Flores

Flores
Flores

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Fragmento de um prefácio às Obras de Giordano Bruno programada pela Ed. Perspectiva. O texto inteiro está com a Editora e não é possível saber se a edição será publicada. Em tempos de pandemia e de perseguição à cultura, Bruno não é a elhor opção dos negacionistas governamentais. Roberto Romano

 Giordano Bruno. 

Um pensamento digno das Bacantes. Tal frase é dita por Hegel ao comentar os textos de Giordano Bruno. Logo a seguir o filósofo indica que as publicações esparsas do peregrino dominicano seriam idênticas às que pertencem  ao misticismo fanático (Schwärmerei), algo a ser afastado pela ciência. ([1]) Tais retratos têm fabricação datada e serviram para capturar as figuras mais controversas da modernidade, de Bruno a Spinoza. Tendo como base hipóteses antigas, retomadas na polêmica entre Lessing e Mendelssohn sobre o suposto panteísmo spinozano, Jacobi edita trechos selecionados evocando o escrito intitulado A Causa, Principio e Uno. ([2]) O equívoco sempre ronda a filosofia e a sua hermenêutica. Assim, muitos “ismos” são fabricados para glória da taxinomia aristotélica e alegria dos bibliotecários.. O panteísmo atribuído a Spinoza, que ricocheteia na leitura romântica de Giordano Bruno, é lugar comum pouco demonstrado, muito difundido sem sofrer a crítica estrita dos textos.

 

Jacobi amplia a suposta doutrina com antecedentes polêmicos trazidos do século 17, por exemplo, os ataques de Pierre Bayle. Dada por estabelecida a forma de pensamento panteísta em Spinoza, predecessores de tal figura noética são procurados. Assim, Bruno teria previsto a substância infinita de spinozana. Do predecessor delirante, brotam os descendentes românticos e idealistas como Schelling, Coleridge, e outros. Apesar de todo interesse votado por Hegel ao pensamento de Bruno,  sua atitude é clara: trata-se, para ele, de uma divagação onírica,  ou oceano revolto de pesadelos. Notemos que, de início,  Hegel julga honrar nosso herói com o qualificativo trágico trazido pelo teatro de Eurípides. Na sua obra de juventude, fronteira de uma filosofia contrária ao romantismo, Hegel define a própria verdade como dança onde deliram as bacantes. ([3]) 

 

Além do teatro, com a lembrança de Euripides em seu momento mais pungente, as Bacchae, na qual a dissolução dos corpos e das mentes atinge um ápice insuportável, Hegel atribui a Bruno uma outra forma cultural, agora o neoplatonismo. Uma fonte de Bruno seria Proclus, o místico que ajudou a levar adiante a reação contra a estrutura platônica do universo e da alma. A busca do Uno, que Hegel identifica em Bruno, teria sua origem especulativa em Proclus, para o qual “a inteligência é algo substancial que, na sua unidade a tudo contem : a a vida é o criador, o produtivo, a inteligência como tal é precisamente este algo que a tudo inverte, que faz tudo retornar à unidade”. E assim, temos a tese sobre o spinozismo antecipado de Bruno: “seus pensamentos filosóficos”, adianta Hegel, “somados ao entusiasmo pela natureza, por sua divindade, e pela presença nela da razão (…) são assim em geral uma filosofia spinozista, panteísta”. O universo para Bruno seria “um animal infinito no qual tudo vive e se move de maneiras diversas”.

 

A legenda de certo Bruno spinozista avant la lettre segue continua após Hegel na História da Filosofia. Um autor relevante para o pensamento materialista do século 19, Ludwig Feuerbach, ([4]) repete a tese panteísta, dando como base a substância de Spinoza. ([5]) Naturalmente, a referida substância é vista sob a optica hegeliana, como  infinitude que serve como base do Espirito. No caso de Feuerbach, ao contrário de Hegel, o espírito humano natural, não o divino. O leitor não está ainda livre, nestas considerações sobre a tradução de Bruno pela Editora Perspectiva, do idealismo alemão e de suas querelas contra as figurações românticas. Tal desvio de rota se justifica e as razões as darei adiante.



[1] Hegel, G.W. F. : “Bruno” in Vorlesungen über der Geschichte der Philosophie.  Frankfurt am Main, 1970, Werke in zwanzig Bänden, Suhrkamp Verlag, 20, T. III, p. 24.

[2] Nesta edição, página ? e seguintes.

[3] Das Wahre ist so der bacchantische Taumel, an dem kein Glied nicht trunken ist, und weil jedes, indem es sich absondert, ebenso unmittelbar auflöst, – ist er ebenso die durchsichtige und einfache Ruhe”.  “O verdadeiro é o frenesi báquico, no qual nenhum membro foge da embriaguez,. Como cada membro se dissolve imediatamente ao separar-se da roda, tal frenesi é ao mesmo tempo um repouso translúcido e simples”.  Note-se na frase o termo, oriundo da química imperante na época : Auflösung. A dissolução trágica do Todo mostra o trabalho do negativo, da morte e do sofrimento. Bruno, um pensador atormentado, teria intuido o movimento substancial da natureza e do divino. Hegel não precisaria de muito esforço para traçar, anacronicamente, o retrato do Nolano romântico que ainda hoje resiste em estudos especializados sobre sua filosofia. Cf. Hegel, G.W. F : Phänomenologie des Geistes, Werke in zwanzig Bänden, Shurkamp Verlag, 3, p. 46.

[4] Vorlesungen über die Geschichte der neueren Philosophie, von G. Bruno bis G.W.F. Hegel (Erlangen, 1835, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1974.

[5] Tomasoni, Francesco: Ludwig Feuerbach : Entstehung, Entwicklung und Bedeutung seines Werke ( Münster/New York, Waxmann Verlag GmbH, 2015) p. 150.

O texto abaixo foi escrito para um seminário comandado por Haroldo de Campos que se realizou na USP. O Cântico dos Cânticos é uma jóia rara de encanto. Com certeza evangélicos sob comando de Damares o condenariam. Paciência, Biblia, como o plural indica, é multipla pois serve a mentes agudas e a descerebrados e sem coração. Sigamos com a Biblia....Roberto Romano

 


O Sol Negro da Noite
.

Uma análise filosófica do Cântico dos Cânticos

Roberto Romano/Unicamp

O título desta alocução produz estranheza. No mundo de hoje, o religioso bate em retirada diante das ciências e das técnicas, o universo indica soluções imanentes para sua gênese e desenvolvimento, dispensando, como disse um dia Laplace a Napoleão, a “hipótese Deus”. Isto, no plano dos cientistas. Na vida cotidiana, o sagrado se comercializa nas televisões, vende milagres sem graça ou beleza, num prosaísmo inaudito. Entre os físicos e pastores eletrônicos, resta pouco espaço para o exercício filosófico e sua irmã gêmea mas rival, a poesia. Unir, como se anunciou, os cantares de Salomão, um sábio poeta, e filosofia, parece tarefa desprovida de sentido.

Quero centrar minha fala no seguinte problema : o que significa “ler” um poema bíblico ? Como este labor foi realizado na vida cristã, enquanto herança do mundo judaico ? Em primeiro lugar, evocarei algumas formas de exegese que enlaçam filosofia e poesia bíblica. Depois, indicarei a técnica de leitura mais prestigiosa na vida eclesiástica, desde o catolicismo até a experiência protestante. Terminarei indicando o rompimento com este método, no pensamento filosófico moderno, especialmente em Spinoza .

Antes, indico a dificuldade de todos os que desejam abarcar sinóticamente, nas obras capitais da humanidade, como os escritos bíblicos, os versos homéricos, as fantasias dantescas, o elemento filosófico, o religioso, o poético. Luciano, o grande satírico sírio, dizia ter inventado um gênero sério-cômico, e que este, para o leitor desavisado, poderia parecer um monstro.

Unir o diverso é dificil para todo intelecto que deseja pensar a vida humana, mistura complexa do Mesmo e do Outro, de harmonia e guerra dos opostos. Bem diz Holderlin, poeta e filósofo translúcido : “Como o canto do rouxinol no escuro, o concerto do mundo só é ouvido divinamente na dor mais profunda”. Ou seja, palintonos harmonie, na frase de outro poeta e filósofo, Heráclito de Éfeso, tensa concórdia do pensamento. Quem observa as várias formas do ser humano, afirma ainda Hölderlin, “só encontra dissonâncias, música demasiado surda, barulhenta, salvo na ingênua limitação infantil, cujas melodias ainda permanecem totalmente puras”.

Quando assistimos as guerras suscitadas pelas interpretações estanques e dogmáticas dos textos sagrados em diversas culturas, o espanto se apossa de nossa alma. Como foi possível, em nome de tamanha beleza, gerar tão grande ódio ? Como surgiram a Inquisição, os holocaustos, as sentenças de morte como a que se desferiu contra Salomon Rushdie? Outra vez, a palavra do mesmo Hölderlin: “o ser humano … está dividido gravemente, apresenta a imagem de um tamanho caos, que a vertigem se apossa de todos os capazes de ver e sentir. Mas a Beleza, expulsa da vida, se refugia nas elevações do espírito”. Paz e luta, segundo o poeta, alarido e silêncio, tudo conspira para a epifania do Belo, eternamente suspenso e iminente. “Tudo ocorre” proclama o artesão maior do verso, “pelo desejo, tudo acaba na Paz (…) as dissonâncias do mundo são como brigas de amantes. A reconciliação está na luta, tudo o que foi separado se reúne”.

Neste sentido, Hölderlin não está longe de Hegel. Este, proclama na sua Estética : “ Mesmo na dor mais profunda e na extrema dilaceração do ânimo, não deve faltar a reconciliação consigo mesmo, que até nas lágrimas e no sofrimento conserva o traço da certeza quieta e feliz. A dor permanece bela numa alma profunda, como até no Arlequim ainda dominam a graça e a gentileza”. Temos, nos dois grandes espírito modernos, o desejo de reconciliação dos opostos, movido pelo pensamento filosófico e pelo impulso poético. Mas podemos descer um pouco mais no tempo, utilizando a imagem hegeliana da pintura, para falar de um autor que uniu, diretamente, filosofia e poemas bíblicos, sem esquecer Homero, Virgilio, e tantos outros nomes da cultura greco-latina.

Referindo-se à unidade, na Divina Comédia, entre filosofia e poesia, avança uma notável analista do trabalho dantesco : a separação do escrito em duas partes rivais, doutrina e versos, “mata o poema. Fora do corpo, a mão não é mais a mão, o olho não é mais o olho, dizia Aristóteles, que Dante chama o ‘mestre dos que sabem’ e que tinha pleno domínio das divisões e distinções. Mais vale comparar a obra poética de Dante a um destes trípticos em madeira dos quais os pintores flamengos nos deixaram os modelos; o elemento poético e o elemento doutrinal são pelo menos tão inseparáveis em Dante, quanto a madeira e a pintura no tríptico”. A autora relativiza, logo a seguir, esta imagem, porque muito estática. E compara o nexo entre filosofia e poema como o entretido num corpo vivo : “a doutrina cumpre o papel de esqueleto,a poesia é a carne que o reveste. Doutrina e poesia são indispensáveis para explicar a beleza da obra”. [1]

Assim, é possível e necessário pensar o poema, filosoficamente, mas também reconhecer na filosofia a força poética. E ambos os lados convergem quando se trata de refletir intelectualmente sobre uma poesia religiosa. É o que eu tentarei fazer aqui, sabendo que irei falir, por falta de tempo e de saberes. Tomarei, inicialmente, a interpretação alegórica dos textos bíblicos, sobretudo do Cântico dos cânticos. Desenvolverei este modo pelo qual a Igreja e seus pensadores interrogaram a escrita sagrada. Depois, indicarei como, após Spinoza, esta leitura perde a validade explicativa, em termos filosóficos, sendo conduzida ao plano da simples imaginação, afastada do intelecto. Indicarei que esta ruptura entre acúmulo teórico e poético liberta a poesia das amarras filosóficas, mas empobrece os dois campos do pensamento. Finalmente, analisarei como a filosofia romântica lutou contra o intelectualismo das Luzes, defendendo a imaginação e o sentimento poético do mundo.

Escutemos o belo início do poema atribuído a Salomão, na lingua que mais serviu a Igreja, do seu nascimento até os nossos dias. “Osculetur me osculo oris sui; quia meliora sunt ubera tua vino, fragantia unguentis optimis”. [2] Os senhores ouvem este suspiro erótico : “Que me beije com beijos de sua boca! Teus amores são melhores do que o vinho, o odor dos teus perfumes é suave”. [3] Sabemos a sequência decor. O jogo de cores, centrado na figura da amada, é o ponto sublime destes versos : “Nigra sum sed formosa…sicut tabernacula Cedar, sicut pelles Salomonis”. “Sou morena”, diz cautelosamente a Biblia de Jerusalém, mas por que se recusa a palavra certa? “Sou negra, mas formosa, filhas de Jerusalém, como as tendas de Cedar, como os pavilhões de Salomão”. Certo, a pele escura é fruto da exposição ao sol da jovem férvida, o que indicaria seu estatuto de escrava. Mas num poema, não vale também notar os processos de produção imanente ? A menina é negra como as tendas, tecidas com pelos de cabra escura. Ela mesma, pois, é um tecido onde a cor é marca distintiva. Negra e formosa. Quantos preconceitos de ordem étnica e cultural seriam corrigidos, se os ouvidos atentassem para a matéria dos textos !

Elizabeth de Fontenay, num lancinante livro sobre Diderot e o materialismo, mostra até que ponto foi a cultura “branca” e “cristã” na sua loucura. Ela relata o caso de Sara Bartmann, uma hotentote que serviu como cobaia de observação para os “cultos” machos e cientistas do século 19, que nela viam um ser próximo do macaco, dando-lhe o apelido satírico “Venus Hottentote”. Isto, para ressaltar a beleza da Venus grega. Esta última seria kalipígea, a hotentote seria esteatopígia. Os senhores sabem o que isto significa. Além desta parte, que mostraria “científicamente” a suposta inferioridade da negra, o nariz, os lábios, tudo foi medido para demonstrar a sua falta de humanidade. Morta Sara Bartmann, seu corpo foi doado ao Museu de História Natural, onde seu esqueleto se conservou. Fontenay indica que hotentotes eram mostrados no Jardin d’acclimatation de Paris desde 1888, até o século 20. Eles também eram exibidos, para gáudio da “civilizada” e “caridosa” platéia, nos Folies Bergere. Massa vulgar e cientistas refinados, todos viam na alteridade da cor e da figura dos membros, o sinônimo divertido de um ser humano apenas na aparência.

Cito Fontenay : “vemos estes professores de zoologia, observando durante três dias, em suas quatro faces, esta mulher imóvel e nua, que posa para quatro desenhistas, tendo a superfície de seu corpo vigiada pelos olhares-escalpelo. Esta lição de anatomia à flor da pele e o relatório posterior, mereceriam constituir uma figura determinante na história do olhar do euro-macho”.[4] Não é de admirar que um povo assim, “civilizado”, tenha visto como “normal” o massacre de milhões de indivíduos “inferiores”, a partir de “sinais” físicos “evidentes” de sua inferioridade. Não se diga que os nazistas foram os únicos culpados nesta história. Os euro-machos, os americano-machos, até hoje produzem concursos de “beleza”, onde mulheres passivas se submetem ao olhar escalpelo, para saber qual o tipo mais adequado para reproduzir seus filhos.

Recentemente, no Brasil, uma besta fera do meio artístico elogiou Hitler quando exprimia seus desejos da fêmea ideal para gerar seus filhotes. A entrevista, todos os senhores a leram na revista Veja. Outro bárbaro, agora na direção de pequenas empresas, referiu-se à uma senadora da república, cuja cor é negra, em termos baixos, repercutindo milênios de preconceitos estéticos.

Sou negra, mas formosa : “foi o sol que me queimou”. Sim, o sol queima. Mas a recusa da cor negra queima ainda mais fortemente os que a ostentam. O Brasil, os Estados Unidos da América, são terras calcinadas e secas, neste sentido. A cor não é obstáculo para as vista extasiada do amante : “És bela, minha amada, e não tens um só defeito !”.

“Que me beije com beijos de sua boca!”. Embora todas as edições contemporâneas do texto insistam em indicar o caráter não alegórico do poema, o qual seria o canto do puro amor, distante do ascetismo estéril e da lascívia pecaminosa, por isto representando uma figura do mandamento divino, “crescei e multiplicai-vos”, as culturas judaicas e cristãs tiveram particular predileção por este poema erótico para invocar o enlace amoroso entre Deus e os homens, reunidos em Israel, ou na Igreja. Esta exegese antiga predominou até o século 19. Mesmo hoje, muitos escritores religiosos acentuam o texto como um outro modo de falar (alegoria…) sobre o vínculo entre o divino e o humano.

A base cristã do método alegórico, para ler os escritos do Antigo Testamento, encontra-se em São Paulo, na Primeira Epístola aos Coríntios: “Haec autem omnia in figura contingebant illis : scripta sunt autem ad correptionem nostram, in quos fines saeculorum devenerunt”. Na Biblia de Jerusalém : “Estas coisas lhes aconteceram para servir de exemplo e foram escritas para nossa instrução, nós que fomos atingidos pelo fim dos tempos”. Desaparece, no texto português, o termo “figura”, substituído por “exemplo”. O valor semântico pode ser próximo, mas ele realiza um “sequestro”, como diria Haroldo de Campos, da história alegórica que seguiu-se na cristandade, já herança de técnicas interpretativas judaicas.

Como expõe de forma segura De Lubac [5] o pensamento medieval, a partir de uma longa herança greco-latina, entendeu o texto bíblico, e sobretudo o Cântico dos cânticos, como figura, indicando que na Bíblia tudo é profético, alegórico, típico. Tudo, nela, é sinal de mistério : as palavras, as sílabas, as letras, as partículas, o menor iota, a própria pontuação. O venerável Beda, lê, seguindo São Paulo, que “omnia” (tudo), “não significa apenas todos os fatos e todas as palavras, mas ainda os lugares, os tempos, as situações, as circunstâncias”. Outro doutor cristão dizia que tudo, no Antigo Testamento, era “figura”, porque tudo estaria referido a nós. A história de Israel inteira torna-se, com sua tradição escrita e oral, profecia do tempo cristão.

Na verdade, esse caminho interpretativo teve início nos pensadores judeus. Não é apenas no Cântico dos cânticos que se usa a imagem do vínculo conjugal para descrever as relações tumultuadas entre Deus e homens, entre Javé e Israel. Encontramos este traço em Isaías (5, 1 e seguintes) onde Israel é chamado de “prostituta” pelo profeta, em lugar do antigo amor. Se o povo se arrepender, “como o noivo se alegra da noiva, assim de ti se alegrará o teu Deus” (Isaías, 62, 5). Deus canta o amor nupcial entre Ele e seu povo em Jeremias : “Lembro-me de ti, da tua afeição quando eras jovem, e do teu amor quando noiva, e de como me seguias no deserto…” (2. 2). E também em Oséias : “Desposar-te-ei comigo em fidelidade, e conhecerás ao Senhor” (2, 20). [6]

A figura conjugal é nuclear na hermenêutica judaica, sobretudo a recebida pela Igreja cristã. A idéia das “núpcias sagradas” tem papel importante no Zohar e na Kabala. No Zohar, trata-se da reunião de dois Sefiroth, do aspecto feminino e masculino em Deus. O símbolo da união conjugal entre Deus e Israel, entre Deus e a alma, é muito importante.

No Cântico dos cânticos, os leitores judeus ou cristãos viram aflorar o sentido mais atraente do mistério. Quem o lê, se possui muita sabedoria, nele enxerga o que está oculto. Se não possui saber e prudência, nele percebe apenas a superfície. Se o leitor é “carnal”, ele só apalpa as dobras do texto sagrado. Se é “espiritual”, ele penetra os seus inesgotáveis sentidos, atingindo o Santo dos Santos, lugar onde o divino se revela ao que o ama. No século XII, o Cântico dos Cânticos é o texto mais comentado da Biblia, sobretudo pelos cristãos. Segundo o Rabi Yossé, o rei Salomão o entoou enquanto construía o Templo, e todos os mundos inferiores e superiores celebraram cantos de louvor, cujo ápice é o Cântico dos Cânticos. Este canto abarcaria a Thora, o Gênesis, o segredo dos Patriarcas. Ele relataria, sob forma velada, todos os fatos importantes da história israelita, como os Dez Mandamentos, a Aliança, a travessia do deserto, a chegada em Israel, a construção do Templo, o exílio na Babilônia, e a liberdade final. O Cântico dos cânticos celebraria o “sabbah” derradeiro, o “dia dos dias”, que reúne o presente, o passado, o futuro.

Segundo Rabbi Eliezer, quando Deus formou o mundo, ele fez com a mão direita o céu, e com a esquerda, a terra, criou anjos para cantar os cânticos diurnos, e outros anjos para cantar a noite. Quando os homens repetem o Cântico dos Cânticos, eles seguem os anjos, unindo suas vozes e renovando a terra. O Rabbi Neemias disse que “Feliz é o homem que penetra nos segredos do Cântico dos cânticos”. Assim, ele vai até o fundo da Thora, chega à sapiência e eleva diante de Deus o presente, o passado, o futuro.

O Cântico dos cânticos não integrava, primitivamente, os textos canônicos da Biblia. Nele, Deus nunca é mencionado. O Rabi Aquiba (século II) conseguiu faze-lo entrar no canon. Escreveu o mesmo Rabi : “Toda a Biblia é santa, mas o Cântico dos cânticos é sacrossanto (Kôdesh Kôdeshim)”.

Na Igreja, a coletânea de poemas foi prezada de modo intenso. Mas a sua exegese era difícil e perigosa. São Bernardo, num sermão sobre a Epifania, ao explicar o Evangelho das nupcias de Caná, disse que o esposo designa o Cristo, e a esposa somos nós. Todos somos uma esposa diante do divino. Em seu comentário explícito sobre o Cântico dos cânticos (nos Sermões 8, 9, 10), São Bernardo leva adiante a figura conjugal. Ao comentar o enunciado “Que ele me beije com um beijo de sua boca”, o mesmo exegeta compara a experiência deste “beijo espiritual” a um maná secreto, a um signo de amor. O beijo, para ele, significa a efusão do Espírito Santo. Trata-se de uma luz que traz conhecimento, mas que também oferta o fogo amoroso. A esposa é a nossa alma sedenta de Deus. Ela ama com tamanho ardor que esquece a sublime majestade de seu amante. Segundo Bernardo, o Cântico dos cânticos pode parecer erótico, mas é, na verdade, espiritual. Os seios da esposa, por exemplo, aleitam as “almas novas”, as que começam apenas a procurar Deus.

Só há uma identidade entre o homem da carne, preso ao erotismo humano, e o homem espiritual : eles nunca estão saciados. Quem deseja riquezas, nunca se sacia, quem aspira pelo poder, nunca se sacia, quem tem fome de Deus, sente sua fome aumentar quanto mais próximo está do divino. O poema, pois, é um conjunto de signos, símbolos, que permite passar do homem carnal ao espiritual, do visível ao invisível. O divino e o terrestre, embora diferentes em dignidade, se encontram e se amam. O mundo não se prostituiu totalmente. A alma esposa não despreza a criação, mas a valoriza. Ela espera o dia do Juízo Final, quando haverá o encontro dos dois extremos, o humano e o divino. Neste dia, serão unidos o exterior e o íntimo, e não mais haverá masculino ou feminino.

Na piedade cristã, Maria é chamada a Esposa e a Mãe de Deus, mãe do Rei e sua esposa (Mater Regis et Sponsa), esposa do Senhor (Sponsa Domini), o templo do Espirito Santo (Spiritus sancti templum). Ela simboliza a esposa perfeita. São Bernardo chama a Virgem de mãe e filha de seu Filho, o que ecoa em Dante, no Paraíso : “Vergine madre, figlia del tuo figlio (…) Nel ventre tuo si raccese l’amore, per lo cui caldo ne l’eterna pace/ cosi `e germinato questo fiore”.[7] Todos estes pontos citam direta ou indiretamente o Cântico dos cânticos, inclusive num perigoso cruzamento com o incesto. Basta lembrar os verso seguintes : “Quis mihi det te fratem meum sugentem ubera matris meae, ut inveniam te foris et deosculer te et iam me nemo despiciat?” ( “Ah! Se fosses meu irmão, amamentado aos seios da minha mãe! Encontrando-te fora, eu te beijaria, sem ninguém me desprezar”).

O Cântico dos cânticos apresenta uma filosofia, a dos “santos dos santos” que corresponde à idade perfeita da vida espiritual. Através do poema, somos conduzidos à união entre Eterno e tempo, entre Deus e nosso espírito. Por que um poema, cheio de signos e símbolos ? Porque, para atingir Deus, é preciso passar pela carne. O próprio Deus se fez carne, na figura de Cristo. Não poderíamos falar com Deus sem este meio visível e erótico. Uma linguagem puramente espiritual seria inaudível para nós. Adianta São Bernardo : “Assim como é impossível compreender um discurso grego ou latino se não se conhece o grego ou o latim, também para aquele que não ama, o amor é uma língua bárbara” (Sermão 79, sobre o Cântico dos cânticos).

Não apenas em sentido laudatório se compara a Virgem Maria, figura da Igreja, à esposa do Cântico dos Cânticos na Idade Média e no início da moderna. Tomemos um trecho do Paraíso dantesco : “Cosí si fa la pelle bianca nera/ nel primo aspetto della bella figlia/ di quel ch’apporta mane e lascia sera” (Canto 27). (“Assim se faz negra a pele branca, da bela filha o primeiro rosto, daquele que traz a manhã e deixa a noite”). Lembremos que este Canto se inicia com Dante que ataca Bonifácio 8, o papa simoníaco, comerciante de Cristo e de sua Igreja, promotor da prostituição das coisas santas, usurpando o lugar de São Pedro. Erich Auerbach, analisa a passagem num texto intitulado “Pelles Salomonis” [8] , e remete para o pensamento do homem medieval, douto ou não. Cito Auerbach diretamente : “os motivos ‘bela filha’, ‘pele branca’, ‘negra’, ‘sol’, contêm para o leitor medieval uma referência à passagem dos Cânticos, o verso ‘Nigra sum sed formosa, filiae Jerusalem, sicut tabernaculum Cedar, sicut pelles Salomonis’(…) A alusão é tanto mais evidente, com certeza para o leitor medieval, não para nós, quanto se pensa que no Canto 27 inteiro do Paraíso o tema é a corrupção da vida da Igreja (com a cólera e a vergonha que isto suscita). Este tema está ligado constantemente ao da mudança ou perda da cor (versos 13-15, 19-21, 28-36)”.

Semelhante mudança de cor liga-se, no mesmo Canto à crítica dos que prostituiam a Igreja, esposa de Deus : “Non fu la sposa di Cristo allevata/ del sangue mio, di Lin, di quel di Cleto, per essere ad acquisto l’oro usata; ma, per acquisto d’esto viver lieto” (“Não foi a esposa de Cristo alimentada com meu sangue, com o de Lino e de Cleto (papas mártires, como Pedro), para ser usada na conquista de ouro, mas para a conquista deste viver feliz”). Os padres e o papa simoníaco tornam-se negros, enquanto a Igreja deveria ser alva. O comentário de Auerbach é eloqüente : ninguém, antes de Alighieri, “teria dito que no seu tempo a corrupção da Igreja tinha provocado um obscurecimento do céu semelhante ao que existiu durante a Paixão de Cristo e que a perversão da sociedade humana era produzida pela falta do poder imperial. Estas idéias eram suas, e de ninguém mais, e por isto ele usou motivos como filha, pele, descolorir, quando estas vinham ao seu encontro, para ajudá-lo em seu propósito. Deste modo, ele ofereceu uma variante ou combinação nova da interpretação tradicional : a sociedade humana (“sponsa Christi”. “a bela filha”) perde sua cor diante do esposo”.

Quando me referi ao nascimento do método alegórico, disse que os tradudores da Biblia de Jerusalém tomaram o termo “figura” por um outro, o de “exemplo”. Ocorre que na edição grega e latina da 1a Epistola aos Coríntios, os termos empregados são “tipo” e “figura”. São Paulo escreve numa lingua já trabalhada por séculos onde se recolheram as culturas grega e latina, de Platão, no mínimo, até os estóicos, passando por Aristóteles. Neles, os termos “figura” e “tipo” já haviam sido estabelecidos na metafísica, na ética, na retórica, na gramática, adquirindo sentidos polissêmicos, cada vez mais amplos e abstratos. “Figura” tinha adquirido, por exemplo na poesia de Ovídio, um significado retórico preciso, em tom irônico. Estava próxima, tal palavra, de “fantasia”.

Nos escritores cristãos, entretanto, “figura”, sem deixar os vários sentidos plásticos anteriores, passou a indicar algo verdadeiro : “figura é o mesmo sentido literal ou o fato referido, o cumprimento futuro nele indicado, e também é a ‘veritas’ Deste modo, ‘figura’ aparece como termo médio entre ‘letra-história’ e ‘veritas’”. “Exemplum” é apenas um dos significados de figura, no campo da interpretação alegórica cristã, a qual, embora unida às formas anteriores de alegorismo, como o filosófico de Filon de Alexandria, tinha uma “carne”, justamente o fato de sua inserção no tempo. Uma “figura” pretérita unia-se à uma outra, presente ou futura, dando sentido à existência dos homens nos inúmeros lugares do tempo. Estas “figuras”, apresentadas plasticamente nos poemas bíblicos, como o Cântico dos Cânticos, tiveram eficácia de convencimento.

Conforme diz Auerbach : esse modo de apresentar o Eterno no tempo, através do poético, “conjugava exemplarmente a força prático-política da fé com aquelas poéticamente criadoras e transformava a concepção hebraica da ressurreição de Moisés no Messias num sistema de profecia real (…) E assim o Antigo Testamento ganhou uma nova atualidade dramático-concreta enquanto perdia a força da Lei e a peculiaridade histórico-popular”.[9] Dentre os monumentos poéticos cristãos que marcam nosso espírito, ampliando o tema do casamento e dos Cânticos dos cânticos, está a Divina Comédia, como vimos antes. Nesta, também vimos, a poesia une-se, como carne aos ossos, à um conjunto doutrinário filosófico que pretende atingir o verdadeiro através da figura, por seu meio, e não rompendo com a figura, com o tipo, com a imagem.

Assim, escreve Auerbach em outro livro, “O Antigo Testamento se transforma numa sucessão de pre-figurações isoladas, Adão pode pode tornar-se não só uma figura, mas um profeta figural de Cristo”. Em contrapartida, “Maria é o jardim (…) a origem da água viva do Cântico dos Cânticos”. [10]

Tal modo de pensar, filosófica a teológicamente, permaneceu até o Renascimento, sendo gradativamente abandonado a partir das pesquisas dos filólogos e historiadores laicizantes, cuja liderança cabe, sem dúvida, a Lorenzo Valla. Os modernos interpretes do texto bíblico tendem a atenuar ao máximo este figurativismo alegórico, separando a figura do seu intento de exprimir, sob forma velada, a verdade. Talvez um dos últimos dos grandes autores da era renascentista a utilizar esta via, com fortes sinais de neo-platonismo, tenha sido Giordano Bruno, preocupado com a unidade do cosmos, a imagem e a memória. Na sua obra “De umbris idearum”, Bruno inicia uma seção capital sobre o nexo entre nossa inteligência e memória e o Deus único, citando o Cântico dos Cânticos: “Sub umbra illius quem desideraveram sedi…”. (”Sentei-me à sombra daquele que eu amo”) (2, 3). Comenta Francis Yates, no seu livro sobre a Arte da Memória : “Devemos nos sentar à sombra do bom e do verdadeiro. Para lá dirigir os sentimentos através dos sentidos interiores, através das imagens que se encontram no interior do espírito humano, isto é sentar-se à sombra”. Deste modo, “dentro da natureza tudo está em tudo. No intelecto, tudo está em tudo. E a memória pode memorizar tudo, a partir de tudo”. [11]

O trabalho moderno, na interpretação filosófica e teológica dos textos bíblicos, deu-se a partir de Lorenzo Valla, de Erasmo [12] , e de Lutero, seguidores de Valla, de modos distintos, mas todos com desconfianças e críticas ao alegorismo. O primeiro, em nome do rigor filológico e do decorum literário, o segundo, especialmente pelo seu programa de seguir apenas a Escritura. Os reformadores criticaram nos “papistas” a sua “liberalidade alegorizante” como sacrilégio. Do lado católico não tanto ortodoxo, como no filósofo Pascal, se defendeu o método antigo. Pascal afirma que “São Paulo ensinou aos homens que todas aquelas coisas tinham acontecido em figura”. E Pierre Nicole, um dos autores da Logica e da Gramática de Port-Royal, textos fundamentais de filosofia clássica, num prefácio escrito para o livro intitulado Explicação do Cântico dos Cânticos (de M. Hamon), defendeu o alegorismo.

Mas essa atitude se enfraqueceu, como o demonstra o Pe. De Lubac. Além disto, continua De Lubac, “a ofensiva dos cientistas vinha reforçar mais e mais, num outro terreno, a atitude da Reforma”. A crise instalada na Renascença, e que piorou no século 17, atingiu seu ponto máximo com as Luzes, no século 18. Em 1727, no livro Notas Anexas sobre a Carta de um Prior a um de seus Amigos, encontramos uma frase importante, criticando o alegorismo anterior : “Que abuso fazer depender a inteligência da Escritura do grau de imaginação, e da maior ou menor facilidade que se tem para colher relações e conveniências”. Temos aqui, na pena de um católico, algo que, se dito por um discípulo de Spinoza, levantaria gritos contra a ruptura entre ciência e sinal, entre imaginação e intelecto. Spinoza deu o ponto de partida mais grave neste rumo. Doravante, uma coisa é a Biblia, com sua poesia e ditames morais baseados no medo e na esperança, ou seja, na imaginação. Outra, é a filosofia ou a ciência, com base matemática, controlando o mais possível o imaginário poético e religioso, em proveito do saber.

Spinoza, com sua leitura da Biblia, causou um verdadeiro furacão na Europa judaica e cristã. Expulso da Sinagoga, ele não foi bem acolhido, muito pelo contrário, por católicos e protestantes. Sua influência foi decisiva nos principais teóricos do século 18 e 19, estando seu pensamento na própria gênese das reflexões materialistas, atéias, ou simplesmente agnósticas de um Denis Diderot, Jean-Jacques Rousseau, Voltaire, etc. Com Spinoza, enuncia Paul Vernière, um dos maiores conhecedores das Luzes e da filosofia diderotiana, “A Biblia não era mais o Livro, mas um livro trazido à medida humana e que, à semelhança de um texto de Orígenes ou de Salústio, deveria ser submetido a minuciosas investigações históricas e filológicas”. O tratamento Spinozano para os textos bíblicos passa pela questão da lingua (o hebraico e no que tange aos últimos livros do canon, o aramaico), pela semântica, comparando os textos e encontrando o sentido exato das palavras, sua acepção literal e metafórica, pela história do povo hebreu, a biografias dos autores, a transmissão das obras, as diferentes lições e como se estabeleceu o próprio canon.

Claro que o método spinozano, com raízes no renascimento, nos pensadores mais independentes do judaísmo e do cristianismo, exigiu resposta da Igreja. Esta cometeria suicidio, diz Vernière, se admitisse que a Biblia, base da crença e fundamento de suas decisões, fosse submetida ao destino das obras humanas, como os poemas homéricos. Se a Escritura nada mais fosse do que uma reunião confusa de mito, história e literatura judaica, como justificar a Revelação cristã ? Toda a história da filosofia cristã, e da exegese, passou a ter em Spinoza o seu inimigo mortal. [13]

Uma característica do método alegórico é o vínculo entre pensamento filosófico e imaginação poética. Spinoza rompe esta solidariedade. Para ele, como afirma a sua Ética (no Apêndice), “todas as noções que o vulgo tem o hábito de fazer uso para explicar a natureza são apenas modos de imaginar, e nada revelam da natureza de nenhuma coisa, mas apenas a constituição da imaginação”. Ou seja, quando lemos um comentário alegórico ou poético dos textos bíblicos, aprendemos mais sobre a cabeça do comentarista, os seus medos, os seus desejos, as suas formas de imaginar, do que algo sobre a lingua, a história, o sentido do próprio texto bíblico. Os próprios escritores do texto sacro, profetas, sábios, ou poetas, não são dotados, segundo Spinoza, “de um pensamento mais perfeito, mas de um poder de imaginar mais vivo”. (TTP,II).

Os que se distinguem pela imaginação, afirma o filósofo, “são menos aptos para conhecer as coisas pelo intelecto puro, e, pelo contrário, os que são superiores no intelecto e o cultivam por preferência, tem um poder de imaginar mais temperado, mais dominado e, como domado para que ele não seja confundido com o intelecto”. Como a simples imaginação não envolve, por sua natureza, o que é certo, a profecia –e os demais escrito bíblicos, sobretudo os poéticos– não poderia “por si mesma, envolver certeza, pois ela depende apenas da imaginação”.(TTP, II). O texto da Biblia apresenta um signo, um índice como prova de verdade. Este signo, pensa Spinoza, é exterior ao intelecto, e só pode ser forjado pela imaginação, a qual depende de figuras. Como neste plano tudo é incerto, a polissemia da exegese alegórico-poética marca a falta de ciência e de verdade. Esta, para Spinoza, não depende de nenhum signo, e o verdadeiro é o índice de si mesmo e do falso. Se um poeta bíblico, ou profeta, é refinado, suas imagens serão refinadas, mas não podemos esperar que elas nos tragam conhecimento físico, histórico, matemático.

O que significam as bodas de Caná para o comentador alegórico ? Infinitas coisas, entre as quais, o elo erótico entre Deus e os homens. O que significam as mesmas bodas para Spinoza ? Nelas, o milagre da mudança da água em vinho é recurso poético, imaginário de pessoas sedentas de vinho e de maravilhas que relatam o que lhes ia na alma, enquanto desejo. Assim, toda a Biblia, no AT e no NT, tem um estilo persuasivo que entra na economia das paixões. “Se a Escritura narrasse”, diz Spinoza (TTP, IV), “a ruina de um estado segundo os modos dos historiadores políticos, isto não comoveria de nenhum jeito a multidão. O efeito, entretanto, é muito grande, quando se pinta o que ocorreu com um estilo poético, e quando se relaciona tudo a Deus, como a Biblia tem o costume de fazer. Quando, pois, a Escritura narra que a terra ficou estéril devido ao pecado dos homens, ou que cegos são curados pela fé, estes relatos não nos devem comover, como também quando ela conta que devido aos pecados dos homens Deus se irritou, ficou triste, se arrependeu do bem prometido ou já feito, ou ainda que Deus se lembra de sua promessa diante de um signo e muitas outras histórias que são invenções poéticas ou exprimem as opiniões e os preconceitos do narrador”. (TTP, VI).

A Escritura ensina a plebe a obedecer ditames morais. E ela o faz usando uma lingua poética onde entram todos os recursos da retórica, fazendo apelo aos sentimentos humanos e jogando estes últimos sobre Deus, como se este fosse apenas um super-homem, e como se ele não ultrapassasse nossa imaginação, só podendo ser captado pelo intelecto superior.

O juízo de Spinoza sobre o escrito poético deu a este último uma liberdade diante do teológico-doutrinário. Mas contribuiu para a ruptura entre poesia e ciência, algo que se agravou na secularização dos século 18 e começos do dezenove. A filosofia gelada, pensam os críticos deste divórcio entre o sentido estético e o científico, acabou com a polissemia do signo e do símbolo mitológicos. Newton, com seu prisma que reduz as cores numa série material de conbinações físicas, retirou do arco-iris todo o seu encanto.

O maior ataque ao pensamento que afasta intelecto/ciência e imaginação/poesia veio com o romantismo, ampliação dos trabalhos de Edmund Burke, sobretudo nas Considerações sobre a Revolução Francesa, uma continuidade das análises sobre o sublime, pelo mesmo autor. Estas, como sabemos, vincaram a estética filosófica de I.Kant, do idealismo transcendental de Schelling e de Hegel, e foram nucleares nos textos românticos contra as Luzes e a ciência mecânica. Como resultado do pensamento que separa imaginação e intelecto, o mundo tornara-se desencantado.

Citemos Novalis, o maior poeta do romantismo : com a dessacralização da Biblia e do mundo físico, “os deuses desapareceram, e com eles seu cortejo -a natureza esgotou-se e perdeu a vida– foi amarrada à férrea cadeia do número árido e à estrita medida. A floração luxuriante dos viventes reduziu-se a palavras obscuras, feitas de poeira e vento. Desapareceram a fé evocadora e sua celeste companheira, a imaginação (…) a luz deixou de ser a morada e o símbolo celeste dos deuses -eles envolveram-se no véu da Noite”.[14] Com a filosofia do século 18 e 19, herdeiro de Spinoza e do racionalismo clássico, Deus morreu e o mundo foi mecanizado.Contra este desencanto, o pensamento romântico apelou para as nupcias entre racionalidade e fantasia, reabilitando a imaginação. Desde esta época, já nos inícios do século 19, o pensamento mágico foi a tônica na defesa do poético e na luta contra a físico-matemática que se basearia em necessidades, e que teria retirado todo traço humano da vida social e política.

As formas alegóricas, no século dezoito, tornaram-se cada vez mais intectualizadas, frias, secas. Isto, em todas as artes. Diderot é quase uma exceção, com seu colega inimigo, Rousseau, neste campo. A escrita destes dois filósofo tem carne, cores, sons, imagens profusas [15]. Por este motivo, ambos são indicados enquanto antecipadores do romantismo, ou simplesmente como românticos. Claro que este é um modo estranho de retirar ambos os pensadores de seu tempo, cometendo um anacronismo que apaga outros traços de seu trabalho. Mas a presença de um imaginário rico, capaz de erguer o pensamento e a fantasia à altura do sublime, tornou o par Diderot e Rousseau o mais presente no labor romântico, nas escritas de Goethe, Schiller, Herder, e outros.

Num mundo desencantado pelo número, os românticos tentaram romper o prestígio da alegoria intelectualizada, ressaltando as virtudes regeneradoras dos símbolos. Quem melhor enuncia isto, é Albert Beguin, no seu belo texto sobre A Alma romântica e o Sonho . No universo romântico, “os sons, as cores, os perfumes respondem-se mútuamente, os objetos se transfiguram sem cessar e deixam sua aparência. As flores se transformam em nuvens, as estrelas caem sobre o solo e espalham-se em corolas magníficas; as pérolas de neve se transmutam em olhos de pássaros, caem em lágrimas no espaço e formam ali as brumas. O gelo se transforma em névoa, neve, luz; um caminho aberto pela charrua estende-se sobre a terra e acaba num oceano com horizontes vaporosos. De uma lágrima nasce uma onda, a qual engendra um navio. Seres tornam-se pura música. Os pensamentos do sonhador bastam para mudar toda a paisagem, abrir portas fechadas, e um grande lírio, súbito, se transforma no símbolo da serpente, conselheira do Mal”.

É nesse quadro onírico e simbólico que os poderes da magia e do encantamento fizeram Novalis, como disse, o maior poeta romântico alemão, ressuscitar, nos versos e na dor, o Cântico dos Cânticos. Muitos dos senhores conhecem a biografia do poeta. Matemático, geólogo, ele viveu nos círculos próximos do primeiro romantismo. Encontrou uma jovem de quinze anos, Sofia, em 1794. Ficaram juntos no verão de 1795 e, breve, uma doença mortal a destruiu em 1797. Novalis cantou esta morte até a sua própria, num desejo de união com Sofia que se realizou em 1801, quando o poeta atingiu os 29 anos. Novalis escreveu sobre física, matemática, metalurgia, e muitos outros assuntos, sempre tentando realizar o programa romântico de uma transmutação do mecanicismo newtoniano e das Luzes. O que nos importa, é a sua guinada para o desejo de Sofia morta/viva, e sua retomada do Cântico dos Cânticos.

Nesse rumo, o conjunto fundamental é dado pelos Hinos à Noite. Neles, unem-se a recusa das Luzes burguesas e a busca de Sofia. Esta oposição entre noite e dia é marca romântica de primeira plana. Ainda em Fitzgerald, tanto no Great Gatsby quanto no Tender is the Night, temos o delírio em busca de paz e tranquilidade, só garantidas no interior do sonho e da escuridão. Os Hinos à Noite estão embebidos de erotismo e volúpia. Aliás, para Novalis, num de seus “Fragmentos”, “a religião cristã é a verdadeira religião da volúpia. Nada nos estimula mais a amar nosso Deus do que o pecado. Mais nos sentimos pecadores, mais somos cristãos. O pecado, como o amor, só têm como razão de ser na união absoluta com a divindade” (Fragmento III). Esta tese vem de Lutero. É o famoso “Pecca fortiter”, da carta escrita pelo Reformador a Melanchton (1-09-1521) : se existe a Graça divina, e se o cristão nela acredita, e não vê nela apenas uma fábula, logo, ele deve saber que Deus não salva pecadores inexistentes, mas reais. É preciso, pois, ser pecador, e pecar fortemente. Mais firmemente, entretanto, vêm a fé e a esperança no Cristo, “o vencedor do pecado e da morte!”.

O sexto Hino de Novalis acaba com a evocação direta do Cântico dos Cânticos : “Desçamos rumo à noiva, rumo a Jesus Cristo, o Bem amado. Coragem, o entardecer tomba sobre os corações amantes e piedosos. Um sonho, quebrando nossas cadeias, nos mergulha no seio do Pai”. Trata-se da antiga alegoria, já mencionada por mim, do amor entre a Igreja e o Cristo, unio mystica ou connubium mysticum. Avni [16] coloca em paralelo os versos de Novalis e os dos Cânticos. Entre muitos, vejamos os seguintes : “terna amorosa – gracioso sol da Noite– … reduzido numa substância aérea, eu misturo meu ser no teu, numa união mais íntima, para que dure eternamente a nossa noite de nupcias” (Canto I). E depois : “Teus sóis possuem olhos amigos, que me reconheçam ?” (Canto IV). Nos Cânticos : “Quem é aquela que surge….clara como o sol?”. “O que foi santificado pelo contacto amoroso escoa, num estado fluido e sutil, por canais subterrâneos que o arrastam para um outro mundo e o misturam, como um aroma impalpável, à substância de seus mortos, bem amados”. (Canto IV). Cântico : “Tu és …como a água viva”. Se fossemos comparar todas as passagens dos Hinos novalianos esgotaríamos mil e uma noites. Desejo finalizar, apontando a ruptura desse imaginário com a filosofia das Luzes, o que deu início ao pensamento mágico romântico, hoje banalizado e reduzido a produto comercial, produzindo lucro para charlatães.

Para aquilatar o abismo entre esse reavivamento dos Cânticos dos cânticos e a filosofia das luzes, basta que se indique, primeiro, a Flauta Mágica de Mozart : nela, Sarastro é pai das luzes, sábio, enfrentado pela Rainha da Noite, vingativa e odiosa mulher que só promete morte no seu canto. Jean Starobinski mostrou, no belo 1789 ou os Emblemas da Razão, o quanto a ópera é dominada pela figura masculina, numa retomada intelectual e metafísica que põe o homem como superior à mulher, esta última sendo uma criança (Pamina) ingênua a ser educada por Sarastro e por Tamino. O romantismo valorizou a mulher como agente, bom ou mal, mas deu-lhe a primeira autonomia moderna, contra o pensamento aristotélico que a definiu como homem inacabado.

Há um movimento plagiotrópico, termo cunhado por Haroldo de Campos, que vem dos mais antigos poemas hebraicos e greco-latinos, até o romantismo filosófico e poético. Vimos a insistência de Novalis no sol escuro da noite, e notamos que as imagens solares são extraídas do enlace amoroso, posto no Cântico dos Cânticos. Ocorre um vínculo perfeito entre o imaginário onírico de Shakespeare, visto como “bárbaro” pelos filósofos do século 18, especialmente por Voltaire (Diderot é exceção neste juízo negativo) e o romantismo. Não por acaso, o pensamento romântico foi o que mais ajudou a reabilitar o poeta renascentista inglês. No caso do Cântico dos Cânticos, o tema do desencontro entre amada e amante, e o encontro num leito onde se dorme (dormir é um modo de morrer), repercute em Romeu e Julieta, trazendo figuras mais tarde assumidas pelos românticos, em especial por Novalis.

Lembremos o Cântico : “Em meu leito, pela noite, procurei o amado de minha alma. Procurei-o e não o encontrei”. A última frase constitui uma anáfora importante “ : “Procurei-o e não o encontrei”, logo adiante. Tendo agarrado o seu amor, Sulamita pede às filhas de Jerusalém : “não o desperteis, não o acordeis, até que ele o queira”. Tomemos Romeu e Julieta : “se o amor é cego, ele concorda melhor com a noite. Vem noite severa, tu, sóbria matrona, toda vestida de negro, ensina-me a perder uma partida já ganha”. E mais : “Vem, noite; – vem Romeu, tu dia na noite”. O grito doloroso de Julieta ecoa pelo universo : “Vem, noite gentil …. dá-me Romeu; e quando ele morrer, toma-o e corta-o em pequenas estrelas, e ele tornará tão bela a face do céu, que todo mundo se apaixonará pela noite, e não mais dirigirá orações ao sol brilhante”. Há um encontro, em Shakespeare, entre o erotismo poético de origem grega e bíblica. Se acreditarmos em Diógenes Laércio, Platão escreveu um poema para um amante seu, morto muito jovem, cujo nome era Astro: “Admiras os astros, meu Astro. Queria ser o firmamento celeste, para possuir todos os seus olhos para te observar! Outrora brilhavas entre os vivos como a estrela da manhã. Morreste, mas brilhas entre os mortos como a estrela do anoitecer”.[17]

Em Novalis, o amor impossível, nostalgia do que poderia ter sido, desejo de união infinita, une-se à fuga da claridade, tornando-se culto erótico da morte : “É na morte que o amor transforma-se em mais doce; para o amante, a morte é uma noite nupcial, um segredo de suaves mistérios”. Este imaginário se desgasta, e se torna frio e retórico, no músico Wagner. Em Tristão e Isolda pode-se ouvir : “Para quem contempla amorosamente a noite da morte; para quem ela confiou seu profundo segredo; para tal homem, as mentiras diurnas, glórias e honra, poder e fortuna, com todo seu brilho soberbo, se dissipam como vã poeira de sóis….Nas quimeras derrisórias do dia, só uma aspiração lhe resta… o desejo da santa noite, onde, desde toda eternidade … o êxtase amoroso o faz estremecer”.[18]

Se fôssemos percorrer o itinerário que vem do Cântico dos Cânticos até Novalis e Wagner, passando pelos interpretes alegorizantes do poema na Idade Média, e pelo seu uso poético em Shakespeare, diríamos que os seus avatares seguem o nascimento da subjetividade moderna, um dos problemas mais graves da filosofia contemporânea. Preferi seguir o caminho das interpretações do texto bíblico, desde as que mostravam uma identidade cosmológica e lógica entre o cantor, o interprete, a natureza, o conhecimento e a imaginação, até o racionalismo clássico, com Spinoza, que nega tal identidade. Daí, seguimos a interiorização do cosmos, desde a saída do antigo lugar alegórico, o mundo lisível pelo signo externo, até o mundo do sujeito, onde tudo se passa pelo simbolo. Hegel chamou a nostalgia infinita de união, baseada na subjetividade, de simples loucura. Mas Hegel é o homem que definiu limites para as artes e para a sensibilidade. Mesmo saboreando a música, ele escolheu Palestrina, Durante, Lotti, Pergolesi, Gluck, Haydn, Mozart porque, segundo ele, “a quietude da alma não se perde nas composições daqueles mestres. A dor, neles, se exprime certamente. Mas ela é sempre dissolvida, a clara proporção equilibra-se entre os extremos, tudo permanece reunido em formas contidas e prontas, e assim o júbilo nunca degenera em tumulto desenfreado, e o próprio choro proporciona a mais tranqüila pacificação”.(Estética)

O Cântico dos Cânticos ensina, hoje e sempre, que a pacificação idealista é impossível. O desejo dos amantes, como diziam os mestres medievais, nunca se apaga, sempre se reforça, ao infinito. É o que diz a Sulamita, no ponto mais profundo do poema : “Grava-me, como um selo em teu coração, como um selo em teu braço; pois o amor é forte, é como a morte. Cruel como o abismo é a paixão; suas chamas são chamas de fogo, uma faísca de Javé. As águas da torrente jamais poderão apagar o amor, nem os rios afogá-lo. Quisesse alguém dar tudo o que tem para comprar o amor….seria tratado com desprezo”.

Aberta a chaga da subjetividade moderna com o seu distanciamento diante da natureza, não há retorno possível. Sem Deus, e sem esperanças de imortalidade, somos jogados num mundo onde a inquietude cresce sempre mais, desconhecendo saídas. Baseando-se no trecho acima dos Cânticos, sobre a crueldade amorosa, Camões gerou os agora banalizados versos sobre o “contentamento descontente”, mas também o espantoso poema sobre Eco, apaixonada por Narciso, onde o escritor, falando de si mesmo, lembra que “os olhos que vivem descontentes, descontente o prazer se lhe afigura”. E por que ? Responde o vate : “… se o amor não se perde em vida ausente, menos se perderá por morte escura; porque, enfim, a alma vive eternamente, e amor é afeito d’alma, e sempre dura”. Esta certeza não abole o pêndulo entre paz e inquietude, mesmo nos místicos mais elevados do cristianismo. Quem duvidar, leia as páginas lancinantes de Santa Tereza de Jesus, nas Meditações sobre os Cânticos dos Cânticos, não por acaso censuradas pelos diretores espirituais, e hoje só acessíveis devido ao acaso, que recolheu manuscritos não incinerados daquele poema em prosa. [19]

Os místicos autênticos conhecem a “noite escura da alma”. Todo filósofo digno deste nome, enfrenta o problema do sujeito e da sensibilidade, sobretudo no campo da paixão. Neste prisma, o Cântico dos Cânticos é um convite poderoso ao encanto e ao pensamento, sem rupturas entre estes dois traços antropológicos fundamentais. Afinal, mesmo Hegel admitia que a palavra “sentido” (Sinn), básica para se entender o ente humano, possui…dois sentidos : o lógico e o carnal. A filosofia moderna, cujo ápice encontra-se no século 18, concentrou-se no lógico. A filosofia romântica mergulhou na carne. A busca do equilíbrio entre os dois lados é tensa. A poesia ensina os teólogos, os antropólogos, e sobretudo os filósofos, a finura das palavras e das imagens. Para isto, nada mais indicado do que meditar sobre os Cânticos, obra de pensamento e de poesia, atribuída, não sem razões, ao sábio poeta.

Notas

[1] in Studi su Dante . Milano, Feltrinelli, 1995, páginas 261 e seguintes.

[2] Yvonne Batard. Dante, Minerve et Apollon. Les Images de la Divine Comédie. Paris. Les Belles Lettres, 1952, p. 85-86..

[3] Vulgata, ou Biblia Sacra. S.Sedis Apostolicae Typographi Ac Editores, Marietti,1959.

[4] Biblia de Jerusalém. Ed. Brasileira. São Paulo, Paulinas, 1985.

[5] Fontenay, Elizabeth. Diderot ou le matérialisme enchanté. Paris, Grasset, 1981, p. 87-99.

[6] “Omnia in figura”, in Exegese Médiévale. Les Quatre Sens de l’Écriture. Paris, Aubier, 1964, IIe Partie, V.II, p. 60 ss.

[7] A partir deste ponto, estarei seguindo literalmente o belo texto de M.M. Davy, Initiation a la Symbolique Romane. Paris, Flammarion, 1977.

[8] Paraíso, Canto 33. “Virgem mãe, filha de teu filho (…) em teu ventre incendiou-se o amor, por cujo calor, na eterna paz , esta flor germinou”. Cf. os comentários de Ernst Kantorowicks. The King’s two Bodies. Princeton, Univ. Press, 1970. P. 100.

[9] in Studi su Dante . Milano, Feltrinelli, 1995, p. 261 e ss.

[10] Cf. Auerbach, op.cit. p. 207

[11] “Il simbolismo Tipologico nella letteratura medievale”. In San Francesco, Dante, Vico. Roma, Riuniti, 1987, p. 138-139..

[12] L’Art de la Mémoire. Paris, Gallimard, 1982, p. 242-243.

[13] Cf. Chomarat, Jacques. Grammaire et Rhetorique chez Erasme. Paris, Belles Lettres, 1995.

[14 ] Para estes aspectos, cf. Abrams, M.H. The Mirror and the Lamp. Romantic Theory and the critical tradition. N.Y. Oxford University Press, 1971. A citação de Novalis, acima, encontra-se em Roberto Romano : Conservadorismo romântico. São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 138-139.

[15] The Bible and Romanticism. The Hague, Mouton & Co. 1969, p. 36 e ss.

[16 ] Diógenes Laercio. Vida , Doutrinas e sentenças dos Filósofos Ilustres. Paris, Garnier Flammarion, T.1,p. 172.

[17 ] Diógenes Laercio. Vida , Doutrinas e sentenças dos Filósofos Ilustres. Paris, Garnier Flammarion, T.1,p. 172.

[18 ] In Santa Tereza de Jesús, Obras Completas, BAC, 1986, p. 421 ss.

 

domingo, 13 de dezembro de 2020

Nos tempos de pandemia as forças intelectuais de todos perdem em persistência. Dos inúmeros textos iniciados por mim, o abaixo está totalmente, e ainda, em forma de rascunho. Trata-se de uma reflexão sobre a vida e o teatro, a política e o teatro. Talvez eu siga para outro plano sem que .... os planos de publicações estejam acabados. Não importa, perfectum significa terminado, feito. A nossa vida é toda fragmentária, imperfeita. Uma ideia das linhas abaixo pode ajudar o pensamento sobre o Brasil de hoje, cena bufa e trágica ao mesmo tempo. Abraços aos amigos!

 

A comparação da existência humana com o teatro é figura retórica batida na cultura ocidental. Já no tratado sobre As Leis (644 d-e) Platão move o simile em sentido cênico. O debate platônico ganha força no tema da escolha pelas vias do bem e do mal. “Concordamos”   diz o ateniense “que se os homem são capazes de governar a si mesmos (ἄρχειν αὑτῶν ) eles são bons, mas se incapazes são maus”. Vamos usar uma ilustração para explicar o fato, adianta o ateniense. “Cada não um possui dentro de si dois antagonistas e loucos conselheiros, o prazer e a dor?”. E além disso “cada um possui opiniões sobre o futuro, cujos nomes gerais encontram-se nas “expectativas”; e o que precede a dor é chamado medo e o que precede o prazer chama-se confiança e ademais de tudo isso há o ‘cálculo’ que diz qual deles é bom, qual ruim; e o ‘cálculo’ quando se tornou um decreto público da polis (δόγμα πόλεως) chama-se ‘lei’(νόμος) ?”.

 

Até aqui temos os conceitos que se tornaram a essência da ordem política ocidental e vigoram até hoje. O verbo “governar” tem o sentido plural de ordenar o coletivo e cada indivíduo, refreando as paixões de massas e lideranças rumo ao sucesso ou ao desastre, o prazer e a dor. E também aqui surge algo que muita gente imagina ter sido inventada por Imanuel Kant: a autonomia da vontade frente às leis do Estado. O estado de alma que implica flutuação (algo importante na ética spinozana) também entra no quadro descrito pela soberbo escritor Platão. Trata-se da confiança traduzida em expectativas. Mas o principal é o elemento do cálculo, algo nuclear em toda política. Líderes que não calculam perdem o poder. Mas também multidões desprovidas de calculo são obras de pura ficção. Só é possível mandar em massas após o calculo  das paixões dominantes entre os governados. Estes últimos só obedecem porque avaliam os riscos e benefícios trazidos pelas lideranças. A lei é o cálculo de todos que se tornou uma certeza, dogma da cidade. Só no pequeno trecho das Leis temos assunto para muitas dissertações. Passemos adiante.

 

Logo após ter nomeado a lei, alma do corpo social e político, Platão remete o leitor para o plano cósmico ou divino com a metáfora do teatro. “Vamos supor: cada uma das criaturas vivas é uma engenhosa boneca dos deuses, movidas como brinquedo por eles ou para um propósito sério – porque de tal assunto nada sabemos. Mas sabemos que as afecções internas a nós, como se fossem molas ou cordas (νεῦρα) nos movem e, sendo opostas umas às outras, puxam umas contra as demais em atos opostos; ai reside a linha divisória entre bondade e maldade”.   No livro Sétimo das mesmas Leis, Platão insiste: “o homem é um joguete nas mãos de Deus, e tal é a sua melhor parte”. Ao retomar o símile do boneco Platão afirma: trata-se de um assunto sério, mas sério do que tudo o que é sério. No Filebo (50b) temos a fórmula do problema: “mostramos que nos lutos e tragédias e comédias, não apenas nos palcos, mas em toda tragédia e comédia da vida, e em inúmeras outras coisas, a dor se mistura ao prazer”.

 

Os cínicos, escola mais caluniada de nossa cultura, tornam o tema algo comum, quase banal. Rudolf Helm assinala o uso da metáfora nos textos de Luciano, a grande fonte da sátira na história do Ocidente. ([1]) Ernst Curtius acrescenta uma lista avantajada de autores clássicos e cristãos que aludem ao ícone do teatro na ordem pública. Interessa sobretudo o monumento escrito por João de Salisbury –o Policraticus– referência obrigatória quando se trata do tiranicídio. O autor ajudou a expandir a sentença sobre o theatrum mundi. A técnica do artista, o fingimento, desempenha função relevante nas lutas contra o poderoso cujo mando pode ter origens legítimas ou não. O indivíduo ou grupo que almeja matar o governante abusivo deve fingir como no teatro. No livro 3, capítulo 15 daquele tratado, o autor se ocupa com o tirano por usurpação que tomou o poder por astúcia e violência. “Devemos viver de um modo com o amigo, de outro com o tirano. De qualquer modo, não convêm adular o amigo, mas é lícito acariciar (mulcere) ( ) as orelhas do tirano. Pois é permitido lisonjear a quem é permitido matar. Não apenas é lícito matar o tirano como é equitativo e justo. Quem toma o gladio é digno de matar pelo gladio. Mas por ´tomar´ se entenda : quem o usurpa por sua própria temeridade ou recebe de seu senhor o poder de o utilizar. Quem recebe de Deus o poder conserva as leis, é servidor da justiça e do direito. Quem o usurpa rebaixa os direitos, submete as leis à sua vontade”. Não só o tirano usurpador pode ser morto, mas também o legítimo cujo exercício vai contra a lei e a justiça. O tirano “oprime o povo de modo violento (...) a lei é dom divino, forma de equidade e justiça, imagem da vontade divina, guardiã da salvação, fortaleza dos povos, regra das magistraturas, exclusão e termo dos vícios, pena contra a violência e toda injustiça (...) O príncipe combate pelas leis e pela liberdade do povo, o tirano acha que nada se faz se não se rejeita as leis e não se leva o povo à servidão. O príncipe é imagem da divindade mas o tirano figura a força contrária, a perversidade diabólica”.

 

A adulação, forma desprezível de comportamento político, se justifica pela prudência: dissimular sentimentos importa para conseguir a confiança do governante ilegítimo. É o teatro a serviço da justiça. Curtius adianta a seguinte consideração sobre a contínua presença da metáfora teatral, incluindo aí o célebre trecho de As you Like It

 



[1] Helm, Rudolf: Lukian und Menipp (Leipzig, Druck, B.G. Teubner, 1906; Romano, Roberto: Silêncio e Ruído, a Sátira e Denis Diderot (Campinas, Editora Unicamp, 1999). A fonte imediata das reflexões acima encontra-se no clássico de Ernst Curtius: Europäische Literatur und lateinisches Mittelalter (A Franche A.G. Verlag, 1948). Uso a edição francêsa : La littérature Européene et le Moyen-Âge latin(Presses Universitaires de France, 1956).