Flores

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quarta-feira, 24 de março de 2021

Dada a situação violenta e letal em que se encontra o Brasil, traduzi um texto de Guy Planty-Bonjour sobre o Direito e a Violência em Hegel. Bonjour é autor de um livro essencial para entender o marxismo soviético: Hegel na Rússia. Espero que a tradução ajude o pensamento justamente quando o STF corrige uma das mais brutas injustiças contra o Presidente Luis Inácio da Silva. Creio valer a pena a leitura. A tradução é pouco elegante, mas pode servir como guia de leitura do original. Roberto Romano

 

Direito, violência e liberdade segundo Hegel

 

Guy Planty-Bonjour in Guy Planty-Bonjour (Ed.) Droit et liberté selon Hegel, Paris, PUF,1986, pp/205 e ss.

 

 

Introdução

 

 

A Filosofia do Direito de Hegel, sem dúvida, é um dos textos mais controvertidos de toda a sua produção filosófica. Os debates por ela erguidos desde o seu aparecimento, sempre reassumidos e amplificados não se devem apenas por razões que motivam a aceitação fervorosa ou a recusa vingadora das teses de Hegel. O problema consiste, talvez, menos de alguém se proclamar discípulo ou adversário do que saber o que Hegel desejou dizer. A necessária análise da literatura secundária, se permite medir a amplitude das divergências, não torna mais fácil a compreensão das visões políticas de Hegel. Para um, ele é o filósofo da liberdade e o admirador da Revolução Francesa; para outro, Hegel desenvolveu uma doutrina totalitária do Estado e se tornou o filósofo oficial da Restauração. Quando as divergências interpretativas tomam tal amplitude e continuam durante tamanho tempo, pode-se com legitimidade perguntar se não é preciso procurar no próprio texto de Hegel a razão dessas leituras diferentes.

 

Hegel, interessado durante mais de 40 anos em direito e política, escreveu textos durante um período muito agitado e rico em acontecimentos históricos: Revolução Francesa, Terror e reação termidoriana, Napoleão e suas guerras, queda do Império, Santa Aliança, Restauração. Um tal vivido histórico não poderia deixar de imprimir sua marca contrastada numa filosofia tão largamente atenta à sua época. ([1])

 Dizer que Hegel evoluiu é um jeito cômodo para reduzir as contradições entre os seus diferentes textos: partindo de um amor admirativo e mesmo apaixonado pela Revolução Francesa bem como por Napoleão, ele não teria suportado os excessos do Terror nem a ambivalência das guerras napoleônicas, logo surgidas como guerras de conquista e não como guerras revolucionárias ; ele teria portanto se tornado o partidário mais ou menos resignado da Restauração. ([2]) É verdade que Hegel mudou profundamente. Mas não é fácil colher o sentido de sua evolução, pois seu percurso não é orientado nem linear. Pode-se desconhecer o sentido de seus numerosos escritos políticos desde que se contente em dizer que sua trajetória o conduz do liberalismo para o conservadorismo. A questão é infinitamente mais complexa.  

 O jovem Hegel se opõe a Kant e Fichte porque suas filosofias separam muito radicalmente a moralidade e a vida ética, e então a moralidade se esgota no puro dever-ser incompleto e nunca completado. Esta oposição é tanto mais viva que Hegel, na época, não compreendia muito bem o sentido e o significado do direito natural propostos por Kant e Fichte.

 Por volta de 1805 uma inteligência melhor da significação do kantismo e do pensamento de Fichte conduz Hegel a se aproximar daquelas duas doutrinas. A liberdade moral segundo Kant, o tema fichteano do reconhecimento tornam-se essenciais de sua nova doutrina do direito e do Estado. Mas já desde aquele momento novas leituras de Aristóteles o obrigam a dar mais atenção à filosofia política grega. Nesta nova querela dos Antigos e Modernos, cujo alvo é saber se a filosofia do direito é doutrina do direito natural ou ciência política, Hegel recusar escolher. Durante 20 anos em Nuremberg, em Heidelberg e finalmente em Berlim ele se esforça, uma vez senhor do processo dialético que elaborou ao redigir a Ciência da Lógica, por mostrar como é possível a síntese das duas correntes.

 É justamente porque Hegel integra na sua teoria do direito elementos pouco compatíveis entre si, para não dizer contraditórios no sentido habitual do termo, que se torna tão difícil determinar com segurança e perfeita exatidão o sentido último de sua doutrina político-jurídica.

 Se há uma atitude metodológica a ser proscrita, é a que empurra os leitores a busca de alguns regimes políticos que surgiram uma boa centena de anos após os Princípios da Filosofia do Direito para saber se eles seriam uma perfeita ilustração daquele escrito. Sem dúvida quando E. Weil indica que nossas democracias ocidentais realizam a concepção hegeliana do direito e do Estado, ele se afasta infinitamente menos da verdade do que Popper e outros que sustentam ser o fascismo totalitário o legítimo fruto do hegelianismo. Mas quando sabemos que já é imprudente dizer qual é o regime político do seu tempo ao qual caberiam as descrições hegelianas, com maior razão é ilegítimo pretender pular um século. Em vez de arriscar comparações com frequência infelizes e geralmente pouco esclarecedoras, tentaremos ver se a razão da ambiguidade da filosofia do direito de Hegel não viria do fato de que ela apresenta o direito indissociavelmente ligada à violência e à liberdade.

 

I – Direito e Violência

 

a.    No estado de natureza

 

A força, a violência, a guerra têm um lugar importante no sistema hegeliano. Se a violência se infiltra tão profundamente no sistema a causa, segundo a nota profunda de Adorno, “o direito é o fenômeno primordial de uma racionalidade irracional”. ([3]) Importa distinguir bem os diferentes setores em que a violência opera, sem o que se imputa a Hegel teorias que ele nunca sustentou.

 O primeiro parágrafo de sua obra ensina que “a ciência filosófica do direito tem como objeto o conceito de direito e a sua realização”. ([4])   Ele prossegue dizendo que esta efetivação do direito trata de vários níveis, desde o direito abstrato da pessoa até o direito do Espírito do Mundo, passando pelo direito do sujeito moral, da vida ética, do interesse do Estado. ([5]) A violência pode ser exercida em diferente domínios em que o direito se efetua, mas em cada um deles ela toma uma forma e um significado diferentes. Para nos limitar, consideraremos a violência no estado de natureza (Naturzustand), depois no Estado de direito (Rechtsstaat).

 

A noção de estado de natureza foi construída por teólogos medievais que desejavam determinar o que seria o homem desprovido da graça e sem pecado. De ficção puramente metodológica, dele se fez um estado real, o que homem que vivia antes da constituição de uma sociedade civil. Hegel conhecia duas interpretações muito expandidas em sua época. A concepção de Rousseau, hedenica, fazia os homens viverem em paz numa relativa independência e liberdade. A tese de Hobbes descreve o estado de natureza como perene violência em que cada um dos indivíduos quer dominar o outro. Hegel adota a posição de Hobbes e vais mesmo mais longe que o teórico inglês. Ele notou, com efeito, que a teoria do estado de natureza conduz sempre a admitir a existência de um direito mais justo e mais fundamental que todos os direitos reconhecidos a seguir pela sociedade:

 

                  “(...) imaginou-se   também um estado de natureza no qual o direito natural deve valer e diante do qual o estado de sociedade e do Estado exigiria e traria consigo uma limitação da liberdade e sacrifício dos direitos naturais”([6])

 

Para Hegel a passagem do estado de natureza ao estado da vida em sociedade, bem longe de ser uma limitação dos direitos individuais, é ao contrário o que permite escapar do arbítrio e da brutalidade. ([7]) Fora da vida social reinam a paixão e a violência. Nenhum direito se apresenta ali ou é possível. Hegel retoma a fórmula de Hobbes: “exeundum e statu naturae”. ([8])

 Deixar o estado de natureza não significa acabar com a violência. Com efeito, a filosofia do direito de Hegel que começa, acabamos de ver, com o abandono do estado de natureza termina com um retorno ao estado de natureza. E agora a posição de Hegel é difícil de admitir porque a violência de que se trata é a mais terrível e sobretudo porque esta violência é deliberadamente integrada à esfera do próprio direito. A crítica que se faz a Hegel de modo frequente de fundamentar o direito na força parece bem justificada.

 Os parágrafos sobre a “Soberania diante do exterior” bem como os do “Direito internacional” que o grande realista redigiu no fim da Filosofia do Direito seriam de um cinismo revoltante se não tivessem sido um pouco mais aceitáveis pela doutrina, aliás propriamente mítica, do Weltgeist (Espírito do Mundo). Com certeza Hegel não é culpado se existem guerras no mundo. Mas ele deve assumir sua responsabilidade por ter estabelecido uma demonstração racional da necessária guerra. Para ele a guerra não é um estado acidental e contingente: ela se inscreve na estrutura racional, a mais profunda, do Estado. Donde a afirmação paradoxal que o Estado, o mais perfeito e mais divino, traz em si a exigência da guerra. Visto que o Estado é o ser singular que nada reconhece acima de si, Hegel conclui que o encontro de dois Estados arrasta infalivelmente uma colisão impossível de regular juridicamente.

 A demonstração e a justificação racional da violência em nível de Estado repousa sobre duas condições. É preciso, de início, que esteja inscrito na própria natureza do Estado entrar em beligerância com um outro Estado. Pois Hegel não se limita a constatar que existem guerras revolucionárias, guerras de liberação nacional, guerras ideológicas nas quais o Estado mais evoluído elimina o que é menos avançado. Ela também não busca também compreender o sentido daquelas violências. Ele ensina, e é o que lhe valeu a reprovação indignada de muitos leitores, que o Estado, porque é a efetivação do direito se situa por isso mesmo fora da esfera do direito em si e para si. O Estado é a liberdade efetivada, a efetivação do direito quando considerado em relação aos seus membros. Ele é a fonte suprema da violência desde que posto em relação com outro Estado. Ora, situar-se fora do direito é retornar ao estado de natureza: 

 

“mas as relações dos Estados têm por principio sua soberania, eles se encontram uns em relação aos outros no estado de natureza e seus direitos  têm efetividade não numa vontade geral constituindo uma potência acima deles, mas em sua vontade particular a sua efetividade (ihre Wirklichkeit)”. ([9]) 

 O conflito entre Estados torna-se racionalmente necessário desde que não existe nem pretor nem tribunal supremo que possam resolver as diferenças. Hegel ignora todos os notáveis esforços dos grandes juristas do direito internacional, de Las Casas, Grotius, Pufendorf, como também afasta em algumas linhas o projeto kantiano da paz perpétua. Um direito dos povos que Imanuel Kant pensa fundamentar na federação dos povos é apenas um devaneio. Tal sociedade das nações postula o que ela deseja obter, o acordo de cada Estado. Ora, tal acordo resulta de uma livre adesão e repousa assim sobre motivos morais ou religiosos. ([10]) O que poderia o discurso moral contra o exercício da força?

 

Marcuse nota tristemente:

 

“Hegel se mostra tão cínico quanto Hobbes no capítulo sobre o Estado burguês, e chega como ele à recusa completa do direito internacional” ([11])

 Importa aqui sublinhar que a recusa do direito internacional confia ao acaso os sucessos e as derrotas, logo à pura violência, a criação ou desaparecimento do direito de um ou de vários Estados, logo, do conjunto dos direitos pessoais, familiares, jurídicos, econômicos, sociais dos membros que formam o Estado. Que os acasos de uma guerra decidam o que será o meu direito, é com frequência assim que se passa na história, é o que Hegel constatava em seu tempo tão agitado, e ninguém pode lhe criticar de ter-se recordado, mesmo em termos um tanto vivos. Pelo contrário, muitos não lhe perdoarão sua pretensa demonstração racional da guerra necessária. Há em Hegel um gosto bizarro em deixar cair ao ponto mais baixo da naturalidade o que se encontra no mais alto nível da racionalidade. A demonstração hegeliana da guerra não é nem mais legítima ou mais pertinente do que a demonstração hegeliana do monarca hereditário. Nos dois casos encontramos a mesma queda inadmissível do espírito para a natureza. Curiosa ilustração da teoria que mantém as duas extremidades que se atraem! O Estado, deus terrestre, fiador de todas as liberdades e de todos os direitos também é o Leviatã sem controle que pisa todas as liberdades e todos os direitos.

 

b.    No Estado de Direito (Rechtsstaat)

 

 

Qual é o estatuto da violência numa comunidade estatal fundada no direito? No estado de natureza a violência era a da luta implacável dos indivíduos ou Estados uns contra os outros. Agora a violência é do chefe carismático ou do revolucionário: o primeiro assegura  a transição do estado de natureza ao estada de cultura e o segundo derruba um Estado já organizado para colocar um outro em seu lugar. Ainda uma vez Hegel justifica racionalmente o recurso à força. Aqui ainda a força precede o direito, as agora não se trata, como antes, de uma simples força brutal.

 

Frederico II e Hegel formularam juízos diferentes sobre o Príncipe de Maquiavel. Mas pelo menos é curioso constatar que o rei da Prússia condena Maquiavel, enquanto Hegel se declara seu discípulo ardente. Hegel, com efeito, não está longe de atribuir a triste situação de seu país que não é mais um Estado, ao fato de que os alemães considerem Maquiavel como o pior dos males. Ele escreve:

 

“É assim que todos os Estados foram estabelecidos pelo poder eminente de grandes homens, não pela força física, pois muitos indivíduos são fisicamente mais fortes do que um só”. ([12])

 Nenhuma fundação do Estado sem recurso ao constrangimento. Mas tal força constrangedora, a do tirano ou do grande homem, se não é a violência física não ocorre entretanto sem o exercício da autoridade. é um misto de constrangimento e de autoridade legítima, de natureza e razão. Todos os grandes homens, e Hegel cita Teseu, Pisístrato, Robespierre, foram dominadores:

 

“Mas o grande homem tem algo nos seus traços que os demais podem o chamar seu senhor. Eles lhe obedecem contra sua vontade; é contra sua vontade que sua vontade é sua vontade”. ([13])

 Hegel assumiu completamente a lição de Maquiavel. É preciso ao fundador do Estado, logo da fonte do direito, a força do leão e a astúcia da raposa: assassinato, crueldade, perfídia, a forca e a espada. Tudo é justificado.

 

Seria então nos tempos modernos uma longínqua  retomada da tese de Trasímaco que afirmava :

 

“Sustento, eu, que a justiça nada mais é que o interesse do mais forte”([14])

 

De modo algum! Pois se é verdadeiro que o tirano exerce um domínio, mesmo violento e cruel, sua dominação visa aplicar o poder da lei. O tirano se justifica porque ele obriga os indivíduos à submissão diante da autoridade do direito que logo será codificado em texto jurídico. Quem me constrange só é um poder estranho a mim enquanto não compreendi que ele é na realidade um vigário da vontade universal. A violência do tirano não é pois a do déspota que dobra os indivíduos sob sua ferula, mas a do grande homem que age em nome da razão. Fundar o Estado, salvar o Estado, tal é o dever supremo pois o Estado é o direito em si e para si. A lição de Hegel é fácil de entender: o Estado é potência antes de se tornar poder. Ele não pode portanto possuir nenhum direito que não implique, numa hora ou outra, o exercício da violência. Mas desconheceríamos o sentido desses textos se acreditássemos ler neles que Hegel ensina que a força cria o direito. Ele apenas quer dizer que não há direito sem força.

 

Tal coisa é tão verdadeira que o tirano terá todo interesse em não crer que sua tirania encontra seu fim e justificação nela mesma. O tirano com certeza está fora do comum; entretanto sua divindade é apenas a divindade do animal. Desde que o tirano fundou o Estado ele não tem mais nenhum papel a desempenhar. Ele quer se manter? Será abatido, não porque –nota Hegel– ele será desprezado, mas simplesmente porque se tornou inútil. Robespierre passou por uma experiência assim, triste. ([15])

 

Não mais do que Rousseau Hegel não aceita admitir o direito do mais forte. Não mais do que ele, não aceita que a força, simples potência física, pudesse criar o direito. Melhor do que ele, no entanto, percebeu a importância do elo dialético que une força e direito.

 

II – Direito e liberdade

 

 

Até aqui a posição de Hegel nõa difere sensivelmente daquela defendida por Hobbes. É que o “divino terrestre” de um a mais de um traço comum com o “deus mortal” do outro. Mas quando se trata de definir o direito propriamente dito Hegel desenvolverá uma doutrina que por ser herdeira de Hobbes dela se apartará consideravelmente.

 

A introdução à Filosofia do Direito começa estabelecendo uma tal equivalência entre direito e vontade livre  que “a liberdade constitui a substância e a determinação-destinação do direito e que o sistema do direito é o domínio da liberdade realizada, o mundo do espírito produzido a partir de si mesmo, enquanto segunda natureza”. ([16])   Essa passagem de uma densidade rara contem, abreviadamente, toda a doutrina do direito. Mas como a compreender ? Hegel expôs certa concepção do direito na Fenomenologia do Espírito no parágrafo intitulado Rechtszustand, e na primeira seção Abstrakte Recht da Filosofia do Direito. Embora não haja entre os dois textos analogias seguras, convém os distinguir com o maior cuidado, caso oposto a interpretação que se dá da Filosofia do Direito será completamente errônea.

 

A passagem sobre o Rechtszustand descreve uma figura concreta da história mundial, a que surgiu com o Império Romano. Quem deseja explicar tal texto deve compará-lo menos com a Filosofia do Direito do que com a descrição da época romana contida nas Lições sobre a Filosofia da História. O texto sobre o Direito abstrato, embora contenha referências explícitas ao direito romano é muito mais fundamentalmente o primeiro momento da própria concepção jurídica de Hegel. É a resposta à teoria hobbesiana, retomada e modificada por Kant e Fichte, na espinhosa questão do direito natural. Quem se detém nas palavras  “direito abstrato” encontradas tanto no texto da Fenomenologia e na Filosofia do Direito, pode acreditar que se trata aí do mesmo direito. Mas tal é um amalgama muito complicado. Não há melhor meio para dar uma imagem inexata da concepção hegeliana do direito contida na Filosofia do Direito do que buscar citações nas passagens consagradas ao direito romano. O direito romano, pensa Hegel, aliás errando, é um direito puramente formal que conduz à violência. O direito abstrato da Filosofia do Direito é aquela rocha inabalável sobre a qual se fundamenta todo o edifício de sua Filosofia do Direito. É uma grande confusão tomar como equivalente uma figura histórica do passado em que a totalidade é dividida em uma multidão de pessoas privadas que se entredevoram e onde, por conseguinte pronunciar a palavra “pessoa” é a própria expressão do desprezo, e a ideia mais profunda dos tempos modernos, a de vontade livre, a ideia que está se efetivando sob a figura histórica do Estado constitucional.

 

Que haja um direito natural e que aquele direito seja distinto do direito positivo, Hegel nunca duvidou. ([17]) No entanto alguns contestam esta afirmação ([18]) A razão desse desacordo reside no equívoco da própria noção de direito natural :

 

“A expressão direito natural empregada comumente pela doutrina filosófica do direito contém a ambiguidade de saber se o direito está presente de um modo natural e imediato ou se o colhemos tal como ele se determina segundo a natureza da Coisa, ou seja, seu conceito. O primeiro sentido é o que se adotava outrora comumente....Mas, de fato, o direito e todas as suas determinações se fundamentam na personalidade livre, numa autodeterminação que é o contrário de uma determinação da natureza”([19])

 

Hegel nunca aceitou o direito natural no sentido de um direito objetivo fundado na natureza física dos seres. Tal direito, retomado de Aristóteles pelo pensamento medieval, constitui não o mundo do direito mas o da natureza. Mesmo nos seus primeiros textos políticos Hegel fundamenta o direito sobre um ser de cultura, a Polis grega.  Entretanto, é verdade :  na medida em que a vida ética da Cidade grega era a substância imediata, ela estava ainda muito próxima da ordem natural das coisas. Uma tal concepção se baseava no conceito aristotélico de natureza, entendido como princípio interno de uma atividade teleológica. O ser vivo que se objetiva no Povo ainda é entendido como Natureza. Assim, quem deseja conhecer a verdadeira posição de Hegel fará bem se esquecer a afirmação de Rosenkranz que sustentava ser o artigo “Sobre o Direito Natural” uma exposição “mais bela, mais fresca e parcialmente mais verdadeira” ([20]) do que a encontrada mais tarde em Berlim. ‘

 O primeiro texto que testemunha a ruptura definitiva de Hegel com a antiga concepção do direito natural é o das lições sobre a Filosofia do Espírito., professadas em Iena no ano de 1805. É graças à intensa atividade especulativa do período em que Hegel elabora seu conceito de negatividade dialética que se torna doravante possível introduzir na filosofia política uma noção de reconhecimento que não seja mais do puro negativo abstrato, o que conduziria a um impasse, mas um negativo qualificado, a produção de um segundo mundo, o mundo do direito. ([21])  Hegel pode agora renunciar completamente à Natureza porque está com a posse do tema da liberdade:

 

“O fato de que uma existência em geral seja a existência de uma vontade livre, eis o direito. Por conseguinte o direito, de modo geral, é a liberdade como ideia”([22])

Ao colocar no centro de sua reflexão política a noção de liberdade, Hegel se aproxima de Kant o qual ele havia severamente criticado em todos os seus primeiros escritos. Num sentido, a noção de liberdade é uma ideia muito antiga. Hegel gosta muito de repetir que ela foi a grande descoberta do cristianismo que ensinava a infinitude da pessoa:

 

“Há bem 1500 anos que graças ao cristianismo a liberdade da pessoa começou a se expandir e se tornou princípio universal de resto para uma pequena parte da humanidade” ([23])

 

Mas em outro sentido a ideia de liberdade é muito recente, ela acaba de ser descoberta :

 

“O direito da particularidade do sujeito para encontrar sua satisfação ou, o que dá no mesmo, o direito da liberdade subjetiva constitui o ponto de mudança e ponto médio ao redor dos quais se diferenciam a Antiguidade dos Tempos modernos”. ([24])

 

Para melhor compreender o significado do que Hegel empreenderá, convém lembrar que se desde Aristóteles e até o fim da Idade Média direito e política eram um só, a partir do século XVI o jus civilis se separa do jus naturalis. Daí a distinção da qual o subtítulo com que Hegel deu à sua obra –Naturrecht und Staatswissenschaft  é testemunho. Unificar as duas disciplinas (direito natural e ciência política) numa única Filosofia do Direito, tal foi, na sua profunda originalidade, a tarefa que Hegel se impôs. Tratava-se de introduzir a liberdade na substância ética da Cidade grega.

 O tema da liberdade, tal como Kant acabou de constituir, torna-se o princípio do direito hegeliano:

 “O imperativo do direito é portanto: Seja uma pessoa e respeite os autros como pessoas” ([25])

 Podemos nos surpreender ao notar Hegel se referir assim à noção kantiana de pessoa que passe por ser a mais perfeita expressão da abstração mais total. Mas precisamente a efetivação da pessoa na família, sociedade, Estado, implica que seja inicialmente extraída a noção de pessoa em sua pureza e verdade essencial. Precisamente, o erro dos sistemas jurídicos antigos foi só considerar as pessoas segundo suas condições sociais particulares de Pater familias, patrício, escravo, etc... o que conduzia a conhecer apenas os direitos desiguais segundo diferentes estatutos. Compreende-se assim que a ‘abstração’ da pessoa kantiana seja a grande conquista do direito moderno:

 

“Pertence à cultura, ao pensamento como consciência do singular na forma da universalidade, que o Eu seja colhido como pessoa universal em que todos são idênticos. O homem vale assim, porque ele é homem”. ([26])

 A Revolução Francesa passou por aí, podemos ver. Entretanto nào acreditemos que Hegel visa aqui a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, pois aí não há ainda nenhum direito jurídico e a pessoa da qual se fala não é um cidadão. Trata-se, não dos direitos do homem, mas do direito do homem. Hegel viu, graças à influência de Kant, que está na abstração máxima a promessa da mais elevada concretude.

 

A marcha para tal concretude, Kant a havia descoberto após Hobbes e Rousseau, na necessária limitação das liberdades individuais no interior da sociedade. Donde as teses de um pacto, uma convenção ou contrato social. Hegel se opõe com a maior determinação ao que considera como o maior erro de sua época. Os defensores do direito natural pensavam que a efetivação legítima da liberdade da pessoa encontrar-se-ia no direito de se unir para fundar um Estado. Hegel aponta aí o atentado mais pernicioso à dignidade e à majestade do Estado. Os defensores do direito natural afirmavam que o contrato era o único modo para que os indivíduos pudessem escapar da tirania e de um poder imposto do exterior. Hegel recusa o contrato porque ele conduz à opressão. Enquanto para Rousseau o contrato social realiza plenamente a ideia de liberdade, ele é, para Hegel, apenas a perda da liberdade.

 

Hegel, que possui uma consciência tão viva de que o ideal da liberdade deve se incarnar na vida política moderna, se afasta da sua cara Cidade grega ([27]) recusa admitir que o Estado, fundamento último do direito, não possa depender da livre iniciativa da pessoa livre? Se o princípio da realização das minhas liberdades escapa ao exercício de meu direito e da minha liberdade, não seria necessário concluir que um poder dominador se impõe a mim?

 

Hegel apresenta sérios argumentos contra essa tese. O contrato social, diz Rousseau, permite a realização da liberdade porque cada um renuncia à sua “liberdade natural” para entrar no estado civil: obedecendo à lei que ele se prescreveu, ele só obedece a si mesmo. Hegel começa notando que não se trata de passar do estado de natureza ao estado de cultura porque  já estamos neste último: só o indivíduo livre pode querer a liberdade.

 

Ademais Hegel suspeitou perfeitamente, o que será em seguida magistralmente desenvolvido por Benjamin Constant ([28]) que a teoria do contrato social conduz inevitavelmente à tirania do número, a menos que a minoria se recuse a obedecer, e assim sofre a unidade e a integridade do Estado:

 

“Não há nenhuma necessidade de que todos queiram a mesma coisa; nenhum obrigação para que a minoria se submeta à maioria, mas cada um tem o direito  –com efeito, ele é posto, reconhecido como vontade singular positiva–  de se retirar e entrar em acordo com os outros sobre alguma outra coisa” ([29])

 A teoria contratualista que espera fundar o Estado no consentimento de cada um e declara que ela é a única a reconhecer a cada um o pleno desenvolvimento de sua liberdade é impotente para fundar a obrigação, ou se ela fundamenta é oprimindo a minoria. ([30])

 A teoria do direito natural, na medida em que ela desemboca na teoria do contrato social, mal conhece a verdade percebida pelos gregos, em especial por Aristóteles: “O Todo é por natureza anterior às partes”. ([31]) O Estado não precisa ser constituído pelo consentimento mútuo porque ele sempre já está lá. Nada temos portanto a fazer com um pretenso contrato originário mesmo que ele seja tacitamente expresso. ([32]) Hegel recusa a teoria contratualista por razões políticas evidentes. Esta teoria mal conhece a verdadeira natureza do Estado, pois ela o fundamenta no arbítrio das opiniões puramente subjetivas. O contrato social é uma invenção dos “burgueses” que de nenhum modo são “cidadãos”. Ele exprime pouco a ideia de liberdade e mais trai um ideal libertário. Ele conduz em todo caso a atomizar o Estado. É o livre desencadeamento dos indivíduos cuja efetivação final reside no Terror.

 

Hegel também possui argumentos estritamente especulativos para se por contra a teoria contratualista do Estado. Os Antigos e os Medievais tinham fundado o direito sobre a própria Natureza. Os teóricos do século XVI abandonaram a noção de natureza. Foi preciso então renunciar a um fundamento. Tal é, penso eu, o sentido da separação kantiana entre moralidade e legalidade. Como Hegel não quer uma tal ruptura, ele deve portanto buscar um novo fundamento para o direito. Tal fundamento ele o encontra no instante mais elevado da liberdade efetivada, no Estado. Toda filosofia especulativa de Hegel é, aliás, construída na base ao argumento ontológico que afirma que apenas o perfeito é para si mesmo sua própria razão de ser. Na ordem política o perfeito é o Estado. É portanto no Estado, o divino terrestre, que todos os direitos tem seu fundamento último. Fazendo assim Hegel pensou dar uma solução satisfatória à questão do direito.

 

Conclusão

 

Parece que podemos agora compreender a causa de a filosofia do direito de Hegel ser apresentada ora como doutrina da força, ora como doutrina da liberdade. Hegel não nem que a força cria o direito nem que a liberdade é a fonte do direito. Ele recusa escolher porque quer pensar o real sem deixar o real. Sua doutrina se mantém na dupla afirmação: o direito é a positividade do que é; a positividade do que é, ela mesma é racional.

 

Aristóteles conhecia dois grandes tipos de ação: a fabricadora (ποίησις) e a ação imanente (πρᾶξις)  ([33]). Esta última, porque visava o Bem ( Ἀγάθων, ᾱ̓́ρῑστον) tinha um caráter normativo. Hegel, ao contrário, se não apaga completamente a distinção entre o fazer e o agir, os integra em sua Filosofia do Direito de tal modo que o agir moral não tem mais o papel de fundador e fundamental que ele tinha na filosofia de Aristóteles.

 

Do mesmo jeito Aristóteles havia muito explicitamente distinguido no tratado da justiça o  physikon dikaion e do dikaion nomikon : o direito segundo a natureza e o direito segundo a lei. Decisão capital pois permite julgar a lei com a medida da natureza. Num sentido Kant, graças à oposição entre Moralidade e Legalidade, se esforçou –embora com menor força do que Aristóteles ou seus discípulos medievais– por não deixar a lei sem relação à moral. Ora, Hegel não retém a distinção de Aristóteles nem a de Kant. Resulta que a sua definição do direito não implica nenhuma referência ao que é justo. A equivalência bimilenar entre direito e justiça se apaga. Se o Jus não mais se diz a partir da Justitia o direito não tem outra fonte a não ser a lei positiva do legislador. Hegel renuncia ao jussum quia justum para se apegar ao justum quia jussum (é legal porque justo; justo porque legal). Pode-se escrever, não sem razão :

 

“Hegel sustenta que uma lei é justa, ou seja racional, pelo simples fato de ser uma lei” ([34])

 

Procuraríamos em vão textos em que Hegel se põe a questão da desobediência à lei injusta. É que de uma parte ele desconfia da intenção puramente subjetiva dos indivíduos, e de outra parte o abandono de toda referência à uma naturez aqualquer faz com que não exista nenhum meio de determinar o que é justo em si.

 Os teóricos do direito político se interrogam constantemente sobre a legitimidade do poder. A maioria dos tratados medievais ou do Renascimento contém um capítulo consagrado à justificação do tiranicídio. Para Hegel, pelo contrário, o problema da legalidade do poder não se coloca porque a justificação do poder é regulada pela força. Um Estado de fato é sempre um Estado de direito. Não poderia ser de outro modo numa filosofia política que deu-se por princípio supremo a aceitação do que é.

 

No entanto Hegel ficaria surpreso se lhe dissessem que sua doutrina conduz ao positivismo histórico. É que para ele só chega à existência o que é penetrado pela razão: a empiricidade racional. Tal é o sentido do muito célebre enunciado do prefácio :

 

“Was vernünftig ist, das ist wirklich; und was wirklich ist, das ist vernünftig”

 

R. Haym pensa que a primeira parte (tudo o que é racional é efetivo) apresentava um sentido revolucionário, enquanto a segunda parte (tudo o que é efetivo é racional) era conservadora. ([35]) K. Rosenkranz contesta tal interpretação pouco conforma à letra do texto. Ele pensa  que o segundo membro da frase era apenas a consequência do primeiro: Hegel queria assim exprimir o caráter revolucionário da efetividade racional. ([36])

 

Todos os que esforçaram por fazer justiça a Hegel notaram que seria preciso prestar atenção à advertência contida na introdução da segunda edição da Enciclopédia de 1827. Aquele texto precisava ser preciso distinguir entre a existência acidental e puramente contingente e a existência verdadeiramente efetiva. ([37])  Indicação sem dúvida preciosa mas que só elimina a dificuldade conferindo um sentido puramente tautológico à célebre fórmula. Nada permitiria determinar se tal realização concreta do direito seria efetiva ou não; logo, se ela é justa ou injusta.

 

Nos últimos meses do ano passado foram publicadas as Lições proferidas por Hegel em 1817 em Heidelberg (manuscrito de Wannenmann) e em 1818 em Berlim (manuscrito de Homeyer). Hegel ditou aos estudantes :

 

“Was vernünftig ist muss geschehen”(o que é racional deve necessariamente ocorrer)([38])

 

Para compreender o significado da frase é preciso colocá-la em seu contexto.  Hegel acaba justamente de escrever que nada no céu ou na terra pode impedir que se realize o Estado constitucional que acabará com o despotismo da monarquia absoluta. Era postular a equivalência entre princípios racionais do direito e o desenvolvimento histórico daqueles princípios.

 

A posição de Hegel aparece agora em toda sua clareza. Se o direito é racional é porque a própria história é racional. Finalmente, a filosofia do direito de Hegel é menos uma análise da noção normativa de direito do que uma fenomenologia do direito, isto é, uma descrição das diferentes etapas históricas da realização da liberdade. O fundamento último da racionalidade do direito é portanto a história. Quanto mais Hegel reflete sobre o direito, mais ele se afasta de toda normatividade devida ao direito natural. ([39])  

 

Assim, no final de sua evolução política, Hegel acaba ensinando que o conteúdo do direito é função do caráter nacional de um povo. O que retorna a dizer que o fundamento do direito é transjurídico pois ele reside na História. Não apenas os kantianos se preocupam com semelhante deriva.

 

 

 

 

 

 

 Notas 



[1] “Logo terei 50 anos, passei deles 30 em tempos tempestuosos nos quais se alternavam o medo e a esperança, eu esperava que o medo acabasse e a esperança acabassem. E agora sou obrigado a ver que tudo continua assim e, mesmo, nas horas mais sombrias, pensamos que tudo piora”(Hegel, Carta a Creuzer, 30/outubro/1819, in Correspondência na tradução de J. Carrère, Paris, 1963, T. II, p. 195).

[2] “O verdadeiro Hegel era aquele modesto professor de Iena, aigo de Holderlin, que salvara sob um pedaço de seu paleto sua Fenomenologia do Espírito no momento em que Napoleão entarva na cidade; naquele tempo sua filosofia não conduzia ao quietismo hindú nem à justificação dos regimes políticos existentes, nem do cristianismo prussiano”(A. Herzen, Byloe i dumy, in Polnoe sobranie socicenenij i pisem, Moskva, 1919-1925. T. XIII, p. 14); citado por G. Planty Bonjour in Hegel et la pensée philosophique en Russie 1830-1917, La Haye, 1974. p, 132.

[3] Th. Adorno, Dialectique négative, Paris, 1978, p. 242.

[4] Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, § 1. Nota RR: o termo usado por Hegel é Verwirklichung (efetivação). Traduzir tal vocábulo como “realização”atenua o sentido histórico contido na palavra Wirklichkeit, algo preso à atividade humana no tempo e no espaço, na finitude. A Ideia do direito se efetiva históricamente em práticas determinadas. Assim, nenhum direito é “real” na sua completude, pois sempre pode ser atualizado. Esta lado dinâmico, presente em Marx sobretudo na Tese XI contra Feuerbach,  impede aplicar a Hegel a teoria crua do realismo político e do direito. 

[5] Ibd.. § 30, Nota.

[6] Hegel, Enzyklopädie der philososphischen Wissenschaften in Grundrisse, § 502, Nota.

[7] “um estado de natureza é um estado de ação violenta e de injustiça do qual o mais verdadeiro que se pode dizer é que precisamos dele sair. A sociedade é, ao contrário, o estado no qual o direito tem sua efetividade (Wirklichkeit) ; é preciso sacrificar e limitar é precisamente o arbítrio e a ação violenta do estado de natureza”(Ibid. § 502. Nota).  Das Recht der Natur ist darum das Dasein der Stärke und das Geltendmachen der Gewalt, und ein Naturzustand ein Zustand der Gewalttatigkeit und des Unrechts, von welchen nichts Wahereres gesagt werden kannm dass aus ihm herauszugehen ist.

 

[8] Citação de um artigo sobre o tema, não posta pelo autor mas por Roberto Romano : Kersting, Wolfgang : Das ‘Ideal des Hobbes’ Der Kampf und die Anerkennung “ https://www.steiner-verlag.de/uploads/tx_crondavtitel/datei-datei/9783515093989_p.pdf

 

[9] Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, § 333. Cf. também Propedêutica Filosófica, I, parágrafo 31. Nota acrescentada, que não é do autor mas de Roberto Romano: é neste contexto que segue a célebre afirmação hegeliana de “não existe nenhum Pretor para dirimir as diferenças entre os Estados, mas no máximo árbitros ou mediadores os quais, no entanto, só podem intervir de modo contingente, de acordo com a vontade particular de cada um dos Estados e segundo seu interesse”. Philosophie des Rechts, § 333, adendo. Segue-se a crítica do Projeto de Paz Perpétua proposto por Imanuel Kant. Note-se que Hegel retoma aqui o antigo tema, célebre na Raison d’État, do Interesse que move governantes, países, particulares. Sobre o assunto, o grande texto atual é a  monumental edição crítica encetada por Christian Lazzeri:  De l'intérêt des princes et des États de la chrétienté. Henri de Rohan.  Edition établie, introduite et annotée (Paris, Presses Universitaires de France, 1995). Ainda de muita utilidade o livro de Meinecke:  edição gratuíta na internet “Machiavelism the doctrine of raison d’état and its place in Modern History. https://archive.org/details/machiavellismdoc00mein

 

 

[10] De modo ainda mais radical Hegel nota em uma lição de Iena que para arbitrar não pode haver tribunal supremo composto por Estado em federação. Uma federação universal conduziria ou ao domínio de um só povo sobre todos os demais ou à fusão de todos num só povo. Ora, tal monarquia universal é pura utopia porque supõe que seja abolida a individualidade dos povos. (CF. Hegel, Philosophie de l ‘Esprit, 1805, trad. G. Planty-Bonjour, p. 107). Nota de Roberto Romano: ainda a presença de Hobbes. No Leviatã, ninguém que possua um interesse próprio no assunto pode ser árbitro. É o caso da posição de Hegel: no trato entre Estados, todos tem interesse próprio. Daí, nenhum pode exercitar uma arbitragem aceitável pelos demais.

[11] H. Marcuse, Raison et révolution, Paris, 1968, p. 266.

[12] Hegel, La Philosophie de l ‘Esprit, 1805, p. 89. Aqui outro tema essencial à raison d’État, agora na vertente que desvela o “segredo”da dominação política. Ele pode ser examinado no Discurso sobre a Servidão Voluntária de E. La Boétie e em outros textos renascentistas.  (Roberto Romano)

[13] Ibid., p. 89.

[14]Platão,, República, Livro I, 338c. Sustento, eu, que a justiça nada mais é que o interesse do mais forte:  φημὶ γὰρ ἐγὼ εἶναι τὸ δίκαιον οὐκ ἄλλο τι  τὸ τοῦκρείττονος συμφέρον (a palavra essencial é κρείττονος, que vem de κρείσσων, mais forte e poderoso. No diálogo Teeteto 177d se diz que em “relação à justiça toda lei que os Estado fazem, porque eles consideram justa, são justas enquanto eles são fortes”.   Cf. Leis, 714 a.

 

 

 

 

[15] “Tivesse ele (o tirano) sido prudente e abandonaria ele mesmo sua tirania desde que ela se tornou supérflua. Mas sua divindade é apenas a divindade do animal, cega necessidade que justamente merece ser detestada como o Mal. Robespierre agiu assim. Sua força o abandonou porque a necessidade o tinha abandonado, e então ele foi abatido com violência”. (Hegel, La Philosophie de l’Esprit, 1805, p. 91).

[16] Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, §4. “...so dass die Freiheit seine Substanz und Bestimmung ausmacht und das Rechtssystem das Reich der verwirklichten Freiheit, die Welt des Geistes aus ihm selbst hervorgebracht, als aine zweite Natur, ist”. Novamente: o autor fala em “liberdade realizada” mas o termo usado por Hegel é “verwirklichten”, ou seja, efetivada. O direito não pertence diretamente ao campo do real, mas do que os homens fazem nos limites do tempo e do espaço.

[17] Ibdi., §3.

[18] “Não poder-se-ia tratar, para Hegel, de assinalar à filosofia este único direito que resultaria da ‘natureza’ das coisas  –o direito natural–  e abandonar o direito positivo nas mãos dos juristas.  Para Hegel só existe um direito: o positivo”(B. Quelquejeu, La Volonté dans la Philosphie de Hegel, p. 229).

[19] Hegel, Enzykopadie, §502, Nota.

[20] K. Rosenkranz, G.W.F. Hegels Leben, pp. 173-174 . Há uma excelente tradução italiana da biografia escrita por Rosenkranz : Vita di Hegel, trad. Remo Bodei (Firenze, Mondadori, 1974). (RR)

[21] “O direito contém a pura pessoa, o puro ser reconhecido. Assim (os indivíduos) não estão no estado de natureza, mas mergulhados no ser aí (Dasein); porque é homem (ele está) em seu conceito, entretanto no estado de natureza ele não está no seu conceito, mas enquanto ser natural, ele está em seu ser aí (Dasein)”. Hegel, La Philosophie de l ‘Esprit, 1805, p. 41, nota 61. A importância da elaboração especulativa em Iena foi bem exposta pela Senhora Souche-Dagues (Cf. D.Souche-Dagues, Logique et politique hégéliennes, pp. 11-70.

[22] Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts,§29. “Dies, dass ein Dasein uberhaupt Dasein des freien Willens ist, ist das Recht.– Es ist somit uberhaupt die Freiheit, als Idee”.

[23] Ibid., § 62, Nota.

[24] Ibid., §124. “....das Recht der subjektiven Freiheit macht den Wende –und Mittelpunkt in dem Unterschiede des Altertums und der modernen Zeit”.

[25] Ibid. §36. “sei eine Person und repektiere die anderen als Personen”.

[26] Ibid. §209, nota. Hegel adianta algo que nosso autor deixa de lado mas importa muito em nossos dias de intolerância religiosa, política, ideológica: “Der Mensch gilt so, weil er Mensch ist, nicht weil er Jude, Katholik, Protestant, Deutscher, Italiener etc.”. Ou seja : “O homem vale porque é homem, nào porque é judeu, católico, protestante, alemão, italiano, etc”.

 

[27] Hegel, Filosofia do Espírito 1805, p. 95.

[28] B. Constant, De la liberté des Anciens comparée à celle des Modernes (Paris, 1819).

[29] Hegel, La Philosophie de l’Esprit 1805, p. 89.

[30] “Wo die Minorität der Majorität gehorchen muss, da ist keine Freiheit” (Hegel, Vorlesungen uber die Geschichte der Philosophie, éd. H. Glokner, Bd III, S. 528.

 

 

[31] Ibdi., pp. 88-89.

[32] Hegel, La Philosophie de l’Esprit 1805, p. 88, nota 9 (onde se encontra a citação de Aristóteles).

[33] Ética a Nicômaco, livro I, capítulo 1, 1094 a 1.

[34] N.Bobbio, “Hegel und die Naturrechtslehre” in Materialien zu Hegels Rechtsphilosophie, Frankfurt/Main, 1974, t. II, p. 93.

[35] R. Haym, Hegel und seine Zeit, p. 369.

[36] K. Rosenkranz, G.W.F. Hegels Leben, p. 335.

[37] Enzyklopädie ,Einleintung, §6. “Na vida comum ocorre nomear acidente como efetividade (Wirklichkeit) e tudo o que pode passar pela cabeça como o erro, o que é mau, e tudo o que se alinha a tais coisas, be como toda existência, por mais miserável e efêmera que ela possa ser. Mas até para para o sentimento comum uma existência contingente não merece ser enfaticamente qualificada como efetividade (Wirklichkeit). Citação acrescentada por RR.

[38] Hegel, Die Philosophie des Rechts (Mitschrift Wannenmann, Heidelberg 1817/1818). Ed. K-H Ilting, Stuttgart, 1983, p. 157. Esta edição existe na Biblioteca do IFCH, Unicamp. RR

[39] Hegel substituiu a ideia de que o direito positivo é irracional e ilegal quando em conflito com os princípios do direito natural pela ideia de que as diferenças entre o direito natural e o direito positivo devem ser entendidas em termos das respectivas circunstâncias históricas” (K. H. Ilting, artigo “Naturrecht” in Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland, T. IV, (Mi-Pre), Stuttgart, 1978, p. 308. RR: Para uma ampla análise do tema, cf. Horst Dreier, “Naturrecht und Rechtpositivismusm Pauschalurteile, Vorurteile,Fehlurteile”. Em PDF no seguinte endereço eletrônico:  https://www.jura.uni-wuerzburg.de/fileadmin/02160100/Lehrveranstaltungen/WS_2015_16/Rechtsphilosophie_vertieft_/Dreier__Horst_Naturrecht_und_Rechtspositivismus_2007.pdf