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segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Faculdade de Educação Unicamp e Adunicamp. Roberto Romano: Sobre a militarização das Escolas no Governo Bolsonaro.

Como todo projeto político a tentativa de militarizar escolas brasileiras abrange o campo da vontade. Como sabemos educar não significa apenas transmitir conceitos e técnicas. Trata-se de um sistema complexo que implica ordenar atos volitivos, imaginários, artísticos e outros. O treino da vontade é essencial. I. Kant, em trabalhos sobre pedagogia diz que o melhor ensino para as crianças é lhes oferecer um pedaço de madeira e nele seja esculpida uma figura qualquer. O jovem para ali aplicar alguma figura nova precisa do aprendizado básico: obedecer a estrutura do material. Se quiser impor formas sem a obediência ao objeto os frutos serão nulos. A criança ao esculpir aprende a dominar o próprio desejo, sente uma pequena abertura ao outro, alvo de todo e qualquer conhecimento teórico ou prático. Importa distinguir o auto domínio –autonomia– e o controle da alma por outrem, o Estado, a sociedade, a religião. Na liberdade regulada pelo sujeito  a vontade segue uma disciplina. Na heteronomia a disciplina está presa aos desígnios alheios, rege a imoralidade. Um pensador oposto a Kant é Hegel, que defende a submissão do querer ao Estado. Vejamos:

“A História universal é a educação da vontade para o universal e para a liberdade subjetiva”. (Hegel) É preciso prestar atenção ao termo germânico usado pelo filósofo. Educação é grafado como Zucht, de campo semântico unido ao controle repressivo das vontades individuais e coletivas. Uma zuchthaus é a cadeia, Zuchtigen implica em açoitar, castigar. Zuchtmeister pode ser o professor ou o carcereiro. Hegel, na concepção da cidadania e do Estado indica a perda pelos indivíduos das veleidades sobre o próprio agir livre. Na Filosofia do Direito, §328, lemos que o fim dos indivíduos reside na soberania do Estado que exige o sacrifício da força pessoal. Alguém só é livre se submetido ao mecanismo da “obediência total, renúncia à sua própria opinião e ao juízo próprio,  ausência de seu próprio espírito e ao mesmo tempo a maior determinação, o modo de agir mais hostil”. E mais adiante ele afirma: “o princípio do mundo moderno (...) deu à coragem a mais alta figura: ela aparece como a mais mecânica e como um ato de coragem exercido por um membro do todo, não por este ou aquele indivíduo (...) Tal princípio contribuiu para a descoberta da arma de fogo e não é por acaso se a invenção de tal arma mudou o aspecto puramente pessoal da coragem num aspecto mais abstrato”. Em nota  diz Hegel : “a arma de fogo é a descoberta da morte geral, indiferente, impessoal e o que empurra ao ato de matar é a honra nacional, não o desejo de prejudicar um indivíduo. Mas a ofensa que dá lugar à guerra vem da indiferença completa da honra relativa a qualquer e a todo indivíduo particular”.

Como nota o jovem Marx, Hegel racionaliza a burocracia alemã e europeia de seus dias. Ponto essencial da burocratização alemã reside justamente no exército. Sem indústrias, o Estado prussiano só podia ser militarmente forte graças à uma burocracia eficaz,  disciplina racional como paliativo contra a ausência de fábricas armamentistas. O sucesso da burocracia militar foi tamanho que o poeta Goethe, ao visitar Berlim em 1778 disse estar diante de uma grande máquina na qual o indivíduo era apenas uma roda sem vontade própria, mantida em movimento graças ao governo. O Estado máquina foi criticado pelos românticos mas se firmou até o século 20. O nazismo finaliza um movimento que vem do século 17 na Alemanha. O solo foi construído com muita repressão civil e militar. O ideal dos quartéis “educadores” entra no exame de Max Weber sobre a burocracia: nos tempos modernos a política, a economia e a religião perderam o encanto. O sagrado desaparecido teve como sucessores mecanismos que arrancaram dos indivíduos liberdade, força volitiva, pensamento autônomo. A burocracia, “máquina sem vida, é espírito coagulado. E apenas porque é isto, ela tem o poder de forçar os indivíduos a servi-la e determinar o curso cotidiano de seu trabalho vital (…) Como espírito coagulado aquela máquina viva representa a organização burocrática com sua especialização do trabalho profissional aprendido, sua delimitação das competências, seus regulamentos e relações de obediência hierarquicamente graduados. Unida à máquina morta, a viva trabalha para forçar a jaula (Gehäuse) daquela servidão do futuro a que talvez os homens se vejam obrigados a submeter-se impotentes, como os felás do antigo Egito”.

Karl Marx (ainda não é proibido citá-lo), na Crítica do Programa de Gotha toma posição contrária ao Estado educador no modelo hegeliano e burocrático. Diz ele: “Isso de ‘educação popular a cargo do Estado’ é completamente inadmissível. Uma coisa é determinar, por meio de uma lei geral, os recursos para as escolas públicas, as condições de capacitação do pessoal docente, as matérias de ensino, etc., e velar pelo cumprimento destas prescrições legais mediante inspetores do Estado, como se faz nos Estados Unidos, e outra coisa completamente diferente é designar o Estado como educador do povo! Longe disto, o que deve ser feito é subtrair a escola a toda influência por parte do governo e da Igreja. Sobretudo no Império Prussiano-Alemão (...), onde, pelo contrário, é o Estado quem necessita de receber do povo uma educação muito severa”. O Estado educador impõe a jaula na qual prende estudantes e professores e termina em campos de concentração com a pedagogia do terror.

No plano mais amplo do pensamento político a disciplina da vontade se confunde com a edificação do Estado máquina. Este procura ordenar todos os gestos dos indivíduos por um agenciamento de funcionários –mecânicos sociais– que pouco deixam à liberdade “selvagem” dos governados. Pensadores do século 17, quando se firma a razão de Estado, notaram o advento da armadilha mecânica que devora quem se julga superior aos humanos, do rei aos juízes. Trata-se da sociedade automática descrita na Lógica de Port Royal. O poderoso almeja ser obedecido como se as pessoas fossem ferramentas, “entièrement privées de raison et de pensée”. Ao mesmo tempo ele deseja “mandar em homens, não em autômatos pois seu prazer consiste na visão dos movimentos gerados pelo medo, estima, admiração que eles geram nos outros”.  O paradoxo é vivido no governo, quartéis e tribunais. É delírio e sonho impossível. Mas nele se define o poder moderno. E tal pesadelo impulsiona as tentativas de militarizar o ensino público no mundo e no Brasil. A vontade dos estudantes e professores deve ser domada tendo em vista os alvos da máquina estatal, que por sua vez serve a interesses hegemônicos no campo econômico, político e mesmo religioso.

A lógica que visa controlar a vontade dos subjugados gerou no século 17 os jogos de guerra. Eles foram produzidos para ensinar aos cadetes das Academias militares o jeito de se mover no espaço em tempo rápido e assim destruir os inimigos. A natureza inteira é pensada como obstáculo ou meio para destruir todas as vontades adversas. Os pensamentos liberais clássicos, sobretudo os do século 19, defendem a separação entre mundo civil e universo militar. Ledo engano. A ordem militar reside no coração da sociedade industrial. Não é possível pensar a segunda, sem a primeira. O que servia para a educação militar nos séculos 17 e 18 tornou-se no século 20 um fenômeno de massa, a forma emergente do jogo bélico.

A imaginação militarizada toma conta da chamada indústria do entretenimento. Em 1983 os dados já eram alarmantes. Entre 1978 e 1983 foram vendidos um milhão, quinhentos e setenta e três, seiscentos e vinte e sete jogos nos EUA, e quase dez milhões a 12 países ocidentais. Com a Internet os jogos de guerra subiram ao plano de uma visão de mundo na qual crianças e adultos aprendem as artes lógicas e imaginativas do aniquilamento. Longe de ser uma atividade apenas militar, a guerra domestica pensamentos e corpos de seres humanos aos bilhões. A mídia ajuda na tarefa, bem como Holywood cujos filmes exaltam heróis que massacram inimigos da “civilização democrática cristã e ocidental”. Nos Wargames o cenário é construído segundo o paradigma hipotético (se ocorre X, então Y deve acontecer). Eles reúnem atores que usam forças, motivos e regras para o movimento. E existem objetivos primários e secundários e os meios adequados aos objetivos. Depois vem o espaço guerreiro totalmente cartesiano: geométrico e sem vida, sem resíduos (ou ruídos de sentido biológico, ético, etc.). Trata-se do espaço partilhado pelas observações policiais, os rastreamentos. Some o espaço vivido da experiência humana que define sentidos, livres ou apaixonados. Somem o medo, o pânico, a fuga, a deserção, o heroísmo, o sacrifício. Todos esses fatos são “apenas interferências desprovidas de razão com as quais não se sabe o que fazer. É significativo o status que os jogos de guerra reservam aos civis: nenhum”. Indico aos senhores um texto já antigo, mas atualíssimo : Enrico Pozzi: “Giochi di guerra in tempo di pace”( http://www.enricopozzi.eu/pubblicazioni/Lo%20sport%20tra%20natura%20e%20cultura/giochi_guerra.pdf).  Para os jogos de guerra cibernéticos, leia-se Fred Kaplan, Dark Territory. The Secret History of Cyber War. E também Corey Mead: Video Games and the future of Armed Conflict (Houghton Mifflin Harcourt, 2013), sobretudo o capítulo “Construindo o Arsenal da Sala de aula: A influência militar na Educação Americana”).


Como o espaço foi reduzido à geometria, o tempo entra numa sucessão cronológica pura onde contam os segundos numa somatória de átomos temporais com a marca de serem parceláveis quase ao infinito. O tempo também abstrai o irracional, o vivido. Nele não existe a duração porque esta é experimentada biológica, psicológica, eticamente, na indecisão e na reflexão. Sempre que penso neste ponto, recordo-me de quando prestei o serviço militar. Na ordem unida o sargento gritava alto para que não houvesse dúvidas: “rápido, ligeiro, para não pensar, para não perder tempo”.

Temos, então, uma atividade educacional planetária que ensina as regras da razão técnica cujo alvo é a morte de milhões, sem que nela exista sangue, excrementos, dor, paixões, vida. É o universo dos drones e bombas inteligentes que, segundo a propaganda imperial norte americana só atingem os terroristas, nunca matam civis inocentes. Se acontece algo assim, é “efeito colateral”.

Passemos às Forças Armadas brasileiras, modelos que se pretende impor às escolas. A ordem hierárquica é essencial. Após a ditadura getulista, quando houve certa unidade de comando e obediência nas casernas, os soldados se mantiveram na reduzida democratização do governo Dutra, nas crises do governo eleito de Vargas, nas sucessivas formas de golpes e contragolpes de setores parlamentares que buscavam apoio nos quartéis (as “vivandeiras”) antes de Juscelino. Em todos esses eventos foram questionadas a unidade de comando e a hierarquia. Ocorre a renúncia de Jânio Quadros acuado por um parlamento hostil. Com o veto do Alto Comando à posse de Goulart e o parlamentarismo instalado pelo Congresso, surge uma fratura perigosa aos olhos dos militares. Essa fenda ameaçaria a Federação e a unidade das Forças Armadas. Refiro-me ao apoio do III Exército e setores leais sob Leonel Brizola.

Dada a cura provisória, com o parlamentarismo, os militares aparentemente aceitaram o status quo obtido pelo Congresso. Mas a fratura  nos quartéis permanece à espera do que pode ocorrer. As insubordinações dos soldados e patentes menores evidenciam perda da disciplina. As Forças Armadas preparam a tomada do poder. Se o governo incentiva a rebelião, urge afastá-lo com a parceria do mundo civil, dos empresários aos tribunais. E no plano externo, dos Estados Unidos. A Igreja serviu como forte apoio ao golpe, reunindo milhões nas Marchas da Família, na Cruzada do Padre Payton, procissões contra o comunismo e o perigo à civilização cristã. Vale recordar que os maiores movimentos militantes católicos tinham na sua estrutura a formação militar : a Ação Católica inspirada nas hostes do império romano e as Associações Marianas cujo hino diz tudo: “soldados do Senhor”. Uma vertente do marianismo foi a TFP, Tradição/Família/Propriedade, cujas fileiras seguiam mais explicitamente a organização militar.

É preciso ter uma ideia realista do militar. Ele é treinado para executar o monopólio da força física estatal. Seu alvo é garantir a integridade do poder com armas contra inimigos. Em conflitos internos sua função continua tendo como essência a morte de adversários. Para que tal fim é imperativo obedecer ordens. “Um soldado”, enuncia o reacionário Donoso Cortés, “é um escravo em uniforme”. A frase encontra-se no Discurso sobre a Ditadura (1849). Ali se ataca a democracia e os que confiam na Constituição. Segundo Cortés nada no mundo garante estabilidade. O próprio Deus age por meio de golpes —os milagres— ditatorialmente. Cito-o de propósito pois sua presença fez-se notar nos golpes de Estado da Espanha e América do Sul, de Franco a Pinochet. Quando Cortés diz que o soldado é escravo em uniforme ele afirma um traço essencial no regime brasileiro de 1964.

Elias Canetti fornece a chave antropológica das Forças Armadas. A sentinela que permanece imóvel exemplifica a constituição psíquica do soldado. Os motivos habituais de ação como os desejos e o temor são reprimidos dentro dele. Todo ato seu é sancionado por uma ordem. O momento vital na sua existência é o da posição atenta diante do superior. A educação do soldado começa no instante em que lhe são proibidas muito mais coisas do que aos demais homens. O seu aspecto anguloso mostra que ele se adaptou aos muros como prisioneiro satisfeito. Para ele a ordem tem valor supremo. Integra a sua formação que ele aprenda a obedecer ordens. Os exercícios o habituam a movimentos executados com os demais. Todos devem realizá-los de modo idêntico. É a mesma ordem, pouco importa que seja apenas um que a recebe ou todos. O uniforme evidencia a perfeita igualdade de todos na obediência.

A disciplina define o exército. Trata-se de uma dupla disciplina. A declarada é a ordem. A outra é a promoção. Esta última corresponde à capacidade de um militar para ser aguilhoado internamente pela ordem. Para cada ordem atualizada fica nele um espinho. Se é soldado raso, ele não pode se desfazer dos espinhos cravados em seu corpo e alma. Ele obedece e se torna sempre mais rígido em sua obediência maquinal. Para sair desse estado só com a promoção. Se promovido ele se desfaz —nos outros— dos seus aguilhões/ordens. A disciplina consiste no uso dos aguilhões/ordens armazenados.

Essa disciplina responde pelo fato de os exércitos mais poderosos do mundo terem seguido ordens genocidas, pelo menos até que vislumbrassem a derrota, sem pestanejar. “Estou cumprindo ordens”. Sem tal frase, inexistiriam o fascismo, o nazismo, o stalinismo. O Alto Comando é o que menos ordens recebe.  Essa cadeia verticalizada de obediência, no caso dos soldados rasos, só explode nas situações de guerra onde o inimigo é disseminado, como na guerrilha. Nessas horas a solidariedade horizontal conta mais do que as ordens vindas de cima. Há um bom livro de David Hansen, The Western Way of War: Infantry Battle in Classical Greece,  que evidencia esse traço.

Um autor relevante para as questões de ética e bioética, médica e militar, é Jonathan Moreno, filho do famoso Moreno criador do tratamento teatral das doenças de soldados feridos na Segunda Guerra. Jonathan Moreno é ouvido pelo Estado norte americano nas três vertentes, Executivo, Legislativo, Judiciário. O seu livro  Risco Indevido narra as experiências feitas com soldados no campo nuclear. Oftalmologistas colocavam soldados perto ou longe das explosões nucleares do deserto para medir o perigo dos raios na vista das pessoas. O soldado supostamente dava seu consentimento, mas na verdade era coagido por meios não físicos para aceitar o papel de cobaia.   Outro livro de Moreno, Guerras das Mentes, indica dados abundantes de experimentos na engenharia genética. Cito entre muitos os aparelhos postos nos capacetes dos soldados e controlados desde o Pentágono, com o guerreiro no Iraque ou outra terra. Tais mecanismos medem o grau de estresse, a disponibilidade de ataque, etc. Os cientistas do MIT que produzem tais engenhos dizem que o seu uso deve se acompanhar da aquiescência voluntária do soldado. Replica Moreno em tom sarcástico: “o respeito pela autonomia é a pedra angular da moderna ética médica, princípio derivado de muitas tradições filosóficas e religiosas pois trata do valor da pessoa humana como agente moral cujo valor é intrínseco. Mas que papel o respeito pela pessoa moral autônoma pode desempenhar num contexto militar?”. Lembremos Donoso Cortés: o soldado é um escravo de uniforme. E assim temos o paradigma das escolas militarizadas.  

Na vida comum o exército segue a disciplina e a ordem das promoções. Para que ambas existam importa a sobrevivência da hierarquia e do próprio instituto militar. É absurdo para um soldado que cumpriu ordens e subiu ao posto ou general imaginar que suas próprias ordens não serão obedecidas. Nesse caso, mesmo que o Alto Comando permita a “insubordinação” e o comandante supremo —o Chefe de Estado— assuma uma suposta “abertura democrática” face ao exército, quebrando a ordem rígida e a disciplina, eles serão desobedecidos, na suprema tentativa de restaurar a ordem com o golpe de Estado.

No Brasil em 1964 os militares seguiram quem lhes prometia restaurar a ordem e manter a carreira, a promoção. Quando a sociedade ignora ameaças os golpes militares não encontram terreno fértil, mesmo dentro do exército. Um golpe ocorre quando às tensões externas somam-se a angústia e as incertezas internas de manter toda uma existência baseada na disciplina, na hierarquia das ordens, na carreira e na promoção.

A vida civil, ao contrário da militar, não aceita a disciplina escrava que norteia os quartéis. Mas desde a Colônia,o Brasil vive sob lógica militar. Não  por acaso na ditadura de 1964 foi criada uma quadrilha organizada por militares e policiais chamada Operação Bandeirantes (OBAN). Os bandeirantes usaram armas e disciplina para vencer índios, afastar os espanhóis, derrotar jesuítas ao mesmo tempo em que aumentaram os lucros da coroa e os territórios portugueses. Tal fato gerou os mitos hoje repetidos até por integrantes do Ministério público, sobre a “preguiça” dos indígenas. Todos testemunhamos um procurador repetir tal certeza na semana passada. Mais tarde as formas de repressão e bélicas estiveram nas mãos das guardas nacionais comandadas por fazendeiros que se preocupavam com os seus poderes e riquezas. Eles resistiram à formação do Exército nacional como corporação do Estado. A Guarda Nacional era submissa aos alvos dos fazendeiros, os coronéis.

Com a república se buscou fazer do Brasil um Estado máquina nas mãos dos militares e positivistas. Estes últimos  imaginavam ultrapassada a democracia liberal, definida pela metafísica da liberdade e também a superstição católica. Com o positivismo chegara o Estado moderno, mecânico. Não mais eleições, comícios, balburdia, mas disciplina. A cidadania será exercida no interior das fábricas. O Estado, dirigido por engenheiros, mecânicos do social, aplicaria técnicas científicas e não política na solução dos problemas sociais e jurídicos. Tal governo não vingou mas as suas consequências na vida brasileira foram relevantes. Dele vem a tese de que a política dos partidos traz corrupção e indisciplina. A cultura civil seria balburdia perene, caos, sujeira, falta de honra.

Desde então é retomado o mito do Exército como poder moderador que imporia ordem e progresso à nacionalidade. Tal prerrogativa facultou aos militares sua parceria com setores reacionários da vida pública em golpes de Estado sucessivos de 1930 ao AI-5. Na Constituição de 88 o “direito” das Forças Armadas agirem como fonte da lei e da ordem interna do país marca uma derrota das forças civis democráticas. A sua figura como elemento pacificador e organizador da população é algo que, de tanto repetido, se tornou uma ética pervertida: para setores armados e civis reacionários a coletividade civil é presa da anarquia, da corrupção, da malandragem. Muito comum até hoje em determinados lares se elogiar os jovens nos quartéis, onde supostamente “aprenderão a ser homens”.

Um elemento estratégico, desde a era Vargas, nas tentativas de impor a militarização escolar reside na ideologia da Segurança Nacional. O país é visto como passível de se tornar indomável no plano interno. Daí a necessária repressão física com torturas, exílios, cassações. O complemento ideal das políticas repressivas e policialescas encontra-se na educação da juventude. No período getulista as crianças aprendiam nas cartilhas do primário a idolatrar o governante  e assimilavam certas formas de agir como a delação. As práticas militares foram impostas na escola e noções de moral e cívica  aplicadas em fortes doses. Na ditadura de 1964 o mesmo procedimento retorna nos cursos de moral e cívica onde se destilavam noções sobre moral, religião, segurança nacional, etc. Fala-se do suposto herói infantil que na União Soviética delatou familiares, recebendo estátuas pelo feito. Não se recorda que em São Paulo um menino delatou os pais, porque eles o impediam de assistir programas na TV. O processo só não foi avante porque restava um pouco de bom senso nos promotores encarregados. A Doutrina de Segurança Nacional é ao mesmo tempo programa ideológico e fonte inspiradora de iniciativas para impor a disciplina à sociedade e à escola. Ela é  poderoso instrumento de propaganda que opera desde os anos 30 do século 20. A sua persuasão é irmã siamesa das censuras (recordemos o DIPE varguista e a censura a partir de 1964), prisões, exílios. Com os projetos de militarização em andamento é reiterado o conceito de que existem inimigos internos no país, os que ameaçam a tradição, a família e a propriedade. A proposta de excluir ilicitudes nos assassinatos cometidos por militares, acarinhada por ruralistas, empresários, banqueiros, pastores e padres reacionários, é um novo capítulo da tragédia brasileira iniciada pelos Bandeirantes.  A propaganda liberticida é um dos mais relevantes monopólios do Estado brasileiro, que os divide com a chamada sociedade civil amante dos quartéis.

Não é acaso que pesquisas de opinião sobre instituições coloquem militares como os mais respeitados pelo coletivo brasileiro em 2014, um ano após as grandes manifestações de massa que varreram o país.  A propaganda e a censura fazem as Forças Armadas serem vistas como absolutamente benéficas pela população. Em recente pesquisa elas aparecem em primeiro lugar na preferência das massas brasileiras. A segunda, significativamente, é outro meio repressivo, a Polícia Federal. Em terceiro lugar a OAB, o que mostra alguma esperança para quem sonha com a democracia. A quarta predileta é a Igreja Católica seguida pelo Judiciário, imprensa e ministério público. Depois vêm os sindicatos, os bancos e as financeiras, as empresas estatais e a presidência da república. No décimo primeiro lugar, a Igreja Universal do Reino de Deus e...no fundo do poço o Congresso Nacional e os partidos políticos. Assim, para compreender o intento de militarizar as escolas devemos examinar as doutrinas que entendem o Estado como burocracia mecânica e as Forças Armadas como instrumentos mecânicos,  escolas que servem como poderosos mecanismos de máxima atenuação da autonomia individual e coletiva. Nossa história política e educativa reitera a presença dos mitos militaristas e científicos que proclamam a superioridade das técnicas de controle sobre a política e a democracia. Temos nos projetos em pauta um novo ensaio para fazer da educação, em vez de prática da liberdade, uma via de escravidão. Nas escolas planejadas a disciplina militar e a delação integram o curriculum. Trata-se de uma escola onde o ideal hegeliano é aplicado do modo mais perverso: alunos e professores serão presos na cadeia disciplinar, soldados cuja essência é a de serem tristes escravos.