UMA QUESTÃO DE COSTUMES
Roberto Romano
Professor Titular de Filosofia Política e Ética, na UNICAMP
Quando falamos de educação para a cidadania, nos referimos
imediatamente ao estudo. Trata-se de uma questão de costumes. E costumes
são a matéria da ética. Quem deseja estudar, deve assumir uma ética da
frugalidade severa, com um regime grave, sem ornamentos inúteis, sem
pressa, sem escutar professores que adulam os alunos e seus pais. A
ética recusa a lisonja, o regime a ser seguido requer disciplina e
trabalho árduo. Esta advertência nos vem de Platão. A herança grega
afirma que ensino e regime alimentar identificam-se. Uma comida
engordurada, abundante e imprópria, abafa os talentos da inteligência. A
pedagogia correta de corpos e almas resume-se no ditado grego:
"educação ou alimento". Regime, na antiguidade e hoje, diz-se da dieta e
do governo. Há no pensamento platônico um nexo entre ambos, mediado
pela educação. A prática lisonjeira entre mestres e discípulos também
ocorre, escreve o filósofo, entre governantes e governados na política
licenciosa, um grave problema da democracia.
Permitam-me recordar algumas passagens platônicas, porque elas
inserem-se diretamente no tema "educação e cidadania". No livro VIII da
República, nas alturas das páginas 562, Platão descreve os costumes e o
ensino na polis democrática. Afirma ter sido a cobiça de dinheiro e a
negligência de outros elementos políticos e educativos a desgraça do
governo anterior, o mando oligárquico. Agora, pergunta Sócrates,
"porventura não é a voracidade daquilo que a democracia assinala como o
bem supremo a causa da sua dissolução? De qual bem falamos? Da
liberdade". É o desejo deste bem e a negligência do resto que faz mudar
tal forma de governo, abrindo caminho para os tiranos. No trato
democrático não se misturam com prudência água e vinho, dando-se uma
bebida muito forte ao povo. Este, enternecido e embriagado de licença,
diz que "servil" é quem obedece os magistrados. Neste regime, são
engrandecidos e benditos os "governantes que parecem governados, e os
governados que parecem governantes". Temos um nome para este parecer e
não ser: demagogia. Permitam-me um ligeiro anacronismo. Ouvi no horário
eleitoral "gratuito" um candidato a deputado berrando: "vocês são os
patrões, nós os empregados". Conhecemos os costumes destes "empregados"
quando passam os pleitos, sentimos sua arrogância, e corremos, como o
fez Maquiavel, rumo à biblioteca, para ler Platão.
A licença demagógica invade todos os recantos da polis. Platão diz
que tal atitude chega às casas particulares e atinge os animais
domésticos. Nesta democracia, "o pai habitua-se a ter medo dos filhos,
desejando ser igual a eles, o filho a ser igual ao pai, sem ter respeito
ou receio dos pais, a fim de ser livre". Em tal regime, "o professor
teme e lisonjeia os discípulos, e estes têm os mestres em pouca conta;
outro tanto se passa com os preceptores. No conjunto, os jovens imitam
os mais velhos, e competem com eles em palavras e em atos; ao passo que
os anciãos condescendem com os novos, enchem-se de vivacidade e
espírito, a imitar os jovens, a fim de não parecerem aborrecidos e
autoritários". Num regime semelhante, a liberdade é tão ampla, "que as
cadelas, conforme o provérbio, são como as donas e também os cavalos e
burros andam pelas ruas, acostumados à uma liberdade completa e altiva,
chocando-se sempre contra quem vier em sentido contrário, a menos que
saia do caminho; e tudo o mais é assim repleto de liberdade".
Termina o arrazoado platônico: "A resultante de todos esses males é
tornar a alma dos cidadãos tão melindrosa que, se alguém lhes ordena um
mínimo de responsabilidade, eles se agastam e não a suportam; acabam por
não se importar nada com leis escritas ou não escritas (...) a fim de
que de modo algum tenham quem seja senhor deles". Eis, afirma o
filósofo, "o belo e soberbo começo de onde nasce a tirania (...) O
excesso costuma ser respondido pela mudança radical, no sentido oposto,
quer nas estações do ano, quer nas plantas, quer nos corpos, e não menos
nos Estados"1
Não há muito do que rir nesse retrato da democracia ateniense, feito
por Platão. A lisonja, base das relações inter-pessoais também
possibilita, no Brasil, a imitação recíproca de governantes e
governados, uns vendo os outros enquanto modelos de esperteza .
Demagogia, falta de respeito pelas leis, tudo isto integra nossa vida
política e educacional. Docentes há que afirmam "aprender com os
alunos", deles recebendo "lições de sabedoria". Na "boa" sociedade,
mulheres enricadas julgam-se livres quando exibem suas celulites durante
o carnaval, nas televisões, servindo como escravas da vista e do
erotismo alheios, além de proporcionarem lucro aos anunciantes de
cerveja, etc.
Mas não só de "colunáveis" vive a polis licenciosa. Ela também
suporta burros que atropelam os passantes. Se fizermos uma pequena
alteração no texto platônico, onde lemos "burros", podemos enxergar
espécimes da atualidade brasileira, justificando aquela imagem. O
trânsito nacional está repleto de asnos no volante.Todos imaginam que
não devem nem precisam obedecer as leis. A violência é maior se o idiota
(no sentido grego, o que só enxerga a si mesmo) está dentro de um
automóvel importado ou caro. Os anúncios criminosos são explícitos, como
o que declara: "Se você enxergar este logotipo, passe para a direita".
Trata-se de um incitamento irresponsável à velocidade, empurrando aço
contra a carne humana. E ficam impunes os trefegos canalhas da
propaganda, e ficam impunes os por eles persuadidos. Na Unicamp, foi
preciso colocar barras de ferro nas calçadas porque professores,
funcionários, alunos, sobre elas estacionavam seus automóveis, impedindo
mesmo a entrada para a Biblioteca Central da universidade. O número de
atropelamentos no campus é assustador.
No diálogo Gorgias, Platão indica que a artimanha lisonjeira (e a
propaganda é apenas um de seus casos) oculta-se sob uma arte efetiva.
Assim, sob a medicina, surge a cozinha "que faz cara de saber quais são,
para o corpo, os melhores alimentos. Se, por acaso, diante de um júri
de crianças, for estabelecida a competição entre um cozinheiro e um
médico, para saber quem dos dois, médico ou cozinheiro, tem competência
sobre os alimentos úteis ou nocivos: o médico deveria, desde o começo,
deixar-se morrer de fome!"2. O bajulador assume aparências de fala
amiga, o discurso veraz exige disciplina, sobretudo na amizade. Quem
lisonjeia, deixa os amigos na hora negra, toda pessoa franca enfrenta o
próprio amigo, para seu bem, nunca o abandonando. A lisonja acostuma o
corpo e a alma do estudante aos prazeres, o transforma em ser ineducável
para a cidade. Certos indivíduos resistem, desde o nascimento, à
educação para a cidadania. Como grãos duros, diz o filósofo, eles não
amolecem na panela do ensino (Leis, 853 d, 880 e). Do mesmo modo que não
se deixa "cozinhar" pela educação, um homem assim não se submete às
leis, nelas ele não se funde.
Educar para a vida cidadã, escreve Platão, é como tingir almas. No
livro IV da República , no processo de educação dos magistrados, lemos
que "educar" uma pessoa é dar-lhe a melhor tintura das leis (República,
420d a 430a).Quem foi assim tingido possui uma opinião indelével sobre o
que deve temer e sobre o que deve fazer, pois tal tintura resiste aos
sabões tão ativos para descolorir, como o são os prazeres, a dor, o medo
e a paixão. Esta imagem aparece também na Carta VII, um dos textos
capitais para a epistemologia e a política platônicas. Ali, vemos que a
cultura de quem não é filósofo compara-se ao colorido superficial dado
pelo banho de sol.
A imagem mais usada por Platão é a do alimento, no processo
educativo e ético. No Protágoras (35lb) diz-se que como a força física
vem da natureza, e de uma boa nutrição do corpo, assim também a coragem
vem da natureza e de uma boa nutrição da alma. Em múltiplas obras de
Platão o termo "alimentar" é tomado neste sentido (Alcibíades Iº,
Critias, Protágoras, Banquete, Fedro, Teeteto, Timeu, Leis, Carta VII).
Na maioria das vezes, "alimentar" une-se à educação, paideia. Este
último termo designa, nos estados mais eminentes da educação, uma via
para atingir o conhecimento do Bem. Mas quase sempre paideia e
alimentação são usados como sinônimos.3
Poderíamos seguir longe, na busca dos entrelaçamentos, dentro da
obra platônica, entre educação e cidadania. Falei acima da lisonja. Por
que surge a tirania, a partir da licença democrática? Sua causa é o
idiotismo, a filáucia, o amor de si mesmo, que geram o discurso enganoso
e dissimulado e nos prendem nas armadilhas de oligarcas e tiranos. A
filáucia, em Platão e na filosofia ocidental inteira, é o contrário de
amizade efetiva. O texto nuclear neste plano, encontra-se no livro de
Platão denominado As Leis (Livro V, 73l d). É sintomático que, naquele
texto, no trecho sobre o amor de si, o sujeito acometido deste idiotismo
seja comparado ao "amante, cego no relativo ao ser amado, sendo péssimo
juiz das coisas justas, boas, nobres". A paixão impede o conhecimento e
a prática do bem. A pior paixão, nós a temos quando amamos a nós mesmos
acima de tudo. A frase platônica, referida à filáucia, impressiona: "Há
um grande mal, o maior de todos, que o maior número de homens têm, e
que lhes é congenital. Com ele, cada um é cheio de auto-indulgência, e
ninguém dele pode escapar. Este mal chama-se amor próprio. Acrescentemos
que esta ternura do homem para consigo mesmo pertence à sua natureza e
que ela causa nossos erros, pelo afeto que temos para conosco (...) O
grande homem não acaricia nem a si mesmo, nem as coisas que são de sua
propriedade, mas o que é justo".4 Os leitores de Rousseau sabem a
importância desta noção, o amor próprio, sobretudo quando este último
irrompe na experiência política.
O amor-próprio conduz à tirania plena. Como na cidade licenciosa
cada um é amigo cego de si mesmo, todos exigem adesão irrestrita à sua
própria egoidade. Como este projeto não pode se realizar, alguns dentre
os homens, cuja arte de enganar é mais eficaz, e cujo amor de si é
maior, tornam-se governantes, logo assumindo o papel de tirano.Segundo
Xenofonte o tirano não pode suportar a amizade. Ele teme e odeia os
cidadãos livres que usam a rude franqueza na linguagem. Os membros da
polis também o temem, em contrapartida. O governo tirânico é exercício
de auto-erotismo e temor generalizado. "Uma das singularidades do tirano
é procurar suprimir não só os seus inimigos, mas também destruir os
que, por terem sido seus iguais ou cúmplices, a ele se dirigem com
franqueza, o que é sinal de uma amizade verdadeira (República, VIII,
567b). O tirano é cercado apenas por homens que, não sendo nem amigos
nem inimigos, contentam-se em parecer o que lhe apraz que eles sejam,
testemunhando, deste modo, sua ausência de caráter e uma ambição temível
para seu próprio patrão".5 O tirano não possui amigos. Ele é o grande
solitário, apesar dos muitos parasitas que o cercam, louvando-o com
hipocrisia.
A oposição, na cultura grega, entre amigo e adulador, ajuda a
compreender a perversidade das relações humanas sob o regime tirânico. A
verdadeira amizade tem seu princípio e base na adesão racional e penosa
de quem busca reger a cidade segundo a justiça. Uma cidade bem
administrada, pensa Platão, é regida pela philia entre seus membros. A
metáfora corporal é assumida pelo filósofo. Na cidade justa ocorre algo
análogo ao que se passa "quando ferimos um dedo, pois toda a comunidade,
do corpo à alma (...) sente o fato, e toda ao mesmo tempo sofre em
conjunto com uma de suas partes. Assim, dizemos que ao homem lhe dói o
dedo. E, sobre qualquer outro órgão humano, o raciocínio é o mesmo,
relativamente a um sofrimento causado pela dor, e ao bem-estar derivado
do prazer". Numa cidade livre e justa, ao mesmo tempo, "se a um dos
cidadãos acontecer seja o que for, de bom ou mau, a cidade proclamará
sua essa sensação e toda ela se regozijará ou se afligirá juntamente com
ele"6
Vimos Platão chamar, nas Leis, o amor próprio como o "maior mal"
que possa ocorrer na vida humana. Na República esta peste manifesta-se
na cidade cujo caminho é tirania: ela é dilacerada, tornando-se múltipla
em vez de una. O maior bem reside na vida unitária, como se enunciou
acima para as dores e alegrias do ser singular e do coletivo. O pior
malefício vem da individualidade posta acima do social, o maior bem
ocorre com a união proporcionada pela amizade. Somos derrotados pela
tirania alheia, porque nos dobramos diante de nossa própria tirania.
Porque só gostamos de ouvir elogios, proibimos nossos amigos verdadeiros
de nos mostrar a verdade, somos todos semelhantes ao rei sem roupas da
fábula moderna. Seria preciso uma criança, sem treino na dissimulação e
na lisonja, para indicar o ridículo de nosso estado. Mas como somos reis
despidos, todos nós exigimos elogios às nossas magníficas roupas. Pior:
como ninguém enxerga a própria nudez, rimos com a falta de vestimenta
alheia.Platão reserva o riso e a comédia para escravos. Hobbes considera
o riso execrável, justo por isto: ele seria a demonstração de que somos
lobos cruéis, ou hienas, nada mais. Na polis que se dirige para a
tirania, cuidamos de nossos negócios, o resto não importa ou é motivo de
caçoada. Nela, a nossa "liberdade" pessoal e nossos bens, materiais e
anímicos, são tudo. O resto não conta.
Quando leio a descrição platônica da cidade democrática, lembro-me
do liberalismo ou do chamado "neo" liberalismo, com seus "executivos
financeiros", jovens e belos, destruindo investimentos produtivos e
produzindo apenas dividendos nas bolsas, com uma deliberada ignorância
do coletivo. Os anos de individualismo desenfreado abrem caminho para o
coletivismo brutal. Os anos loucos, ao redor de l920, produziram gente
que dançava e bebia sobre o desemprego e o desespero de milhões. Logo
após, tivemos as mais espantosas tiranias que o ser humano já conheceu.
Vivemos os anos setenta e oitenta sob o signo do mercado absoluto, onde
indivíduos espertos valem mais do que empreendedores e operários. Na
ciranda financeira ocorreu uma glamorização que, adulando jovens
executivos apresentou seu modo de vida como paradigma a ser mimetizado.
Não espanta se os frutos começam a surgir, nos movimentos neo-fascistas
que se tornam governo, impondo uma nova forma de controle social,
abolindo a liberdade dos pobres, dos estrangeiros, dos homosexuais, em
primeiro lugar. Depois, seguir-se-á a perda da liberdade coletiva.
Repetindo Platão, citado acima: "O excesso costuma ser respondido por
uma mudança radical, no sentido oposto, quer nas estações do ano, quer
nas plantas, quer nos corpos, e não menos nos Estados". Liberdade em
excesso conduz à servidão em excesso, "para o indivíduo ou para a
cidade".7
Com Platão, encontramos algumas razões da imitação perversa entre
estudantes e professores, a qual insere-se numa perversão mais ampla,
política, onde a lisonja desempenha papel nuclear na passagem da
democracia para a tirania, com a perda do sentimento de ser cidadão.
O tirano mais perigoso está em nosso próprio ego, desejoso de se
impor ao todo, dilacerando-o. Plutarco, num dos mais importantes
tratados políticos do Ocidente, mostra que a lisonja impede o princípio
fundamental da sabedoria, o "conhece-te a ti mesmo" délfico.8 Esta
cegueira, individual e coletiva, marca uma ética escrava. Colaborando
com ela, através da lisonja e da demagogia, professores e homens
públicos preparam reinos de medo e de mentiras, baseados na propaganda e
na inimizade entre cidadãos. A amizade, deste modo, é princípio
político que tece uma ética da liberdade sem licença, cuja disciplina
deve ser ensinada, e ministrada com o primeiro alimento. Produzir
indivíduos absolutamente livres é loucura que só pode levar à ruína
social e à desgraça destes pobres idiotas. Sem amizade, a vida se
transforma em inferno, onde o perigo reside nos outros, para falar como
Jean-Paul Sartre.
Se todos temos a possibilidade de nos transformar em tiranos, o
governante que resulta de nossa idiotia coletiva se caracteriza pelo
aspecto mais detestável de todos nós: sobreviver às custas dos
outros.Este traço, que nega a amizade na política, foi discutido durante
séculos no pensamento filosófico, de Platão aos nossos tempos. Se
consultarmos um autor eminente, Elias Canetti, nele encontraremos uma
reflexão acuradíssima sobre o problema. Lembro que amizade e inimizade
foram tema de constrangimento estatal sobre povos inteiros, no século
vinte dominado pelo nazismo e pelo estalinismo. No lado nazista, basta
recordar as depurações étnicas geradas pela loucura "científica", a qual
decidiu quem poderia ser "amigo" do povo Alemão e de seu Líder. No
plano jurídico, tais sandices tiveram seu profeta em Carl Schmitt,
sobretudo no texto grávido de horrores cujo título é "O conceito de
Guerra e de Inimigo" (l938). Alí se diz que no período da guerra total
(Schmitt é o inventor do têrmo "totalitário"), "mesmo setores
extra-militares (economia, propaganda, energias psíquicas e morais dos
combatentes) são envolvidos nas hostilidades. A superação do dado
puramente militar comporta não só uma ampliação quantitativa, mas um
reforço qualitativo, acentuando a hostilidade. (...) O conceito de amigo
e de inimigo tornam-se por si mesmos novamente políticos e se liberam
(...) da esfera dos argumentos privados e psicológicos" 9 Conhecemos os
resultados desta teoria sobre o amigo e o inimigo: a guerra total
abatendo-se sobre civis e sacrificando, com predileção assassina, seis
milhões de judeus, mais os ciganos, e outros povos "inferiores".
No lado estalinista, do próprio Stalin até Ceaucescu, passando pela
"pequena e heróica Albânia", para atingir os porões aterrorizantes da
Stasi alemã, há muito o que dizer sobre a distinção entre os "que são
amigos ou inimigos do Povo". O tirano da hora, o infalível Partido,
declarava quem era amigável ou hostil ao proletariado. Em l939 a loucura
chegou ao ponto do estalinismo proclamar Hitler amigo da massa operária
mundial. "Estratégia" do gênio onisciente que dominava no Kremlin, ou
cinismo de potência, o resultado foi uma enorme pilha de cadáveres na
Polônia e alhures. Hitler ou Stalin, com seus êmulos menores e piores,
são possibilidades sempre abertas quando não se reflete, em termos
éticos, sobre a questão da igualdade cidadã, à luz das noções de
amizade. Um concidadão jamais brota da natureza: ele é formado num longo
processo educativo, para aprender a relativizar seus desejos e seus
impulsos tirânicos. Uma pessoa que não foi educada para a cidadania,
quando assume postos de governo, não pensa no coletivo, mas apenas na
sua própria egoidade. Ela se torna um sobrevivente à custa de todos os
demais. Para este tipo de governante, é pouco significativo que milhões
morram ou sejam massacrados. O que lhes importa é sua manutenção nos
cargos de mando.
Imanuel Kant, nos seus escritos pedagógicos, repete as lições de
Platão, de Erasmo de Roterdam, de J.J.Rousseau : se uma criança de berço
chora, dizem estes autores, é preciso acudí-la, para saber se
experimenta alguma dor ou incômodo. Se no dia seguinte o choro se
repetir, e não for encontrado motivo para ele, deve-se deixar que o
infante berre a vontade. Deixar-se dominar pelo seu berro é educá-lo
para a tirania de sua vontade. Se ele não encontrar obstáculos ao seu
anseio de mando, e não perceber que outros existem no mundo, ele
acarinhará cada vez mais o próprio ego, às expensas dos demais. Todo
sujeito humano, pensa Kant, precisa encontrar limites à sua vontade,
para se tornar realmente um sujeito livre, e não arbitrário e despótico.
Quem se acostumou com o arbítrio do próprio eu, não imaginará ser
estranho que outros sejam submetidos ao querer despótico de um
professor, de um governante, ou de...um Deus. A liberdade, arremata
Kant, ergue-se sobre o respeito sublime pela nossa própria pessoa, e
pela pessoa de nosso igual. Erasmo de Roterdam dizia, no seu tratado
sobre a educação do príncipe, que os cavalos seriam um ótimo exercício
contra as tendências tirânicas do futuro governante: as alimárias,
desconhecendo a lisonja, jogam para fora da sela quem, príncipe ou
plebeu, não obedece as regras da equitação.
São translúcidas e impiedosas as páginas dedicadas por Elias Canetti
à analise do amor de si, da amizade e do poderoso como sobrevivente.
Lemos em Massa e Poder: "na sobrevivência, cada qual é inimigo do outro;
comparado com este triunfo elementar, qualquer outra dor não tem muita
importância (...) o sobrevivente deve estar sozinho diante de um ou de
vários mortos. Ele se vê só, sentindo-se só, e, quando se fala do poder
que o momento da sobrevivência lhe confere, jamais devemos esquecer que
ele deriva da sua unicidade (os grifos são de Canetti) e somente dela".
Todos ficamos satisfeitos quando nosso corpo e alma sobrevivem aos
demais. Um monte de cadáveres estimula nosso sentido de sobrevivência
isolada. Testemunhamos uma pedagogia assassina e genocida da imagem, na
imprensa que exibe corpos de assassinados. Os que sobreviveram se
comovem na pele, mas no íntimo, o mais freqüente é o regozijo,
inconfessável, pelo massacre dos outros. As cenas dos caixões do
Carandiru ou da Candelária, excitam os que vivem. Quando ocorreu em São
Paulo o incêndio do Edifício Andraus, repetido pela destruição do
Edifício Joelma, a massa humana que rodeava as construções excitava-se,
como num jogo erótico, todas as vezes que um infeliz se precipitava no
ar, esfacelando-se nas calçadas. Não faz muito tempo, o programa "Aqui e
Agora" filmou e exibiu o suicídio de uma jovem no centro de São Paulo,
as cenas fariam o Marquês de Sade parecer um casto e respeitoso defensor
dos direitos humanos.
Laurent Dispot, escritor francês preocupado com os nexos entre a
mídia televisiva, o terrorismo, e a educação cidadã, dizia que o máximo
da violência ocorrerá quando um refém for executado, pelos
sequestradores, diante das câmaras, ao vivo. Não estamos longe deste
evento, aumentando a audiência da televisão que tiver esta ventura. "A
satisfação de sobreviver" afirma Canetti, "uma espécie de volúpia, pode
transformar-se numa paixão perigosa e insaciável. Ela cresce de acordo
com as ocasiões. Quanto maior for o monte de mortos diante dos quais
alguém ergue-se com vida, quanto mais freqüentemente se viver estes
momentos, tanto mais intensa e mais imprescindível torna-se esta
necessidade de sobrevivência".
Se todos os entes humanos partilham essa loucura, o poderoso a eleva
ao máximo. Todos os governantes, de um modo ou de outro, "fingem estar
encabeçando a marcha de seus subordinados para a morte. Na verdade os
enviam na frente para eles próprios poderem salvar a própria vida. O
ardil é sempre o mesmo. O condutor quer sobreviver, ele se fortalece
nisto. Quando tem inimigos aos quais possa sobreviver, muito bem; quando
não os tem, continua tendo seus próprios amigos. De qualquer forma, ele
utiliza ambos, alternadamente ou de uma só vez. Os inimigos são
utilizados abertamente, afinal, é para isto que eles são inimigos. Os
amigos só podem ser utilizados às escondidas".
Uma pergunta que raramente é respondida, quando se trata da
sobrevivência política, é relativa ao que ocorre depois de nossa morte
física. Os poderosos querem sobreviver na lembrança dos homens, mas não
raro esquecem que os meios utilizados para este mister farão deles
imagens aterrorizantes do medo, do pavor, da morte. Ou da covardia.
Quando vivos, os aduladores dão-lhes uma espécie de "imortalidade"
forçada. É o que se passou com o Führer, com o Pai dos Povos soviético,
com o Grande Timoneiro chinês, com o Pai dos Pobres brasileiro. Este
último foi conduzido, pelos bajuladores, à "imortal" Academia de Letras.
Mas quando seus corpos desaparecem, a verdade bíblica a seu respeito
surge impiedosa : "Tu és pó, e ao pó retornarás". É preciso, no ensino
da cidadania, mostrar que a imortalidade, caso não seja religiosa e aí
cada crença possui uma doutrina própria e se refira à vida civil laica,
secular, só pode ser atingida através da elevação da alma, e não de sua
venda no leilão econômico, político, ideológico. Um país que não
valoriza, na formação de seus jovens, os dotes do espírito, os dons
intelectuais, está fadado à morte, à insignificância.
Elias Canetti termina o seu capítulo sobre a sobrevivência e as
armadilhas da amizade, discutindo o trabalho intelectual, filósofico e
literário. O escritor, e Canetti toma Stendhal como exemplo, escreve no
presente para poucos, sabendo que muitos o lerão no futuro. Ele
continuará existindo quando os outros estarão mortos. Mas o escritor não
mata ou manda matar os seus rivais, como o faz o governante tirânico.
Ele opta pela companhia dos que são autores de obras lidas ainda hoje,
"daqueles que falam conosco, dos quais nos nutrimos". Deste modo, no
mundo da escrita artística e especulativa, "matar para sobreviver nada
significa (...) porque não se trata de sobreviver agora mas, sim, de
entrar na liça apenas dentro de cem anos, quando já não se estará mais
vivo pessoalmente e, por conseguinte, não se poderá matar. Serão as
obras que se enfrentarão, e será tarde para acrescentar alguma coisa. A
rivalidade propriamente dita, a que realmente importa, começa quando os
rivais já não estão presentes. O combate que será travado por suas obras
nem sequer poderá ser presenciado por eles. Mas esta obra precisa
existir, e para que exista deve conter a maior e mais pura medida de
vida. Não apenas se desdenhou a possibilidade de matar; fez-se com que
entrassem para a imortalidade todos os circunstantes. Para aquela
imortalidade onde tudo se torna efetivo, tanto o menor quanto o maior".
É fantástica essa oposição entre a sobrevivência do grande escritor e
a sobrevida gozada pelo poderoso. Ensinamos, nas nossas escolas e
famílias, em demasia, as artes de sobreviver no mercado econômico ou
político. Esquecemos de expôr o caminho da sobrevivência verdadeira.
Maquiavel afirmava entrar em seu escritório, à noite, depois de uma vida
diurna prosaica e sem maiores méritos, para conversar com Platão. É
semelhante reino da cultura, o qual Hegel nomeava a corrente dos grandes
pensadores que definem o espírito do mundo com seus "heróis do
pensamento", é este o plano visado por Canetti, ao descrever a
sobrevivência almejada pelo homem de bem, o cidadão na sua plenitude.
"Trata-se", diz Canetti, " do oposto daqueles donos do poder que
arrastam consigo para a morte tudo o que os cerca (...) Eles matam em
vida, matam na morte, um séquito de mortos os acompanha para o além".
Contra as manobras para a sobrevida do político demagógico ou
tirano, temos a sobrevivência do escritor. "Quem abrir um volume de
Stendhal torna a encontrá-lo juntamente com tudo o que o rodeava, e o
encontra aqui nesta vida. Assim, os mortos se oferecem aos vivos como o
mais nobre de todos os alimentos. Sua imortalidade acaba sendo
proveitosa para os vivos, nesta reversão da oferenda aos mortos, todos
acabam sendo beneficiados. A sobrevivência perdeu seus aspectos
negativos e o reino da inimizade chega ao fim"10
Os senhores podem perceber, agora, porque evoquei longamente o
ensino, a lisonja, a amizade, a demagogia, o excesso que conduz ao
regime tirânico, como intróito para a questão do vínculo entre educação e
cidadania. A escola brasileira, do primário à universidade, desde seu
início, colocou-se entre duas éticas opostas, a do sobrevivente
político, continuada pela ética do sobrevivente dos negócios, e a ética
do trabalho espiritual, com uma dimensão diversa do tempo. Mas este
prisma não é privilégio brasileiro.Torna-se muito instrutivo ler os
textos do Prof. Jacques Le Goff sobre o nexo entre universidade e
poderes na época de sua gênese. Em meu livro intitulado Lux in Tenebris
procurei acompanhar as notas do historiador , mostrando que a
universidade, do Renascimento em diante, assumiu a ética da formação dos
técnicos e dos manipuladores do poder. Com o reitor Gerson, a
Universidade de Paris chegou a elogiar o tirano, "desde que os
habitantes do reino durmam sossegados, sem perder suas galinhas". Le
Goff mostra que os campi tornaram-se "polícias", servindo para reprimir
os engenhos inventivos que semearam a Europa na Renascença e na
modernidade.
Basta, para indicar o quanto os campi estiveram longe da gênese
democrática e do saber moderno, enumerar os pensadores decisivos para o
engendramento de nossa cultura mais elevada, notando que eles pensaram
fora e contra a universidade. De Bacon até Sartre, passando por
Descartes, Espinosa, Pascal e tantos outros, com raras exceções
acadêmicas, como Kant e Hegel, o essencial da cultura deu-se extra
muros, longe das reitorias e dos conciliábulos burocráticos da
universidade. Qualquer estudioso da filosofia enrubesce ao ler a carta
de Espinosa ao Eleitor Palatino, rejeitando uma cátedra em Heidelberg,
porque recusava aceitar um limite para sua liberdade de pensamento.
Quantos intelectuais, hoje, possuem esta coragem ética e cidadã?
Mesmo Kant, professor apegado às salas de aula, criticou com
virulência a universidade de seu tempo, submissa à Igreja ou ao Estado e
contrária ao saber. A sua obra imortal, O Conflito das Faculdades que
lhe valeu muita dor de cabeça, junto com A Religião nos Limites da
Simples Razão, é um libelo contra as faculdades que servem para manter a
sobrevivência dos poderosos. As ditas faculdades, sabemos, eram a de
Teologia, Direito, Medicina. Excluindo a Teologia, hoje um pouco
desprestigiada junto aos governos, as outras continuam a tradição de
produzir especialistas em domínio legal, enganando a massa com normas
jurídicas não raro sofísticas, com base na força física inconfessada. As
faculdades de medicina continuam produzindo milhares de pessoas
interessadas no lucro a ser extraído do Estado e dos particulares. Como o
governo é mau pagador, quem termina enriquecendo os discípulos de
Hipócrates são os particulares.
Há muito que refletir sobre a união entre o ensino "especializado"
nestas Faculdades, e a caixa registradora.Sempre que ouvimos a pergunta,
nos consultórios médicos: "com recibo ou sem", devemos nos interrogar a
respeito do ensino ético dado a estas pessoas, e acerca de nossa
responsabilidade social. Num país onde 50% dos impostos são sonegados,
torna-se urgente discutir os métodos e as bases axiológicas que
produziram indivíduos que traficam com a saúde. Por outro lado, os que
se dedicam ao público, como os professores secundários e médicos do
serviço oficial, ou abreviam sua estadia nos ambulatórios e salas de
aula, na busca de sobreviver com os famosos "extras", ou são tratados
pelos governantes como profissionais de última categoria. Com isto, se
degrada não apenas os serviços, mas o ensino sobre o valor da vida
humana e da cidadania.
Na oposição entre os dois alvos a submissão aos poderosos ou o
trabalho para a cultura reside a força que dirige a sociedade para o
plano imortal, que servirá para alimentar (gostaria, se me permitem,
lembrar as notas platônicas sobre a comida, as quais abordei no seu
vínculo com o ensino, no começo) as pessoas que viverão daqui a mil
anos, ou ajudará a produtividade que traz dinheiro e honras para os
poderosos . Hoje, nas escolas, enfrentamos duas pressões. A primeira,
cada vez mais tênue, é a da grande cultura científica e técnica que
produziu Platão, Leonardo da Vinci, Leibniz, Espinosa, Descartes,
Diderot, as Luzes. A outra vem dos que vivem para a inimizade e para a
destruição do que é uno na sociedade e na política. Com isto, em nossas
escolas agonizantes (não sou trágico, apenas expresso o que existe),
some a idéia de unidade do saber e da prática cidadã.
Com isso, enfrentamos outro problema: a educação técnico-científica
das massas. Desde o Renascimento produziu-se o sonho de uma difusão
universal do saber, podendo-se mesmo falar num "milenarismo"
científico-pedagógico. Bacon, Comenius, Erasmo, estes nomes são
conhecidos pelos historiadores da educação. Um trabalho importante,
nesta linha, é o livro de Charles Webster, The Great Instauration,
Science, Medicine and Reform, l626-l660.11 Nele esgotam-se as análises
das sugestões da frase profética lida no livro de Daniel (l2,4):
"Plurimi pertransibunt et multiplex erit scientia". Vale a pena lembrar o
trecho inteiro: "Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão ,
uns para a vida eterna, outros para vergonha e horror eterno. Os que
forem sábios resplandecerão, como o fulgor do firmamento, os que a
muitos conduzirem à justiça, como as estrêlas sempre e eternamente. Tu,
porém, Daniel, encerra as palavras e sela o livro, até ao tempo do fim;
muitos o esquadrinharão, e o saber se multiplicará" (trad. João Ferreira
de Almeida). Este grito de guerra, ligando saber e vida nova, dominou a
Europa científica e pedagógica, no mesmo instante em que as escolas,
inclusive as universidades, serviam aos poderosos da hora, a Igreja
oficial e o Príncipe.
Desse brilho profético e pedagógico surgiram as Luzes, no século
l8, movimento dividido entre adeptos de um saber acessível a poucos e os
propagandistas de um saber ampliado ao maior número possível de
pessoas. Infelizmente, no Brasil, como não pudemos recolher toda a
herança das Luzes, apagadas pela repressão militar e policial na
Colônia, costumamos denegrir este movimento, ligando-o unicamente à
famosa burguesia. Parece-me muito estrito e estreito este juízo,
sobretudo porque a ausência dos saberes foi suprida pela ignorância
fabricada nos governos e nas sacristias. Perdoem-me os defensores da
pedagogia jesuítica e dos supostos benefícios trazidos pelos inacianos
ao Brasil. Mesmo aceitando sua contribuição para atenuar a barbárie dos
colonizadores - e isto é matéria disputada em plano histórico - a
política global de nosso colonizador dirigiu-se para afastar nosso povo
do entusiasmo gerado no Renascimento e na modernidade européia. E isto
afastou de nós a prática cidadã.
O resultado está aí: massas analfabetas conduzidas, na política,
através de novelas e de noticiosos demagógicos. Quem, entre nós, é
cristão, tem muito o que pensar sobre o peso eclesiástico nesta idiotia
generalizada da massa brasileira. A crença nos milagres, que a Igreja
sempre procurou administrar com prudência, aqui adquiriu foros de
realidade permanente. Basta lembrarmos os anos do milagre ditatoriais,
sob o mago Delfim, o plano Cruzado, a salvação collorida, a adesão
a-crítica e desesperada aos "planos". A fórmula é tudo, menos
raciocinada: "tem que dar certo". Esta é mais uma "épode", como diriam
os gregos, um encantamento repetitivo que hipnotiza a massa e muitos
intelectuais, retirando-lhes a capacidade de pensar.
O pêndulo entre adesão misóloga e desencanto absoluto corrói a
cidadania brasileira. Todo governante responsável, antes de impôr
esperanças messiânicas ao povo, deve refletir muito sobre esta corrosão
que opera em longo prazo, destruindo a fé pública, conditio sine qua non
de qualquer Estado democrático. Há quem ache graça nas manifestações de
cinismo no povo, do tipo: "ele rouba, mas faz.". Isto não prenuncia uma
gente livre e franca. E a franqueza é atributo essencial da liberdade.
Os que hoje utilizam o poder com regras casuísticas, deseducam o povo,
no desejo de ganhar eleições. Esta atitude corrompe todas as fibras da
república. Os poucos privilegiados pela situação econômica brasileira,
estruturalmente injusta, com seus carros Audi ou BMW, suas canetas
Montblanc, seus telefones celulares, o famoso "kit imbecil", não sabem
que engenhocas "modernas" não substituem a lealdade e a franqueza amiga,
fundamento essencial da cidadania. A classe média brasileira, sobretudo
a que se alimenta dos despojos internacionais da produção efetiva, é
flutuante e aduladora. Como todo segmento sem capital próprio e sem as
mãos como único recurso de vida, ela vive, como diria um hegeliano, "em
outro", ou, como poderíamos dizer, "de outro", como vampiro pós-moderno.
Se a classe média é presa da idiotia, de outro lado não podemos
esquecer as tentativas fracassadas para produzir e comunicar saberes
urgentes ao povo. Num artigo sobre o pensamento de Diderot, Roland
Mortier relata os projetos feitos por este último de produzir uma
"filosofia popular". Um texto anônimo, atribuído a Dumarsais, lembra
Mortier, intitulado Essai sur les Préjugés, enfureceu Frederico II, um
dos poderosos sobreviventes mais adeptos de mentir ao povo dentre os que
já existiram no planeta. Todos conhecem a pergunta, formulada por
Frederico, sobre se é lícito mentir ao povo. A resposta do militar e
burocrata moderno é óbvia, ela já existia antes dos textos chegarem à
Academia Prussiana. Frederico lê Platão seletivamente. Dele, reteve
apenas que só ao magistrado é lícito mentir ao povo. O resto e o entorno
foi jogado às traças. O autor do Essai sur les Préjugés mostra que não
existe política sem verdades ditas à população. O intelectual deve a
verdade aos seus semelhantes, aos concidadãos, ao gênero humano. "Ele é
desumano e sórdido quando recusa partilhar com eles o tesouro que
descobriu".
Cabe ao Estado, mantido pelos cidadãos, expandir o conhecimento
descoberto pelos cientistas. Assim, a "experiência e o hábito chegam a
facilitar ao homem do povo, ao mais grosseiro artesão, operações muito
complicadas. Temos, pois, o direito de duvidar que o hábito e a
experiência lhe facilitem do mesmo modo os conhecimentos mais simples
dos deveres e da moral e os preceitos da razão, dos quais evidentemente
depende sua felicidade?".Note-se a insistência no termo "hábito", tanto
para a vida científica quanto para a vida moral. Não por acaso este é o
termo que, em nossas línguas modernas, utilizamos para traduzir a
palavra grega "ethos". Sem estes hábitos, o homem do povo fica preso às
paixões dos poderosos, ou se entrega às próprias paixões. Neste ponto,
nosso autor anônimo apresenta uma dúvida que até hoje, ou talvez,
sobretudo hoje, atravessa nossa prática educativa. Os livros úteis, diz
ele, parecem não terem sido escritos nem para os grandes, nem para os
pobres. "Uns e outros quase não costumam ler. Os grandes, diga-se,
acreditam-se interessados com a perpetuação dos abusos, e o povo miúdo
não raciocina". Deste modo, conclui o autor, "todo escritor deve ter em
mente a parte média de uma nação".12
Todo o esforço das Luzes foi o sonho de tornar acessível o saber ao
maior número. Até hoje suas sugestões estão aí, recusadas que foram pelo
clero conservador e seus êmulos, e assumidas pelos liberais
democráticos e socialistas, herdeiros da utopia científico-pedagógica
renascentista. Roland Mortier reflete, na obra citada, sobre o fracasso
do "projeto" diderotiano de uma filosofia popular. Ele mostra que duas
ordens de fatores definiram este fracasso. Primeiro, a separação feita
sobretudo pelos ideologues, herdeiros da Enciclopédia, mas limitados nas
suas pretensões pelo governo tirânico de Napoleão I entre técnica e
pesquisa teórica. Esta redução extraiu a profundidade nas suas
exposições "científicas". Outra causa é a que já foi indicada:
imaginando-se uma elite separada e acima do povo, sobretudo na época da
Contra-revolução termidoriana, o grupo dos acadêmicos separou-se das
camadas populares. Se tiveram brigas com o grande tirano, não é menos
verdade que tinham medo da união com o povo miúdo. O reinado das massas,
com Robespierre e a máquina inventada pelo Dr. Guillotin, ainda estava
fresco na memória.
Depois desse momento, houve a corrida dos socialistas utópicos,
todos se imaginando pastores científicos da multidão proletária, com
direitos à infalibilidade na condução dos negócios sociais. Neste clima,
o comtismo, com seu "poder espiritual", projetou um ensino técnico
redutor da cidadania. É conhecido o mote positivista sobre o operário
que é cidadão apenas no interior da fábrica. O marxismo, pensamento
científico nos moldes do século passado, não escapou da separação entre
elites pensantes e massa dirigida. Nas experiências ocorridas de fato, e
não nos escritores vencidos, ele aprofundou o abismo entre pesquisa e
população. Enquanto tudo isso ocorria, a universidade seguiu seu passo
de tartaruga, imprecando as massas por sua ignorância, e aderindo sem
vergonha aos vencedores da hora. O fisiologismo universitário seria
matéria de uma longa pesquisa histórica e sócio-psicológica.
Até hoje enfrentamos um problema fundamental: como assumir o
desafio da necessária formação técnica e cidadã das massas, conditio
sine qua non de sobrevivência coletiva no século 2l ? Uma pergunta
continua de pé: qual a base ética das nossas escolas, do ensino
elementar à universidade, para produzir o ensino profissionalizante, se
nelas o que se visa é a produção de elites, elites estas, diga-se, cada
vez mais degradadas e proletarizadas? Estes desafios se emaranham na
reflexão sobre o ensino da cidadania. Não tenho resposta para tais
pontos. E considero mentiroso quem diz ter soluções rápidas e seguras
para semelhantes aporias. Penso que uma saída é o empenho junto aos
partidos democráticos, pelo menos em setores deles, para que se
transformem em educadores coletivos, com ajuda dos mestres, visando, em
prazo longo, mudar a atitude das massas diante dos donos do poder. Para
isto, a receita é a mesma recomendada por Platão: disciplina e escolha
criteriosa dos objetos a serem estudados. Outro ponto desta receita é
fugir da lisonja e da demagogia. Outra recomendação ética é a fornecida
por Elias Canetti: deixar de fornecer apoio para a sobrevivência dos
tiranos que "roubam mas fazem".
Se nos desinteressarmos e não enfrentarmos o problema da formação
técnica e cívica das massas, ficaremos sozinhos nos campi, nas igrejas,
nos partidos. Sem assumir questões como a do ensino técnico-científico,
vinculado à cidadania e aos direitos humanos, ficaremos reduzidos à
situação dos estabelecimentos italianos de ensino, em l803, quando Roma
estava ocupada pelas tropas francêsas. Perguntado sobre a atitude dos
governantes estrangeiros face às escolas públicas, um professor
respondeu: "Elas são toleradas, como os bordéis"13 Se optarmos pelo
"realismo", e pela busca de sobrevivência política ou economica
individual, certamente não impediremos que nossas escolas se transformem
em prostíbulos do espírito. Elas estarão em consonância com o que
ocorre, às vezes, no Congresso Nacional. Mas para mudar, rumo ao melhor,
o Parlamento, urge redefinir nossa prática cotidiana no universo
escolar, na sociedade, nos partidos políticos. O que fizeram de nós,
retomemos Sartre, pode ser modificado. Mas para isto é preciso
disciplina, rigor cívico, espírito democrático. Esperemos que estes
elementos aumentem em nosso convívio, se quisermos escapar, no milênio
próximo, à pura e simples barbárie.
1. República, trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, Gulbenkian, 1980.
2. Gorgias, 464 c-e; Trad. francesa de Robin, L. Pleiade, T. I
3. Para todos estes pontos, cf. Pierre Louis, Les Metaphores de Platon, Rennes, Imprimeries Reunies, 1945.
4. Cf. Leis, V, 731 e. Trad. francesa Robin, L. Pleiade, página 784; trad. Loeb, página 338-339.
5. Cf. Fraisse, Jean-Claude, Philia, la Notion d' Amitié dans la Philosophie Antique, Paris, Vrin, 1984, página 169.
6. República, 462 a-e, trad. Gulbenkian, páginas 23l-233.
7. Cf. República, Ed.Loeb,Oxford, página 3l2; Ed. portuguesa Fundação Gulbenkian, página 399).
8. Cf. "De Discernendo Amico ab Adulatore" , ed. Loeb, Moralia,V.1,
trad. Babbit, F.C., l986, página 267. Tradução brasileira Isis Borges
B. da Fonseca. in Como Tirar Proveito de seus Inimigos. SP. Martins
Fontes, 1997.
9. Cf. Le Categorie del 'Político', l972, Bologna, Il Mulino, páginas l93 e seguintes.
10. Massa e Poder. Ed. Universidade de Brasilia. 1986.Páginas 251-309.
11. London, Duckworth, l97511. London, Duckworth, l975
12. Cf. Roland Mortier, "Diderot et le Projet d'une 'Philosophie
Populaire'. In Revue Internationale de Philosophie, "Diderot et
l'Encyclopédie -l784-l984-, nº l48-l49, fasc. l-2, l984, páginas
l82-l95.
13. Cf. Hegel, G.W.F. "Prefácio" à Filosofia do Direito, trad. francêsa de R, Derathé, Paris, Vrin, l975, página 53.