Ética e Ministério Público. Uma reflexão em três
momentos
Roberto Romano
Professor de Ética e Política do Departamento de Filosofia do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas - IFCH da Unicamp
John Greville Agard Pocock publicou há bom tempo um livro
interessante, com título ainda mais atrativo: O momento maquiavélico . 1
Quem observa a realidade institucional brasileira, intui o nexo entre os
escritos de Maquiavel e a nossa experiência coletiva. Das múltiplas
passagens entre os textos do grande pensador político e o Brasil de hoje,
uma são das mais significativas: a busca de atenuar (visto ser impossível
abolir) a vingança, fonte grave de ingovernabilidade.
Quando se tenta
pensar os elos entre a ética e o Ministério Público, este veio é promissor.
Em terra conturbada pela corrupção política e na qual o abuso
administrativo une-se ao pânico trazido pela insegurança, o clamor pelos
atos vingativos abre espaço para a anomia que torna quase impossível a
aplicação da lei. Se os legisladores desobedecem a ordem legal e se as
quadrilhas matam e invadem o espaço público, chega-se à pergunta
inevitável: para que serve o Estado? Este último, mecanismo inteligentemente
produzido no final da Idade Média, exige que se coloque nas mãos de seus
operadores os conhecidos três monopólios: da força física, da norma
jurídica, dos impostos. Mas a premissa essencial destes monopólios, aceita
inclusive por Hobbes, é que em troca deles o Estado garante a vida da
sociedade e dos indivíduos. Se os governantes, legisladores e juízes, não
podem manter tal compromisso, o Estado perde a razão de ser.
Mede-se a eficácia do aparelho estatal pela maior ou menor taxa de
insegurança e de garantias de vida. Quando diminui o índice de mortes civis
e a vingança não se torna premente, nem serve como instrumento de
mobilização política, pode-se dizer que o Estado mantém sua legítima
governabilidade. Caso contrário, ele se reduz ao estatuto de morto
mecanismo. Este é o momento maquiavélico decisivo, instante em que
1 The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought and the Atlantic Republican
Tradition (New Jersey, Princeton University Press, 1975).
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qualquer particular, qualquer seita ou quadrilha ameaça os três monopólios
e desafia impunemente a lei. A partir daí, os cidadãos entregam-se aos
primeiros grupos capazes de, pela mobilização do ressentimento, golpear a
estrutura legal e democrática do mundo público. Abrem-se as portas para os
golpes de Estado. Estes últimos não precisam seguir o modelo da
intervenção militar. Golpes podem ser palacianos. Mas sua eficácia no
desmantelamento do Estado de direito não é menor. Nota-se, portanto, a
íntima conexão entre os costumes éticos a necessária manutenção e
aplicação das leis. “Conatus sese conservandi primum et unicum virtutis est
fundamentum” . 2
Se a base da virtude ética reside na conservação da vida
individual e coletiva, o Estado só pode ser mantido se garantir esta cláusula.
Exigir que os cidadãos submetam-se à polícia e ao exército, acatem as leis e
paguem impostos sem lhes assegurar a segurança essencial, é mais do que
irrealista, pois significa ir contra os fundamentos ontológicos do humano e
negar o direito e a ética em sua fonte. Assim, proponho aos membros do
Ministério Público uma reflexão sobre os problemas acima indicados,
partindo dos enunciados de Spinoza (o maior autor ético da modernidade)
sobre o “momento maquiavélico”. O primeiro trata a questão da
governabilidade, o segundo analisa a essência do fato ético, o terceiro extrai
as consequências do que avançou nos dois anteriores.
Governabilidade
Spinoza refere-se, no capítulo quinto do Tratado Político 3 a
Maquiavel com três adjetivos: “acutissimus, sapiens, prudentíssimas” . Os
dois primeiros possuem vasta tradição no pensamento filosófico ocidental e
foram valorizados na modernidade para o debate sobre o método (sobretudo
em Francis Bacon, no caso do controle metódico dos engenhos agudos). O
terceiro termo retoma a crônica política que desce aos gregos, mas que
recebeu leitura estratégica em Roma e, na Renascença, determinou as
doutrinas consubstanciadas no “maquiavelismo”.
Vejamos o trecho citado:
2 “O esforço para se conservar é o primeiro e único fundamento da virtude”. Spinoza, Ética,
livro IV, Proposição 22, Corolário. Cf. a tradução portuguesa de Joaquim de Carvalho
(Lisboa, Relógio d’Água Ed., 1992), página 379.
3 Sempre que possível sigo a edição do Tratado Político traduzida por Charles Apphun
(Paris. Flammarion, 1966). O cotejo é com o texto latino online
(http://home.tiscali.be/rwmeijer/spinoza/works.htm?lang=F) hoje acessível universalmente.
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Para um príncipe dirigido apenas pela paixão de domínio, quais são
os meios para conservar e fortalecer seu governo? É o que mostrou
exaustivamente o agudíssimo Maquiavel; mas qual seria o alvo de
seu livro? Isto não se mostra com muita clareza: se ele tinha objetivo
honesto, como deve-se acreditar quando lemos um sábio, quis
aparentemente evidenciar a imprudência dos que se esforçam por
suprimir um tirano, quando é impossível suprimir as causas que o
tornaram tirano, pois aquelas causas tornam-se mais poderosas e
despertam-lhe o medo. É o que ocorre quando a multidão imagina
dar um exemplo e se alegra com o parricídio, 4 como se ele fosse uma
ação correta. Maquiavel talvez tenha querido mostrar o quanto a
multidão livre deve evitar a entrega de sua confiança na salvação
exclusivamente para um homem apenas, pois este último, a menos
que esteja inchado de vaidade e se acredite capaz de comprazer a
todos, deve sentir medo cotidiano de armadilhas, o que o obriga a
vigiar ininterruptamente pela sua própria segurança, ocupando mais
em armar peças contra a multidão do que em administrar seus
interesses. Penso assim interpretar o pensamento daquele homem
prudentíssimo que sempre defendeu a liberdade e proporcionou,
sobre os meios de defendê-la, os mais saudáveis conselhos. 5
Só nesse parágrafo temos uma pletora de problemas jurídicos e
políticos que definiram a instauração do Estado moderno. No capítulo 7 do
mesmo Tratado Político, Spinoza apresenta o poder real jungido à potência
popular. O soberano pode ser derrubado, mas semelhante fato ameaça a
4 Visto que o Rei era o Pai do Povo, o costume jurídico era designar os atentados contra ele
como extensão do parricídio. A literatura sobre o caso é amplíssima.
Cf. Roland Mousnier:
L'assassinai cTHenry IV (Paris, Gallimard, 1964). E também Lutaud: Des Révolutions
cTAngleterre à la Revolution Française. Le Tyrannicide & Killing no Murder (La Haye,
Martinus Nijhoff, 1973).
5 “Quibus autem mediis princeps, qui sola dominandi libidine fertur, uti debet, ut imperium
stabilire et conservare possit, acutissimus Machiavellus prolixe ostendit; quem autem in
finem, non satis constare videtur. Si quem tamen bonum habuit, ut de viro sapiente
credendum est, fuisse videtur, ut ostenderet, quam impruder ter multi tyrannum e medio
tollere conantur, cum tamen causae, cur princeps sit tyrannus, tolli nequeant, sed contra eo
magis ponantur, quo principi maior timendi causa praebetur; quod fit, quando multitudo
exempla in principem edidit et parricídio quasi re bene gesta gloriatur. Praeterea ostendere
forsan voluit, quantum libera multitudo cavere debet, ne salutem suam uni absolute credat,
qui nisi vanus sit et omnibus se posse placere existimet, quotidie insídias timere debet; atque
adeo sibi potius cavere et multitudini contra insidiari magis, quam consulere cogitur. Et ad
hoc de prudentíssimo isto viro credendum magis adducor, guia pro libertate fuisse constat,
ad quam etiam tuendam salubérrima consilia dedit.”
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vida estatal.
O longo raciocínio spinozano sobre o afastamento do
governante começa explicitamente no § 25 e termina em pleno § 30. O
elemento que mais impressiona nas frases do filósofo encontra-se na lista de
assuntos intercalados entre o início e o final do raciocínio: a soldadesca, a
massa vulgar, o segredo de Estado. Todos os ingredientes de um são
incluídos na penetrante análise do poder abusivo exercido pelo governante.
Sigamos a exposição spinozana.
O parágrafo 25 do Tratado Político, afirma que a forma do Estado
deve permanecer a mesma e que a lógica exige um só indivíduo no cargo de
rei, com poder indivisível. O referido parágrafo citado apresenta um
problema discutido com percuciência por Alexandre Matheron. 6 Trata-se
das eternas disfunções políticas e institucionais. O Brasil é delas bom
exemplo, pois nele a ingovemabilidade e acordos instáveis de mando
político produzem leis magnas revogadas por pequenos golpes de Estado:
as emendas constitucionais desfiguram a Constituição, abolem direitos e
“flexibilizam” garantias, o que não resolve a falta de confiança do
eleitorado nos parlamentares e governantes, mas aumenta a prevenção
popular contra regime democrático. 7 A frase de Spinoza é a seguinte:
Imperii fácies una eademque sen’ari, et consequenter rex unus (...), et
imperium indivisibile esse debet. Antes de aceitar a equivalência de “Fácies”
e “forma”, proposta na maioria das traduções do Tratado Político 8
6 Cf. Matheron, Alexandre: “Passions et institutions selon Spinoza”, in Lazzeri, Christian e
Reynié, Dominique: La raison d’état: politique et rationalité (Paris. PUF, 1992), página 141
e seguintes.
7 Relatório do PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (21/ 04/
2004) indica o Brasil em primeiro lugar na melhoria do processo eleitoral e no acesso pelo
voto a cargos públicos, mas fica em 15° lugar, no total de 18 países pesquisados, na adesão
popular aos princípios democráticos.
8 “La forme de 1'État doit demeurer la même et en conséquence le roi doit être unique,
toujours du même sexe, et le pouvoir doit être indivisible”. Trad. Charles Appuhn Spinoza,
Oeuvres (Paris, Gamier-Flammarion, 1966), T. 4, página 65; “A forma do Estado deve
permanecer a mesma e, por consequência, o rei deve ser único, sempre do mesmo sexo e o
poder deve ser indivisível”. Trad. Norberto de Paula Lima (São Paulo, ícone Ed.,1994),
página 92; “The form of the dominion ought to be kept one and the same, and, consequently,
there should be but one king, and that of the same sex, and the dominion should be
indivisible” De Spinoza, Benedict Political Treatise Electronic Text Center, University of
Virgínia Library http://etext.lib. virginia. edu/toc/modeng/public/SpiPoli.html
Uma tradução próxima do original é a de Madeleine Francês nas Oeuvres complètes (Paris,
Gallimard, Ed. Plêiade, 1954), página 1039: “Un Etat doit continuer à presenter toujours la
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observemos que num leitor atento de Maquiavel seria inconsequente usar
“forma” e não “aparência” como propriedade estratégica do Estado.
O Estado deve parecer uno, o rosto do seu governante precisa ser
apreciado pelos cidadãos e não pode deixar de surgir assim, caso contrário
não haveria obediência possível. Se a república tivesse diante de si o
espetáculo de um poder dividido em facções, surgiria de imediato a
pergunta essencial: Quem será obedecido, esta ou aquela corrente? E se
ninguém pode ser acatado, quem garantiria a segurança de todos e de cada
um? Logo no início dos Discorsi, Maquiavel expõe o problema crucial da
necessária aparência unitária do Estado , com a história de Coriolano. E
nela vemos uma justificativa da promotoria pública.
Diz o Florentino que para manter um país livre é preciso conseguir
alguém cuja autoridade permita acusar os cidadãos ao povo, aos conselhos,
a um magistrado sempre que ocorra algum atentado “in alcuna cosa contro
alio stato libero”. A primeira vantagem dos acusadores oficiais é impedir
os cidadãos — pelo medo de serem acusados— de empreenderem coisas
nocivas à ordem estatal. A punição imediata dos infratores entra no rol dos
encómios maquiavélicos à autoridade analisada. A segunda vantagem é
oferecer um escoamento normal aos humores que aumentam na cidade, de
tal modo, resultando em prejuízo de todo cidadão. Quando aqueles humores
não encontram meios de escoar naturalmente, recorrem aos modos
extraordinários, que arruinam a vida de uma república.
Em Spinoza, as causas das crises políticas são conduzidas, em geral,
a exemplo de Maquiavel, ao presente distanciamento e separação do Estado
diante do seu principio originário constitutivo.
A perda ou acréscimo de
elementos ao coipo político produzem o desequilíbrio ou reequilíbrio do
todo. “A causa principal de desagregação dos Estados é a que observa o
agudíssimo florentino no primeiro capítulo do livro terceiro dos Discorsi
sopra la prima Deca di Tito Livio, ou seja, que ao Estado como ao corpo
humano se acrescenta algo que, por vezes, faz necessária uma intervenção
curativa; e por isto, diz ele, é preciso que por intervalos o Estado seja
reconduzido ao principio sobre o qual foi instituído originariamente”. O
trecho de Maquiavel citado por Spinoza assume a metáfora médica para
même apparence extérieure. Par suite, un seul roi d’un sexe invariable y doit toujours régner
et 1’Etat doit rester indivisible”.
manter a saúde do corpo político. Mais particularmente, o florentino retoma
o enunciado que diz Quod quotidie aggregatur aliquid, quod quando que
indiget cura tione (“Que se acumula cada dia algum humor maligno o qual,
de tempos em tempos, precisa ser purgado”). No décimo capítulo do
Tratado Político são especificadas as causas possíveis da desagregação dos
organismos políticos. A crise estatal não é definida unilateralmente face aos
cidadãos, mas sobretudo diante da legitimidade do mando, a partir do
metron trazido pelo consenso. A vida do Estado só vale na medida em que
valem a vida dos que o compõem, esta é a sua razão de ser, esta é a
soberania do corpo social. A democracia efetiva é remédio eficaz contra o
pavor mútuo dos indivíduos. Assim se define a réplica de Spinoza ao
pensamento dos que, a exemplo de Hobbes, indicam o pânico e a
insegurança para justificar o soberano, cuja função é afastar a liberdade
pública dos cidadãos.
Vejamos a pessoa exemplar no texto de Maquiavel, a que serve de
base para o pensamento de Spinoza. Coriolano pertencia à nobreza romana,
a qual detestava o povo por sua pretensa ou real “troppa autorità ”, com os
tribunos para sua defesa. Estando o país em penúria, ele foi enviado para a
Sicília na busca de grãos. Com o povo indefeso, o aristocrata acreditou ter
chegado a hora do golpe, castigando-se a plebe e dela extraindo a excessiva
autoridade que prejudicaria os nobres. Bastaria não distribuir os grãos. O
enunciado sigiloso de Coriolano, como todo segredo 9 se espalhou entre a
laia miúda que se levantou contra o militar. Este, ao sair do senado sofreria
um massacre. Oportunamente os tribunos — acusadores oficiais —
exigiram sua presença para fornecer explicações. Maquiavel louva a citação
tribunícia, porque ela salvou a república de uma luta civil dramática.
Quando um cidadão privado é oprimido não resulta uma desordem na
república, mesmo que ele tenha recebido injustiças. O processo, mesmo
iníquo, não se faz com o uso da força e com armas estrangeiras che sono
quelle che rovinano il vivere libero. Imagine-se, argumenta Maquiavel, o
massacre de Coriolano, quanto mede sana risultato alia republica romana
se tumultuariamente eifusse stato morto: perché ne nasceva offesa da priva
ti a priva ti, la quede offesa genera paura, ia paura cerca difesa, per la
9 Cf. Plutarco: De garrulitate in Oeuvres mora les (Paris, Les Belles Lettres, 1975), T. VII.
Plutarco apresenta muitos casos de perda política causada pela garrulice e pela circulação de
rumores. A leitura destes escritos é vital para se entender a raison d’Eta, o segredo, os golpes
de Estado.
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difesa se procacciano partigiani, da’ partigiani nascono le parti nelle
cittadi, dalle parti la rovina di quelle . 10 A lógica da facção segue o medo e
a ele retorna. No circuito da política, o Estado que parece em vias de
dissolução apenas acelera a dissolução própria e a dos particulares.
Como prevenir e evitar os choques traumáticos ou letais na
república? A citada purga dos humores por meio de “filtros” institucionais
(no caso de Coriolano, os tribunos e sua autoridade para acusar os
particulares), este é o símile terapêutico para imaginar a política, símile
movido por Maquiavel e por Spinoza.
Mas por que o Estado deve parecer
uno, mesmo não o sendo de verdade? Porque fora dele resta apenas a
dissolução dos corpos e as facções, ou pior, o domínio de outro Estado, que
pode garantir os corpos, mas arranca a alma, a liberdade, dos cidadãos de
certo país. E o jogo da aparência prudencial que funciona neste ponto. A
passagem da aparência ao segredo define o mundo de quem se dedica à
missão sagrada: salus populi. E a salvação do povo e da republica exigem
que as facções sejam vencidas e que impere a unidade do Estado.
Conhecemos a tese de Aristóteles ( Política, V, 11): “Para um
príncipe não é necessário ter todas as virtudes, mas é necessário parecer
possuí-las e, se elas as tem e observa sem interrupção, elas são prejudiciais.
Mas se parece tê-las, são úteis, como por exemplo parecer misericordioso,
fiel, humano, reto, piedoso, mas sempre com uma alma prevenido, caso seja
preciso deixar aquelas virtudes de lado e se transformar no contrário”.
Segundo um comentador de hoje, “o ofício de rei é o de manter o Estado, a
coroa, salvando as aparências. Para quem enxerga o príncipe envolvido por
sua guarda, a pompa e o brilho do poder, um discurso conveniente é
esperado e aprovado. O cinismo atrai ódio e desprezo. 11 Esta é uma
explicação plausível. No entanto, penso que uma outra exegese pode ser
dada. Denis Diderot adverte contra o trejeito de tudo destruir na vida
10 Cf. “Quantos males teriam resultado à república romana se tumultuosamente ele fosse
morto: porque nascia a ofensa dos privados aos privados, e esta ofensa gera medo, o medo
busca defesa, a defesa proporciona as cumplicidades, delas nascem os partidos na cidade,
dos partidos vem a ruma da mesma cidade”. N. Machiavelli: Discorsi sopra prima década di
Tiro Livio, Livro primeiro, 8, in Opere a cura do Cortado Vivanti (Torino,
Eunaudi/Gallimard, 1997), I, páginas 217-218.
11 Cf. Marcei Lamy : Machiavel et la raison d’État. Conférence prononcée au lycée
Chateaubriand de Rennes le mardi 3 décembre 2002.No site
http://cru.chateau.free.fr/textescru.htm
política.
É preciso, diz ele, que os cidadãos tenham esperanças na virtude
cívica. Quem afirma que tudo no Estado é péssimo, enfraquece a resistência
dos homens comuns. Muito fácil dizer que na teia estatal reside uma aranha
voraz: difícil é produzir seres humanos capazes de vencê-la. Quando os
críticos indicam apenas o pior no Estado, colaboram com a tirania: a multidão
desmoralizada tende para a passividade e aceita qualquer tirania. E as tiranias,
não raro, começam com os golpes de Estado que produzem extrema
aparência de instabilidade aos governos, retirando as esperanças de salvação
para as pessoas particulares.
Uma tarefa essencial, portanto, de todos os que possuem responsabilidades no Estado, é manter a confiança dos cidadãos. Sem isto,
não ocorre governabilidade e a justiça tende perigosamente a ser definida
apenas como um complexo ensandecido de vinganças. Estas, por sua vez,
apenas enfraquecem a racionalidade pública e exacerbam o uso feroz da
força física. Dito isto, passemos a alguns pontos essenciais sobre a ética.
O
que indicarei a seguir tem sido uma constante de minhas alocuções, tanto ao
Ministério Público quanto aos mais variados setores da vida nacional. Após
a inspeção no fato ético, terminarei deduzindo alguns pontos essenciais, no
meu entender, para o Ministério Público que se deseje democrático.
Ética
Há na fala cotidiana e mesmo na política, para não nos referirmos aos
debates jurídicos, uma passagem ambígua e pouco justificada entre a ética e
a moral. O mais comum é se imaginar que a primeira possui caráter
imperativo, como se ela reunisse uma tábua de valores e normas a serem
aplicadas aos casos particulares. Dá-se também à moral um estatuto rígido,
como se ela estivesse vinculada aos campos mais restritivos dos juízos
comportamentais. Na filosofia grega, a ética integra a doutrina geral da
virtude, definindo um fato coletivo. Ela reúne as práticas hoje distantes, mas
na época grega conexas, da economia (uso dos recursos dos lares e gestão
dos meios e riquezas comuns à família), da política (prolongamento da
economia, pois se trata de ordenar a riqueza e a pobreza da cidade/Estado).
Finalmente, temos a retórica, o modo pelo qual os cidadãos devem dirigir
suas falas à assembleia na defesa de pontos de vista estratégicos, quando se
tratava da guerra, interesses grupais ou jurídicos.
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Se a economia e a política encontram-se em campos fixos, a retórica
tem o privilégio da instabilidade. A palavra que origina o termo retórica —
rhein — indica o que flui e não encontra obstáculos fixos à sua operação. Se
a riqueza econômica e o bem público só podem ser tratados dentro de
limites fixos, pois são substâncias estáveis do coletivo, a palavra dos
cidadãos, instável e polimorfa, não recebe limites na assembleia ou
tribunais. Ser livre, na Grécia, é possuir o direito de falar sem obstáculos
físicos ou anímicos. Uma virtude política por excelência — a parrhesia — é
a fala sem amarras, só concedida aos cidadãos livres. Quem tinha o costume
de tratar as coisas públicas, adquiria as referidas “virtudes”, sendo nelas
treinado desde o final da infância. Agir segundo os padrões da cidade nas
assembleias guerreiras ou pacíficas, ou nos tribunais, tornava- se algo
“natural”. Esta forma coletiva de agir, adquirida e operada sem reflexões se
definia como hexis, o hábito, o costume, donde surge a palavra “ética”. A
política, a economia e a retórica reunidas sob o vocábulo hexis, existiam
como realidade visível. Nada podia ser escondido dos olhos cidadãos. Os
atos virtuosos eram praticados nas praças públicas, nos campos de
treinamento e nas guerras.
O exemplo visível possibilita a mimesis, imitação dos atos e falas
livres.
Aprender a cidadania é treino do olhar e dos gestos, que devem
repetir o modelo, o paradigma proposto para ser obedecido e seguido.
“Paradigma” surge na língua grega unido a deiknumi cujo sentido é
“mostrar”, “indicar”. Quando acrescido da partícula “para”, significa
“mostrar, fornecer um modelo”. A raiz deik, refere-se ao ato de mostrar
mediante a palavra, mostrar o que deve ser seguido. Daí na noção de
paradigma ser estratégica a união com a palavra dike, a lei, a regra. A ideia
da publicidade da lei surge a partir daí. A lei, o modelo ou paradigma eram
postos diante do olhar de todos, para que ninguém a ignorasse.
O grande abalo do bloco ético visível o qual temos notícia foi o caso
de Sócrates, que desejou ter razão contra a ética da cidade. Julgado e
condenado, ele inaugurou a autonomia do indivíduo diante do coletivo.
Sócrates pode ser dito o pai da moral. A fonte de valores e o paradigma
para a consciência invisível dos sujeitos. Esta tendência se exacerba com I.
Kant. Basta lembrar a Crítica da Razão Prática: “duas coisas enchem meu
coração de respeito. O céu estrelado diante de mim e a lei moral em mim”.
O céu estrelado, a visível pesquisa empreendida por Newton. A lei moral
em mim, a invisível e sublime experiência dos valores, exposta por
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Rousseau. O céu estrelado, a ciência que opera com fenômenos, o que vem
à luz. A lei moral, algo que só posso atingir, no meu íntimo. Na filosofia
kantiana a ética foi atenuada em proveito da moral. Como reação a esta
hegemonia kantiana da moral, no século XX acentuo, retomando
idealmente a Grécia, o ético enquanto visível e transparente coletivo.
O pensamento germânico entende a ética, coerente com as raízes
gregas, como o conjunto dos costumes visivelmente adquiridos ou ensinados
aos grupos sociais e aos indivíduos. Ética é a conduta que se tornou hábito.
Contra 1. Kant, na Filosofia do Direito Hegel indica que a ética, embora
pertença ao mundo de valores e hábitos, pode ser colhida de modo não
subjetivo. Ela não é de todo livre para os indivíduos de uma sociedade
histórica, pois eles nascem em tempo e espaço definidos e em um coletivo
cujos valores se expressam em hábitos comuns. O ethos grego é traduzido
por Hegel na palavra Gewohnheit (hábito) que não se exerce apenas na
invisível consciência individual, mas numa sede (Sitz) comum a muitos
indivíduos. Na ética os indivíduos agem em comum com os mesmos
padrões de comportamento, desde os corporais até os espirituais. Eles agem
de certo modo, possuem certa língua comum, usam traços semiológicos
comuns para se comunicarem com os semelhantes. A ética pode,
perfeitamente, ser visível a todos os que compõem o universo pensante e
particularmente visível e significativa para quem possui chaves de
interpretação dos sinais particulares a um grupo, a uma sociedade, a um povo.
Agir no mundo ético é operar como se cada um estivesse “em casa”.
Um alemão sente- se “em casa” se encontra outros alemães. Um francês
idem. Um alemão católico sente- se ainda mais em casa se encontra outros
alemães católicos. Quanto mais os signos utilizados (e produzidos pelos
homens no tempo histórico) forem comuns, mais “em casa” está o
indivíduo. E surge o problema: o hábito comum não seria um obstáculo
para que os indivíduos percebessem que suas atitudes, valores, etc.,
poderiam ser nocivos ao grupo e aos próprios indivíduos? Um preconceito
partilhado coletivamente não deixa de ser preconceito. E temos a questão da
justiça e da ciência.
A partir dessa dúvida a ética se dedica à pesquisa das variações
comportamentais ao longo da história dos povos e dos grupos em seu
interior. Ela busca descrever os costumes de cada povo ou grupo. Descrever
de modo rigoroso, sem aplicar ao grupo estudado normas e valores alheios a
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ele, tal é o primeiro passo da ética. Só após captar os valores de um
conjunto social determinado, pode a reflexão compará-los aos hábitos de
outras comunidades. Assim, a ética pretende atingir um âmbito mais amplo
de valores do que a moral, sem prender-se aos indivíduos que os empregam.
Se é verdade, como queria I. Kant, que a ciência não se faz com a moral, e
vice versa, não é menos verdade que os hábitos integram-se em um grupo
com determinações mais amplas do que as individuais. O indivíduo possui
hábitos comuns com o seu grupo de referência e pode ter seus atos e
pensamentos acompanhados por este grupo. A sua comunidade, por sua
vez, insere-se num determinado coletivo nacional e este integra a
comunidade internacional. A passagem lógica e prática dos indivíduos ao
universal não é mais, como em Kant, do exterior à moralidade, sendo um
visível e a outra invisível, mas entre níveis diversos de visibilidade.
Tomemos um brasileiro. Os signos entre os quais ele se move, que
definem a ética da sociedade em que ele nasceu e vive, adquirem
determinada figura. Mas se ele também é protestante, os signos que
determinam seu agir diferem dos que movem os católicos, os ateus, etc.
Se
pertence a um grupo peculiar, como os Promotores de Justiça, os signos e
atitudes que aprende, que exercita, que amplia e atualiza, são bem diversos
dos que são exercidos nos demais setores do Estado e da sociedade.
O mundo social pode ser descrito como uma sequencia de esferas,
cada uma com a sua lógica e ética próprias. A esfera maior, o Estado,
encarrega-se de administrar as demais. Em cada um destes círculos, os
indivíduos aprendem sinais, gestos, linguagem própria. Do culto religioso
às instituições (onde se desdobram linguagens, signos, gestos
paradigmáticos), eles aprendem a distinguir o que pertence a cada uma das
esferas, não introduzindo por ignorância ou arbítrio o que é habitual em
uma delas em outras. Caso contrário, a mistificação se instala em todos
estes domínios.
Nada pode ser dito dos indivíduos sem levar em conta o que eles
adquiriram de maneira coletiva. Se ninguém nasce Promotor de Justiça,
nem por isto deixa de ser verdade que “ser promotor” só passa a ter sentido
para os indivíduos no interior da comunidade visível, ética, que se
determina segundo paradigmas, linguagem, etc., daquele ramo jurídico. Não
existe nenhum “promotor inefável, intangível, invisível”. Estes traços
definem a ética de seu grupo, a qual é diferente da que define o coletivo dos
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físicos, dos artistas, dos matemáticos, etc. A ética não se imiscui de modo
arbitrário, com uma tábua de valores particulares e externos à prática deste
ou daquele grupo social, deste ou daquele povo, deste ou daquele segmento
do saber. Ela não fala a partir do dever-ser, mas de como um determinado
coletivo age e se constituiu histórica e socialmente.
Mas quando os hábitos mostram-se benéficos ou maléficos à
humanidade? Apenas no campo mais amplo do Estado, onde as esferas se
reúnem e se definem umas em relação às outras.
Cabe ao Estado, reunião de
todos os indivíduos, classes e movimentos, verificar, através da inspeção
permanente dos hábitos e valores dos grupos, quais práticas e signos são
adequados ou nocivos ao todo social. O Estado delimita o âmbito e as
pretensões dos grupos particulares. E como os limites do próprio Estado são
definidos? Esta dificuldade data da Revolução Americana e da Revolução
Francesa. Sendo o Estado um impositor de limites aos grupos e indivíduos
que nele se movem, a sua instituição controla os hábitos físicos e mentais
dos setores que nela se movem. O Estado, não raro, ultrapassa seus próprios
limites e tenta impor padrões de comportamento e valores aos grupos
particulares. A Constituição norte-americana e os direitos dos cidadãos,
produzidos na Revolução Francesa, indicam as barreiras que devem existir,
protegendo do Estado os indivíduos e os grupos.
Os Estados tendem a ultrapassar as cancelas que salvaguardam as
múltiplas éticas dos setores estabelecidos em seu interior. Assim, na extinta
URSS, o Estado atribuiu- se o direito de impor normas éticas usando
doutrinas oficiais. Mas não apenas o Estado pode querer intervir nas éticas
dos grupos particulares. Movimentos religiosos julgam-se com o direito de
definir o monopólio ético contra os grupos científicos, artísticos, etc. O
fundamentalismo cristão ou qualquer outro tipo de fundamentalismo
religioso desconhece hábitos e signos dos grupos científicos, artísticos, etc.,
tentando impor-lhes, de cima e do exterior, regras alheias ao seu costume.
Como harmonizar os pressupostos do Estado e dos movimentos de massa,
religiosos ou ideológicos e o direito dos indivíduos e das minorias? A
resposta eficaz é o Estado de Direito. Nele, nenhum grupo possui a
qualidade de ser o representante único do coletivo. Todas as atitudes éticas
recebem equivalência no plano do pensamento, e isto é o princípio da
equidade. Estado de Direito porque nele a democracia se rege por leis
adotadas pelo mesmo Estado, na sua face legislativa, as quais podem ser
interpretadas e corrigidas pelo Judiciário.
O executivo tem os dois outros
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poderes como limites da sua ação. Deste modo, os grupos do social podem
ser ouvidos no Parlamento ou nas Cortes de Justiça. Democracia sem
Estado de Direito é despotismo da maioria ou de um ou outro setor social.
O Estado de Direito tem como conditio sine qua non a democracia.
Os limites éticos só podem ser definidos no interior do Estado de
Direito. E agora temos a grande importância do ideal ético e de sua
visibilidade, para além da moral que reside apenas na invisível consciência
subjetiva. O rigor democrático exige ampla transparência dos negócios
públicos. Para Norberto Bobbio “pode-se definir a democracia dos modos
mais diversos. Mas não existe definição na qual possa faltar o elemento que
caracteriza a visibilidade ou a transparência do poder. Governo democrático
é o que desenvolve a sua atividade própria em público, sob os olhos de
todos. E deve desenvolver a sua atividade sob os olhos de todos porque
todo cidadão tem o direito de ser posto à altura de formar para si mesmo
uma opinião sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro modo, por
qual razão deveria ser chamado periodicamente às urnas, e sob quais bases
poderia exprimir o próprio voto de condenação ou aprovação?”. Governo
que usa o segredo nas políticas públicas, conclui Bobbio citando E lias
Canetti, “não transforma a democracia, mas a perverte. Não fere mais ou
menos um ou outro órgão vital da vida democrática, mas a assassina”. 12
Ao contrário da moral, onde a luta de todos contra todos é infindável,
visto que todo indivíduo ou grupo postula que a sua norma é a mais
adequada para eles ou para o todo, a ética procura encaminhar os conflitos
dos grupos através do debate social, chegando ao parlamentar, às decisões
e juízos dos tribunais, definindo uma isonomia dos grupos no seu modo de
ser particular. Entre o nível em que se encontram os grupos particulares e
o todo do Estado, há uma escala de universalização da responsabilidade e
da eficácia.
O Estado moderno foi produzido para proteger as pessoas da morte e
para facilitar sua vida, ampliando o tempo da existência e adiando o mais
possível o seu fim. O Estado que não provê os meios para que se produza a
mais fina e abrangente rede de instituições voltadas para a proteção da vida,
não cumpre a finalidade para a qual lhe é entregue o monopólio das
12 Cf. Bobbio, Norberto: “II potere in maschera”, in L’utopia capovolta. (Torino, La Stampa,
1990), páginas 61 a 64.
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políticas públicas.
No Brasil, nota-se um afã que aumenta em nossos dias,
de aplicar códigos de ética. Antes de procurar impor limites morais à ação
alheia, eu diria que é prudente verificar em qual sociedade, quais valores se
impõem nos grupos que definem o coletivo envolvente. No caso brasileiro,
os costumes, a ética socialmente hegemônica, definem coisas odiosas. Uma
sociedade onde reina a capangagem, onde quadrilhas se apossam do Estado
e dele sugam, através da corrupção, o excedente econômico, uma sociedade
onde o Judiciário se cala diante dos abusos do Executivo e deixa incólumes
notórios criminosos, uma sociedade cujo Congresso Nacional “absolve”
seus integrantes criminosos e persegue cidadãos desarmados (o caso
Francenildo não pode e não deve ser esquecido), é uma sociedade cujos
costumes precisam ser modificados para melhor.
Ministério Público
No primeiro instante analisei as pressuposições definidas por
Maquiavel e por Spinoza sobre a governabilidade.
Acentuei o quanto, para
os dois mais profundos teóricos modernos da política e da ética, é preciso
que o Estado seja provido de instituições que impeçam a vingança dos
cidadãos contra os poderosos e contra a própria massa inteira da cidadania
em situações de crise. Maquiavel aponta para os acusadores oficiais como
instrumentos básicos de governabilidade e de salvação pública. No caso
exemplar de Coriolano, nota-se a intervenção providencial dos referidos
acusadores públicos, encarregados de impedir o massacre de um general
poderoso, o que traria o incremento da guerra civil.
Em nossa terra, o Ministério Público cumpre (ou deve cumprir) o
papel de acusador oficial que, sine ira et studio, indica os que violam a lei e
providencia para que a massa dos cidadãos não sinta insegurança na
aplicação das normas universais do direito. Cabe-lhe um papel estratégico
na governabilidade, portanto: sem o Ministério Público, os operadores dos
três poderes e os que movem a sociedade civil tendem a desconhecer os
limites de seu mando e legitimidade. Sem a vigilância do Ministério
Público as autoridades constituídas tombam na imprudência e desafiam a
opinião pública com atos e providências que escandalizam, em primeiro
lugar, mas produzem a sensação de que as leis e o próprio Estado são
instrumentos de alguns contra a maioria dos cidadãos. O Ministério
Público, portanto, ajudando poderosamente na aplicação imparcial da lei,
também auxilia o mundo democrático a não se perder na ineficácia. E
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preciso, no entanto, que os integrantes do Ministério Público saibam ler os
sinais dos tempos, o “momento maquiavélico”. Sem isto, eles não
conseguem operar com destreza o ofício que lhes é essencial: acusar sem
preconceitos ou coiporativismos todos os cidadãos, governantes ou
governados, que desobedeçam a norma universal.
O Ministério Público,
sobretudo em terras onde a política é excessivamente corrompida, como é o
caso do Brasil, constitui uma das fontes mais vitais de governabilidade e da
legitimidade estatal.
No que diz respeito ao segundo ponto, o da ética, o Ministério
Público não pode esquecer que o mundo social é uma policromia de valores
e que todas as esferas sociais possuem o direito à diversidade axiológica. E
mais, que ele mesmo Ministério Público é uma instância diversa das
demais, com uma linguagem, gestos, juízos e costumes específicos. Para
bem cumprirem seu papel de acusadores isentos, os promotores de justiça
não podem ignorar que as ordens sociais possuem costumes e valores éticos
específicos, além dos gerais que definem a sociedade mais ampla. Se um
promotor de justiça, no trato com uma esfera particular da vida ética,
digamos, uma igreja ou universidade, deixa de respeitar os valores que ali
imperam e procura lhes impor normas axiológicas, ele trai ipso facto seu
papel e sua missão. Se um promotor se dirige a um bispo católico não lhe
concedendo os títulos que seus liderados lhe atribuem, trata-se de uma
violência em termos antropológicos e éticos. Esta falta de prudência pode
trazer ao Ministério Público uma perda considerável de legitimidade. O
mesmo numa universidade. Se um promotor de justiça trata o dirigente
máximo do campus sem os títulos e a reverência que os docentes lhe
tributam, com certeza será visto como um estranho arrogante, perdendo o
respeito e a legitimidade no mundo da ciência. O mesmo pode ser dito para
o trato do Ministério Público com todas as esferas sociais e estatais, dos
bairros pobres aos mais ricos, dos que não têm poder econômico aos
palácios.
O promotor público não é um sacerdote da ética, sobretudo não é
apóstolo de uma ética particular.
Ele deve conhecer e respeitar o pluralismo ético que impera numa
sociedade democrática, para assegurar a mais límpida e inquestionável
passagem das éticas das esferas menores para as normas do Estado e vice-
versa. Se determinado grupo social segue regras éticas nocivas ao coletivo
maior e viola a Constituição, só um Ministério Público isento possui
autoridade legítima para acusá-lo publicamente. No debate parlamentar e
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nas cortes de justiça, a lei pode ser modificada ou não, segundo pareceres
prudenciais rigorosos. Antes disso, nenhum promotor de justiça pode se
arrogar o papel de inquisidor ético. A experiência negativa, trazida por
casos notórios no cenário nacional recente, não trouxe legitimidade ao
Ministério Público, muito pelo contrário. Antes de imaginar que o
Ministério Público é o portador “da” ética, é preciso que os promotores
públicos individuais percebam a imensa paleta das éticas vigentes na
sociedade, respeitando-nas. Quando os costumes de uma ou de outra esfera
social ou estatal colidem gravemente com as leis, cabe ao Ministério
Público examinar as causas do fato e denunciá-lo ao Estado. Mas isto deve
ser feito sem circunscrever os costumes éticos dos acusados ao campo ético
do próprio Ministério Público. Quanto mais livre de subjetivismo
corporativo, mais a ação dos promotores de justiça será eficaz na tarefa
árdua de resgatar a confiança da cidadania no Estado democrático de
Direito.