar amanhã para assistir a esse encontro. O coroamento, sem sombra de dúvida, ocorreu agora, quando se fez uma reflexão sobre ética, a parte justamente de que estamos precisando: da teoria e da provocação.
Tenho duas perguntas a fazer. A primeira é dirigida ao Prof. Romano. O Prof. Romano fez uma análise do quadro político-social do Brasil, dando uma visão panorâmica desse quadro que tanto nos angustia. Mas, como um pensador, ele não nos deu uma resposta — apenas nos provocou, nos instigou. Como eu ainda me ligo muito a Marx, e nós já explicamos muito o mundo em uma das suas teses sobre Feuerbach, agora chegou o momento de mudar o mundo. Pergunto ao professor: neste quadro, nós não temos um caminho? Que caminho seria esse?
E ao Prof. Caldas farei a outra pergunta. Costumo, em "n" palestras que tenho feito pelo Brasil sobre ética — que é minha área predileta, fora a do jornalismo —, dizer que sou muito feliz com esse momento de grande impacto e de tragédia humana que vivemos, em que nada está — ainda o velho Marx &mdashestá sustentado, tudo está se esvaindo. Neste momento de contradições, neste mundo de indagações que nos cerca — indagações que levam as pessoas de pensamento a uma angústia filosófica e existencial —, sinto-me feliz. Tudo está se esgarçando, tudo está sendo destruído, tudo está desmoronando. Pergunto, então, ao Prof. Caldas: este momento de hecatombe epistemológica, existencial, política, não será um parto, não estaremos partureando uma nova ética?
Muito obrigada.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Obrigado. Alguém mais?
O SR. ANDRÉ BOR-ROZA - (Exposição em espanhol)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) Mais alguém? (Pausa.)
Então, permitam-me algumas palavras. Os nossos professores foram os gregos; passamos por Spinoza e chegamos a Weber. Agora, eu quero "tupiniquinizar" a questão.
Na sua origem, a República brasileira foi fortemente influenciada pelo positivismo. E o positivismo tem um elemento autoritário forte no exercício da política. E o certo é que chegamos ao início do século XXI com uma inegável crise da representação.
Senso comum: todo político é ladrão. Há até uma música gravada pelo sobrinho do Tim Maia que diz: "Manuel foi para o céu.... se eu fosse um político minha vida não estaria assim". A gente dança distraidamente e é subtraído em tenebrosas transações...
A minha indagação é muito imediatista talvez. Será que há elementos para se perceber, no Brasil de hoje, de democracia formal — democracia formal que na República Velha garantiu o predomínio oligárquico —, do século XXI, inclusive com a troca de guarda no Palácio do Planalto, aqui ao lado, possibilidades concretas de avançar nessa questão comezinha da ética na política? Que passos este Parlamento, por exemplo, poderia dar no sentido de avançar nesse aspecto, para ganhar credibilidade?
Hoje de manhã, Presidente João Paulo Cunha, abrir este seminário, disse que o Poder Legislativo é o mais aberto, o mais transparente e, por isso, apanha mais. Mesmo assim — e parece até erudição pequenininha de musicólogo —, todo mundo diz que o Parlamento não é a Geni nacional. É ótimo ser Geni. Ninguém ouviu a música, nem percebeu a letra do Chico. A Geni era mal vista, mas era fundamental: ela é que salva a população. No entanto, não é bem isso o que o povo pensa de nós. Não somos nem Geni — e nós contribuímos para isso, no exercício do mandato.
Concretamente, para essa representação ser mais substantiva, para o povo se identificar um pouco mais conosco, para afastarmos de vez o perigo do autoritarismo, para aquela frase muito bonita do Mário Covas — não sei se perceberam, gravada em bronze no hall do Anexo II desta Casa, "Com todas as mazelas, com todas as mediocridades, é melhor um Parlamento do que nenhum Parlamento" — ser confirmada, que avanços os senhores nos recomendariam, como cidadãos que estão lá na base? Porque tenho certeza de que a Comissão de Ética e Decoro há de tentar também, durante o nosso mandato, melhorar essa concepção.
O SR. DEPUTADO ORLANDO FANTAZZINI - Deputado Chico Alencar, permita-me fazer um questionamento que muito me preocupa. Andei refletindo sobre essa questão da ética da convicção e da ética da responsabilidade. Parece-me que muita gente, sob o manto da ética da responsabilidade, justifica tantas mazelas, tantos desrespeitos e tanto aviltamento à dignidade humana. Hoje, isso deve estar prevalecendo nos Parlamentos em geral e não só aqui no Brasil. E podemos fazer menção aos Parlamentos americano, inglês e tantos outros, que apóiam a invasão ao Iraque, o genocídio. Será que essa ética da responsabilidade não é uma criação para justificar a falta de ética na vida cotidiana dos Parlamentos e da sociedade como um todo?
O SR. ALBERTO ARAGÃO - Boa-tarde.
Quero parabenizar os presentes e dizer o seguinte.
Pegando a deixa do Deputado Orlando Fantazzini, falamos da ética da convicção e da ética da responsabilidade, mas me parece que temos duas ordens: a ordem do dever ser, do ideal, e a ordem da realidade. E ainda podemos falar da ética da efetividade. Seria a concretude, a realização dos propósitos, dos princípios incluídos na Carta Magna para o cidadão. A ética da efetividade dos direitos talvez seja um ponto importante.
O SR. JAIME FERREIRA LOPES - Sou assessor da Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior da Câmara dos Deputados.
Pelas exposições aqui proferidas, também dá para apreender isso. A sensação que vivemos hoje é a do império do pragmatismo, não só na política, mas também no contexto da vida em geral. Hoje, ser pragmático se tornou um caminho louvável que deve ser sempre perseguido. E, às vezes, em nome ou a partir dessa visão de que se deva ser pragmático sempre, a ética vai para o espaço. E quando, às vezes, alguém se coloca contrário a essa visão, é tachado de jurássico, de não ser moderno.
Então, como sair dessa contradição — e essa seria a minha indagação — ao mesmo tempo, sem perder a capacidade de ser pragmático? Em alguns momentos, isso é necessário, mas não como norteador da vida política.
O SR. RUY SIQUEIRA - Sou Professor de Ética do UniCEUB e Secretário da Comissão de Direitos Humanos.
Quero fazer uma pergunta ao Prof. Ricardo Caldas. Nessa crise dos paradigmas que vivemos atualmente, a crise da ética, enfim, em outras instâncias — parece que foi trazida a questão da simpatia pelo conceito tradicional —, a pergunta é a seguinte: o que seria esse retorno à simpatia, ao conceito tradicional? Eu tenho um problema sério. O senhor em Estados teocráticos. De novo, é velha a idéia etnocêntrica, que é o islâmico. E esquecemos que a modernidade não deu conta dessa superação do Estado teocrático. Em algumas Constituições dos países nórdicos — estou falando da Europa moderna —, está inserida no preâmbulo a idéia da igreja reformada. No Preâmbulo da Constituição brasileira está a inscrita a palavra Deus. A minha pergunta é: nesse retorno ao conceito tradicional, é possível construir uma ética desvencilhada dessa cultura cristã, tão forte e presente na moral e na ética, por exemplo, e até mesmo no Direito, sobretudo positivista?
O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Vamos agora para a etapa final, ouvindo primeiramente o Prof. Roberto Romano.
O SR. ROBERTO ROMANO - Diante de todas as perguntas, a começar pela da Sra. Adísia Sá, gostaria de fazer uma profissão de fé.
Sou adepto das luzes do século XVIII e sou platônico. Por que sou platônico e adepto das luzes? Porque acredito que a vida humana é uma produção técnica. Ela é uma produção de arte. Em Platão, o demiurgo é um technist. Ele produz o cosmos, e o faz com tamanho engenho e arte que fica contente, porque o mundo é bonito, ele vale a pena.
Na base dessa máquina do mundo, exposta no Timeu, ele propõe a República. A República é uma máquina de viver bem. É uma técnica produzida para que as pessoas vivam bem e felizes. Nessa perspectiva, governar — ele usa uma metáfora de ordem técnica — é tingir almas com a tintura das leis. Por quê? Se alguém apenas colore o exterior do corpo, o sol vai embora e desaparece o respeito. Mas se tinge as almas com a tintura das leis, não precisa mais forçar. Aquilo é uma atividade técnica do indivíduo; ele vive aquilo daquela maneira; ele aprende a técnica de procurar traços.
Outra metáfora muito utilizada por Platão é a da caça. É preciso que o Estado impeça a caça do homem pelo homem — a guerra — e impeça a caça do homem pelo homem — a escravidão. No caso, quando fala da justiça, a justiça é como se fosse uma caça. Ela está no meio da moita. Diz, então, Sócrates que temos de cercar a caça, mas não temos garantia de que vamos agarrar a caça, porque ela pode fugir, pois é um animal astucioso. Portanto, ninguém pode dizer que tem a justiça na mão. A justiça é uma busca; é uma tentativa técnica de agarrar o que é correto. Definições a priori de que isso é justo e isso é injusto são absolutamente errôneas sem o conhecimento técnico e sem a prática da política.
Nessa medida, o pensamento platônico — infelizmente Platão é conhecido pela sua versão neoplatônica — reduz ao máximo a hierarquia na coisa no ser, e traz a possibilidade de estabelecer gradações na atividade técnica e no pensamento.
Ora, o que fazem os pensamentos neoplatônicos, de Santo Agostinho, etc.? Introduzem justamente a hierarquia. Temos um Deus — inefável, indizível, etc. —, que jorra como fonte de luz e vai se tornando cada vez menos claro e menos translúcido quanto mais próximo dos seres inferiores. Temos a hierarquia, no caso de Dionísio, o Areopagita, com o grande texto que serviu de espinha dorsal para Santo Tomás de Aquino e outros, com a idéia de que o cosmos inteiro é uma hierarquia de luz e, portanto, não pode existir igualdade. Assim, toda a técnica humana é impotente para quebrar o laço da hierarquia. Existem Deus, anjos, arcanjos, padres, freiras e, lá embaixo, está o leigo comum. É contra a cosmovisão que as luzes, e também o Renascimento, se voltaram. Por isso, o grande peso da técnica no caso das luzes, o apelo à técnica, a política como técnica.
Claro que os argumentos conservadores restauraram a idéia de hierarquia. O romantismo conservador, o positivismo e outros pensam a hierarquia contra a igualdade, que a igualdade é um conceito metafísico, uma bobagem da Revolução Francesa. Assim, temos instaurada a idéia de ordem e de hierarquia. Nesse quadro, o que mais se ataca é justamente a identificação da palavra humana como técnica; o peso do logos como capacidade de transformar, de nomear o mundo e de servir como instrumento.
André Leroi-Gouhran, grande etnólogo do século XX — que me parece cada vez mais leitura urgentíssima, sobretudo em sociedades como a nossa —, mostra a interdependência do instrumento técnico do nosso corpo e da palavra. Ele mostra bem que, quando começamos a nos erguer, a ficar de pé e emitimos os primeiros vagidos, as primeiras palavras com sentido, a nossa estrutura craniana mudou: aumentou o crânio e diminuiu o queixo. Ele usa uma expressão muito interessante: "somos inteligentes porque ficamos de pé". Acho isso fantástico. A palavra é um elemento técnico, um elemento de liberação.
O que vejo como questão primeira em termos de atividade política? É claro que a filosofia sempre foi uma tentativa de curar a palavra. Se existe uma crítica virulenta no plano da cultura à logorréia é a filosofia, que sempre procurou encontrar palavras que tenham sentido e eficácia e se estabeleceu como terapia da palavra. Hoje em dia, é mais do que urgente a terapia da palavra, porque, em nome da crítica e da recusa da democracia, se fez a crítica da palavra. Quando alguém diz "isso é mero discurso", lembro-me da frase de Hegel: "Discursos dirigidos a povos são atos". A propaganda é muito clara nessa linha e a manipulação fascista foi isso: atos. Não se separa o ato da palavra, porque a palavra encaminha, justifica o ato.
Nessa medida, Sra. Adísia Sá, parece-me que a sua atividade, a atividade da imprensa, da universidade, do Parlamento, é justamente a primeira atividade política no sentido de restaurar a dignidade da palavra e a confiança na palavra. Quando estendo a mão e digo "pegue, que você não cairá no abismo", se isso for falso significará morte. Portanto, "confie no Parlamento, mas votaremos todas as leis que vêm do Executivo", "confie no Parlamento, mas lhes trairemos", ou, segundo o exemplo do Deputado José Thomaz Nonô, "confie no Parlamento, mas na hora de votar o confisco das poupanças, apoiamos o Executivo", isso me parece um elemento importante.
Do ponto de vista político, não conheço outro filósofo que tenha dado mais importância à palavra do que Marx, que tem uma formulação muito bonita sobre a palavra e o valor do peso da palavra, inclusive em uma discussão muito prática justamente sobre o dia de trabalho. Na discussão do dia de trabalho, Marx faz a distinção das palavras gewalt e kraft, mostrando que não podemos jamais deixar — para escândalo de boa parte do marxismo — de ter esperança na possibilidade de uma lei do Estado que modifique as relações sociais. Literalmente, foi preciso uma lei do Estado para diminuir a jornada de trabalho. Essa questão precisa ser bem pensada.
Perdoem-me por falar nesta Casa desta maneira, mas o Estado brasileiro foi ideado para ser contra-revolucionário. Quando o querido D. João VI veio fugido de Napoleão, trouxe com ele a idéia de criar nos trópicos um Estado que não caísse nas loucuras das revoluções francesa e americana. Antes, já tinham reprimido as nossas revoluções, como a Inconfidência Mineira, que era das luzes. É muito interessante lembrar que os inconfidentes queriam instalar uma fábrica e uma universidade, duas coisas proibidas.
Quando D. João VI veio com essa idéia, trouxe como proposta retirar do Estado brasileiro aquilo que teria sido a desgraça da Revolução Francesa, isto é, o poder dos Deputados, o poder das assembléias. Na condição de Deputados Federais, V.Exas. devem se lembrar bem da anedota: "Saúdo Vossa Majestade", quando o Imperador fechou o Parlamento e os Parlamentares se inclinaram diante do canhão. Quando eles vieram com essa perspectiva, no Primeiro Império, houve o contrabando da teoria do Poder Moderador, de Benjamin Constant — o deles, não o nosso; não o positivista, mas o liberal francês. Em Benjamin Constant — basta ler seus textos — o Poder Moderador é neutro e serve para diminuir as tensões e os choques, dar um contributo para melhorar a máquina do Estado, ideada por Montesquieu — trata-se de uma máquina, porque é uma balança —,a inflexão dada na Constituição do Estado brasileiro ao Poder Moderador foi que este deixou de ser neutro e passou a ser determinante sobre os 2 outros Poderes. É por isso que, se os senhores lerem Carl Schmitt, um dos mais ferrenhos defensores do poder decisionista, verão o elogio ao Poder Moderador do Império brasileiro.
O que ocorreu quando se deu o final do Império? Houve a subsunção, a passagem silenciosa, mas muito eficaz, do Poder Moderador, com todas as suas prerrogativas, para a Presidência da República. Vivemos essa realidade e não tocamos nela. Se me pedirem alguma coisa nessa linha, diria o seguinte. Primeiro fato: pense-se a estrutura, a gênese e a lógica do Estado brasileiro. Veja-se se a introdução dessas prerrogativas da Presidência da República correspondem ou não à diminuição da importância dos outros Poderes e se a caça ao Parlamento e caça do Parlamento à Presidência da República — porque também ocorre —, não provocam o desequilíbrio permanente que notamos na República brasileira.
Este é um ponto que me parece grave. Discutimos, discutimos, mas supondo sempre este não-dito: temos o Poder Moderador. A tal ponto que os Presidentes da República — não digo o atual —, estiveram colocados em tal solidão que os define como guardiães únicos da totalidade do Estado. Se ocorre qualquer problema na Presidência da República, o Estado inteiro entra em absoluta subversão. Não preciso lembrar a abdicação de Jânio Quadros e tudo o que sucedeu durante o regime militar como resultado desse desequilíbrio.
No meu entender, temos de ter a visão dessa ética, porque isso se transformou em costume. Infelizmente, em decorrência disso, o Brasil é um país executivo-centrista. Em qualquer instituição, o Gabinete é o mais importante. Na universidade, se você for um bom membro da congregação, já é candidato a diretor, se for um bom membro do conselho, já é candidato a reitor. Tem-se a ilusão de que tudo vai ser resolvido no gabinete reitoral. E se desvaloriza as congregações e as instâncias do debate e da palavra, inclusive. Existe a crença, que o positivismo muito ajudou a piorar, de que o Executivo, decide e é capaz. O positivismo é uma espécie de transformação perversa do platonismo.
Luiz Pereira Barreto, em seu discurso de 1900 ao Clube dos Engenheiros, tem como idéia central: os engenheiros sabem, por isso podem prever, por isso podem prover. Assim, só pode fazer política aquele que é um técnico, que é um cientista do poder. O resto não tem mais importância. Claro que os engenheiros não mandam mais; hoje, são os economistas. Os economistas têm o monopólio do saber, da previsão e do golpe de Estado. Perdoem-me, mas no Banco Central temos mais poder efetivo concentrado do que no Parlamento inteiro, justamente pela preeminência do Executivo, o que leva a muitos abusos, como as medidas provisórias e tudo o mais que os senhores conhecem muito bem. Duas ditaduras, a de Vargas e a militar, acentuaram o peso do Executivo, que virou um ethos, um costume.
Parece-me que é preciso lutar pela valorização do Parlamento, do diálogo e dos outros Poderes, mesmo que estes não queiram, como o Judiciário. Senão, não vejo possibilidade de se estabelecer efetivamente uma República igualitária no País.
A imprensa parece-me fundamental, mesmo com as mazelas que tem, e eu as conheço profundamente. Parece-me que a imprensa é uma forma de se manter o valor do logos, o valor da palavra, o valor da fé pública. É por isso que tenho essa convicção. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Agradeço ao Prof. Roberto Romano a participação .Concedo a palavra ao Prof. Ricardo Caldas.
O SR. RICARDO CALDAS - Não vou falar sobre positivismo, porque o Prof. Roberto já dissertou sobre o tema. Prefiro responder às perguntas que me foram endereçadas.
Quanto à questão da tragédia humana mencionada pela Sra. Adísia Sá, concordo plenamente, e esqueci de mencionar a pobreza. Estamos convivendo com a pobreza nos planos nacional e internacional e em níveis crescentes. Essa é também uma questão que gera uma indagação ética.
Na verdade, não tenho assistente. Foi apenas uma brincadeira, não sei se engraçada ou não. Mas, para a informação do Plenário, acho que seria interessante mencionar.
Quanto à crise da representação do Parlamento, concordo que ela exista — e, aliás, já a procurei expor na Comissão da Reforma Política. Destacarei alguns elementos do nosso sistema eleitoral, que não reflete mais a vontade da população, na minha forma de ver. Está havendo um distanciamento entre o eleitor e o eleito, e o nosso sistema não contribui para diminuí-lo, ao contrário. Defendo 2 pontos importantíssimos para corrigir isso: primeiro, o parlamentarismo, que aproxima o eleitor do Governo. Temos de retomar a discussão sobre o parlamentarismo; e, junto com ele, sugiro o sistema distrital misto, em que a metade do território é divido em distritos e a outra em listas. Permite-se, assim, que o indivíduo vote numa pessoa da qual ele está próximo.
Outro ponto fundamental: não se pode falar em representação, em Câmara dos Deputados ou em Senado Federal sem falar em partidos políticos. Precisamos fortalecer os partidos políticos. A nossa civilização, hoje, na minha forma de ver, não fortalece esses partidos. O voto em aberto acabam estimulando uma guerra interna entre os Deputados, que deveriam atuar de forma conjunta. Não vejo como fortalecer o Legislativo sem uma reforma política.
Há algo de novo? Eu diria que sim. A própria discussão encaminhada inicialmente pelos ecologistas e depois por outros grupos, defensores de aborto, contra a eutanásia, etc., está nos levando a repensar a sociedade. Como vejo a nossa sociedade?
Nesse aspecto, sigo tanto a visão de Raimundo Faoro quanto a de Sérgio Buarque. Vivemos ainda, por menos que queiramos e não gostemos de ouvir isso, numa sociedade tutelada, paternalista, desarticulada como um todo. Ela só é articulada quando existem grandes interesses em jogo, os quais, em geral, são específicos, de grupos de pressão que terão, por exemplo, um ganho econômico, mas sociedade no sentido de povo vejo como essencialmente desarticulada. As grandes discussões não chegam à população. Ainda vivemos com essa herança patrimonialista, difícil de romper. Isso é algo que levaremos muito tempo para modificar.
Vejo de positivo, até certo ponto, as ONGs, no sentido de que elas mobilizam as pessoas e geram capital social. Há controvérsias em Ciência Política sobre a questão. Alguns autores da Ciência Política não aceitam que as ONGs sejam estratégias de mobilização, mas, na verdade, grupos mobilizados para atender a interesses específicos.
Não vejo dessa forma. Acredito que as ONGs e a sociedade civil podem levar a um crescimento da cidadania. Cito como exemplo o movimento do Betinho contra a fome, que acabou gerando uma mobilização nacional e sendo incorporado pelo atual Governo com um dos pontos de sua agenda.
A questão do capital social é fundamental, no sentido de que procura resgatar a idéia de civitas, de cidadão, de alguém que pode dar uma contribuição à sociedade. Essa idéia de civismo, tão mal utilizada nas disciplinas de OSPB, EPB, etc., agora está ganhando nova roupagem, de civismo não militaresco, de preocupação com algo além dos nossos próprios interesses, ou seja, de agirmos em favor do nosso bairro, da nossa coletividade. E, a propósito, recomendo, para quem tiver oportunidade de ler, o trabalho do Putnam, em que ele analisa por que o norte da Itália se desenvolveu mais do que o sul e por que o sul da Itália é tão pobre e tão clientelista. Qual a sua conclusão? Não há capital social no sul; o capital social da Itália concentra-se no norte, onde as pessoas participam mais da vida comum. Elas exigem mais, portanto, há mais transparência. Então, o capital social contribui para 2 aspectos: fortalecimento da democracia e desenvolvimento econômico. São teses absolutamente originais e interessantes, que recomendo a quem tiver oportunidade de ler.
A questão da ética da responsabilidade. Weber, pelo menos na leitura que faço, em nenhum momento sugere que a responsabilidade seja a maneira de alguém não ter convicções. O estadista deve ter convicções, é claro, tanto que ele divide os políticos em 2 grupos: os que vivem da política, que querem extrair recursos da política, e os que vivem para a política. Ele supõe, é evidente, que quem vive para a política tenha algum grau de dedicação.
Obviamente o estadista tem de ter convicções, mas no momento de agir ele tem de levar em consideração as conseqüências da sua decisão. Esse o sentido da ética da responsabilidade. Às vezes, ele pode até estar ferindo uma convicção sua, como no caso de Churchill. Pode ser que Churchill não fosse a favor de que pessoas morressem, mas era um momento em que havia a necessidade de uma ação contra um mal maior, no caso, o regime totalitário. A ética da responsabilidade, então, neste caso, acaba sendo superior à ética da convicção.
Foi mencionada a questão da ética da efetividade. Da mesma forma que o Prof. Romano, que se identificou com Platão, eu quero tomar a liberdade de me identificar com Sócrates e Aristóteles, no sentido de que devemos buscar novamente a virtude, que está no meio termo, no equilíbrio. Se alguém radicaliza demais, se vai para um extremo, perde a noção do meio termo. Aristóteles dizia não acreditar na sabedoria individual, mas na sabedoria do coletivo. É nisso também em que acredito.
Não se pode defender a efetividade, ou seja, os fins, sem defender os meios; senão, passamos todos a ser oportunistas — qualquer coisa que façamos vale a pena se der um resultado certo. Por exemplo, o bloqueio do Collor estaria correto se ele tivesse conseguido derrubar a inflação. Eu acho que não. Aí vem a questão da virtude novamente. O que é um cidadão virtuoso? E já me considero respondendo um pouco à pergunta sobre em que sentido me considero um saudosista. Saudosista no sentido de buscar, de ter e de querer retomar um pouco a visão de ética, que já está perdida. Todos deveríamos ter a ética como forma básica de conduta.
Atualmente, que as empresas modernas procuram? Muitas delas disseram não à corrupção, ao trabalho forçado, ao trabalho infantil. Cito como exemplo o Instituto Ethos, que procura estimular nos empresários a idéia de ética. Está havendo uma retomada da ética, acredito. E eu diria que a retomada da ética — talvez eu esteja sendo otimista demais — se dá em face da crise que acompanhou o século XIX, o excesso de racionalismo que perdeu a referência completamente entre o certo e o errado. O relativismo em excesso acaba contribuindo para que não exista nenhum tipo de ética.
Responderei às últimas perguntas em conjunto, se eu puder. Elas se referem ao império do pragmatismo e à crise dos paradigmas. Concordo que um excesso de pragmatismo leva ao fim da ética. Ou seja, se o seu grupo está fazendo uma coisa que o beneficia daquilo, você simplesmente fecha os olhos e diz: "Eu topo, estou dentro, quero participar disso", porque é conveniente para você.
E aqui quero retomar as idéias de Antígona, tanto a de Annouille, quanto a de Sófocles, que coloca os seus princípios acima dos da cidade. O sogro dela havia proibido que os militares mortos fossem enterrados em certa região, e seu irmão havia sido morto e estava do outro lado do campo de batalha. Proibida de enterrá-lo, ela disse: "Não vou seguir essa, lei porque não posso seguir uma lei injusta". Ela era casada com o filho do rei, considerado o melhor partido, jovem, belo, rico etc. As pessoas perguntavam-lhe: "Você vai abrir mão do seu casamento para defender o enterro do seu irmão?" E ela respondia: "Vou, porque não posso viver numa sociedade em que os princípios pessoais têm de ser encobertos por uma vontade que não é a minha". Ou seja, não há respeito ao indivíduo, não há princípios, não há ética, não há moral, pois, de acordo com a lei do sogro dela, quem enterrasse alguém morto na batalha seria, necessariamente, executado. Então, ela prefere a execução a viver em uma sociedade sem ética.
Aliás, essa é a mesma posição de Sócrates. Foi oferecido a ele inúmeras oportunidades para escapar da execução, porém ele dizia: "Não, prefiro ser executado, mas manter meus princípios, a viver em uma sociedade em que não acredito. Se a sociedade permitida pelos deuses é tão boa, não vejo a hora de vir a pertencer a essa nova sociedade. Se ela existe, vou aprender com ela, talvez eu possa evoluir; se ela não existe, pelo menos dei a minha contribuição nessa sociedade que vivemos."
Acredito que a crise do paradigma — e os senhores têm a liberdade de discordar — não é por causa da influência cristã. Da minha parte, eu seria até hipócrita se dissesse que a ética tem de ser atrelada à religião x, y ou z. Devemos estar acima disso. Devemos buscar o que cada princípio ou cada filosofia pode trazer de bom.
Existem princípios que são absolutos e princípios que são relativos. Ou seja, existem alguns valores que mudam de uma sociedade para outra, mas existem também alguns valores que são comuns, como não matar. Se citar, por exemplo, não roubar, vou entrar em crise com a sociedade cigana. Os ciganos não têm conceito de propriedade; logo, eles não possuem conceito de roubo. Não é que eles defendam o roubo, não. Mas para defender se essa xícara é minha ou da Câmara ou se esse copo é da Câmara ou meu, tenho de aceitar o conceito de propriedade. Se não aceito o conceito de propriedade, posso levar esse copo ou essa xícara e não incorrer na prática de crime. Vejam, então, que em algumas sociedades não há esse conceito.
De qualquer forma, há alguns valores que podem ser aceitos pela maior parte da sociedade, talvez excetuando os ciganos, e que seriam as bases dessa nova ética, que é o que os ecologistas, hoje, estão buscando quando falam em desenvolvimento sustentável. O desenvolvimento sustentável é justamente a manutenção de um patrimônio que não é nosso — as florestas, os rios, os lagos — mas que recebemos e que temos a obrigação de preservá-lo para as próximas gerações. Qual o direito que temos de aniquilar espécies inteiras? De levá-las ao extermínio simplesmente pelo prazer? O homem é o único animal que mata pelo prazer, nenhum outro faz isso.
Há alguns pontos básicos dessa nova ética que não devemos discriminar, tenha origem cristã ou islâmica. As coisas boas de cada sociedade podem ser a base de uma nova ética que poderia ser uma referência — citei os ecologistas como um exemplo disso.
Penso ter respondido a todas as perguntas de maneira completa ou incompleta. Mais uma vez só me resta agradecer aos que vieram prestigiar a nossa apresentação e ao Deputado Chico Alencar, que está representando o Deputado Orlando Fantazzini.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Muito obrigado, Prof. Ricardo Caldas.
Encerro aqui a minha tarefa de coordenador desta Mesa.
Um bom critério para avaliarmos como usamos o tempo é verificar se, ao fazer qualquer coisa — de tomar um café a participar de um debate —, saímos melhores do que entramos. Creio que esse sentimento é generalizado.
Também saio um pouco mais angustiado, mas positivamente, para avançar no caminho de pelo menos não matar — não matar inclusive a esperança da população, que é teimosa em desejar dias melhores.
Passo o comando dos trabalhos ao chefe desse seminário. Novamente parabenizo o Deputado Orlando Fantazzini e sua dedicada equipe, que proporcionaram um momento de luz no Parlamento, o que não é muito comum. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Fantazzini) - Agradecemos ao Prof. Ricardo Caldas, já o fiz pessoalmente ao Prof. Roberto Romano, e a todos a presença.
Temos a convicção de que este primeiro encontro representou enorme contribuição no sentido de que mantenhamos em nossa agenda, quotidianamente, o tema ética e decoro parlamentar.
Temos também a convicção de que este é o primeiro de vários outros encontros, seminários e debates que serão realizados em Assembléias Legislativas, Câmaras Municipais, até para que possamos, aprimorando esses conceitos, manter uma presença mais constante na sociedade e, ao mesmo tempo, aperfeiçoar o modelo democrático que queremos.
Agradeço aos membros do Conselho de Ética, em especial ao Deputado Chico Alencar, que compartilhou comigo a coordenação dos trabalhos — hoje estive de manhã, e ele, à tarde —, e aos Deputado Patrus Ananias e Luciano Zica, que fizeram exposições, e a presença do Deputado José Thomaz Nonô, ex-Presidente do Conselho de Ética.
Precisamos aprofundar-nos nesse tema, o que esperamos ocorra num futuro próximo, fazendo com que a sociedade tenha do Parlamento não mais a visão de um dos piores Poderes da República, mas que se sinta verdadeiramente representada por aqueles que decidiu escolher para a defesa dos seus interesses.
Muito obrigado a todos. Um agradecimento especial aos funcionários do Conselho de Ética que se desdobraram para que este encontro pudesse realizar-se na data de hoje.
 

domingo, 19 de maio de 2019

O CALDEIRÃO DE MEDÉIA* O problema da soberania popular, da soberania estatal e das ciências, hoje. Roberto Romano

O CALDEIRÃO DE MEDÉIA*
O problema da soberania popular, da soberania estatal e das ciências, hoje.
Roberto Romano**


"As ciências constituem um fraco poder, porque elas não são reconhecíveis em qualquer homem de modo eminente, salvo num pequeno número, e, nestes últimos, sobre poucas coisas. A ciência é de uma tal natureza, que ninguém pode dar-se conta de sua existência, sem a possuir numa larga medida".(1) É assim que o grande teórico do Estado moderno, Thomas Hobbes, indica o dilema do saber científico e da política. Para que o povo aceitasse o conselho dos cientistas, seria preciso que ele mesmo fosse dono de saberes. Ora, o vulgo não é capaz disto. E o número dos sapientes é diminuto. E mesmo no campo erudito, os verdadeiros sábios se especializam, conhecendo corretamente poucas coisas. O grande número de populares ignorantes, de um lado, e a pequena quantidade dos cientistas de outro, impedem pensar que o mando seja mantido pelo conhecimento. Contrário à democracia, Hobbes busca em outros planos a força do Estado também recusando o axioma platônico do rei filósofo, ou do filósofo rei.

Mas o descarte das ciências e dos cientistas enquanto fontes de poder legítimo, em Hobbes, também passa pela crítica da idéia que autoridades e povo fazem do conhecimento. Quem é visto como verdadeiro conhecedor pela massa? Não o cientista, mas o que amplia o saber: "As artes de utilidade pública", segue o Leviatã, "como as fortificações, a fabricação de engenhos e instrumentos de guerra, constituem um poder, porque contribuem para a defesa e para a vitória. Embora sua mãe verdadeira seja a ciência, mais precisamente as matemáticas, como elas nasceram pelas mãos do artífice, são consideradas como dele saídas, passando a parteira por mãe aos olhos do vulgo".

A metáfora do parto, utilizada por Hobbes retoma a linha socrática do saber ocidental. O programa platônico, afastado num aspecto, retorna ao pensamento hobbesiano por outra via. O aristocratismo da República continua no pensador inglês. A multidão jamais constitui uma fonte de saber. Muito pelo contrário. O povo nunca deve ser ouvido nos assuntos científicos, porque se prende às aparências, não atinge a essência das coisas racionais. A medicina é arte difícil. A política socrática propõe-se enquanto medicina da polis. Sócrates, num outro diálogo platônico, mostra o que pensa do povo, ao propor o seguinte exercício: se grande número de crianças é posto diante do cozinheiro e do médico, ambos lhes dirigindo um discurso, qual dos dois será o escolhido como guia? O cuca dirá aos pequenos: "Eu preparo doces variados, enquanto ele, o médico, lhes força a fazer regime". O médico afirma: "Eu faço isto para o seu bem". O cuca será eleito.(2)

Na democracia, o povo/criança mal educada, pensa que sua vontade não pode encontrar nenhum obstáculo. Nela, o excessivo arbítrio dos indivíduos conduz à catástrofe do Estado, gerando o mando tirânico, o exato oposto da democracia. Estas páginas da República, o livro fundador da teoria do Estado no Ocidente, ecoam em Hobbes. Neste último, o povo deixa de ser "criança", e se torna, no De Cive, perigosa e estulta massa sempre prestes a subverter a república, porque seduzida pelos sofistas. Os demagogos seriam como a bruxa Medéia, a qual enganou as filhas de Peleu, rei da Tessália: "estas mal avisadas, querendo rejuvenescer o pai decrépito, o deceparam, o cozinharam esperando vê-lo inutilmente, renascer". O povo comum, continua Hobbes, "não é menos louco do que estas pobres filhas de Peleu, quando, desejando reformar o governo do Estado, persuadido por algum ambicioso(...), após dilacerar a república, a consome mais do que a reforma, por um fogo inextinguível".(3) Note-se as metáforas usadas por Hobbes. Elas foram extraídas de Platão, com modificações. No grego, o demagogo é cozinheiro que estraga o regime (o termo tem esta origem) político. Em Hobbes, o sentido da imagem é o mesmo. O estatuto do povo é sempre o de ignorância sobre a ciência e a política.

No século 18, duas atitudes foram tomadas pelos teóricos do Estado e da ciência. A primeira, avançada por Imanuel Kant, propõe a cidadania no plano moral, mas sem conceder ao povo o direito de ampliar sua iniciativa no governo da república das letras e da política. É célebre o dito kantiano sobre o nexo entre o vulgo, os cientistas, os demagogos (tanto os opostos quanto os defensores do governo): "o povo vai ao sábio, como se procurasse um mágico (...) entendido em coisas sobrenaturais. Porque o ignorante tem uma opinião excessiva do sábio, de quem espera algo. É fácil prever que se alguém tivesse a esperteza de se apresentar como taumaturgo, ganharia a preferência popular". Segue-se a frase brutal de Kant: "O povo quer ser dirigido, isto é, (na linguagem dos demagogos), ser enganado. Mas ele não quer ser dirigido pelos cientistas universitários (pois sua sabedoria é muito elevada para ele), mas pelos agentes do controle, pelos técnicos do governo, pelos funcionários da justiça, pelos médicos, pelos padres".(4)
Apesar de tudo o que separa Kant de Hobbes, nesse ponto ambos aprovam o socratismo: o povo só atinge a opinião na política e na ciência, a famosa "doxa". Ele quer resultados técnicos, sem penetrar nas aporias da pesquisa, a não menos famosa "epistême". Estamos, nesta senda, a um passo da violenta diatribe hegeliana contra a soberania popular, e do conseqüente desprezo votado ao povo no que diz respeito à ciência.(5) O homem do povo não precisa de razão científica ou tecnológica para ser livre. "Kant conclui que a liberdade moral não depende do saber e das luzes no sentido clássico do termo (...) a racionalidade (moral) pode se exercer sob forma imediata, sem inteligência e sem objeto: para ser livre e virtuoso, não é preciso ser cientista".(6)

A outra atitude foi assumida por Denis Diderot e Condorcet. O pai da Enciclopédia desejou ampliar os conhecimentos técnicos e científicos do povo. Seu "Plano de Universidade para a Rússia", escrito a pedido de Catarina II, insiste na idéia de que uma "universidade é uma escola cuja porta está aberta indistintamente para todos os filhos de uma nação, e onde mestres pagos pelo Estado os iniciam no conhecimento elementar de todas as ciências".(7) Seguidor de Francis Bacon, Diderot considera indispensável, para atingir o Estado onde a liberdade estivesse assegurada, um saber científico e técnico espalhado na massa do povo. Condorcet levou ao máximo a tese da educação do povo, para que este exerça corretamente a sua soberania. O cidadão, diz ele, deve "se perguntar se não é vítima de um escrutínio deformado ou cheio de truques. Todo votante deve saber que mesmo as opiniões majoritariamente verdadeiras podem ser, por efeito de procedimentos viciados, combinadas num resultado globalmente errôneo." Deste modo, não existe democracia real sem povo instruído, a começar pelo cálculo geométrico, terminando nas técnicas e nas artes.(8)

Para que nosso tema apresente uma latitude maior, passemos à questão da soberania popular em Rousseau e nos seus discípulos imediatos. Estes foram apontados como irracionais, dada a recusa rousseoista das técnicas e das ciências. A fenda aberta por Rousseau, entre natureza e artifício, empurrou a doutrina da soberania popular para os antípodas da razão de Estado, e da razão simplesmente. Rousseau e seguidores, após o triunfo provisório do terror, foram vistos como primitivos e inimigos da ciência. Mais importante do que esta vexata questio, até hoje matéria de muitas disputas acadêmicas, foi a doutrina sobre a soberania popular negada pelos contra-revolucionários. Descartando, contra Rousseau, a soberania do povo, os conservadores termidorianos afastaram ainda mais a massa e os cientistas. Mas recomecemos, seguindo etapas.

No terceiro ano da Revolução Francesa, foi escrito um discurso cuja tônica era a desconfiança no governo representativo. "A soberania é uma, indivisível e inalienável, e vós a dividís repartindo-a, e a perdeis, transmitindo-a. Os ilustres homens a quem chamastes para fazer uma nova Constituição não têm outros direitos do que vos submeter as suas idéias. Numa palavra, o poder dos representantes é como um raio de sol refletido num espelho. Vós sois esta luz, a qual eu comparo ao astro diurno, e os deputados são o cristal que reflete o poder que neles depositastes e que só iluminarão a terra graças ao fogo que de vós emana".

Continua nosso orador: "A autoridade do povo, reunida numa ou em várias mãos, eis o nascimento da aristocracia, eis os perigos da outorga de uma potência. Se os deputados podem prescindir de vós para fazer leis e a sua sanção lhes parece inútil, neste instante nascem os déspotas e vos tornais escravos... Como um mandatário público pode imaginar que o mero título de representante da soberania pode possuir o próprio direito da soberania? Como eles podem acreditar que a opinião da soberania que a eles é confiada por vós pode conter em si o direito de decisão absoluta? As piores desgraças vos esperam se não for resolvido este problema. Estais perdidos se eles vos impõem leis que não aprovastes".

O autor das frases acima é o Marquês de Sade. O texto se intitula "Idéias sobre o modo de sanção das leis". Recordemos a causa dessas palavras. Estamos em 1792. Fracassou a primeira Assembléia Legislativa. Surge a Convenção, supostamente eleita por sufrágio universal. Supostamente, porque dos votos estavam excluídos os monarquistas, de um lado, e a massa dos sem propriedade, de outro. Aos representantes, expressando certa minoria, foi concedido o papel de encarnar a Nação soberana seguindo nisto as doutrinas de Sieyes. Seus poderes, teoricamente, não tinham limites. Nenhuma força interna adversa poderia persistir. A primeira potência sob ameaça era a Comuna de Paris. Esta última, nas palavras de Soboul, "municipalidade insurrecional, estava ameaçada de desaparecimento ante a representação nacional". Esta vontade de aniquilar a cidade mais importante no processo revolucionário, até aquele momento, foi expressa por Lasource, um representante do interior: "É preciso que Paris seja reduzida em 83 por cento de sua influência, como cada um dos demais departamentos". (Cit. por Soboul).

Na Comuna de Paris brotavam, a cada instante, novas massas dos sans cullottes, reivindicando uma economia contra os dogmas da propriedade, guardados mesmo por jacobinos. Os Girondinos, para atenuar o poder de fogo da Comuna, apelavam para uma "federação", na qual o particularismo reinaria, através das administrações locais. Os Montanheses, deputados de Paris, seguiam relutantemente as forças populares da grande urbe.

Entre os dois "partidos", havia o centro, reunindo oportunistas que "temiam o povo, no fundo; a violência arbitrária e sanguinária lhes repugnava e, para eles também, a liberdade econômica tinha o valor de um dogma" (G. Lefebvre). Durante algum tempo, os Girondinos pareceram senhores da Convenção, baseados na desconfiança dos interioranos contra a Comuna e os sans culottes parisienses, o medo de massacres, a raiva contra as palavras de ordem nocivas à propriedade. Roland, representando esta facção burguesa, tudo fez para destruir a Comuna a qual, ao ser dissolvida, em novembro, havia perdido seus poderes excepcionais e suprimido seu Comitê de Vigilância. Roland, economista e ministro de plantão, na época, denunciava a "prodigalidade da Comuna, que mantinha o pão a 3 soldos, à custa dos contribuintes". Mesmo Saint-Just, radical em outros prismas, "como economista ortodoxo" no debate sobre o comércio dos cereais, "mostrou que o único remédio para a carestia era reprimir a inflação" (Lefebvre).

Voltemos às advertências de Sade. Os atos políticos lembrados, mostram que o discípulo de Rousseau soube, de modo certeiro, identificar a virada que se anunciava na Convenção. Mudança que surgiria, com toda plenitude, no Termidor, após a derrota da Comuna e de outras políticas cuja premissa era a soberania popular direta. Notemos a torção realizada por Sieyès, na própria idéia de soberania: esta, de "popular", passou a ser "nacional". O deslizamento precisa ser acompanhado nos textos de Rousseau e de Sieyès. Lembremos alguns traços conhecidos das duas teorias tão próximas e tão distantes.

Para Rousseau, a soberania é inalienável. Se há "pacto" para existir "governo" (gouvernement) o povo "perd sa qualité de peuple". Só o povo é legislador, mesmo que ele precise ser instruído por um sábio, porque nem sempre ele pode ver o bem que ele sempre deseja. Mas o sábio só propõe leis: "le peuple même ne peut, quand il le voudrait, se dépouiller de ce droit incommunicable". O que é o governo, sobretudo para os homens que o asseguram? "Um emprego no qual, enquanto simples funcionários (officiers) do Soberano, eles exercem em seu nome o poder de que são depositários, e que ele pode limitar, modificar ou retomar quando bem lhe aprouver, sendo a alienação de um tal direito incompatível com a natureza do corpo social e contrário ao fim da associação". Instituindo o Governo, o Soberano povo converte a Soberania "em Democracia". Cidadãos tornam-se magistrados, funcionários do Soberano. Reunido em Assembleia, o Soberano mostra-se onipotente, o poder executivo fica suspenso.

Toda Constituição é provisória, os "empregos" governamentais são revocáveis. Sempre que o administrador assume uma autoridade independente do soberano, ele viola o "traité social", dissolvendo o próprio Estado, constituindo um "novo Estado" só composto pelos próprios executivos, excluindo os cidadãos. Estes, a partir deste momento, retornam à liberdade natural, e não são obrigados, embora sejam constrangidos, a obedecer. "O soberano só pode ser representado por ele mesmo". Deste modo, deputados eleitos não podem ser "representantes" mas "comissários", ou "delegados". O que o Povo "en personne" não faz, não é lei. Povo "representado" não é povo, nem livre.

Sieyès, ao contrário, pensa os deputados como representantes, possuindo um mandato geral. Mesmo concedendo que este mandato está "ao dispor" de quem o concedeu — o povo — sendo revocável e limitado, Sieyès elogia o regime representativo. Tudo, diz ele, no estado social, é matéria de representação, e os homens aumentam sua liberdade quando concordam em serem representados tantas vezes quantas seja possível. O argumento é que, embora tenhamos uma só autoridade política — o próprio corpo social — existem diferentes órgãos daquela autoridade, baseados em diferentes comissões dadas pela sociedade. Trata-se de um "concurso de poderes". No Contrato Social encontramos a nota célebre de Rousseau sobre o direito de propriedade e a péssima administração: "sob os maus governos", a "igualdade é somente aparente e ilusória; serve só para manter o pobre na miséria e o rico na usurpação. Na realidade as leis são sempre úteis aos que possuem e prejudiciais aos que nada têm, donde se segue que o estado social só é vantajoso aos homens quando todos eles têm alguma coisa e nenhum tem demais".

A tese acima passou, na pena de muitos comentaristas, como um paradoxo de Rousseau. Mas o nexo entre apropriação legal e excludente, entre propriedade e tipo de governo, foi estratégico nas ações e doutrinas dos que escreveram sobre a vida política antes e durante a Revolução. Para ficar com o exemplo de Sieyès: nas suas "Observações sumárias sobre os bens eclesiásticos" (1789), ele afirma que os corpos morais (clero, cidades etc.) têm direitos sagrados no que tange à propriedade, bem como os indivíduos.

Em Rousseau, a propriedade só pode ser uma concessão do soberano, constituído no pacto social. O soberano, caso os particulares ricos sejam infiéis ao público, tem o direito de lhes retirar o direito sobre bens. O corpo político decide que haverá propriedade. Em sua edição do Contrato, M. Halbwachs chega a dizer que, em plena lógica do sistema rousseoísta, o soberano "poderia admitir que todos os bens permanecerão comuns e que, tal como estado de natureza, os frutos da terra são para todos, mas a terra não é para ninguém, ou, ainda, que a terra só pertence ao soberano". Rousseau indica o liame entre soberania popular, subordinação do governo a ela, limitações da propriedade e governos que a desviam, dando como resultado a desigualdade econômica e social. O pensador gerou a distinção, no pensamento jurídico e político, entre "soberano" e "governo".

Robert Derathé registra o fato de que essa distinção, com fortes conseqüências na feitura das leis, não existe na maioria dos países que hoje se julgam democráticos. Neles, "é raro que uma lei possa ser votada sem o assentimento do governo". Mantendo-se a desconfiança de Rousseau diante dos maus governos, autônomos face ao povo, podemos ter uma noção das imensas dificuldades, para os seus seguidores, na Convenção, quando eles precisaram administrar, ao mesmo tempo, a sacrossanta propriedade e os sans culottes parisienses, na Comuna. Indecisos entre a burguesia e as massas, os jacobinos terminaram num zigzag que os conduziu à guilhotina.

Tomemos Robespierre. Nos primeiros tempos da Revolução, ele sustentou a idéia, pouco ortodoxa em termos rousseoístas, da soberania dos deputados. Apenas depois de 1791, quando se convenceu de que a Assembléia Nacional não tinha força para vencer os inimigos da França, insistiu sobre a soberania popular. Mesmo assim, no discurso proferido em 24 de abril de 1793, sobre a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, Robespierre, falando sobre a propriedade afirma: "Ao definir a liberdade como o primeiro dos bens humanos, o mais sagrado entre os direitos naturais, dissestes com razão que ela tinha como limite os direitos alheios. E por que não haveis aplicado tal princípio à propriedade, uma instituição social?". Entre as medidas avançadas por ele, esquecidas pelos convencionais, está "o princípio do imposto progressivo". Na "Declaração" escrita por Robespierre, lemos: "o direito de propriedade é limitado, como todos os demais, pela obrigação de respeitar os direitos dos outros". Para garantir este ponto, o artigo 16, do mesmo texto, termina afirmando que "o povo, quando lhe agrada, pode mudar o seu governo e os seus mandatários". No artigo 26 temos a doutrina sobre governo: "As funções públicas não podem ser consideradas como sinais de superioridade, nem como recompensa, mas como deveres públicos. Os delitos dos mandatários do povo devem ser severa e agilmente punidos. Ninguém possui o direito de se pretender mais 'inviolável' do que os outros cidadãos. O povo tem o direito de conhecer todos os atos dos seus mandatários; estes devem prestar contas fiéis da sua gestão e sujeitar ao seu juízo com respeito".

No discurso "Sobre a Constituição", pronunciado em 10 de maio de 1793, Robespierre coloca a aporia ainda hoje irresolvida nos Estados republicanos que se julgam democráticos: "Dar ao governo a força necessária para que os cidadãos respeitem sempre os direitos dos cidadãos; e fazer isto de um modo tal que o governo nunca possa violar estes mesmos direitos". O governo, continua, "é instituído para fazer a vontade geral respeitada. Mas os governantes possuem uma vontade particular: e toda vontade particular tenta dominar a outra". Qualquer constituição deve, segundo Robespierre, "defender a liberdade pública e individual contra o próprio governo". De modo rousseoísta, ele ataca: "o povo é bom e seus delegados são corruptíveis: é na virtude e na soberania do povo que precisamos buscar uma barreira contra os vícios e o despotismo do governo... A corrupção dos governos tem sua fonte no excesso do seu poder e na sua independência nos confrontos com o povo soberano". Robespierre invectiva a "velha mania dos governos de querer muito governar".

Apesar dessas proclamações, o político termina afirmando que "no governo representativo não existem leis constitutivas tão importantes quanto as que garantem a regularidade das eleições". E a solidez de uma Constituição se baseia "na bondade dos costumes, no conhecimento e no sentido profundo dos sagrados direitos do homem". Empurrado pelas massas e cercado pelos contra-revolucionários de todos os matizes, dentro e fora da Convenção, o setor jacobino encara, finalmente, o problema do governo comum e suas diferenças com o governo revolucionário. O primeiro conserva a República, o segundo funda a mesma. O governo revolucionário extrai sua legitimidade da "mais santa dentre as leis, a salvação do povo" e da necessidade. Governo revolucionário não significa "anarquia nem desordem. O seu fim é, pelo contrário, reprimir as duas coisas, para conduzir ao domínio das leis (...) quanto maior o seu poder, quanto mais sua ação é livre e rápida, tanto mais é necessária a boa fé para dirigi-lo". (Relatório apresentado em 25 de dezembro de 1793 à Convenção, em nome do Comitê de Salvação Pública). A mudança de "soberania popular" para "ditadura" é clara. A última salva o povo.

Mas, e se os ditadores usufruírem o poder para si apenas? A resposta de Robespierre desalenta: o ditador deve ser virtuoso. Já Diderot advertira o perigo do tirano amável e querido pelo povo. No mínimo, seus sucessores, ou ajudantes, eternizariam a escravidão voluntária das massas. Através de muitos meandros, finalmente, deu-se, na Convenção jacobina, o que temia Rousseau: o governo, para "instituir" a boa República, tornou-se "superior" à população. Este ensaio de autonomia dos "funcionários do universal", frutificou de muitos modos. Madame de Stael ressalta, nas Considerações sobre a Revolução Francesa, que após o Termidor, com o advento do governo militar e burocrático de Napoleão, foram mantidos vários prismas formais das Constituições revolucionárias, sobretudo os que forneceram ao Corso instrumentos para eliminar do campo político os seus adversários. Os sans culotte, nas Assembléias Populares, insistiam na idéia e na prática da soberania do povo e na revocabilidade tanto dos deputados (chamados por eles "mandatários") quanto dos funcionários públicos. Em 1º de setembro de 1792, a seção "Poissonière" declara: "considerando que o povo soberano tem o direito de prescrever aos seus mandatários a via a ser seguida para agir conforme a sua vontade", os deputados deveriam ser discutidos, aprovados ou reprovados pelas Assembléias primárias. A Assembléia Geral do "Marché-des-Innocents" decidiu, em 25 de agosto de 1792," que os deputados serão revocáveis por vontade de seu Departamento", bem como "todos os funcionários públicos".

Todas essas noções deixam de ser veiculadas e propostas, com a constituição do governo revolucionário e com a ditadura do Comitê de Salvação Pública, o qual "revocou" estas práticas de soberania popular.(9) Os ditadores, na empresa do Estado, "despediram o povo", como este podia despedi-los antes do governo "instituinte". Como disse, este ato de expulsar o povo da cena decisória, serviu para os que derrubaram Robespierre, e assim por diante, de golpe em golpe, passando pelo grande Napoleão, e pelo pequeno, até a época da Comuna de Paris, com o governo Thiers, fruto lídimo e máximo da contra-revolução Termidoriana.

Alain Badiou, em texto grave de conseqüências, escreveu recentemente sobre o conceito de "termidoriano".(10) Neste estudo, o autor discute certas idéias recebidas na historiografia habitual, incluindo a marxista de Soboul e outros, para quem o 9 Thermidor consistiu no "fim do Terror". Isto, argumenta Badiou, não é verdade. "A Convenção Termidoriana foi, ela mesma, fundada num massacre terrorista. Robespierre, Saint-Just, Couthon, foram executados no 10 Termidor, com dezenove outros, sem nenhum julgamento. Em 11 Termidor, a quantidade é de 71 mortos, a mais elevada de toda a revolução".

Ou seja: o procedimento do Terror não se confinou nas mãos dos jacobinos. Ele foi usado pela contra-revolução durante os anos 94 e 95. É preciso recordar a idéia de que a ditadura jacobina deveria estar em "boas mãos" virtuosas. Esta base subjetiva, comenta Badiou, expõe a precariedade desta política. Os Termidorianos, justamente, usaram o poder ditatorial à imagem da constituição do Ano 3. Nela, a Virtude foi substituída pelo "mecanismo estatal da autoridade dos proprietários, o que significou instalar a corrupção no coração do Estado". Não se faz nenhum segredo, naquele texto, da ruptura entre povo e dirigentes do Estado. No artigo 366, diz-se com clareza solar: "Toda tropa não armada deve ser dissolvida". As petições, segundo o artigo 364, devem ser estritamente individuais. "Nenhuma associação pode apresentar petições coletivas, a não ser as autoridades constituídas, e apenas para objetivos próprios às suas atribuições". E, finalmente no artigo 361: "Nenhuma assembléia de cidadãos pode se qualificar como sociedade popular". Com o Termidor, muda o alvo dos governantes terroristas. Ele, agora, são os que afirmam o caráter popular da soberania. A fonte do Terror é o Estado, baseado no censo dos proprietários. Não tem razão, pois, a historiografia que fala no "fracasso" jacobino e na irrupção da "verdadeira" essência burguesa, com a totalidade do processo revolucionário.
Não houve "fracasso", mas o "fim" de uma política, a jacobina. Citando Saint-Just: " o que desejam os que não querem nem virtude nem terror?". Os termidorianos, avança Badiou, não querem um Estado baseado na virtude, mas querem o terror estatal. A virtude foi substituída pelo interesse. Qual interesse? O dos proprietários e do mercado. Citando o termidoriano Boyssi d'Anglas, em discurso de 5 Messidor, ano 3: "Devemos ser governados pelos melhores (...) ora, com poucas exceções, só podemos encontrar semelhantes homens entre os que, possuindo uma propriedade, são apegados ao país que a contém, às leis que a protegem, à tranqüilidade que a conserva".
Enquanto a "virtude" era uma determinação subjetiva, "os melhores", dos termidorianos são uma figura objetiva da propriedade "condicionada absolutamente".(11) Para o termidoriano, o país não é, como para o jacobino, o lugar possível das virtudes. Ele é o receptáculo da propriedade. A lei, para o termidoriano, não é máxima derivada do nexo entre princípios e situação. Ela é apenas o que protege a propriedade. A insurreição, para o termidoriano, não é dever sagrado. A sua reivindicação principal é a tranqüilidade. Badiou traz a noção de "termidoriano" para nossos dias. "Meditar sobre a corrupção", diz ele, "não é hoje uma tarefa inútil". Um termidoriano, por definição política, é um corrompido. Ele é um "aproveitador da precariedade das convicções políticas. Mas em política só existem convicções (e vontades). "E historicamente, como indica corretamente Badiou, "os termidorianos são, o dossier é claro, corrompidos no sentido corrente. E não é por nada que eles vieram depois do Incorruptível. Citemos o dinheiro inglês, que eles receberam com abundância, o saque dos bens nacionais, o açambarcamento dos grãos. Citemos a pilhagem militar (Termidor também é a passagem da guerra republicana, defensiva e baseada em princípios, à guerra de conquista e rapina) e o mercado de fornecimento aos exércitos".

Ademais, Badiou lembra o conúbio termidoriano com os donos de escravos e das colônias. Ou seja, para todo termidoriano, "histórico ou de hoje, a categoria da Virtude é declarada sem força política". Para ter eficácia, é preciso que a política seja interesse do mercado. É isto o que Badiou chama o "fim" de uma política, com o velho oportunismo, incluindo pessoas "de esquerda" que vendem a alma por um cargo, no primeiro ou último escalão. "Um termidoriano é constitutivamente (como sujeito) alguém à procura de um lugar". O mais terrível, arremata Badiou, é que os "termidorianos históricos não foram aristocratas exteriores, restauradores, ou mesmo girondinos. Eles eram gente da maioria robespierrista da Convenção".

Os defensores da soberania popular são "irracionais", segundo os termidorianos. Boyssy d'Anglas, o mesmo que falava dos proprietários como os "melhores governantes", forneceu o exemplo em seu discurso: "Se forem dados a homens sem propriedade os direitos políticos, sem reserva, e se eles sentarem nos bancos legislativos, eles excitarão ou deixarão excitar agitações sem temer os efeitos; eles estabelecerão ou deixarão estabelecer taxas funestas ao comércio e à agricultura, porque não terão sentido, nem temido, nem previsto, as terríveis conseqüências, e eles nos precipitarão enfim nas convulsões violentas das quais estamos apenas saindo".(12)

Assim, mantendo a máquina estatal e afastando a soberania popular, os termidorianos, até e depois da Comuna, utilizaram a repressão, o terror, para garantir os proprietários e os "empregos governamentais" para os intelectos acadêmicos, ou suficientemente letrados para servir como escribas e racionalizadores do social. Após certo tempo, os "engenheiros da sociedade" foram submetidos aos "economistas", nova casta de infalíveis servidores do Estado e dos governos, grandes protetores da santíssima propriedade.

Com o Estado napoleônico, fruto do Termidor antidemocrático, refluiu definitivamente a tese da instrução do verdadeiro soberano, o povo, para que ele pudesse exercer suas prerrogativas. A partir daí, foram separados por um abismo os ideais democráticos e o saber. A maior parte das propostas de governo e de conhecimento científico apartaram o povo e os intelectuais. Para Augusto Comte, estratégico se quisermos entender o Estado, a ciência e a tecnologia em nosso país, a liderança política pertence aos cientistas e aos industriais. Ao povo destinam conhecimentos elementares.
Comte recusou a soberania baseada na opinião. A democracia, pensava ele, é um governo que apenas substitui o dogma da infalibilidade papal por outro, o da infalibilidade popular. Tais doutrinas desmembrariam "o corpo político, colocando o poder nas classes menos civilizadas". A forma democrática seria a "fonte das revoluções". "Nem a opinião dos reis, nem a opinião dos povos podem satisfazer a necessidade fundamental de organização que caracteriza os tempos atuais".(13) Mesmo avesso à soberania "das classes menos civilizadas", Comte propôs uma "Biblioteca do Proletário" cujo conteúdo até hoje seria considerado "utópico" por muitos que reduzem a educação das massas ao manejo técnico. Entre as obras a serem lidas pelos proletários, temos a Aritmética de Condorcet, a Álgebra e a Geometria de Clairaut, O Curso de Análise de Navier, as Reflexões sobre o Cálculo Infinitesimal de Carnot, A Teoria das Funções de Lagrange, etc.(14) Uma lista assim, em nossos dias, se atualizada, seria rara mesmo nos primeiros anos da graduação universitária.

Os positivistas brasileiros formularam o desejo de ampla educação técnica das massas, sob controle dos sociólogos. Lembremos o projeto de educação proletária, submetido ao Governo Provisório por Teixeira Mendes, através de Benjamin Constant (25.12.1889). "O aperfeiçoamento do homem, mesmo no ponto de vista exclusivamente material, é mais importante do que o melhoramento dos aparelhos industriais, por que (...) não houve nunca instrumento bom para o operário ruim. O desenvolvimento da indústria moderna vai exigindo do proletário cada vez maior instrução para bem manejar as máquinas. E, por outro lado, a vida republicana exigindo que cada cidadão cumpra espontaneamente o seu dever, vai impondo a cada um maior grau de moralidade e instrução para a prática e o conhecimento do mesmo dever. E como conseguir tudo isso enquanto o filho do proletário, isto é, a massa da nação futura viver na miséria e ao abandono de todos os recursos?".(15)

Apesar dessas noções comoventes, o programa positivista recusa a democracia eletiva, prega a ditadura dos intelectuais competentes, unidos aos empresários e banqueiros. Há em Comte uma tese que julgaríamos nova, caso a víssemos estampada nos jornais. Cito o teórico: "Em cada república particular o governo propriamente dito, isto é, o supremo poder temporal, pertencerá naturalmente aos três principais banqueiros, respectivamente dedicados de preferência às operações comerciais, manufatureiras, e agrícolas".(16)

Algo no programa positivista sobre o Estado é estratégico para a ciência e a técnica. Trata-se da eminência do Executivo contra os demais poderes. No positivismo, semelhante ditadura foi nuclear, herança mantida e ampliada ao longo de nossa história republicana. A versão menos rigorosa desta ditadura encontra-se nas fórmulas de Pierre Laffite, defendidas por Benjamin Constant: a "preponderância do Governo sobre as Assembleias, preponderância que se caracteriza sobretudo pela iniciativa; e, em segundo lugar, pela concentração numa única pessoa, dessa ação diretora governamental".(17) Esta noção se transformou em prática no Exército, onde o programa positivista encontrou larga audiência. A colaboração da Escola Politécnica no impulso aos batalhões de engenharia, e a aplicação direta de saberes por militares na defesa nacional deve-se a esta atitude centralizadora, baseada em conhecimentos científicos e técnicos.

Nada a estranhar se os engenheiros militares, com seus pares civis positivistas, êmulos de Luiz Pereira Barreto, tenham formado a espinha dorsal dos planos científicos e políticos, durante muitos governos republicanos, mesmo na ditadura Vargas, a qual abriu os primeiros espaços para uma experiência em grande escala de produção científica e técnica com bases nacionais. Como disse o Sr. Fernando Henrique Cardoso, os oficiais militares "constituiam um grupo educado que passava boa parte de sua formação nas cidades e que se define profissionalmente por sua relação com o Poder (...) sacerdotes de um culto que lhes era familiar, o do Estado".(18) Na consciência militar brasileira, temos as metas de concentrar a ciência e a técnica, conseguir a tutela do poder civil, impor a eminência do executivo, engendrando intelectuais que se definem pelo culto ao Estado e pelas iniciativas nestes planos.

Semelhante exame de várias doutrinas sobre a ciência e o Estado, sobre a opinião pública e os cientistas, leva aos seguintes itens:

1) Desde Hobbes, a ciência e a técnica são matérias do Estado. O povo deve obedecer e não tem forças para captar a ciência, e as suas diferenças face à mera aplicação utilitária, imediata.
2) Numa via, a kantiana, depois a hegeliana, o povo é ignorante em termos científicos, e não pode se arvorar em patrono do conhecimento. Este é propriedade do Estado, como a ciência, e não de uma suposta soberania popular.
3) O setor das Luzes mais democratizante, através da Enciclopédia e de Condorcet, lutou por uma formação ampla do povo, para que ele pudesse governar e decidir sobre todas as questões de seu interesse, dentre as quais a ciência e a técnica, ocupando lugar eminente. Em Rousseau e nos seus discípulos, foi acentuada a soberania popular, mas longe das ciências e das técnicas. Deste modo, soberania do povo e misologia foram identificados pelos conservadores, que indicaram no Terror o reino da ignorância popular, quando de fato trata-se de outros pontos diversos ao do saber. O fulcro real, efetivamente, era o controle social da propriedade.
4) Com o Termidor, ergueu-se a tutela dos intelectuais sobre o povo, e uma proteção especial do Estado, no tocante ao ensino e à pesquisa científica.
5) Afastada a soberania popular, o Estado tornou-se o sujeito, especialmente no Executivo, das ciências e das técnicas. Assim, ele foi posto acima da sociedade e das formas de pesquisa científica.
6) A mediação entre sociedade e universidade ou laboratórios de pesquisa deu-se por intermédio do Estado, especialmente do Executivo, uma vez que os Parlamentos e o Judiciário foram excluídos da iniciativa, na formulação das políticas científicas e tecnológicas.
7) Esta situação tem origens remotas, como vimos, mas indica uma curva lógica de Hobbes até os nossos dias. Ou os pensadores defendem a soberania do Estado (como Hobbes, enquanto paradigma), e nesse caso os cientistas e seus trabalhos são atributos estatais, ou eles defendem a soberania popular, sendo então os cientistas autônomos diante do Estado, apesar de receberem dele a remuneração, e ligam-se às nações e ao povo soberano (o paradigma aqui é a Enciclopédia francesa). O positivismo tentou unir formação técnica das massas, com a negação de sua soberania. Assim, reforçou a ditadura de um só homem, posto no ápice do poder Executivo, tendo a força da iniciativa em tudo o que se refere aos negócios públicos, especialmente no plano educacional e científico.(19)

A "mundialização" afetou a "iniciativa" do Executivo, no mesmo passo em que colocou em cheque os demais poderes do Estado, os Parlamentos e o Judiciário. Seja qual for o sentido desta palavra, é claro pelo menos que os atores sociais clássicos tendem a considerá-la sob vários prismas. Os políticos a enxergam como algo que supera o Estado nacional. Os sindicalistas nela encontram uma nova oposição entre capital e trabalho, induzida pela crescente importância do setor financeiro no capitalismo. Os intelectuais, em especial os economistas, nela encontram um novo crivo entre trabalho qualificado e trabalho não qualificado.(20)

Com a globalização,(21) ou contra ela, uma realidade espanta: hoje, a partilha de riquezas e de saber planetários é cada vez mais alarmante. Os 20% mais ricos do mundo guardam mais de 80% do PIB mundial. O número dos pobres cresce no ritmo da população da Terra, 2% ao ano. Estas cifras são apresentadas pela ONU e pelo Banco Mundial. Mas o nome e a propaganda não podem esconder por muito tempo um traço: os Estados Unidos e outros Estados nacionais supostamente moribundos, exportam hoje bens mais intensivos em trabalho do que os que eles compram no exterior. São mercadorias que exigem mais trabalho e menos capital as exportadas pelos países ricos. A vantagem destes últimos diante dos pobres reside na composição de sua mão de obra, a parte do trabalho nela qualificado.(22) E não existe trabalho nacional qualificado sem, antes, um pesado investimento em ciência e técnica.

Embora aceitando-se esse ponto, nota-se uma desvalorização do Estado nacional enquanto força da vontade política. Entre países que mantêm a soberania e se preocupam com a qualidade de sua mão de obra e a propaganda de uma reorganização territorial, uma "república mundial utópica", como pensar um mundo político onde o Estado não tenha o papel dirigente, a iniciativa em todos os campos?(23) Seja afirmando a debilidade do Estado nacional, seja negando-a é consenso indicar que, ao lado do papel cada vez mais amplo do capitalismo financeiro, neste processo tem-se a revolução técnica unida à informática, a qual afeta profundamente o nexo entre capital e trabalho. Indicam vários teóricos: os trabalhadores sem instrução técnico-científica empobrecem, enquanto os demais tornam-se mais ricos.(24) Como enuncia Daniel Cohen, este fenômeno deve-se menos à globalização do que a uma forte mudança tecnológica.

Este último autor mostra duvidar do possível preenchimento do abismo que se abre, mesmo nas economias fortes, entre os trabalhadores sem instrução tecnológico/científica e os que se qualificaram neste prisma. Neste campo, outros autores defendem a aplicação de recursos na mão de obra, tornando-a cara (à diferença das flexibilizações do trabalho, com seu barateamento, propostas entre nós e nos outros países intermediários entre o desenvolvimento e o atraso) com o fito de tender para a diminuição do deficit social. Trata-se de, via Estado, diminuir as desigualdades mais gritantes entre os trabalhadores, requalificando-se a mão de obra para o trabalho exigido pelas novas técnicas. Nas teses de um novo keynesianismo afirma-se que o sistema capitalista, se quer sobreviver a si mesmo, deve preservar o Estado providência e sua vontade de reduzir as desigualdades.(25)

Assim, após o Tratado de Maastricht, e o seu atual questionamento, após a vitória da esquerda na França, após o fim da URSS, com uma nova estratégia de defesa, e após as experiências neoliberais, se esboça a tendência de se redimensionar a soberania nacional, e mesmo velhas questões como a soberania do povo. Não se fala mais com certeza sobre o "fim" do Estado nacional.

Como todos os demais aspectos do Estado anterior ao neoliberalismo (saúde, educação, comércio, indústria etc.), o plano da ciência e da técnica volta a ser algo que merece uma consideração, em termos de políticas públicas, estatais. Para conseguir uma vida mais segura, os países ricos da Europa e de outros continentes investem na educação de seu povo, fornecendo maior cuidado aos itens científicos e técnicos. Este aspecto define a hegemonia no próprio mercado planetário, locus de uma luta entre companhias com abrangência mundial, mas sediadas em determinadas nações, que delas recebem muito, mas que a elas também fornecem apoio tático armado e diplomático essenciais.

Não se trata de ignorar as teses que afirmam o fim do Estado nacional e da universidade idem. Mas importa não ficar mesmerizado pela propaganda, mesmo que sob aparência acadêmica, a qual avança, sem provas lógicas, históricas e outras, a idéia de que mesmo nos países ricos, como os europeus e nos EUA, sumiu o Estado nacional. Este diagnóstico mostra todo seu equívoco no trabalho de Bill Readings, The University in
Ruins.(26) Alí, o autor afirma que a universidade estadunidense atingiu a era do comércio absoluto, desvinculando-se do Estado nacional norte-americano. Os campi seriam algo assim como o shopping center do bairro, onde alunos buscam "mercadorias" — técnicas — adequadas para vencer no campo do trabalho, cada vez mais elitista pelas diferenças na formação dos indivíduos e grupos. O livro traz muitos aspectos verdadeiros, mas "esquece" alguns elementos básicos. Por exemplo, ele se cala sobre os investimentos estatais, combinados com os particulares, na pesquisa científica e técnica tendo em vista produzir, em universidades importantes, ciências que se traduzam em engenhos de guerra cada vez mais sofisticados. Se não há soberania nacional e hegemonia em escala do planeta, por que este setor é vivo, nos países ricos?(27)

As desigualdades entre os trabalhadores qualificados e os não qualificados tendem a se afirmar como desgraça inelutável, ou exigem o retorno (naturalmente com muito engenho e arte) do Estado à iniciativa das políticas educacionais, de ciência e tecnologia. Os desníveis nas sociedades ricas tornam-se espantosos quando eles são pensados comparando-se os habitantes dos países pobres e dos países ricos. Assim, é preciso redimensionar o Estado, trazendo à cena os outros poderes obnubilados ao longo dos séculos 19 e 20, os poderes Legislativos e Judiciários. Quando se fala em esgotamento político dos Estados nacionais deve-se dizer, com maior propriedade, esgotamento do modelo onde o Executivo, tendo à sua frente um homem e sua pequena equipe, adquirem nominalmente força demiúrgica excepcional. Os Legislativos, pela sua representatividade mais ampla e diversa e os Judiciários, desde que abram novas frentes de ação, além das velhas atitudes elitistas e do jargão que os separam dos povos, podem reinventar o político, recolhendo sugestões da sociedade mais ampla, ou abrindo frentes para harmonizar os interesses legais da produção e da força de trabalho.

Para isso, é mister que as universidades e institutos de pesquisa entrem, com os poderes políticos e com os mais amplos setores sociais, numa lógica nova do nexo entre sábios e povo ignorante. Não é mais possível aceitar o elitismo acadêmico que mantém os campi enquanto espaço de pureza e rigor científicos, como se a tarefa de educar os povos fosse tarefa imediata do Estado nas suas três faces, e como se a mediação universitária não fosse urgente. Por outro lado, não é mais possível, dada a crise do Executivo, crise projetada sobre o político em geral e sobre o Estado, de modo indevido, que a comunidade científica persista em manter relações quase unilaterais com este poder, ignorando os dois outros e a sociedade envolvente.

Torna-se importante rever a história do Estado e da ciência na idade moderna, procurando os projetos que se perderam, como é o caso dos Enciclopedistas, os re-orientando a partir dos avanços científicos atuais. A educação das massas torna-se um crivo de soberania. Os Estados que aplicarem verbas, engenhos e tempo nesta missão, podem ter esperanças de alguma relevância, inclusive comercial, nos próximos anos. Hobbes e Sócrates têm alguma razão: um povo não educado para a ciência, só percebe e só recebe aparência, sombras de riquezas, brilho de empréstimo. Intelectuais descomprometidos politicamente com seu país, podem ter a certeza, vã, de superioridade. Políticos que manipulam massas ignaras não possuem poder, mas ilusão de mando que pode se esfarelar ao primeiro sopro de uma crise mundial, em termos econômicos e políticos.
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* Foram citados de maneira habitual apenas os textos imprescindíveis. O autor considera perfeitamente conhecidos os trabalhos clássicos de Robert Derathe sobre Rousseau, os livros de Albert Soboul sobre a Revolução Francesa e outros.
** Professor de Filosofia da UNICAMP.
(1) The sciences are small Power; because not eminent: and therefore, not acknowledge in any man; nor are at all, but in a few; and in them, but of a few things. For Science is of that nature, as none can understand it to be, but such as in a good measure have attayned it. Leviathan, Chapter 10. Edited by C.B. Macpherson. London, Pelican Classics (Penguin Books) 1977, p. 151.
(2) Cf. Platão, "Gorgias" (521 C - 522 C). Trad. Leon Robin, Pleiade, Oeuvres Completes de Platon, v. 1.
p. 481-182.
(3) Hobbes, Thomas. Le Citoyen ou Les Fondements de la Politique. Trad. de Samuel Sorbiere (secretário de Hobbes em Paris), 1649. Uso a edição da Ed. Flammarion, Paris, 1982. p. 226-227.
(4) Das Volk will geleitet, d.i. (in der Sprache der Demagogen) es will betrogen sein. Es will aber nicht von den Fakultätsgelehrten (denn deren Weisheit ist ihm zu hoch), sondern von den-Geschäfsmannern derselben, die das Machwerke (savoir faire) verstehen, von den Geistlichen, Justizbeamtun. Arzten geleitet sein...". Note-se que a palavra mais frequente nesta passagem é o verbo "dirigir". O povo quer ser dirigido, deseja soluções prontas na religião, no direito, na medicina. É, deste modo, presa fácil dos milagreiros e demagogos. Cf. Der Streiten der Fakultäten, in Werkausgabe, F.A.M. Suhrkamp, 1977. T. 11, 1.
p. 294-295.
(5) Cf. "Fundamentos da Filosofia do Direito", § 317, quando Hegel opõe a "opinião pública" à ciência e cita Ariosto: Che'i volgare ignorante ogn'riprenda/ E parli piu di quelche meno intenda. In Werke in zwanzig Banden. F.A.M. Suhrkamp Verlag. 1970.
(6) Cf. Kintzler, Catherine. Condorcet L'Instruction Publique et la Naissance du Citoyen. Paris. Minerve/Folio. 1984, p. 44-45.
(7) Plan d’une Université. In Oeuvres (ed. L. Versini). Paris. Robert Laffont, 1995, T. 3, p. 411 e ss.
(8) Cf. Kintzler, Catherine. op. cit., p. 87 e ss. Esta autora desenvolve longamente o ideal condorcetiano do Homo suffragans, com base na instrução científica e técnica das massas. Seu livro é fundamental para todo debate sobre a instrução.
(9) Citações em Iring Fetcher, La Filosofia Politica di Rousseau. Per la Storia del Concetto democrático di libertà. Milano, Feltrinelli, 1972, p. 262-263.
(10) Qu’est-ce qu’un Thermidorien? In: La République et la Terreur, org. por Catherine Kintzler e Hadi Rizk, Paris, Kimé, 1995, p. 53-64.
(11) Cito sempre Badiou.
(12) Citado por Badiou, op. cit., p. 62.
(13) Cf. Plan des Travaux Scientifiques Nécessaires Pour Réorganiser la Societé (1822). Écrits de Jeunesse. Paris, Mouton, 1970, p. 248-253.
(14) Cf. Catéchisme Positiviste. Paris, Flammarion, 1966, p. 51-55.
(15) Documento citado e analisado por Ivan Lins, História do Positivismo no Brasil. São Paulo, Cia. Editora Nacional Coleção Brasiliana, v. 322, 1964, p. 364 e ss.
(16) Catéchisme Positiviste, ed. cit., p. 245.
(17) Citado e analisado em Lins, 1, op. cit., p. 330-331.
(18) F.H. Cardoso, Dos Governos militares a Prudente de Moraes. In: História da Civilização Brasileira. São Paulo, DIFEL, 1975, t. 3, v. 1, p. 30.
(19) Dados os limites do tempo e do espaço disponíveis, não analiso aqui as vertentes do poder e da ciência no campo socialista do século 20. A tríade Estado sujeito / intelectual tutelar / povo ensinado e dirigido, também imperou naquelas experiências políticas, não raro com resultados catastróficos. Basta lembrar a "abolição" dos enunciados de Mendel, por ideólogos como Lyssenko, mais ocupados em justificar os poderosos do que em definir o verdadeiro. As colheitas soviéticas se encarregaram de evidenciar a mentira daqueles procedimentos "científicos".
(20) Cf. Jean Pisani-Ferry, na revista Alternatives économiques (julho/agosto de 1996).
(21) Engelhard, Philippe: L’Homme mondial. Les sociétés humaines peuvent-elles survivre? Paris, Arléa, 1966, p. 113.
(22) Cf. Elie Cohen. La Tentation hexagonale. La souveraineté à l’épreuve de la mondialisation. Paris, Fayard, 1966, p. 38-39.
(23) Cf. Olivier Mongin, Les Tournants de la mondialisation. Revista Esprit. Novembro de 1996, Boa parte deste trabalho deve muito a este importante artigo.
(24) Cf. Cohen, D. Richesse des Nations, pauvreté du monde. Citado por Mongin no artigo mencionado acima.
(25) Olivier Mongin cita Jean-Paul Fitoussi, para esta tese.
(26) Cambridge, Harvard University Press, 1996.
(27) Para uma análise oposta à realizada por Bill Readings, cf. William I. Robinson: Promoting Polyarchi. Globalization, US Intervention, and Hegemony. Cambridge, 1996.