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sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

DOUTORADO HONORIS CAUSA DA UNICAMP A DOM PAULO, OUTUBRO DE 2000 SAUDAÇÃO AO NOVO DOUTOR PELO PROFESSOR DR. ROBERTO ROMANO. Documento recuperado graças à preciosa ajuda da Sra. Maria Ângela Borsoi, do Acervo Dom Paulo, por mediação de Eliezer Rizzo de Oliveira. Agradeço a gentileza de ambos, para a lembrança de um dia memorável para a UNICAMP e, muito especialmente, para minha alma. Fica a recordação do grande Dom Paulo, numa cerimônia acadêmica esplêndida.


DOUTORADO HONORIS CAUSA DA UNICAMP A DOM PAULO, OUTUBRO DE 2000
SAUDAÇÃO AO NOVO DOUTOR PELO PROFESSOR DR. ROBERTO ROMANO


Ecce exiit, qui seminat, semirare. Não seria preciso a lembrança de Vieira para dizer o quanto é vital a missão de quem semeia o verbo. Pedras, espinhos, pássaros, toda a natureza e todos os espíritos podem destruir o véu diáfano da palavra prenhe de sabedoria. A infertilidade, não raro, encontra-se fora do semeador, quase sempre localiza-se no ambiente, nos ouvidos que deveriam acolher a mensagem. Mas a palavra, sal da terra, também perde o sabor. Então, a culpa é de quem semeia. A sentença vem na frase cristã sobre os homens que nem a peixe nem a carne se parecem, mas ficam alheios às dores e alegrias dos homens. Quem não salga, é pisado, cedo ou tarde, pelos tempos ou espaços, físicos ou sociais. Conculcatum est! Para que serve um sal insípido? Para nada.
Na Universidade e na Igreja, Paulo, existem semeadores. Eles podem perder os homens, e se perder. Felizes os que não colocam sobre as costas dos mortais cargas que não poderiam nem sonhar em conduzir! Tanto na cultura cristã, quanto no pensamento grego, temos a clara idéia do mundo espiritual como semeadura, com fertilidade ou pobreza de frutos. Plutarco afirma, em algum lugar, que o ensino platônico é como água prenhe de vida caindo sobre as mentes dos ouvintes. As palavras filosóficas, se caem em terreno favorável, florescem e dão frutos. Caso oposto, os signos de sabedoria, em contato com a mente álgida do receptor, se transformam em chuva de gelo, dando morte momentânea ao verbo sapiente. Quando o terreno muda, adubado pela vida ou pela educação, as palavras congeladas podem se dissolver, e liberam o conhecimento nelas escondido. Platão compara os indivíduos a frutos agrícolas. Uns podem alimentar a vida coletiva, e sua existência melhora o padrão humano em geral. Outros, grãos duros, encruam, não mergulham no alimento comum servido à polis. Eles não entram no circuito pleno das duas palavras essenciais ao ideário platônico e à Grécia no seu todo: paideia kai trophes. Quantos grãos encruados existem, Paulo, na Igreja e na Universidade! Quanta semente infértil, quanto gelo!
Sabemos, desde o teu predecessor de mesmo nome, Paulo, o grande significado da metáfora corporal. Esta também nos envia aos vários saberes, gregos, judaicos, latinos. A realidade plena do Corpus mysticum nos ultrapassa. Mas sabemos que, no interior da comunidade, todos pertencemos ao mesmo sangue, à mesma carne, ao mesmo hálito divino. Sabemos, mas poucos têm a virtude suficiente para viver esta comunhão, num banquete partilhado pelos nossos irmãos, sobretudo aos que se recusa até as migalhas.
Paulo: és pastor e doutor. Sabes, por teoria e vida, o quanto o mestre da República, ele novamente, prezava o cão enquanto imagem da sabedoria. Rabelais conta, na boca de um personagem, que segundo Platão o cachorro, e não tanto o homem, é o animal filosófico por excelência, porque não se contenta com a superfície das coisas e busca a substância alimentícia escondida no interior do osso. E o cão, ainda no ensino platônico, deveria ser o ícone do governante justo: bom e manso para os de casa, feroz para com os inimigos. Em todo o teu período pastoral, à frente de uma das mais violentas dioceses do Brasil, tu defendestes os de casa, os pobres, os perseguidos. E fostes um anteparo contra os lobos. Em tempos de FMI, é bom recordar teu exemplo, porque raramente encontramos estas marcas caninas em nossos magistrados civis. Basta recordar a atitude dos nossos ministros, por ocasião do recente plebiscito sobre a dívida externa brasileira, liderado pela CNBB e pela sociedade política nacional. O dirigente, pastor de homens, deve incentivar nos dirigidos o amor dos seus iguais, através da philia. Uma cidade inimiga de si mesma, diz o grego, de modo próximo aos Evangelhos, não subsiste. Nas Leis, encontramos a frase bela e terrível sobre a boa cidade, aquela onde é proibido a caça aos homens, e onde as dores e alegrias dos indivíduos são as dores e alegrias do todo, e vice versa. No grande corpo da polis é preciso que os membros se rejubilem e chorem, em ritmo igual. Se a maioria chora, e a minoria ri, algo errado, doente, encontra-se no corpo.
Mas para que todos percebam o alcance deste viver em comum, é preciso que lhes seja ensinada a sapiência. E aí, recomeça o cântico da educação dos homens através dos tempos. Para que o saber frutifique, alguém precisa sair, e semear... com todos os riscos que isto implique, como as tempestades, os envaidecimentos humanos, as calúnias, os choques, o medo, as esperanças contrariadas. Ninguém semeia tendo certeza da colheita. Cabe a Deus e à sua Providência, definir este ponto. Ou cabe à natureza. Jean Pierre Vernant, um sábio estudioso do conhecimento grego, diz que é bom notar as diferenças da imaginação do mando, no Ocidente e no Oriente.
Enquanto nos apegamos à figura do pastor, dinâmica por excelência, a China idealiza o dirigente como jardineiro que assiste o crescimento das plantas, sem intervir indiscretamente, e sem retirar o movimento dos liderados. Raros homens que exercem o mando unem as virtudes do pastor e as do jardineiro. Teu governo, na diocese de São Paulo, jungiu estes dois valores. Corajoso, como só podem ser os homens de fé e cheios de retidão, teu comando empurrou os tíbios para a defesa da vida humana, sobretudo na época mais negra de nossa história, tempo do poder castrense, apoiado no terror e na tortura, na morte e no desaparecimento dos que não aceitavam o fim da sociedade civil. Mas além da tua liderança, como pastor intrépido, ressaltou diante do mundo e do Brasil a tua paciência de jardineiro das almas.
Ensinastes, semeando nos sermões, nas praças públicas, nos atos contra as atrocidades, nos cárceres, nas favelas, nas mansões dos ricos, nos palácios dos poderosos. Sempre igual e sempre diverso, conforme é imperativo do lavrador evangélico, grego com os gregos, romano com os romanos. Não foram esquecidos em tua vigília pastoral os irmãos reformados, os judeus, os seguidores do Alcorão e os sem crença. Todos são unânimes ao agradecer a presença do teu báculo amigo. Nenhum brasileiro esquecerá tuas palavras impregnadas de cólera divina, na cerimônia fúnebre onde choramos Vladimir Herzog, as frases que recuperaram a dignidade plena da Igreja e do povo brasileiro, no crepúsculo de sinistra ditadura. Este lado é uma das faces mais sublimes de nosso hóspede. Ele merece nosso aplauso também por razões especulativas, acadêmicas.
Quando Paulo Evaristo Arns começou a semear, preparou boas sementes. O humilde franciscano rumou para a Sorbonne, onde aprendeu os mistérios dos livros e do Livro, alimentando-se dos frutos produzidos por Jerônimo e todos os que ajudaram a edificar um jardim espiritual de vastidões infinitas. Paulo mereceu o título de doutor, com um trabalho acadêmico que ilumina aspectos importantes da nossa civilização. Após mergulhar nas fontes do Verbo, ele retornou ao Brasil, onde exerceu a cura d´almas, sempre proclamando a palavra, humana e divina, com prudência e coragem. Praticou os mandamentos do Cristo ao visitar os doentes, atender os presos, lutar pela família e pela dignidade da pessoa humana.
Neste ato, Paulo, não cabem muitas palavras. O silêncio respeitoso diante de tua figura ímpar, vale mais do que longos discursos. Bem vindo entre nós, que tentamos cultivar o Logos, tu que és um dos mais belos exemplos da semeadura do Verbo encarnado. A UNICAMP te homenageia com a sua jóia mais rara, o seu título mais essencial, mais precioso. Ela tem certeza de que tu o mereces e que ela merece a tua presença. Esta alegria é a nossa festa de hoje. Nas antigas cerimônias de entronização papal, após o ofício divino, o carmelengo entregava ao novo pontífice uma bolsa com moedas de ouro, pro missa bene cantata. Não temos espécies materiais, mas este título é áureo no espírito, e nós te entregamos a honra de Doutor Honoris causa  pela UNICAMP, pro vita bene cantata. Deus te proteja e nos salve.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Vergonha: procura-se. Roberto Romano Veja último número de dezembro de 2018.


Vergonha: procura-se.

Roberto Romano
Veja último número de dezembro de 2018. 

Uma frase sempre vem aos lábios dos brasileiros deseducados, truculentos, egoístas e malandros, quando postos em situação difícil de ser resolvida corretamente. O fulano ou fulana fura a fila do banco ostentando ares de superioridade, vê-se repelido pelos que exigem seus direitos e, pode até não falar, mas pensa: “O Brasil é assim mesmo”. Várias sandices estão reunidas aí, nesta lógica distorcida. Com ela, o inefável tolo quer dizer que ele, isso mesmo, o ser muito importante que está acima dos outros, não tem laços com a cultura de seu povo. A plebe não viaja para Nova York, Paris, Londres ou Roma. Logo, ela não percebe o quão sublime é o personagem que reivindica o privilégio de romper normas comezinhas de civilidade, como respeitar o próximo, os lugares na fila e a vaga no estacionamento, entre muitas outras. Se topa com alguém que aponta sua falta de educação, o ser superior apela: “Que gente chata!”. E acabou, tudo se resolveu. Trata-se daquela finura de trato que espelha o gosto estabelecido. Tais indivíduos são finos em demasia, tomam champanhe com linguiça. “O Brasil é assim mesmo”.

Estacionou na vaga dos deficientes físicos? No worry! “Ficarei apenas uns minutinhos e já volto”. Berra nos restaurantes, gargalha a ponto de impedir a refeição alheia? Sem problemas: os demais clientes que se danem, “quero ser feliz com os meus amigos e colegas”. Para na fila dupla quando leva os pimpolhos ao colégio? “O trânsito brasileiro é primitivo, insuportável”. Empurra um desprevenido no corredor do shopping center? “Desculpa, eu não vi”. Sequer desconfia o truculento que a segunda pessoa do singular é uma forma lastimável de desrespeito. E ademais o “não vi” prova uma inconsciência total no campo ético. Quando alguém se move no espaço público, o ético, o moral, o polido é ver o corpo alheio, tomar cuidado para não ferir.

Na sociedade brasileira, condutas perniciosas de indivíduos e grupos são herança do que havia de pior no regime absolutista que regeu nossa história colonial. Os portugueses entram no cômputo dos povos europeus que sofreram, durante séculos, a centralização do poder nas mãos do rei. Aquela política repousava em alguns elementos estratégicos. Para dobrar a espinha de sacerdotes e nobres, o rei lhes distribuía favores, dava-lhes isenção de impostos, títulos, subvenções, cargos. Sem tal partilha, ou ele era assassinado, ou não conseguia governar. Para obter os favores do rei, as “elites”, por sua vez, precisavam apelar para intermediários entre elas e o trono. Na indicação de um cargo, o rei pagava favores para, em troca, ganhar o favor da governabilidade. Nobres e clero, por seu lado, pagavam favores aos intermediários e ao rei. Trata-se de um circuito poderoso cuja moeda é a bajulação universal, a compra e venda corrupta de favorecimentos. 

Historiadores apontam na sociedade absolutista um dos regimes mais corrompidos da saga humana. No Antigo Regime tudo se comprava, tudo se vendia, tudo se obtinha com a prestação de favores tanto aos indivíduos no mesmo nível social e político quanto aos “superiores”, que facilitavam a outorga de empregos e recursos. A sociedade absolutista era um tecido muito denso no qual dominava o favor. O indivíduo se rebaixava diante de alguém mais importante e pisava na garganta de quem estava abaixo de sua posição. 

Ocorre que a covardia subserviente se transforma, conforme a situação, em covardia arrogante. Assim foi gerada boa parte das elites do Antigo Regime, a cuja reiteração imaginária assistimos hoje quando o fulano pergunta, cheio da pior empáfia: “Sabe com quem está falando?”. Em terras polidas e cultas, a pergunta, em situações tensas e similares, é o contrário: “Quem você pensa que é?”. Ou seja, a igualdade no trato não pode ser quebrada, salvo em caso de vácua pretensão, por ninguém. Mas no Brasil o favor garante que o bajulador se apresente como tirano, se imagine estar frente a alguém inferior, “diferenciado”. 

Não causa nenhuma surpresa que, já na carta em que Pero Vaz de Caminha anunciou ao rei de Portugal a descoberta do Brasil, cargos sejam pedidos humildemente como favor, em prol de parentes. E temos aí a forma pela qual foi moldada a sociedade brasileira. A prática do favor, a reivindicação de “superioridade” sobre quem não é nobre, rico ou padre, favoreceu a formação de um coletivo sem a noção mínima da igualdade republicana. Como dizia o padre Antônio Vieira, os brasileiros não são “repúblicos”. Ao contrário do povo inglês, do francês e do americano, não praticamos as virtudes da responsabilidade diante do povo (accountability) e a igualdade política. Na Revolução Puritana do século XVII, que instaurou a monarquia constitucional na Inglaterra, o partido mais importante tinha como nome e slogan o termo levellers, ou seja, niveladores, anuladores das diferenças. No Brasil, os igualitários sempre foram vencidos pelo Estado e a vitória coube aos que beijam os pés dos governantes e insultam os vencidos. Gerou-se em 500 anos uma noção de elite sem paralelo nos centros civilizados do planeta.

Aqui, mesmo nos dias de hoje, vivemos como se estivéssemos no Antigo Regime. Os cargos nas empresas públicas e privadas são distribuídos segundo padrões do favor político, ideológico ou religioso. É a regra do “quem indica”. Sob o império do favor, indivíduos e grupos agem como se fossem melhores do que os “simples pagantes de imposto”. Ou, na linguagem de Dom João VI, “a gente ordinária de vestes”. Daí o sentimento de impunidade presente nos setores que, por estarem em posições de poder ou prestígio, usam a famosa carteirada (em duplo sentido: cargos e bolsos repletos) para negar direitos aos outros cidadãos. Quanto mais grosseiros e injustos, mais autorizados se sentem a romper o contrato social.

Na cidade de Atenas, onde se definiu a composição mais relevante da ordem democrática, algumas leis foram estratégicas nesta empreitada. A primeira tratava da responsabilidade nos serviços públicos. Só podiam ser eleitos aqueles que provavam por exame (Dokimasia) a posse de saber técnico e prudência ética para os cargos. Se no Brasil de hoje tal princípio vigorasse, muitos que se imaginam de elite estariam sem emprego. Outra lei essencial era a da Hybris (orgulho desmedido, arrogância). Um indivíduo mais bem aquinhoado pela sorte que humilhasse outro com menores recursos recebia penalidades físicas ou pecuniárias. Se aqui tivéssemos algo similar, os cofres públicos estariam abarrotados. A falta de respeito impera em nosso meio. Como o ser humano é mimético, costumes grosseiros se espalharam pelo corpo social. Não apenas a elite, mas também vastas camadas populares reiteram, sem nenhum recato, formas brutais de comportamento.

Por último, em Atenas uma forma de ser era fundamental: o indivíduo ganhava valor se manifestasse um sentimento de vergonha por atitudes incorretas. Faltar com o respeito aos idosos, às mulheres e crianças, aos mais fracos, era visto como uma indignidade sem tamanho. Quem não se ruborizasse por ter insultado algum concidadão deixava de ser um animal político e se transformava simplesmente em um animal. O termo Aidós (“vergonha”, “respeito”, “reverência”) servia para discernir quem era honesto e quem não merecia acatamento social e político. Em suma: entre as qualidades atenienses que fizeram a glória da polis democrática, talvez a que mais faça falta ao Brasil seja a vergonha. Pensadores e políticos realistas, os atenienses democráticos sabiam que é impossível manter um coletivo unido se não houver equilíbrio entre honra e pudor.

Antes de encerrar, ressalte-se ainda outra lei ateniense, a que dizia ser proibido mentir ao povo. No livro Deception and Democracy in Classical Athens (Mentira e Democracia na Atenas Clássica), o historiador inglês Jon Hesk observa que, em Atenas, a honra política estava interligada a um permanente respeito à verdade. Aristófanes e Platão caçoaram em muitas ocasiões dos demagogos que, levados pela sofística, prometiam mundos e fundos nos debates eleitorais. A falta de verdade, o uso da mentira deslavada, o entusiasmo pelos favores, o desprezo pelo populacho, tudo isso faz do Brasil um arremedo trágico e ridículo da vida democrática.

A honra traz a fé pública, condição da efetiva estabilidade econômica e política. A lógica de tal aporia é tirada por Santo Agostinho: sem a justiça e a vergonha, os Estados não passam de grandes quadrilhas. E as quadrilhas formam pequenos Estados. O Brasil que decida: seguirá a honra e a vergonha ou permanecerá na lama, reclamando da corrupção alheia? A imagem que muitos brasileiros fazem de si mesmos é a de espertalhões que podem enganar os incautos. O “jeitinho” presente nos fura-filas, nos usurpadores de vaga no estacionamento e nos que mentem em público e no privado reitera uma sociedade cuja ética é tortuosa e sempre beira o desastre. Não é possível ter bons governos com uma cidadania que ignora seus deveres. E assim caminha este país, de esperteza a esperteza, rumo ao desalento ressentido de todos contra todos. “O Brasil é assim mesmo”...

A crise ética brasileira, o significado do termo "ética" e os equívocos ao seu redor. Uma inspeção em nosso passado, mais presente do que nunca. Somos um povo que vota em quem promete lutar contra a corrupção, mas que esquece ser a corrupção um resultado, não um pressuposto. Resultado de uma estrutura social injusta, criminosa para dizer tudo.




Sempre existiu e sempre existirá crise ética no mundo. A ética resulta do equilíbrio instável entre os comportamentos (reforçados pelos valores estabelecidos) e as novas formas de agir e pensar. Ela, portanto, supõe a crise, cujo significado original vem do grego krisis, “instante de passagem, de escolha, de prova, decisão”.  A cada átimo os nossos hábitos sofrem o teste maior: eles preservam a nossa vida e a existência da sociedade que nos acolhe? Formas tradicionais de comportamento, caso não permitam responder positivamente a tal pergunta, inevitavelmente perdem vigência em médio ou longo prazo.

Importa recordar o significado original do termo “ética”. Na semântica histórica o termo ressalta o sentido de “postura” (hexis). Como a sociedade grega era guerreira, os jovens deviam aprender as posições corretas para a corrida, o uso das lanças etc. Tal aprendizado se fazia nas disputas, sob orientação de instrutores ou no próprio campo de batalha (Platão diz que os meninos deveriam sentir o cheiro do sangue, nas guerras). Era vital correr certo, pois o uso inadequado dos pés, das pernas, de todo o corpo, faria o exército perder tempo, podendo ser vencido. Ora, quem aprende a andar errado, repete o erro automaticamente. Idêntico automatismo ocorre quando se adquire a posição correta. Hexis, assim, é algo vital para a sociedade grega, sendo por semelhante motivo valorizada a sua prática certa. O automatismo traz o problema. Quando alguém anda ou corre erradamente, com muita dificuldade poderá corrigir o erro que, de tanto ser repetido, torna-se inconsciente. É preciso aprender o certo desde a mais tenra infância, daí o fato de a ética ser ligada diretamente à educação. Com o tempo, por metáfora, a postura passou a ser empregada para a atividade da mente. Assim como se aprende um bom gesto físico, também se aprende um bom raciocínio. Ou, em caso oposto, uma péssima postura na forma de pensamento. Também aqui é estratégico que a criança aprenda a boa postura desde a mais tenra idade, caso contrário ela aprenderá formas erradas de imaginar, calcular, agir diante dos valores imateriais.

O problema é que a sociedade grega, apesar de sua elevação filosófica, artística, científica, assumiu o automatismo de sua cultura, a que dizia aos cidadãos da polis que eles eram os únicos dignos de ostentar o título de homens, seres plenamente racionais e valorosos. Assim nasceu o mito da autoctonia e da supremacia grega sobre os orientais e os ocidentais do Norte europeu. Aristóteles, na “Política”, diz que os homens do Oriente têm inteligência aguda, mas são covardes. Os europeus do Norte são bravos, mas pouco brilhantes no pensamento. Os gregos, bem, eles reuniriam a coragem à mente lúcida. E seriam, propriamente, homens. Os demais povos, os bárbaros (palavra produzida com uma onomatopéia, que imita sarcasticamente os estrangeiros ignorantes da língua grega, sendo portanto alheios ao Logos, à razão) tinham como destino ser dominados pelos helênicos.

Surge aí um automatismo que persegue a ética ocidental até hoje, impedindo sua plena cooperação com outras éticas. Tal postura pode ser grosseiramente racista, mas pode ser traduzida em pensamentos etnocêntricos, embora refinados intelectualmente. É o caso do brilhante historiador da cultura guerreira grega, Victor Davis Hanson em livros como “Porque o Ocidente venceu?”. Mas a superioridade auto-atribuída pelos ocidentais não vai além da imagem idealizada. Na realidade, mesmo a Grécia entra no movimento geral das éticas mediterrâneas. Ela muito aprendeu com o Egito e demais impérios do Oriente Médio e do Mediterrâneo.

Mais adiante, a partir do século XIV (era cristã) a ética européia foi se transformando, a cada século mais rapidamente, no trato com as do Oriente Médio, da África, das Américas, do Extremo Oriente. O mesmo ocorre com as últimas diante da européia. No século XX as trocas entre as éticas regionais do planeta se tornaram a cada passo mais aceleradas, devido, sobretudo, às tecnologias da comunicação. Do telégrafo à Internet, o comércio espiritual entre as éticas se complexificou, tornando-se sempre mais amplo, emaranhado, contraditório. Os movimentos retrógrados, que insistem em conservar valores e hábitos inadequados à nova configuração do planeta, tendem a se definir como quistos que apenas preparam o isolamento de seus praticantes, ou seja, elas trazem a morte próxima ou lenta de sua cultura, formas políticas, econômicas, religiosas, estéticas e tecnológicas.

Sigo o pensamento do etnólogo André Leroi-Gourhan. Para ele, a cultura técnica – base da ordem ética – para se reproduzir, exige das sociedades duas forças aparentemente contrárias: a primeira é a capacidade de inventar instrumentos, valores, hábitos; a segunda reside na aptidão para emprestar de outras sociedades instrumentos, valores, hábitos. Quem não consegue emprestar é incapaz de inventar e vice-versa.

É o que vemos no planeta, sobretudo após o século XVI. Os europeus emprestaram da China, da Índia, do Japão ciências e técnicas em todos os domínios da vida. E inventaram, a partir daí, novas técnicas, ciências, hábitos. No campo estético tomemos, no século XVIII, no rococó, a quantidade de formas e traços conhecidos como “chinoiserie”, ou seja, empréstimos do Japão e da China, nas artes plásticas. No século XX, temos o movimento amplo chamado Art Nouveau. Ele é uma síntese de elementos orientais e do Ocidente.

O mesmo pode ser dito de toda a cultura e da ética. Gourhan mostra, após muitas pesquisas sobre a origem e a vigência da tecnologia desde os nossos alvores como humanidade, que nosso corpo é produto de nossa técnica, que desde o princípio vivemos em tecnosfera.

Moldamos nosso corpo inteiro, dos pés à caixa craniana, o que possibilitou as técnicas de manipulação e a linguagem. Mas o principal é que o nosso corpo, base da ética, se prolonga no universo dos objetos técnicos que produzimos, mas não criamos. É bom recordar a diferença entre “criação” e “produção”. No pensamento judaico-cristão, existe a idéia de um ser onipotente que gera a natureza do nada. No pensamento grego, a natureza já está ao dispor dos deuses, que a controlam, e dos homens que imitam os deuses, ou desafiam os deuses como Prometeu. Assim, nesta forma de raciocinar, não existe criação, mas produção a partir e, não raro, contra a natureza que deve ser submetida pelos nossos atos técnicos. Se não existe criação absoluta, também não existe autoctonia técnica plena. Cada sociedade inventa sua técnica (e nela, a sua ética) emprestando traços de outras sociedades. Só é capaz de inventar, retomo, quem se tornou competente para emprestar.

Ou seja, a técnica é um movimento perene de Krisis, de decisão, escolha, teste. O mesmo para a ética. Uma cultura presa em si mesma, sem choques com outras, nada acrescenta, nada inventa no seu trato com a natureza e consigo mesma. Daí, o fato de que a crise, longe de ser algo nocivo, é essencial para a sobrevivência correta, a expansão e o desenvolvimento da técnica e da ética. Outra noção de Krisis dá bem a medida da coisa: para os médicos dos tratados hipocráticos (outra fonte rica das elaborações éticas do Ocidente), a crise da doença é o momento em que ainda não foi vencida a moléstia (a morte pode vir) e já surgem sinais de recuperação da saúde. A crise, portanto, pode seguir para a morte ou para a vida. Tudo depende da perícia técnica do médico, da cooperação do adoecido, das forças que se chocam no seu corpo. Ocorre com a crise o mesmo que se passa no plano do remédio.  Os médicos gregos nomeiam como Pharmakon os medicamentos, que podem ser remédios ou venenos, muitas vezes dependendo da dose, do saber técnico no seu emprego, do corpo adoecido. Assim também na ética: ficar muito tempo na indecisão sem usar medidas técnicas para sair da crise, significa aceitar o desaparecimento. Mas não se deve ser precipitado, pois apressar o fim da crise antes do tempo pode ser desastroso. Esta é a lição política ensinada pelos médicos aos teóricos da política, de Aristóteles até Maquiavel. Trata-se da noção do Kayrós, o tempo oportuno. Quem deseja solucionar uma crise ética ou política deve saber qual o instante certo para decidir as coisas. Um minuto antes, um minuto depois, pode ser a ruína de uma sociedade ou Estado. O comércio praticado entre as éticas, desde a era antiga até a moderna, supõe a noção de crise, de tempo oportuno, de empréstimo e invenção.  Falar em “choques” ou “guerra” de culturas e de éticas significa tomar as coisas pela rama, ignorar o principal, a perene crise de todas as formas culturais, aceleradas na modernidade.

O Brasil… bem, o Brasil é o amálgama de uma ética absolutista europeia com elementos dinâmicos da modernidade. Nossa ética se enquistou no absolutismo que ignora e mesmo combate a democracia real (pensemos no privilégio de foro, excrescência do século XVII em pleno século XXI brasileiro), no menosprezo pelas técnicas de ponta, na desconfiança diante das conquista políticas mundiais, bastando ver o ódio votado aqui à liberdade de imprensa, no veto à existência de uma oposição efetiva, no conúbio entre o público e o privado. Emprestamos apenas alguns elementos do processo de mundializacão técnica e ética. Somos ainda incapazes de inventar novas éticas, o que não nos assegura um futuro invejável, apesar de todas as nossas potencialidades e riquezas. Se continuarmos ignorando a geração técnica, se não investirmos em inovação em nossas indústrias e direção de empresas, se persistirmos em viver sob uma forma de governo anacrônica (o absolutismo dos operadores do Estado, que se julgam e agem como se não devessem prestar contas a ninguém, sobretudo ao “cidadão comum”), setores vitais de nossa sociedade e de nossa ética serão ainda mais fossilizados, no mesmo passo em que outras sociedades agilizam e aproveitam com sentido certo de tempo oportuno as suas crises, assumem novos rumos, inventam novos valores e geram novos horizontes.

 São frutos de nossa ética as posturas de governados e governantes que permitem a diferença entre “ser do poder”e “ser gente comum”. Tal resquício do absolutismo torna possível uma classe especial de seres, os poderosos, que tudo fazem em detrimento dos cofres públicos e em favor de seus bolsos. Vivemos até data recente com a admiração popular diante de personagens que, se dizia, “roubam, mas fazem”. Esta complacência, ou cumplicidade das massas, é algo preparado com muita técnica e ardilosidade, e tem como datas principais as mesmas que indicam o nascimento do Estado absoluto. Neste último, as fontes públicas de recurso se concentram nas mãos dos governantes, que as direcionam no interesse do governo, sem ouvir os que pagam impostos. Estes, por sua vez, não têm direitos a reclamar nas políticas públicas.

Mesmo porque a essência do poder absolutista reside na razão de Estado que é conatural ao segredo de Estado. Os impostos, a polícia, as guerras, a administração, tudo é razão e segredo de Estado no absolutismo. Certa feita o rei francês pediu um aumento de imposto à Assembléia dos Estados (nobreza, clero, terceiro estado). Sua desculpa era a guerra. Os representantes do terceiro estado pediram para inspecionar as contas reais. O clero, setor mais influente na época, em seu voto disse que as finanças do rei eram como o Santíssimo Sacramento no cofre sagrado. Apenas os que tinham poder divino poderiam saber o que nelas se escondia… Segredo e razão de Estado são sinônimos, em todos os sentidos. E o governante absolutista distribuía privilégios para se manter no comando do Estado. Dentre os privilégios, contemos os recursos financeiros, as terras etc. O clero e os nobres eram os mais agraciados com tais privilégios, pagos à custa dos contribuintes. Rei, clero, nobres, nenhum deles julgava ter de prestar contas de seus atos e dos dinheiros. Ora, quando as revoluções modernas, republicanas e democráticas, já tinham sido efetivadas (a inglesa ainda no século XVII, a norte-americana e a francesa no XVIII), no Brasil do século XIX se reitera o absolutismo sob comando do príncipe Dom João, mantendo-se os fundamentos do privilégio, do segredo, da irresponsabilidade no manejo dos recursos públicos.

Aliás, fugido de Napoleão, que bem ou mal representava um avanço democrático quando comparado ao Antigo Regime absolutista, Dom João fez do Brasil um país refratário às “doutrinas infernais” da república, da democracia etc. Foi assim que o Príncipe fez o Banco do Brasil, que imprimiu papéis sem lastro e foi obrigado a fechar. O governante viu apenas as suas necessidades, sem cuidar nem um pouco da accountability.

A justificativa do Poder Moderador, na Carta de 1824, encontra-se nesta ressurreição, nos trópicos, do absolutismo. Com o Império, concentraram-se na Corte os impostos, que os distribuía pelas províncias e municípios conforme a sua obediência aos ditames do poder imperial. Assim, cidades ficaram séculos sem serviços públicos elementares. É quando os poderosos regionais se unem em oligarquias para arrancar meios do poder central, oferecendo como troca o controle das populações e apoio aos projetos do governo. Algo mais grave ocorre ainda no plano ético. Como as cidades são desprovidas de recursos, os fazendeiros (candidatos a oligarcas) que têm lugar nas Câmaras de Vereadores e na Prefeituras, emprestam o seu próprio dinheiro (além da mão de obra escrava que lhes pertencia e dos materiais, comprados no Rio ou São Paulo) aos cofres municipais para obras públicas. O fato surge aos olhos dos cidadãos como um favor prestado à coletividade. Mas breve surge a contrapartida.

A professora Maria Sylvia Carvalho Franco mostra que, tempos após a instauração de tal prática, os vereadores e prefeitos imaginaram o processo como rua de mão dupla: “se quando o município precisa, eu empresto, quando eu preciso…”. Temos aí o uso de confundir o dinheiro público com o privado, usando o primeiro para ascender socialmente, comprar postos de mando, alianças políticas, etc. Em “Homens Livres na Ordem Escravocrata”, todo o sistema é exposto com detalhes e provas. Importa sublinhar que a passagem do “favor” ao uso do dinheiro público, ocorre com aprovação ou mesmo cumplicidade dos governados. Tal é a origem do “‘é dando que se recebe” e do “rouba, mas faz”.

Mantida a concentração do poder no palácio presidencial, em detrimento dos Estados e municípios, mantido o sistema concentrador de impostos no poder “federal”, as populações não têm outra escolha senão votar nos poderosos regionais, os oligarcas, que trazem obras para as cidades. Ou seja, elas aprendem uma ética contrária à república e à democracia. Nem os proprietários do poder central, nem os oligarcas, imaginam ter obrigação de prestar contas de recursos aos contribuintes. Mas exigem cada vez mais impostos para prestar “serviços” ineficientes na saúde, educação, segurança, cultura, ciência e técnica. Eles julgam ter direito a colocar no bolso próprio, ou de seu partido, parte do butim, para manter os “favores”, ou seja, a realização de obras públicas nas urbes.

E agora vem a pior parte: desafio qualquer pessoa a lançar um candidato ético, respeitador dos dinheiros públicos, em qualquer eleição brasileira. Se ele provar que trará, ou trouxe, obras públicas para os eleitores, será eleito tantas vezes quanto possível o que trouxer obras públicas. Caso contrário, receberá parcos votos.

O eleitor que, diante dos jornais, rádio ou TV diz ter nojo da corrupção política, não sabe ou não quer saber o que os políticos “eficientes”devem fazer, no Congresso, para conseguir os recursos. O mínimo é praticar o “é dando, que se recebe, o toma lá dá cá”. Ou seja, a corrupção é tridimensional: existe o corruptor de obras públicas, o corrompido dos poderes, o eleitor… Sem uma efetiva democratização que obrigue os gestores a prestar contas, sem uma abolição dos privilégios (em especial o de foro), sem uma federalização que permita maior autonomia (sobretudo financeira) aos Estados e Municípios, a fábrica da corrupção ética e financeira estará funcionando em pleno vapor. Tenho alguns escritos sobre o problema. Em especial, gostaria de indicar um texto meu saído na Revista de Economia Mackenzie, cujo título é “Impostos e Razão de Estado”.

O nosso Judiciário está inserido na estrutura do Estado brasileiro, ou seja, mesmo que boa parte de seus integrantes queira exercer a missão de julgar de acordo com os padrões republicanos e democráticos, a instituição é homóloga à dos outros setores, com agravantes. O Executivo e o Legislativo seguem regras de transparência e são submetidos à opinião pública, à   imprensa, ao voto. Quando perdem seus cargos, perdem a remuneração e, quando seus processos judiciais não recebem o sinal do segredo de justiça, sua vida inteira se transforma em objeto de análise pública. Não é assim com os magistrados. Quando perdem seu cargo, guardam o pagamento, são julgados pelos pares em plano sigiloso e, quando fica evidente a sua ausência de ortodoxia ética no cargo, não recebem punição a tempo e a hora. O debate nacional ao redor do CNJ, as tentativas de enfraquecer o trabalho da Corregedoria daquela instituição que deveria controlar a prática dos juízes, tudo mostra que dos três poderes o judiciário é o mais arredio aos elementos democráticos da transparência e da accountability. Existem exceções, com certeza, mas a regra não é passível de aplausos unânimes.

Modo geral, os que operam no campo do direito manifestam um alto teor de corporativismo e, em muitos casos, de desprezo pelos “estranhos”, os “leigos”, os “cidadãos”comuns. Eles esquecem que, num mundo altamente dividido em especializações, o jurista também é leigo para o médico, o engenheiro, o arquiteto, o economista, o físico, o químico, o administrador de empresas, etc. Existem questões que vão além das especialidades. Tais questões não admitem donos da verdade nem ditadores da ciência, seja ela jurídica. Muitos operadores do direito, aqui incluindo advogados e promotores além de juízes, não admitem o ponto. Além disso, o judiciário não tem exercido o papel que lhe cabe de morigerar os outros poderes. Haja vista a facilidade com a qual é aplicado o privilégio de foro, sem um questionamento protocolar: ele fere o princípio da igualdade de todos perante a lei. Quando os que praticam improbidade com os recursos públicos fogem do juiz natural, o da primeira instância, e são supostamente colocados sob o julgamento dos tribunais superiores (quantas penalidades foram mesmo aplicadas até hoje?) temos a ruptura com o regime ordenado na Constituição e referendado pela cidadania. Esta última recusou a forma da monarquia (com tudo o que ela implica no Brasil de privilégios, lembremos que mesmos em países monárquicos do mundo atual, os políticos não gozam dos privilégios que lhes são outorgados aqui), mas a justiça passa ao largo, aceitando um ordenamento evidentemente injusto, escandaloso, inconstitucional. O privilégio de foro não cria a corrupção, mas a reforça e torna os improbos mais arrogantes, sem tomarem sequer nos dias de hoje a cautela de esconder suas manobras fraudulentas. O que se praticava dissimuladamente tempos atrás, se comete hoje em plena praça pública.

Acho mais adequado perguntar sobre o impacto da corrupção sobre o Estado e a sociedade como um todo. O primeiro e mais deletério é o sumiço da fé pública. E sem tal elemento não existe Estado de direito. Se não é possível confiar nos gestores do Estado (nos três poderes), não há motivo para obedecer a lei, pagar impostos, servir militarmente, viver segundo as regras civilizadas. Investir recursos privados em setores que dependem da administração pública, quando é sabido que tais recursos irão parar nos cofres dos partidos e dos indivíduos que operam na política, é tarefa que beira a falta de sentido.

As pesquisas que indicam a perda progressiva de fé da cidadania no sistema democrático deveria ser um alerta aos que ainda buscam um modo de vida pautado pelos valores da democracia. Mas quantos, na camada política, valorizam a república, a democracia, a responsabilidade, o respeito às leis vigentes? Quando legisladores quebram a lei, como ocorre com frequência terrível no Brasil, perde sentido se falar em Estado, ou mesmo Estado de Direito.

A violência que grassa em nossa sociedade (basta ver o trânsito, 40 mil morte por ano, mais do que em muitas guerras tremendas ocorridas nos últimos anos no planeta) mostra os efeitos da corrupção de maneira clara. Basta dizer que os assassinos do trânsito, como os improbos, escapam das malhas da justiça de modo fácil. É bom recordar o dito de Diógenes: “A lei é uma teia de aranha que prende os insetos pequenos, e não resiste à força dos grandes”, pois nela fazem buracos confortáveis. Pelo que ocorre no Brasil, haja conforto! Nosso sistema leva a população a aceitar “favores” dos que operam o Estado. Se ela não identifica favores nos oligarcas, os encontra em ações governamentais. Antes, valia como arma política de controle o bico de pena. Hoje, o cartão magnético do Bolsa Família e outros mais. E os setores da classe média e dos mais bem aquinhoados temem perder algo conquistado após muito desespero, ou seja, a inflação razoavelmente baixa e a estabilidade econômica. Não podemos dizer que apenas a conjuntura poderia explicar semelhante apatia popular diante da corrupção. Devemos, antes de tudo, dizer que o alheamento não é absoluto, pois cerca de dois milhões de pessoas se movimentaram para conseguir a lei da Ficha Limpa. Esta, apesar de tudo, marca o desejo dos cidadãos de combater o processo corrosivo que anula o Estado de direito entre nós.

Para compreender o motivo da suposta passividade do povo brasileiro diante da corrupção, precisamos refletir sobre o peso da inflação na vida nacional, de 1954 até o Plano Real. Um processo inflacionário como o vivido em nossa terra corrompe valores, quebra resistências éticas, abre caminho para o desespero de indivíduos, grupos, classes. Permitam que eu cite um dos autores mais relevantes na análise política e antropológica do século XX, Elias Canetti. Em sua obra lúcida e profunda chamada “Massa e poder”, existe um capítulo fundamental intitulado “A inflação como fenômeno de massa”. Em outros livros e textos ele comenta o impacto da inflação na ordem social e política. Tanto sua autobiografia (“Die Fackel im Ohr” ou “A torcha no ouvido”), quanto “Auto-da-fé” (“Die Blendung”) trazem situações vividas durante o tremendo processo inflacionário de Weimar. Como seu contemporâneo Georg Simmel, que publicou um monumento teórico chamado “Filosofia do Dinheiro” (“Philosophie des Geldes”, 1900, existe tradução inglesa da obra, “The Philosophy of Money”), Canetti presta atenção ao papel do dinheiro na ordem cultural moderna e na geração da identidade psicológica das pessoas.

Ele parte de um fato incontestável: “Pode-se afirmar que nas nossas civilizações modernas, excetuando-se as guerras e as revoluções, não existe nada que em sua envergadura seja comparável às inflações”. Canetti mostra como há um nexo entre o corpo do homem, a sua mão sobretudo, e a moeda. Com o enfraquecimento deste vínculo, após o papel moeda (embora o padrão ouro ainda garanta a confiabilidade de uma economia), ainda permaneceu um ponto de estabilidade e confiança nos governos democráticos. Trata-se da cifra que indica o “milhão”. Como designação de um número, o “milhão” tanto pode referir-se ao dinheiro como aos homens. E Canetti nos reconduz à íntima passagem entre a inflação verbal e a econômico-política. Milhão: “O caráter duplo da palavra pode ser analisado muito bem nos discursos políticos. O prazer voluptuoso do número que cresce repentinamente, por exemplo, é característico dos discursos de Hitler. Em geral, ele se refere aos milhões de alemães que ainda vivem no exterior do Reich que ainda precisam ser redimidos”.

Importa sublinhar: no mundo atual, massa e milhão relacionam-se imperativamente. No processo inflacionário, entretanto, “a unidade monetária perde repentinamente sua personalidade. Ela se transforma na massa crescente de unidades; estas possuem cada vez menos valor à medida que aumenta a massa. Os milhões, que tanto se quis possuir, estão repentinamente em nossas mãos, mas já não são mais milhões, apenas se chamam assim.

Na inflação, ocorre um elemento perverso e perversor: “O que cresce toma-se cada vez mais fraco. O que antes era um marco é agora dez mil, depois cem mil, depois um milhão. A identificação do homem individual com seu dinheiro é abolida desta forma”. O homem, que antes confiava na sua moeda ou bilhete, não “pode evitar sentir seu rebaixamento como um rebaixamento dele próprio. (…) A inflação não abala apenas tudo externamente; nada mais é seguro, nada permanece no mesmo local durante uma hora; em virtude da inflação, ele mesmo, o homem, diminui. Ele mesmo, ou o que ele foi, é nada; o milhão, que ele sempre desejou ter, também é nada. Todos o possuem. Mas cada um é nada”.

A inflação, desse modo, pensa Canetti, é uma “desvalorização dupla (…), o indivíduo sente-se desvalorizado, porque a unidade na qual confiou, que ele respeitava tanto como a si mesmo, começou a deslizar para baixo. A massa sente-se desvalorizada. (…) Como pouco se vale sozinho, igualmente pouco se vale unido aos demais. Quando os milhões aumentam, todo um povo de milhões se converte em nada”.

A massa, entretanto, não se esquece de sua desvalorização. “A tendência natural, a partir daí, é a de encontrar algo que valha ainda menos do que a própria pessoa, algo que possa ser desprezado da mesma forma como se foi desprezado antes.” A massa, digamos, busca um bode expiatório onde descarregar o sentimento de ser nada. Canetti aponta para o vínculo entre a inflação alemã e os milhões de judeus, supostamente inferiores aos arianos empobrecidos pela inflação, mortos nos campos de extermínio.

A lição trazida pelo processo inflacionário de Weimar não foi aprendida o bastante pelas sociedades ocidentais. O descontrole da economia traz inflação e, com ela, massas dispostas a seguir os mais diversos Messias, cobrando de supostos culpados toda a insegurança e humilhação vividas.  Basta ver o que se passa na suposta União Européia nos últimos tempos. Recomendaria modestamente a leitura de um livro relevante para os nossos políticos, magistrados, universitários, jornalistas. Penso no volume publicado por Bernd Widdig (“Culture and inflation in Weimar Republic”), onde inclusive existe um capítulo inteiro dedicado às análises de Elias Canetti.

No caso brasileiro a população, desacostumada aos procedimentos democráticos (no século XIX, os nossos governantes dificilmente poderiam ser postos entre os campeões da democracia), algo piorado por dois regimes de exceção no século XX, e também afeita aos favores que espera dos que operam o Estado, não teve oportunidade de exercitar ativamente a crítica e a cidadania. Se na Alemanha, onde o nível da participação política das multidões foi elevado, sobretudo após 1848 (a era das revoluções) aconteceu um descontrole econômico e político desastroso como a inflação, conduzindo à fé cega num redentor, no caso Adolf Hitler, não é de espantar que no Brasil tenham medrado arremedos messiânicos como o de Jânio Quadros, José Sarney (recordemos a histeria dos “fiscais do presidente” que invadiam supermercados, prendiam gerentes, penetravam em fazendas na caça aos bois gordos, com base na lei delegada etc), Fernando Collor… A cada nova onda de fé no salvador presidencial, seguia uma onda de humilhação, perda da autoestima, desespero diante do presente e do futuro.  A apatia que hoje se observa nas massas urbanas brasileiras tem várias faces, sendo que a primeira é justamente a segurança econômica, da qual fala a propaganda oficial necessariamente.

Protestar contra a corrupção parece ser algo menor, se comparado ao pesadelo vivido antes do Plano Real. Acrescente-se que a mesma propaganda “sequestrou” o peso dos governos Itamar Franco e Fernando Henrique na construção daquela segurança: “nunca, antes neste país…”. A segunda face, mais triste, é o conúbio dos eleitores com os corruptos que lhes fazem “favores” pessoais ou coletivos (trazem obras para as cidades etc). A terceira é o controle quase absoluto do governo federal sobre as obras públicas no país inteiro, facilmente transformando-as em instrumento político eleitoral. E temos várias outras faces.

Mas digamos, para encerrar esta longa resposta, que um povo que viveu sob a inflação e foi humilhado ao máximo por ela, se dispõe à entrega total a um líder populista. E tal fato traz muitas preocupações com o futuro da democracia.