Flores

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quinta-feira, 19 de abril de 2018

Algumas Considerações sobre o silêncio e a palavra. 
Conferência dada por Roberto Romano no Instituto de Artes da Unicamp, 2006



A poesia contemporânea tateia o silêncio numa espécie de paranóia da palavra escrita, desconfiança renovada em indefinidos modos desde Platão. Sabemos bem a crítica do faraó Thamus ao deus Teuth, o fabricante das letras. Sócrates,  no Fedro ( ) recorda que em tempos pretéritos muitos sábios escreveram sobre a retórica, incluindo a sábia Safo. No entender de Sócrates um de seus interlocutores, Lísias, escreve em demasia, sendo preciso aprender a julgar os textos para não lher dar uma consideração maior do que a merecida por eles.   Os estadistas, pessoas prudentes, não costumam escrever e deixar falas escritas, pois elas poderiam ser examinadas com muito rigor pelos pósteros. Se escrevem, tentam ser exímios na arte das letras. É assim que Sócrates enquadra o invento chamado escrita. Esta seria ideada pelo deus Teuth, que por sua vez a comunicara ao faraó Thamus, soberano de Tebas. O rei não se entusiasma com o feito e diz temer que a escrita, em vez de tornar as pessoas mais sábias as prejudique, fazendo-as crer que sabem o que enxergam nas letras. E temos o mais conhecido símile entre artes e texto, um lugar comum da Grécia clássica, entre o significado das palavras redigidas e copiadas e as artes: "Os produtos da escrita são como os da pintura. Interroguem os quadros; eles responderão por um majestoso silêncio. Interroguem os livros; eles sempre darão a mesma resposta. Vocês podem acreditar, ao escutá-los, que eles são muito sábios. Mas, uma vez escrito, um discurso gira por todos os lados, mas nãos dos que o compreendem como daqueles para os quais eles não foram escritos. Ele nem sabe a quem deve falar, ou com quem deve se calar. Desprezado ou atacado injustamente, ele sempre precisa de um pai que o socorra; pois ele não resiste nem ajuda a si mesmo". O poeta, o prosador, todos corrigem o que escrevem. Mas todos eles precisam da palavra interior, e devem cultivá-la com enorme atenção, para merecer o nome de filósofo, o amante da sabedoria.

Saltemos os milênios que nos separam de Sócrates e consultemos Camille Mauclair, o amigo de Mallarmé: "O credo do artista moderno, é o silêncio". Também Octavio Paz : "a atividade poética nasce do desespero diante da impotência da palavra e culmina no reconhecimento da onipotência do silêncio". O mundo moderno, ainda segundo Paz, é presa do "discurso do afásico". Com o esfacelamento da teologia e do sistema newtoniano do universo, a escrita que deles falava também se desintegra, sendo que hoje a função profissional do escritor é a de ser "jardineiro de epitáfios".

Esses testemunhos foram recolhidos por Diana C. Niebylski, num bonito livro (se é possível, com tais confissões, escrever e publicar...) intitulado O poema no fio da palavra: os limites da linguagem e o uso do silêncio na poesia de Mallarmé, Rilke e Vallejo. ( ) Na verdade, tal desagregação da escrita prória à racionalidade mecânica rumo ao silêncio teve forte impulso no romantismo e, mesmo, das Luzes no século 18. ( )

Ao se referir à superstições verbais (o desejo de manter o próprio nome em segredo, por exemplo), autores que publicaram nos inícios do século 20 afirmam que o mesmo século "sofre de uma forma ainda mais penosa do que qualquer época anterior" naquele ponto. "Devido ao desenvolvimento dos métodos de comunicação e à criação de muitos sistemas simbólicos especiais, a forma da enfermidade se alterou consideravelmente; e, além da peculiar sobrevivência da apologética religiosa, toma agora formas ainda mais insidiosas que no passado. As influências que favorecem sua ampla difusão são a tediosa complexidade do aparato simbólico a nós disponível hoje; a posse, entre os jornalistas e letrados, de um imenso vocabulário semi-técnico, e sua falta de oportunidade, ou de vontade, de buscar o seu uso adequado; o exito de pensadores analíticos em campos limítrofes aos das matemáticas, tornando ainda mais pronunciado o divórcio entre símbolo e realidade e mais atrativa a tendência à hipóstase ; a extensão de um conhecimento das formas mais toscas da convenção simbólica (os três R inglêses, ler, escrever, aritmética) combinado com um alargamento do abismo entre o público e o pensamento científico de sua época; e finalmente, a exploração, com fins políticos e comerciais, da imprensa, mediante a disseminação e reiteração dos clichés". ( )


Com esse comentário, somos conduzidos a outro limite da escrita, da fala e do silêncio, o equívoco. A filosofia, desde seus primórdios, tenta arrancar o equívoco da linguagem comum e dos enunciados científicos. No "Plano de Universidade para o governo da Rússia", Diderot imagina a geometria como "a melhor e a mais simples de todas as lógicas, a mais própria para fornecer inflexibilidade ao juízo e à razão". Os mal-entendidos da linguagem seriam reparados pelas matemáticas: "se nossos dicionários fossem tão bem feitos ou, o que é o mesmo, se as palavras usuais fossem tão bem definidas quanto as palavras 'ângulos' e 'quadrados', sobrariam poucos erros e disputas entre os homens. É a este ponto de perfeição que todo trabalho sobre a língua deve tender”. O pensador logo percebeu que o seu alvo, como o de Platão, Aristóteles, bem como dos filósofos medievais e modernos, era inatingível. Mas a tarefa de sanar a lingua escrita e falada continua hoje, em setores como a filosofia e a lógica determinadas por escritores como Carnap, Quine, Wittgenstein e outros. Ainda agora no entanto, em especial no plano da ética e da política, segue válida a advertência diderotiana : "é do idioma de um povo que precisamos nos ocupar, quando queremos dele fazer um povo justo, razoável, sensato. Isto é tão importante que, se o senhor refletir um momento sobre a rapidez incompreensível da conversa, o senhor conceberá que os homens não profeririam vinte frases num dia, se eles se impusessem a necessidade de ver distintamente em cada palavra por eles dita qual é a idéia ou a coleção de idéias que a ela se apegam". ()


Em Ser e Tempo (§ 37) Heidegger analisa a fala equivocada (Die Zweideutigkeit) não apenas entre cientistas e público, mas na própria "comunidade acadêmica". O saber, na era de sua divulgação máxima, tornou-se dificilmente distinto das suas várias expressões vulgares. Com a imprensa "tudo assume a aparência de ter sido o verdadeiro captado, colhido, expresso, mas no fundo, nada o foi". Num mundo onde a informação se acelera ao máximo, a parolagem dogmática de intelectuais e jornalistas é a norma : "Cada um, não apenas conhece e discute o que se passou e o que está vindo, mas cada um sabe também falar sobre o que deveria ocorrer, sobre o que ainda não ocorreu, mas deveria 'evidentemente' ser feito. Cada um sempre farejou e pressentiu de antemão o que os demais farejaram e pressentiram. Este modo de seguir pelos traços e pelo ouvir-dizer ... é insidioso o bastante para que o equívoco faça entrever ao existente possibilidades que, ao mesmo tempo, ele abafa no germe". Na sociedade da informação os termos científicos e acadêmicos circulam de modo imediato. ( )

Heidegger, como boa parte dos nossos filósofos contemporâneos, se nutre de Platão e dos seguidores de Platão, embora faça parecer que os combate. Citarei apenas dois textos, dos mais influentes na formação da ética ocidental, do helenismo aos nossos dias. São dois tratados complementares de Plutarco, um sobre a fala em excesso e imprudente e outro sobre a curiosidade. No primeiro ( ) o médico e filósofo Plutarco propõe alguns remédios para a cura do equívoc e da garrulice. Trata-se de uma tarefa quase impossível, pois o tratamento supõe o uso do remédio (pharmakon) que, no adoecido de palavrório, perdeu validade. De fato, o que fala em demasia gastou o poder do logos. Para retirá-lo de sua doença é essencial o uso do mesmo logos. Como fazê-lo ouvir a razão (na lingua grega, logos e razão identificam-se) se ele apenas fala e não ouve e, portanto, não arrazoa antes de jogar palavras ao vento ? Tal é o primeiro sintoma, diz Plutarco, do nosso adoecido : “a lingua mole torna-se impotência do ouvido”. Mas é pior: a surdez do falador é deliberada, o que o faz criticar a natureza que lhe deu apenas uma lingua e dois ouvidos. ( ) Na parolagem sem freios a cura é árdua. O remédio a ser usado, neste caso, é o próprio veneno: trata-se do logos, ele mesmo doente. Se as demais insanidades podem ser curadas pela palavra ou podem ser entendidas (8 ), neste caso a situação é “embaraçosa”, como traduz Amyot, ao ler o paradoxo inicial do texto plutarquiano. O logos adoecido, fluxo instável, não tem solidez alguma. No acometido de logorréia ele é menos remédio e mais veneno. Naquelas pessoas só a boca opera, enquanto o ouvido permanece trancado.

A palavra tem como serventia trazer a credibilidade. Se ocorre uma inflação de palavras, elas perdem força. O perigo maior é quando à garrulice somam-se outras doenças, como o culto do vinho. “O que está no coração do sóbrio está na lingua do ébrio”. Dos locais a serem temidos, quando um governo possui tagarelas a seu préstimo, a barbearia é a mais ameaçadora. O rei Arquelau respondeu assim ao barbeiro gárrulo que lhe perguntou como desejava cortar o cabelo : “em silêncio!”. Marius dominava a região de Atenas, mas um bando de velhotes, conversando no barbeiro, deu a entender aos espiões que um setor da cidade estava desguarnecido. Sylla, sabedor do ponto fraco, ataca à noite por ele e quase arrasou a cidade, a qual ficou cheia de cadáveres ao ponto de um riacho de sangue invadir o Cerâmico.  Quando ocorreu a conspiração para assassinar Nero, um inconfidente ao ver passar certo prisioneiro rumo à cela, cochichou para o infeliz que ele deveria tudo fazer para resistir um dia a mais, pois então estaria libertado. O condenado achou de bom aviso contar o que ouviu para Nero. O resto é conhecido. Conselho de Plutarco: “se deixas escapar o segredo para depositá-lo em outra pessoa, recorres à discreção  alheia, mas renuncias à tua. Se o parece parece contigo, tua perda é justa; se ele for melhor do que tu, salvas-te contra toda lógica ao encontrar, para teu bem, um outro mais seguro do a tua pessoa. ´mas o amigo é um outro eu !´ ( ) Sim, mas ele também possui um amigo, a quem confidenciará… e que confiará em outro… (…) a palavra que permanece na primeira pessoa é um segredo de verdade, mas desde que passou para uma segunda, adquire o estatuto de de rumor público”. 

O texto de Plutarco traz muitos exemplos unidos aos rumores políticos. O Senado romano manteve reuniões secretas e a mulher de um senador exigia de seu marido informações sobre os encontros. O politico finge anuir e diz-lhe  o “segredo” seguinte : tratava-se de uma ave, com lança e capacete dourado, que surgira na cidade. O rumor seguiu até o forum, antes do homem que o inventou. Para punir sua mulher, ao chegar em casa fingiu que a coisa era séria e que, pela inconfidência, seria levado ao exilio. “Que desejas partilhar comigo?”. A resposta do poeta Filipides ao rei Lisímaco é a correta: “Tudo, menos teus segredos”. 

Enfim, a “cura” do palavrório, segundo o médico e filósofo Plutarco, não pode ser conseguida de modo violento, mas criando-se outros hábitos, costumes. O autor insiste nesse ponto, essencialmente ético : o falador deve ser treinado para ficar em silêncio, prestar atenção ao dito (treinar o ouvido), e fugir das conversas que mais agradam aos faladores. Se militar, o falador deve ser afastado das narrativas heróicas e assim por diante. Diríamos que os pescadores devem ser afastados de histórias de pescaria… Isso porque se entram no fluxo discursivo predileto, podem falar mais do que o necessário para engrandecer e embelezar o relato, o que dirige a lingua ao exagero sem o controle do pensamento. Basófias são fonte segura de segredos que se escoam. Um conselho: quando não se puder deixar de vez as rodas palavrosas, tente-se passar da oralidade à escrita. A literatura, embora ainda possa exercer a indiscrição (certo filósofo foi chamado “pena que berra” em Atenas)  pode ser mais controlada pelo autor. Outra cura: fazer o linguarudo frequentar pessoas diferentes dele e deixar o círculo dos seus iguais. O respeito de opiniões ponderadas lhes fornecerá o hábito de calar. 

Além da cura ética (mudança da postura, héxis) Plutarco recomenda reflexão e vigilância antes de falar. Diante da possível enunciação, perguntar sempre: “qual o propósito? É urgente? Que se ganha ao falar? O que se perde?”. A via régia foi aberta por Simonides, o poeta: nos arrependemos com frequência do que falamos, mas nunca do que silenciamos ( ) e que o treinamento tudo pode dominar. Muitos pensadores modernos, para falar do segredo e da necessária disciplina que ele exige, usam Plutarco mas esquecem de indicar a fonte. É o que se passa com Heidegger. Em sua análise da comunicação moderna, o filósofo sublinha a perda radical do segredo na ordem da publicidade. No mundo em que reina o “se”, todos os indivíduos estão sujeitos à discrição alheia. Ou seja, o que em Plutarco era uma doença de alguns, em nossos dias tornou-se pandemia. Mas o alheio, agora, o outro, não possui deteminação certa, ele pode ser alguém e ninguém ao mesmo tempo. Quando o indivíduo fala algo, ou faz, afirma de imediato  sempre a culpa como advinda “dos outros”.  Trata-se de um truque bem conhecido pois a fórmula “os outros” recolhe também quem fala ou faz. “Os outros” surgem na imprensa, no ônibus, nos passeios, nas reuniões sociais, e neles todos são dissolvidos, eu incluido. Trata-se de uma indiferença ou indistinção generalizada, na qual pouco importa o que eu ou você fala, porque ambos “falamos” o que “se fala” e “como se” fala. O discurso perde o sabor individual. Mesmo no “escândalo”, não ocorre falha entre o público e o privado: ambos são diversificações do indistinto modo de agir e julgar pré-estabelecido, o “se” (fala-se, diz-se, ouviu-se dizer que, etc).  Julgamos escandaloso o que “se” (o público) julga escandaloso.
Heidegger, como indiquei,  identifica na midia a grande força de pasteurização ou esmigalhamento dos individuos e da linguagem. Na midia nada é secreto, porque nela inexiste o contacto efetivo com o que é, mas apenas com a média das percepções e da linguagem sobre os eventos e os seres. A mediania não desce fundo nas coisas e nas palavras, ela inscreve-se num horizonte medíocre que “facilita” a compreensão de todos. Desse modo, a midia não admite exceções, ela é absolutamente democrática e igualitária. Assim, ela não autoriza a surpresa diante de novos conhecimentos. Se aparece algo assim, ela sempre procura “mostrar” que o saber alegado é antigo. Na midia não existe reconhecimento do que foi conquistado em muito tempo e pesquisa. A novidade é a sua regra, o instantâneo o seu procedimento, o público é o seu alvo e a sua pressuposição. Com a mediania, “todo segredo perde a força e o mistério. A preocupação da media evidencia uma nova tendência do existente (Dasein), e nós a chamaremos o nivelamento de todas as possibilidades de ser”. Esse nivelamente constitui a essência da “opinião pública”. O referido público, como o freguês no mercado, sempre está com a razão e “decide” a correta interpretação de tudo : aplausos mais ou menos  longos decidem a verdade, a beleza, a maestria técnica dos candidatos, nos programas de auditório. O mesmo ocorre nas pesquisas de opinião pública que decidem quais são os melhores aspirantes ao governo do Estado. O que é o “público” no qual imperam os hábitos encobertos pela  forma do  “se” ?
O “se” é a impessoalidade coletiva que “descarrega” os indivíduos de si mesmos, deixando-os sem qualquer responsabilidade ou culpa. Eles “fazem” ou “fizeram” o que “se” faz. Desse modo, nada é serio para os indivíduos, nada é grave, tudo é frivolo. Eles jamais têm culpa e tudo é objeto de risadas, comentários, falatórios, fofocas. A covardia penetra o comportamente mediano obediente ao “se”. Nada, alí,  que não pudesse encontrar em Rousseau uma descrição cortante. ( )  Quanto mais o “se” parece manifesto em toda parte, mais ele é imperceptível e dissimulado. E agora entramos na parte de Ser e Tempo que retoma, sem citar, o texto de Plutarco indicado acima, o De garrulitate. O § 35 escrito por Heidegger tem a mesma estrutura e andamento igual ao do tratado plutarquiano. Indiquei, ao passar por aquele texto que o primeiro ponto nele inscrito é a dificuldade de curar o palavrório, visto que a doença está inserida no instrumento da cura, o logos que deve ser ouvido pelo enfermo. Este não escuta porque tem toda a sua alma voltada para a lingua. Heidegger, no início de seu parágrafo distingue entre escutar e ouvir. Ouvir e compreender agarram-se ao que se diz, enquanto se diz. Não ocorre preocupação imediata com o objeto, com o que se diz. Quando alguém fala sem prestar atenção ao que é falado, apenas transmite e repete a fala. Quanto mais pessoas ouvem um discurso, mais ele toma um carater autoritário, isto é assim porque assim se diz. Essa parolagem chega ao máximo quanto rompe-se todo elo entre a palavra e o objeto que ela deveria colher. E a parolagem oral ou escrita, é nutrida por leitura maquinais. Temos então a compreensão média, repetitiva, pública. ( ) Tal forma de compreender é dogmática e dispensa todas as distinções entre a fala e os objetos. Ela é a verdade em andamento. A garrulice não dissimula, não se esconde em nenhum segredo, porque ela mesma já é dissimuladora. Quando um linguarudo fala, ele esconde sem saber ou desejar o que deveria ser dito, joga um veu de sons acima dos entes que deveriam ser pensados. Quando fala o tagarela, ele impede toda discussão posterior. “Tudo está dito”. E nada deve ser perguntado. Desaparece o segredo no mais banal, na opinião publica. ( )
No De garrulitate, Plutarco afirma que uma doença muito próxima, ou gêmea do falatório é a curiosidade. ( ) O tratado em que o moralista analisa a curiosidade possui acentuado sentido político entre os gregos. Como indica Dumortier ( ) a prática da polupragmonsune ( ) reside na tendência a se imiscuir indiscretamente nos assuntos alheios, sejam eles privados ou públicos. Os atenienses criaram inclusive um termo para designar o sujeito que especula o que não lhe diz respeito:  sicofanta (na origem, com bastante probabilidade, sicofanta era o delator dos que roubavam figos, nas comédias de Aristófanes os delatores e os sicofantas são ridicularizados). O emprego de alcagüetes marcava os tiranos. Na República, justamente quando Platão traça a pintura sinistra do tirano, entra a imagem dos mercenários que, caso sua terra possua cidadãos prudentes e sábios, dela saem para servir em terra estranha “como ladrões, furadores de muralhas, cortadores de bolsas,  afanadores de roupas, pilhadores de templos, praticantes de tráfico escuso; por vezes, caso sejam capazes de falar, tornam-se sicofantas, falsas testemunhas, agentes da corrupção”. ( ) Esta gente é empregada pelo tirano para dominar os cidadãos livres da polis. De importância estratégica, no entanto, a atividade de sicofanta, delator a soldo do tirano. Mas para delatar é preciso seguir o segredo onde ele se encontra.

Afirmei que a diatribe de Heidegger contra o palavrório (Gerede) tem origem em Platão, por mais que o pensador germânico se coloque em sentido contrário ao autor dos Diálogos. No que tange ao palavrório da massa, da imprensa e dos universitários modernos, combatido por Heidegger, a origem da crítica se localiza em Platão, tanto na República quanto nas Leis. No caso das Leis, a base do processo contra o falatório situa-se na crítica endereçada aos poetas, quando estes últimos abalam a medida prudencial a que deveriam se submeter, ameaçando a vida pública. 

A justa medida, diz Platão, é essencial na ordem política como também nas relações do corpo (alimentos) ou técnicas (nos navios, não se pode usar mais velas do que o preciso), na alma não podem ser usufruídos direitos excessivos. Sem justa medida tudo se inverte. Alí a abundância de carnes que leva à doença, aqui a ilimitação (hybris)  que gera a  injustiça (adikia). A alma dos jovens não pode suportar o peso do poder, logo ela é infectada da mais grave doença, a desrazão (anóia). Contra tais excessos cabe ao legislador prudente, graças à justa medida, tomar precauções.

E chega o instante dos pesos e contra pesos do poder. Em Esparta, em vez do rei único, existia uma dupla de reis, o que restringe o poder à justa medida. Além disso, o voto de 28 anciãos que possuem, nos assuntos mais graves, poder igual ao dos reis. Há um terceiro salvador (σωτήρ), com o poder dos Eforos, um poder que se aproxima do sorteio. Assim, o governo de Esparta é uma combinação de poderes que leva à salvação própria. Juramentos não controlam a alma de um jovem candidato à tirania. Importa limitar a medida dos poderes, fundir num só os três poderes.

No mundo conhecido, adianta Platão,  existe de um lado o poder autocrático dos Persas e o temperado de Esparta. É preciso sempre o tempero, o acorde correto. Esta teoria do poder tem como pressuposto uma visão do universo e da sociedade como harmonia. E na ordem política, deve ser mantida a ordem antiga sob o domínio das antigas leis. Nela o povo não tinha soberania (ele não era κύριος) nos assuntos, mas era escravo voluntário ( ἑκών) das leis.

Quais leis seriam as referidas? As relativas à música. Na época antiga a música era dividida segundo espécies e formas próprias. As preces aos deuses eram uma espécie de canto, os hinos. Depois havia uma espécie de canto oposto: lamentos chamados “trenos”. Os peans (paiwnez) eram uma espécie distinta, outra ligada ao nascimento de Dionisos seria o ditirambo, etc. Reguladas as coisas não era permitido abusar de uma das formas, transpondo-a para outras. O poder de julgar sobre elas e julgar com conhecimento de causa e punir os transgressores não pertencia às vaias ou aplausos, mas era decidido por homens sábios naquela cultura que tudo ouviriam em silêncio e, com a varinha nas mãos, estabeleceriam a ordem e advertiriam as crianças e a seus professores. Esta a ordem aceita pelos cidadãos, sem que eles tivessem a audácia de recorrer à gritaria para dar sua opinião.

Os poetas foram os primeiros a quebrar as leis da música. Eles eram dotados para a poesia mas nada conheciam da Musa enquanto fonte de legitimidade e fé pública, eles misturam as formas e levam tudo a se confundir, pretendem mentirosamente, em sua desrazão involuntária, que na música não existe lugar para alguma retidão e que, além do prazer que se encontra no seu gozo, não existe meio correto de decisão, melhor ou pior. Eles inculcam na massa (πολύς) o hábito de infringir as leis e a audácia de se acreditar capaz de decidir.  Resultado: antes, o público não falava no teatro (era ἄφωνος), depois, começou a falar como se entendesse para saber o que é belo na música, ou não, surge então uma “teatrocracia” (θεατροκρατία) depravada que substitui o poder dos melhores juízes. Se apenas em música, e em música apenas, surgisse uma democracia composta por indivíduos de uma cultura liberal, não ocorreria algo tão desastroso. Mas na verdade é pela música que se iniciou, entre nós, com a crença na sabedoria de todo mundo para julgar, a atitude subversiva. Nenhum medo os retinha, pois se acreditavam sábios, e esta ausência de medo gerou a impudência, na audácia de não temer a opinião de quem vale mais do que nós, eis a impudência detestável, efeito da audácia de uma liberdade cuja arrogância é levada ao excesso.

Embora seja possível recolher nos textos platônicos muitos elementos no sentido de nos aproximar sobre o silêncio (A Carta Sétima é um passo decisivo na condenação da escrita e da fala excessivas) também é permitido ler os Diálogos como prelúdio do mundo em que são votados ao silêncio involuntários todos os que se encontram no terreno da alteridade, todos os que não entram no campo do que supostamente é normal. Platão propõe um papel ativo para as mulheres, à diferença de outros filósofos como Aristóteles ( ). Shoshana Felman, em certa altura de seu livro intitulado A loucura e a coisa literária começa um capítulo importante (“As mulheres e a loucura: História literária e ideologia”)( ) com uma epígrafe assustadora: “O silêncio dá às mulheres as suas graças próprias”. Trata-se de uma passagem de Sófocles na peça Ajax. E Felman aponta o truque muito comum dos que falam sempre “em nome de” ( ) Ela se refere ao “gesto opressivo da representação pelo qual, na história do logos, o homem ocidental reduziu, precisamente, o outro (a mulher) a objeto silencioso e subordinado”.

Felman analisa, sob esse ângulo, um conto de Balzac chamado “Adeus”. Dois caçadores se perdem numa floresta e perguntam a duas mulheres onde estavam. Uma delas é surda e muda e a outra é louca afásica. As duas estão mergulhadas no silêncio. A única palavra que a triste afásica repete é “adeus”. Um dos homens, diante da palavra, desmaia, pois reconhece uma amante que o seguira para a Rússia nas guerras napoleônicas. Quando a situação se tornou insuportável, ele a colocou numa jangada e dela se despediu com um adeus. O sujeito tenta curar o antigo amor. O tratamento começa com pequenos grãos de açucar dados à senhora, uma espécie de amestramento. O alvo era fazer com que ela o reconhecesse. Ele resolve montar uma cena, exatamente a última que ocorreu entre eles na Rússia, com direito ao rio, à jangada, ao adeus. E na cena, ele pergunta se ela o reconhece. O falocentrismo é mais do que evidente. Ela não é, ele é e deve ser reconhecido. Ele fala, ela mergulha ainda mais no silêncio da morte. “Não me reconheces? Sou eu, teu Filipe!”. Filipe, na verdade, não articula a questão “quem é ela?” mas sim “Quem sou eu”. E a resposta vence joga o silêncio sobre ela. E a coisa piora quando ele afirma, ansioso: “Tu és a minha Stefânia”, ou seja, uma propriedade perdida de Filipe...

Mas o outro, além da mulher, pode ser o judeu e o homossexual. Em sua meditação sobre o papel da alteridade na literatura moderna e romântica, Hans Mayer, ao falar do segundo sexo e seus marginalizados, se refere as femmes fatales do romantismo, todas “inatingíveis, infantis, fatais, impossíveis de serem afetadas pela palavra e pela razão masculina”. E adiante : “só se pode discutir a femme fatale como se ´discute´ bruxaria”. Em relação ao homossexualismo a estrutura de marginalização se retoma, com matizes tão sombrios quanto no caso da mulher. E quanto aos judeus, algo próximo se apresenta. Não irei analisar o livro de Mayer, rico quando se trata de perceber as armadilhas supostamente libertárias dos que se erigem em “salvadores” da alteridade, mas que de fato instituem dominações apenas mais sutis dos que as anteriores, mantendo a capa de silêncio jogada sobre os que não entram na senda do que é normal, comum, correto. ( )

Tomemos a exigência platônica de silêncio dos não especialistas em filosofia ou música (para Platão, as duas ordens se confundem). Poderíamos nos espantar se no século dezoito, na Inglaterra e França, o teatro seja uma ocupação destinada ao consumo da elite nobre ou econômica. Os lugares são caros. Mas existe espaço para os “negativamente privilegiados” (o termo é de Max Weber), como em Paris, na platéia, os lugares em pé para os da classe média, estudantes e intelectuais. Em 1781 a Comédie-Française se instala em novo edifício e a platéia é provida de assentos. Com a nova disposição do mobiliário, aumenta o silêncio no teatro. Como diz um comentador, “não existem mais gritos vindos do fundo da sala, nem gente que comia em pé, assistindo as peças. O silêncio do público parecia diminuir o prazer de assistir uma representação. Esta reação nos permite adivinhar o sentido da participação do público”. Na Inglaterra, os nobres tinham assento no palco. Eles faziam o que quisessem naquele espaço: gritavam para seus amigos, misturados aos atores. Havia uma troca de conivências, não apenas entre atores e nobres, como entre atores e público geral. Este, por sua vez, mantinha o auto-controle. “Era objetivo e muito crítico em relação aos atores e atrizes que o faziam chorar. O público queria interferir diretamente com o ator; e o fazia graças a um sistema de ´pontos´ e um sistema chamado settling (literalmente, regulação de contas)”. Voltando a Paris, ainda no século 18. Numa das Cartas Persas o herói de Montesquieu vai à Comédie-Française e alí “não distingue os atores na cena e os espectadores na sala. Todo mundo se exibe, assume poses, se diverte. A distração, a tolerância cínica, os prazer partilhado em companhia dos outros, tais são alguns dos sentimentos contidos na concepção comum do homem ator”. ( )

No século 19 as mutações do espaço social e das artes, permite o surgimento de um desdobramento dos indivíduos, entre atores e não atores. “Quando a personalidade irrompe no domínio público, a identidade do homem público se desdobra. Certa minoria de indivíduos continua a se exprimir ativamente, perpetuando a tradição de homem ator instaurada no Antigo Regime. No meio do século 19, esta minoria é constituída de atores profissionais. Mas, paralelamente, se forma uma nova espécie de espectador. Este espectador não participa da vida pública, mas se abriga para melhor observá-la. Pouco seguro de seus próprios sentimentos (...) este homem à diferença do homem do Antigo Regime tem sua realização pública não mais em seu ser social, mas em sua personalidade. Se ele se mantem disciplinado e sobretudo silencioso em público, ele viverá coisas que não pode viver por si mesmo”. O espectador, indivíduo isolado, ao se tornar passivo, espera sentir mais. “Olhar a vida que passa em silêncio, eis o que significa para este indivíduo a ´liberdade´ ”. Então, “observadores silenciosos freqüentam o espaço público (...) as necessidades projetadas sobre o ator se transmutam, os espectadores se fazem voyeurs. Eles se isolam uns aos outros e se liberam por uma espécie de fantasia ou sonho desperto, olhando a vida que passa na rua. Temos aqui, em germe, o paradoxo moderno do isolamento no interior da visibilidade”. ( )

Em Ser e Tempo, não por acaso, a análise da existência cotidiana, onde se exerce o domínio do "se" sobre as vidas públicas e particulares, antes de entrar no domínio do falatório Heidegger examina o olhar. Como sempre, seu empréstimo não confessado a Platão e a Plutarco faz o leitor não perceber que se trata, no caso do olhar, do velho tema da vista curiosa, maldosa, que busca ver o que se passa na casa alheia, ignorando a própria. Em Plutarco, os olhos reúnem duas formas de atenção: a pesquisa (zetesis) e a curiosidade, a chamada polupragmosine. Enquanto o zetetés, o investigador, usa os olhos para captar o permanente e atinge um conhecimento dificilmente comunicável, o curioso atarefado recolhe informações sobre tudo e todos, sobremodo das coisas e atos sem relevância para o Bem. Ao redor da mesma imagem, vemos se produzir, na crítica do conhecimento e da moral, duas atitudes diferentes. A mente curiosa, afirma Plutarco, é como a Lâmia mitológica. "Quando dormia em sua casa, ela depositava os olhos num vaso. Saindo, Lâmia os colocava em seu rosto e podia ver". Todos os homens, quando não se dedicam à pesquisa e à virtude, são Lâmias : "cada um de nós...pratica a indiscrição maldosa com o olho, esquecendo as próprias faltas e taras por ignorância (agnóia), porque não tem o meio de vê-las e de esclarecê-las". (De Curiositate, 2).

A pesquisa leva ao descobrimento de tudo, trazendo para os olhos as formas permanentes das coisas. Enquanto isso, "curiosidade é a paixão de  conhecer o escondido e o dissimulado. Mas ninguém esconde o bem que possui. Às vezes nos atribuímos um bem que não temos. O curioso, em seu desejo de saber o que vai mal entre os demais, é tomado pela maldade, irmã da inveja e da calúnia. Porque a inveja é a tristeza causada pelo contentamento alheio e a maldade é alegria pela sua infelicidade. Ambas nascem de uma cruel paixão, a ruindade" (De Curiositate, 6). Plutarco tem cura para a curiosidade : a própria pesquisa. Quem se acostumou ao mal curioso, deve curá-lo de modo homeopático. O tratamento consiste em "transferir a curiosidade, transformando-a em gosto da alma por assuntos honestos e agradáveis : seja curioso do que se passa no céu e na terra, nos ares e no mar, os segredos da natureza, pois esta não se enraivece quando eles são roubados...". (De Curiositate, 5). ( )

Como último elemento a ser tratado, recordo o imenso autoritarismo presente em todos os projetos de impor o silêncio aos que escapam ao controle da boa norma. Poderia falar sobre a censura, o segredo, molas da razão de Estado moderna, sempre com o fito de fornecer aos governantes maior força física, impostos, leis contra os governados. Carl Schmitt chama a burguesia de "classe discutidora" ( ) retirando este epíteto de Juan Donoso Cortés, o famoso autor do Discurso sobre a Ditadura que inspirou não apenas o fascismo e nazismo ao modo de Schmitt mas também todas as ditaduras que infernizaram o século 20, em especial na América do Sul e no Brasil. Com os tanques, a discussão termina, vem o golpe de Estado "redentor". 

"Uma boa parte do prestígio de que gozam as ditaduras deve-se ao fato de lhes ser concedida a força concentrada do segredo, que nas democracias se reparte e se dilui entre muitos. Com sarcasmo diz-se que nas democracias tudo se dilui em palavrório. Todos falam demais, todos se intrometem em tudo, nada acontece que não se saiba previamente. Tem-se a impressão de que a queixa se origina da falta de decisão, quando na verdade a decepção tem sua origem na falta de segredo. Estamos dispostos a tolerar muitas coisas, desde que elas sejam impostas com violência e em segredo". Estas frases tremendas de Elias Canetti são precedidas de outras, não menos temíveis no capitulo intitulado "O segredo", de Massa e Poder : "uma das características do poder é a distribuição desigual do calar das intenções. O poderoso cala, mas não permite que os demais se calem. Ele mesmo deve ser o mais reservado de todos. Ninguém pode conhecer suas convicções nem suas intenções". E adiante, ao falar dos tiranos antigos e modernos, diz Canetti que "o poder do silêncio sempre é altamente apreciado. Significa que se é capaz de resistir aos incontáveis motivos externos que nos induzem a falar (...) o silêncio pressupõe um conhecimento exato daquilo que não se diz. Como na prática não se emudece para sempre, faz-se uma opção entre o que se pode dizer e o que não se diz. Silencia-se o que melhor se conhece. É algo mais preciso e também mais precioso (...) o silêncio isola, quem cala está mais solitário do que os que falam. Assim, atribui-se a ele o poder da singularidade. Ele é o guardião do tesouro e o tesouro está dentro dele". 





[1] Fedro,  274-276.
[2] The poem on the Edge of the Word: the limits of Language and the uses of silence in the poetry of Mallarmé, Rilke and Vallejo (Peter Lang Ed., 1993).
[3] Um trabalho sugestivo, ainda em nossos dias, é o de M.H. Abrams, The Mirror and the Lamp, romantic theory and the critical tradition (Oxford, University Press, 1971). Em meu livro Silêncio e Ruído, a Sátira em Denis Diderot (Campinas, Ed. Unicamp, 1997), analiso o campo em questão. Antes dele, no livro Conservadorismo romântico (SP, Ed. Unesp, 1997, 2a. ed.) e em Corpo e Cristal, Mar Romântico (RJ, Ed. Guanabara, 1985), examino o plano mais amplo em que o problema da fala e da imagem se instala. Quanto à ordem do discurso teológico e da imagem, a discuto em Brasil, Igreja Contra Estado (SP, Kayrós, 1979). Autores como Alcir Lenharo (A Sacralização da Política, Campinas, Papirus Ed, 1986) ampliaram as minhas observações em sentido histórico, aplicado à produção cultural brasileira.
[4] C.K. Ogden e I.A. Richards : The meaning of the meaning (London, Routledge & Kegan Paul Ltd.,), uso a tradução espanhola : El Significado del Significado, una investigacion acerca de la influencia del lenguaje sobre el pensamiento y de la ciencia simbolica (Buneos Aires, Ed. Paidos, S/D), o trecho citado encontra-se no capítulo cujo título é "O poder das palavras", página 54.
[5] Citado em Roberto Romano: Silêncio e Ruído. A Sátira em Denis Diderot (SP, Ed. Unicamp, 1989).  
[6] Cf. Sein und Zeit ( Tübingen,  Max Niemeyer Verlag, 1967), pp. 173 ss.
[7] Peri adoleskias (De garrulitate). Uso aqui a edição das Moralia da Loeb Classical Library, Volume VI, Trad. W.C. Helmbold (Cambridge, Harcard university Press, 1970), páginas 396 e seguintes.
[8] Brincando com termos de medicina, Plutarco diz que o nome da doença do falador é asingesia, ou seja, impossibilidade de manter silêncio. O outro lado da mesma doença seria a anekoía, inabilidade para escutar. Resulta numa doença, também nomeada por Plutarco, a diarréousi, diarréia da lingua. Nota de Helmbold.
[9] Sobre o tema, a bibliografia é imensa. Não pretendo discutir  tais pontos que exigem competência e cautelas próprias. Uma análise cuidadosa encontra-se nos textos de Pedro Lain Entralgo. Refiro-me especialmente ao seu livro : La Relación médico-enfermo. historia y Teoria (Madrid, Alianza Ed., l983), especialmente nas páginas 40, 88, e 3l3 ss. “...o silêncio é como o humus em que germinam e assumem sentido as palavras pronunciadas, quando estas são algo mais do que simples algaravia gárrula, quando a fala, Rede diria Heidegger, não se transformou em Gerede (palavrório)”. (página 3l3). Outro escrito do mesmo autor trata deste problema: La Curación por la Palabra en La Antiguedad Clásica (Barcelona, Editorial Anthropos, l987). Particular proveito para nosso tema fornecem as paginas l54 e ss. “...para Platão, o agente catártico que a ‘doença da alma’ requer é a palavra idônea e eficaz. Impondo evidências ou infundindo persuasões, a expressão verbal de quem saiba ao mesmo tempo ser professor e médico —’psicagogo’, diria Platão— é capaz de reordenar as almas que sofrem de ametria e reintegrá-las em seu verdadeiro ser”. (páginas l54-l55).  Para a imagem, cf. Louis P.  Les Métaphores de Platon (Rennes, Impriméries Réunies, l945): “Le Discours”. Também Taillardat, J. Les Images d’Aristophane (Paris, Le Belles Lettres, l965). “Le Flot des Paroles” e “Le Bavardage”.

[10] Plutarco cita Aristóteles que, na Ética a Nicômaco (Livro IX, 1166 a31, 1170 b7) afirma “O homem bom experimenta vários sentimentos para consigo mesmo e porque ele sente para com o seu amigo do mesmo modo que sente por si mesmo (porque um amigo é um outro eu), a amizade também é pensado como consistindo em um ou  outro desses sentimentos, e julga-se a posse deles como um teste de um amigo”. Uso a edição da Loeb Classical Library : Aristotle, Nicomachean Ethics, Volume XIX (Ed. H. Rackham), (London, Harvard University Press, 1990), página 535.
[11] Desse enunciado, uma tradução bem fundamentada encontra-se no Tractatus Logico-Philosophicus de Lugwig Wittgenstein : “Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen”. Na tradução de C.K. Ogden:  Whereof one cannot speak, thereof one must be silent.” Cf. no seguinte site : http://www.kfs.org/~jonathan/witt/tlph.html Para uma análise interessante, Cf. Sandra Laugier: “Le secret et la voix du langage ordinaire”, in Modernités, Dossier Dire le Secret (2002). Também no seguinte endereço eletrônico : http://formes-symboliques.org/article.php3?id_article=154#nh62 Cf. também, em outros parâmetros, Emmanuel Rouillé, «Le Secret et l’Aléthéia grecque», Le Portique, Recherches 2 - Cahier 2 2004, endereço eletrônico.  http://leportique.revues.org/document465.html.



[12] “Aujourd’hui (…) il règne dans nos mœurs une vile et trompeuse uniformité, et tous les esprits semblent avoir été jetés dans un même moule : sans cesse la politesse exige, la bienséance ordonne : sans cesse on suit des usages, jamais son propre génie. On n’ose plus paraître ce qu’on est ; et dans cette contrainte perpétuelle, les hommes qui forment ce troupeau qu’on appelle société, placés dans les mêmes circonstances, feront tous les mêmes choses si des motifs plus puissants ne les en détournent. (…) Les soupçons, les ombrages, les craintes, la froideur, la réserve, la haine, la trahison se cacheront sans cesse sous ce voile uniforme et perfide de politesse, sous cette urbanité si vantée que nous devons aux lumières de notre siècle. On ne profanera plus par des jurements le nom du maître de l’univers, mais on l’insultera par des blasphèmes, sans que nos oreilles scrupuleuses en soient offensées. On ne vantera pas son propre mérite, mais on rabaissera celui d’autrui. On n’outragera point grossièrement son ennemi, mais on le calomniera avec adresse. Les haines nationales s’éteindront, mais ce sera avec l’amour de la patrie. A l’ignorance méprisée, on substituera un dangereux pyrrhonisme. Il y aura des excès proscrits, des vices déshonorés, mais d’autres seront décorés du nom de vertus ; il faudra ou les avoir ou les affecter.”  Rousseau: no texto premiado pela Academie de Dijon (1750) : Si le rétablissement des sciences et des arts a contribué à épurer les mœurs.   E na Carta a d´Alembert: “Si nos habitudes naissent de nos propres sentiments dans la retraite, elles naissent de l ´opinion d´auttrui dans la société. Quando on ne vit pas en soi, mais dans les autres, ce sont leurs jugements qui réglent tout, rien ne parait bon ni désirable aux particuliers que ce que le public a jugé tel, et le seul bonheur que la plupart des hommes connaissant est d´etre estimés heureux”. Pléiade, V. V (Paris, Gallimard, 1995), páginas 61-62. No Discurso sobre a desigualdade: “le sauvage vit en lui-même; l’homme sociable toujours hors de lui ne fait vivre que dans l’opinion des autres, et c’est, pour ainsi dire, de leur seul jugement qu’il tire le sentiment de sa propre existence”. Comentário: o homem social se esvazia nas multiplas opiniões. Cf.  P. Burgelin : La philosophie del ´existence de J.-J. Rousseau (Paris, Vrin, 2005 ). Também, Hartle, A. :  The modern self in Rousseau´s ´Confessions`. A reply to St. Augustine. (Indiana, University of notre Dame Ed., 1983).
[13] Exemplo excelente dessa parolagem é indicado por Tomas Hobbes : “Na maioria das pessoas (…) o costume tem um poder tão grande que se a mente sugere uma palavra inicial apenas, o resto delas segue-se pelo habito e não são mais seguidas pela mente. É o que ocorre entre os mendigos quando rezam seu paternoster. Eles unem tais palavras e de tal modo, como aprenderam com suas babás, companhias ou seus professores, e não têm imagens ou concepções na mente para responder às palavras que enunciam. Como aprenderam, ensinam a posteridade. Se levarmos em contra os enganos do sentido e como os nomes foram inconstantemente determinados, o quanto estão submetidos ao equívoco e o quanto se diversificam pela paixão (raramente dois homens concordam sobre o chamado bem e mal, o que é liberalidade, prodigalidade, valor ou temeridade) e o quanto os homens são sujeitos ao paralogismo ou falácia no raciocínio, posso concluir de certa maneira dizendo que é impossível retificar tantos erros de um só homem, como devem proceder daquelas causas, sem começar de novo dos verdadeiros fundamentos iniciais de todo conhecimento, os sentidos; e, em vez de livros, ler ordenamente as nossas próprias concepções; nesse sentido eu entendo o nosce teipsum”. The Elements of Law, 1, 5. “Of Names, Reasoning, and Discourse of the Tongue”. Electronic Text Center, University of Virginia Library. (http://etext.lib.virginia.edu/toc/modeng/public/Hob2Ele.html)

[14] De Platão até hoje, a opinião (doxa) deve ser combatida pela ciência. Em Hegel, a opinião pública (Die öffentliche Meinung) ao mesmo tempo carrega elementos verdadeiros e  incertos, produtos da raciocinação sem profundidade (o famoso Räsonieren, forma inferior da Razão). Uma pessoa ponderada não leva a sério a opinião pública, pois a própria opinião pública engana a si mesma. É preciso apreciá-la, pensa Hegel, mas também desprezá-la. Para que algo verdadeiro ou grande seja feito, é preciso que o sujeito tenha independência (Unabhängigkeit)  diante dela. Ligada à opinião pública, a imprensa é o lugar do limitado, contingente, com infinita diversidade de conteúdo e modos de falar. O modo científico rompe com as alusões, as palavras postas pela metade. Ele exige uma expressão sem equívoco. Cf. Grundlinien der Philosophie des Rechts in Werke in zwanzig Bänden (FAM, Suhrkamp Verlag, 1975), V.7, §§ 316 a 319, páginas 483 e seguintes. Trad. Robert Derathé, Principes de la philosophie du droit (Paris, Vrin,1975) páginas 318 e seguintes. Estamos a um passo da noção de ideologia e de opinião pública enquanto falsa consciência. Cf. Habermas, J.:  Mudança Estrutural da Ordem Pública (RJ, Tempo Brasileiro Ed., 1984), página149. E também Norberto Bobbio : Saggi sulla scienza politica in Italia, (Torino, Laterza, 2 ed., 1996). Bobbio compara nesse livro as teorias da ideologia em Marx e Pareto.
[15] “À garrulice se apega um mal que não lhe é inferior, a curiosidade (periergia): deseja-se saber muito, para muito falar, São especialmente histórias de segredo e de coisas escondidas, das quais se deseja encontrar os traços enfiando as fuças em todas as direções (…) Diz-se que as enguias do mar e as víperas morrem ao dar a luz aos seus filhotes;  assim, os segredos, ao escapar, arruinam e destroem os que não os guardam”. Cf. De garrulitate, 12  citado aqui em Plutarque Oeuvres Morales, TomeVII-1,Trad. Jean Dumortier (Paris, Les Belles Lettres, 1975), página 242.
[16] Op. cit. páginas 261 e seguintes.
[17] Além de Jean Dumortier, cf. Adkins, A. W. H. “Polupragmosune and 'Minding One's Own Business': A Study in Greek Social and Political Values.” Classical Philology 71 (1976) páginas 301-27.

[18]“…hoia kleptousi toichôruchousi, ballantiotomousi, lôpodutousin, hierosulousin, andrapodizontai: esti d' hote sukophantousin, ean dunatoi ôsi legein, kai pseudomarturousi kai dôrodokousin”. República, IX, 575 b. Uso o texto do site Perseus. Cf. a tradução francesa de Leon Robin, Oeuvres complètes de Platon (Paris, Gallimard, 1953), Coll. Pléiade, Volume I, página 1180. 
[19] Analiso este ponto em “A mulher e a des-razão ocidental” no meu livro Lux in Tenebris (Campinas, Ed. Unicamp/Cortez, 1985).
[20] Cf. La folie et la chose littéraire (Paris, Seuil, 1978), página 138 e seguintes.
[21] Felman, página 141. Em Brasil, Igreja contra Estado, me levanto contra os “libertários” eclesiásticos ou leigos que se proclamam “a voz dos que não têm voz”. Caracterizo tal atitude como ventriloquismo, interessado no poder que, hipócrita, sequer confessa tal alvo. Como diz Elias Canetti, “nunca vi um só homem deblaterando contra o poder, sem o segredo desejo de possuí-lo”.
[22] Cf. Hans Mayer, Os marginalizados (RJ, Guanabara Ed., 1989).
[23] Todos esses pontos são extraídos de Richard Sennett, Les tyrannies de l´intimité (Paris, Seuil, 1979).
[24] Sennett, op. cit. página 152 e seguintes.
[25] Utilizo a edição Belles Lettres : De la Curiosité, traduzido por Dumortier, J. Cf. Plutarque Oeuvres Morales. T. VII, Première Partie, 1975, páginas 266 ss. Na Encyclopédie, o verbete “Curiosité” é quase todo extraido de Plutarco pelo Chevalier de Jaucourt: “A curiosidade inquieta de saber o que os demais pensam de nós, é o efeito de um amor próprio desordenado. O imperador Adriano que nutroa ternamente esta paixão, deve ter sido um mortal muito infeliz. Se tivessemos um espelho mágico que nos revelasse a toda hora as idéias dos outros sobre nós seria bom quebrá-lo sem usá-lo. (Este enunciado repete Francis Bacon, RR).A curiosidade de algumas pessoas que sob pretexto de amizade informam-se com avidez sobre nossos assuntos, projetos, sentimentos, e segundo o poeta: Scire volunt secreta domûs, atque inde timeri…é um vicio vergonhoso.(..) Mas prefiro me fixar na curiosidade digna do homem e a mais digna de todas é o desejo de aumentar os conhecimentos, seja para elevar o espirito rumo às mais altas verdades, seja para torná-lo útil aos concidadãos”.


[26] Cf. Antonio Bento, "Culto público do privado e segredo no Estado de direito liberal" , (Universidade da Beira Interior) na Internet.
[27] Massa e Poder (Brasilia, Ed. Universidade de Brasilia, 1986), página 326 e seguintes.

 

       





terça-feira, 17 de abril de 2018


ESCOLA SUPERIOR DA PROCURADORIA GERAL DO ESTADO DE SÃO PAULO.

CURSO DIREITOS HUMANOS, MODULO IIº - 1º SEMESTRE DE 2008
06/03/2008

Hobbes e o mando teológico, algumas considerações
Roberto Romano
(texto provisório).

Basileùs kaì iereùs eìmi
“Sou rei e sacerdote”.

A frase acima, dita por Leão 3º, imperador romano que reinava com sede em Bizâncio, foi dirigida contra o Papa Gregório 2º, em 734 DC.  Entender os choques entre o papado e o império romano dirigido do oriente com a Itália sem imperador nominal, invadida pelos bárbaros de modo continuado é captar o que se decide em teoria no Leviatã, mil anos depois. Bem sei que os paradigmas de hoje regem os atos e noções, no máximo, nos limites do tempo regido pela publicidade, pela mídia, o tempo curto. Mas questões como o Estado e a Igreja exigem maior permanência na história. Caso contrário, fica-se na superfície e nas citações de lugares comuns, que pouco adiantam no reino do pensamento.

No século quinto, podemos encontrar uma era de transição entre o antigo e poderoso império romano e a sua dissolução, na medida em que o povo da península se mescla com vândalos, godos, francos, e outros, num amálgama que segue o ritmo de séculos. Alarico entra na Itália em 408, surge a Cidade de Deus, para desculpar os cristãos pela desgraça. Em 412, o pelagianismo (o homem pode, por suas forças apenas, atingir a salvação) é condenado no Sínodo de Cartago. O Concilio de Efeso discute o nestorianismo ( Cristo teria duas naturezas distintas, uma divina outra humana). Entre 440-442 os vândalos tomam conta do Mediterrâneo, Átila aterroriza o império e invade a Gália em 450. Entre invasões e paz, lutas políticas e religiosas, guerras e cismas, muitas tensões se manifestam no Leste e no Oeste do Estado cuja civilização tinha sido coberta pelo cristianismo. Um problema comum de religião e política, encontra-se na mistura de grego e latim para designar dogmas e conceitos jurídicos. Só para dar alguns exemplos, termos como physis e natura, ousia e essentia, prosopon e persona, sem os quais não haveria pensamento teológico ou jurídico, não possuem significação unívoca nas duas línguas, dão lugar a equívocos conceituais e práticos gravíssimos. O cristianismo aguça as ambigüidades e provoca embates ao redor das verdades trazidas pelos Evangelhos.

Para visualizarmos os pontos acima, os quais, insisto, tem importância estratégica no Leviatã,  é preciso recordar alguns pontos nucleares. O primeiro é que o batismo permite aos indivíduos, grupos ou povos o ingresso na Igreja. Mas ele não basta para governá-la. A ordenação é conditio sine qua non. Ela divide, para o correto ordenamento coletivo, a Igreja em dois elementos, o clero e o laicato. Leigo vem do adjetivo grego laïkos, derivado do substantivo laós, “povo”. Clero vem de clericus, tradução latina do adjetivo grego klêrikos, do substantivo klêros, cujo sentido é “parte”. Clero é a parte eleita e no início da Igreja todos os cristãos a integravam, em oposição aos gentios. Posteriormente, no interior da Igreja, os sacerdotes opostos aos não ordenados.  Existem médicos, juristas e outros profissionais de hoje que se julgam postos na parte eleita e reservam para os que deles discordam o epíteto, no seu entender infamante, de “leigos”. E tais pessoas, não raro, se consideram democratas. Eles são os padres de seu ofício. O grande idealizador dessa taxinomia é Dionisio, o pseudo-areopagita. São por demais conhecidas a fortuna e a crítica dos escritos dionisíacos. Basta recordar que ele define uma escala vertical que vai dos entes mais elevados aos de menor elevação. Os mais próximos da Verdade divina, indizível em língua humana, são os anjos. Depois os sacerdotes, os nobres e finalmente o povo. A doutrina assim determinada chega aos nossos dias, mas antes passou pela visão de Santo Tomás e determinou a forma e o conteúdo do Ancien Régime.

Para que o povo seja governado, além do batismo, ou antes e como base daquele sacramento, é preciso que o reino divino seja o telos a ser atingido. O caminho do Paraíso é a meta comum de todos. E se o Éden primevo situa-se antes da Queda no tempo e no espaço finitos, no mundo, o céu também-se difere da finitude. O governo da Igreja tem como seu múnus conduzir o laós, o povo, ao reino celeste, à semelhança de Moisés que dirigiu seu povo pelo deserto, na busca da Terra Prometida. De Moisés ao Cristo, deste a São Pedro, a linha dos condutores seria ininterrupta, no entender dos que defendem o mando do Sumo Pontífice. Quando o papa Leão 1º fala de si mesmo como o substituto de Pedro, “cuius vice fungimur”, ele expressa o estilo da monarquia em termos de governo. () “Embora existam muitos pastores e muitas ovelhas no povo de Deus, é Pedro, propriamente, quem governa cada um dos que o Cristo também governa principalmente.”  () Na época de Leão 1º o título de Vigário de Pedro é novo, embora a idéia seja antiga.

Note-se que o título de vigário é seguido pelo de príncipe, no contexto do principatus, que na verdade define-se como nome de governo romano. () No caso da Igreja, trata-se de conduzir o povo (o leigos, a plebe) ao seu fim. Misturam-se nos títulos dos sacerdotes eclesiásticos atribuições de várias procedências, como o de pastor usado na  Grécia e no Antigo Testamento. () A origem mais direta, evidentemente, encontra-se nos Evangelhos ( Lucas 15:1­7; João 10:27 e 21:15­17).

Todos conhecem a imagem corporal da Igreja, corpo místico de Cristo, elaborada por São Paulo na Primeira Epistola aos Corintios. () O uso das metáforas corporais é antigo como a Grécia, quando se trata de imaginar o Estado. Em Platão o seu uso é constante, mas em Roma ela surge em contexto de polêmica entre patriciado e plebe  na fábula de Menenius Agrippa () Importa que o corpo da Igreja não é apenas espiritual, pois ele reside no mundo e se dirige para o não mundo, o Eterno. 


Um ponto essencial das representações cristãs é o que se liga à noção de Kayrós. Trata-se do tempo certo, nem antes nem depois, no qual o cristão passa pela sua experiência decisiva, na sua morte e no Apocalipse. Ambos permitem sair do mundo. Mas se não há morte, ou se ela é adiada para um átimo só conhecido pelo Senhor, a Igreja segue, peregrina, no mundo. E o que é o mundo, para o cristianismo. A melhor resposta é encontrada na Primeira Epistola de João (2, 15-17). “Não ameis o mundo nem as coisas que existem no mundo (...) Porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne ( epitimia tês sarkós), concupiscência dos olhos (epitimia tôn oftalmon) e a soberba da vida (alazoneia tôn biou), não procede do Pai, mas do mundo. Ora, o mundo passa, bem como a sua concupiscência, aquele que faz a vontade de Deus, permanece para sempre (aiôn)”. Enquanto o indivíduo ou coletivo vive no tempo e no espaço, ele deve sofrer a prova do Kayrós. Se passa ao Eterno, é liberado. Mas se está no tempo e no espaço, ainda não é perfeito e deve ser corrigido no plano espiritual ou material. Os principes laicos são sujeitos à disciplina da religião  a qual, por sua vez, está nas mãos do príncipe consagrado : sub religionis disciplina saeculi potestates subjectae sunt, diz Isidoro de Sevilha no livro das Sentenças. O príncipe secular deve fortalecer o religioso, com o  terror. ()
A palavra que designa o corpo eclesiástico ou político sai ora do latim, ora do grego : comunio, koinonia, societas, unitas. A origem do conceito, no entanto, tem como base o direito romano tardio. No século segundo depois de Cristo, o jurista Pomponius distingue três corpora. O que nos interessa é o terceiro : ...ex distantibus constat, ut corpora plura non soluta, sed uni nomine subjecta, veluti populus, legio, grex. E quem dirige o corpo da república cristã ? Com evidência, o Papa. Mas é preciso retomar a história do império romano, dividido em oriente e ocidente, com o basileus reinando em Bizâncio e o papa, seu vice, na Itália.  A reivindicação pontifícia do principado (o principatus de que já falamos) era naturalmente atacada pelo monarca (autokrator). Os choques se acentuaram à medida que o poder do pontífice se firmou na Igreja e no mundo político italiano, com a resistência às invasões barbaras. Se o plano temporal era discutido, o espiritual não recebia dúvidas de quem defendia o Sumo Pontífice: naquela esfera, o mando imperial nada teria a dizer, sobretudo quando se tratava de assuntos ligados à disciplina do clero, dos fiéis, e das crenças, os dogmas. Os imperadores do oriente, como no caso da imperatriz Irene, tinham certeza de possuir uma superioridade naqueles planos, pois convocavam concílios, aceitavam ou não indicações para ordenações, etc. O sentido e a interpretação das verdades religiosas era um monopólio disputado pelo papa e pelo imperador. Gradativamente o segundo perde o controle do assunto, em favor do primeiro.
Mas o império, por ficção jurídica, era uno, com distintas atribuições. Do ponto de vista constitucional o papa encontrou dificuldades para exigir a plenitude dos poderes. Supostamente nada mudara no império, salvo a capital. Resistir aos decretos emitidos pelo basileus do oriente, cujo título também era Rex sacerdos, seria na prática uma  alta traição. O único meio, para o sumo pontífice, de se liberar da moldura jurídica que o prendia ao basileus seria sair da própria moldura. Com esse movimento, haveria liberdade maior para o príncipe romano e perda incomensurável de prestígio para o todo do império. É bom recordar que o papa não possuía os meios coercitivos e que estes deveriam ser fornecidos pelo braço secular. Na Itália, tal ajuste era difícil, dada a crescente fragmentação dos centros políticos. Ao crescer no tecido do antigo império, o papado  manteve seu prestígio, no entanto, por estar situado na capital de sempre, Roma. E se a subordinação ao basileus grego impede o crescimento e a liberdade da igreja romana, o correto é dele se emancipar. Tal é o trabalho empreendido pelo papa Gregório 7º e o processo emancipador inicia justamente com o problema essencial do Estado, além da força física e da norma jurídica: a luta pelo controle dos impostos.
Gregório recusa a taxação definida em decretos de Leão 3º. Pela constituição do império, ele seria obrigado a obedecer. Para seguir seu intento, o sumo pontífice aproveita a revolta geral contra os impostos de Bizâncio, que se espraia por toda a península italiana. A palavra de ordem era desobedecer o “estrangeiro” basileus. O papa, praticamente o vice-rei da Itália, tomba no crime de alta traição. E o processo contra ele foi iniciado, embora não tenha recebido a repercussão do réu, apesar da tentativa de assassiná-lo. O imperador não desejou levar adianta o caso e ofereceu ao papa, em troca da retirada do processo, a aceitação do sumo pontífice da proibição das imagens no culto. O papa responde à oferta com posição firme, contra o basileus. E a resposta foi em grego  : “Nosso poder e autoridade derivam do príncipe dos apóstolos, Pedro, e poderíamos, se quiséssemos, fazer um julgamento sobre tua pessoa. Mas o julgamento sobre tuas ações já foi pronunciado por tua pessoa, sobre ti e teus conselheiros; eles e tu, depois do julgamento, permaneceis amaldiçoados”. Logo a seguir, exclama o papa: “Escuta, imperador, deixa de agir como padre, e siga a sagrada igreja, como é teu dever. Dogmas não são o assunto de imperadores, mas de pontífices, porque nós temos o sentido e a mente de Cristo...e tu, imperador, não podes ter a mente certa para os dogmas; tua mente é muito rude e marcial”.()
Só os ordenados, o clero (os ierói)  têm o sentido e a mente de Cristo, só eles podem dizer quem é cristão ou quem deixa de ser cristão. Preste-se muita atenção: dado que ser cristão é integrar um corpo, uma respublica, a cidadania é concedida pelos ierói, e apenas por eles. As ameaças físicas não abalam Gregório 7º, visto que se fosse perseguido lhe bastaria entrar três milhas pelo interior da Itália, para fugir do basileus. É neste contexto que se realiza a liberação da Igreja romana do império, nominalmente controlado desde Bizâncio. Mas não podemos esquecer o ponto reivindicado por Leão 3º: o de ser ao mesmo tempo rei e sacerdote.
O monarca, nos antigos tempos do império bizantino, era considerado como arkiereùs basileús, ou em latim Rex sacerdos. Tal status vem de longa data no império, não apenas do oriente, mas também do ocidental. A tradição vem do helenismo oriental e da velha noção de Roma antiga, segundo a qual o imperador representa o divino. Augusto era aclamado como salvador do mundo, o que seguiu até o ano 400 DC, o que também ocorre em Constantinopla, representações já nos tempos cristãos mostram o imperador como Deus e os patrícios como apóstolos.  Deus na terra, o imperador bizantino era dito isokristós (igual a Cristo) e autokrator kaisar. É por tal deificação que lhe eram submetidos os mais árduos problemas teológicos, e também os mais difíceis problemas práticos: trata-se de um monarca cujo governo abrange o cosmos (gês apasés monárkos). Deste modo, ele se julga governante em assuntos espirituais e materiais do imperium christianum. 

Essas titulações e prerrogativas seguiram, embora não enfáticas como no pretérito, até os dias de Carlos Magno. Este foi considerado rector da verdadeira religião (declaração do Concilio de Mainz, em 813). Esta função de rector populi Christiani fez dele legislador em todos os assuntos como a liturgia, educação religiosa, batismo, disciplina eclesiástica, dias festivos, sacramentos e outros. Bispos e arcebispos eram indicados pelo imperador, e todos os decretos sinodais deveriam passar pela sua aprovação. 

Na estratégia para se livrar da moldura jurídica imperial, um elemento importante encontra-se na fraude chamada Doação de Constantino, surgida nos primeiros cinqüenta anos do século oitavo depois de Cristo. A sua base “histórica” é a Legenda sancti Silvestri (por volta do quinto século)  na qual se narra a conversão do imperador.  Ela foi elaborada nos tempos em que ocorreu o primeiro choque significativo entre o papado e o império, relativo à jurisdição sobre o clero, matéria de fé e doutrina. Decisiva foi a publicação do Henoticon, um texto do imperador de 482, cuja causa teológica foi o monofisismo (atribuição de uma só natureza, a divina, ao Cristo) e pelo qual o imperador sozinho, sem um sínodo, pela primeira vez decreta por lei a fé do império. O Concilio da Calcedônia foi afastado pelo ato imperial, o que definiu o primeiro movimento histórico do césaro papismo. É inventada, então, outra fraude, a de que o concilio de Nicéia (325 AD, cuja conclusão mais relevante em termos de fé era a de que DeusFilho e Pai são "de uma substância", o Filho é "gerado" (João 1. 14,18), não criado, foi submetido ao papa Silvestre para ser aceito. O alvo era definir que não mais existiria espaço, como no tempo de Constantino, para o imperador decretar em assuntos de fé e doutrina. 

O autor da Legenda narra que Constantino, oito dias após se converter, ajoelhou-se e colocou sua coroa abaixo e molhou seu manto com lágrimas de arrependimento. Fica sugerido que a coroa imperial foi tomada em custódia pelo papa. O sugerido na Legenda é dito no texto da Doação. Nesta, Constantino arranca de si e entrega ao papa Silvestre todos os ornamentos imperiais, as insígnias e símbolos, incluindo o cetro, a lança, o orbe terrestre, os estandartes “et diversa ornamenta imperialia”  ao sumo pontífice. Até a morada do imperador (palatium nostrum) e a cidade de Roma, todas as províncias italianas e ocidentais (loca et civitates) foram entregues ao bispo de Roma. A Doação fez do papa o real imperador, o Rex sacerdos, ou como diz Ullmann, um Papstkaiser, uma cópia ocidental do basileus hiereus. E como ainda diz Ullmann, embora o papa não usasse a coroa imperial, ele passou a ter a sua situação invertida diante da forma constitucional do Estado. Em vez de ser o vice do imperador de Bizâncio, ele era a fonte do poder imperial. O imperador derivaria o seu poder do papa, e só poderia governar com a concessão pontifícia. Começa a liberação real da Igreja e de seu Chefe diante do poder imperial. 

Apesar dessa afirmação unilateral do mando pontifício, pode-se dizer que o problema teológico político não se resolve. Relações entre Igreja e Estado, como enuncia Ernst Kantorowicks formam verdadeiro híbridos nos dois campos. A troca de insígnias, símbolos, prerrogativas passam de um campo ao outro. O papa é adornado sua tiara com a coroa dourada, usa a purpura imperial. O imperador usa, sob a coroa, a mitra, calça sapatos pontificais e outros adornos clericais, recebe como bispo o anel em sua coroação. “O sacerdócio mostra aparência imperial e o reino exibe um toque clerical”. () Assim, o aparato hierárquico da Igreja Romana “tendeu a a se tornar um perfeito protótipo de uma absoluta e racional monarquia com base mística, enquanto ao mesmo tempo o Estado mostrou uma tendência crescente a se tornar uma quase Igreja ou corporação mística com base racional”. () O autor, ao longo de seu livro, evidencia o tema da Igreja corpo místico e também a questão do Estado, república mística. Se estabelece uma passagem do político ao teológico e deste ao político. O círculo será rompido, e apenas de maneira especulativa, nos séculos 17 e 18, sobretudo nos pensamentos de Pascal, Hobbes, Spinoza. No primeiro, como resultado final do absoluto transcendente, o Estado é reduzido à pura força, ao “mundo”. Fruto, pois das três concupiscências enunciadas por São João, citadas acima. Em Hobbes, todo o espiritual se esvazia em favor do físico, mas não a partir da força natural. O Estado não é algo que possa ser encontrado no interior da natureza, mas é máquina que potencia ao máximo o poder coletivo contra os átomos individuais. O maquinista soberano segura na mão os símbolos dos dois poderes concorrentes, o religioso e o imperial. Em Spinoza, o teológico é expulso do campo noético político. Teologia e política são incompatíveis. 

Como exercício apenas, permito-me citar um artigo meu, publicado em revista nacional, que na verdade é um pequeno fragmento da pesquisa que desenvolvo sobre a razão de Estado, a ditadura e demais campos que interessam a todos os que sobreviveram ao Holocausto e às duas guerras mundiais. Refiro-me ao aspecto totalitário do pensamento hobbesiano, visto exatamente pelo prisma que apontei até agora, a passagem e o sentido do campo estatal para o eclesiástico, e vice-versa.

Ao contemplar a Virgem nas artes, medievais ou quando surgia a Renascença, notamos a desproporção entre o seu tamanho e o dos pecadores. Corpos trêmulos abrigam-se sob a mulher que esmaga o mal. O pagamento do pecado é a morte (Romanos 6,23), mas a salvação se oferece, gratuita. Cada um dos fiéis encontra em Maria a sua porta para deixar o vale de lágrimas. Os cristãos estão no mundo, mas caminham para o invisível . A coroa de Maria garante o triunfo sobre o Inferno. No culto à Virgem o tempo dos cristãos vai do agora ao instante da morte. Desprotegidos em termos seculares, os cristãos submetem-se aos barões ou peregrinam pelos centros onde Maria os reconforta. Os conflitos entre Estado nacional e Igreja centralizada surgem ao redor do mando soberano. Segundo G. Duby, “a coroação de Maria na catedral celebra (…) solenemente, a soberania da Igreja romana” . Com o tema da Virgem rainha e mãe, o papa Inocêncio III a reivindicava para a soberania plena da Igreja. Tendo na lembrança os enunciados acima, examinemos a Virgem enquanto figura do poder. Na pintura e nas doutrinas religiosas não existem pessoas isoladas, todas se colocam sob o manto de Maria/Igreja, o que lhes dá segurança e certeza da salvação. Na Virgem da Misericórdia, leigos e clérigos são protegidos igualmente pelo manto soberano da Mãe de Deus. As batalhas entre a Santa Sé e os reis conduzem a pintura para a propaganda política. No texto Sicut universitatis conditor (1198), Inocêncio 3º proclama que “O Criador do universo estabeleceu duas grandes luzes no firmamento dos céus; a maior para iluminar o dia, a menor para dirigir a noite. Ele fez o mesmo para o firmamento da Igreja universal, da qual falamos como se fosse um céu, e definiu duas grandes dignidades; a maior para proteger e governar as almas (os dias), a menor para proteger e governar os corpos (as noites). Tais dignidades são a autoridade pontifical e o poder real. A lua retira sua luz do sol, sendo inferior a ele em tamanho e qualidade, em posição bem como em eficácia. O poder real deriva sua dignidade da autoridade pontifícia: e quanto mais ele escapa da esfera daquela autoridade, menos luz o adorna; quanto mais dela se aproxima, mais aumenta seu esplendor” .

 Nas escaramuças entre os poderes surge o Policraticus.  O poder real, afirma Jean Salisbury, se quiser escapar ao label da tirania, deve ouvir e obedecer a Igreja. E vem a profecia: o Estado exigirá para si a força física ilimitada. O corpo social, no Policraticus, é relevante porque a dualidade entre os poderes — espiritual e secular — começa a se definir. Se a tarefa do príncipe é manter a boa saúde do corpo estatal, o sacerdote tem a missão de aconselhar neste labor, como se fosse a alma da República. Caso o rei abuse do poder e desobedeça aos mandamentos religiosos, mergulhando a comunidade na injustiça, a sua morte é correta e abençoada. No imaginário religioso foram geradas imagens contraditórias do soberano laico, da monstruosa à respeitável. Mas elas não se recobrem, deixam espaços para os cidadãos decidirem sobre a obediência hegemônica, a religiosa ou a secular. Igreja ou Estado não integra os indivíduos numa unidade sem fissuras. As imagens da Virgem, signos da soberania eclesiástica, mostram o quanto o poder legítimo protege os súditos até a hora da morte. Com a secularização do Estado e da cultura, o indivíduo só tem segurança quando preso ao corpo estatal.

 Com Hobbes o cidadão perde o direito de seguir a consciência religiosa contra o poder. A causa deste veto encontra-se na ficção do pacto, no qual todos os indivíduos contratam a sujeição comum ao soberano, sendo autores do Leviatã. Ir contra este último significa destroçar a si mesmo, o que seria ilógico na óptica assumida pelo filósofo. “Constituído o Estado, a personalidade inteira do povo passa sem reserva à do soberano, seja esta a personalidade física de um indivíduo, seja ela a personalidade artificial de uma Assembléia. Só na última e por ela o povo é pessoa, enquanto é apenas uma simples multidão sem ela e, portanto, não pode ser pensado como sujeito de qualquer direito diante do soberano” . A principal renúncia, no pacto, determina que os indivíduos não têm direito de professar a sua religião como lhes interessa.

Hobbes investe contra o universo cristão, cuja doutrina afirma que a natureza participa da sobrenatureza divina, e fundamentava a dualidade dos poderes, o secular e o religioso. O pacto ocorre no mundo e reúne a todos e a cada um. Se todos se sujeitam a todos, os que quiserem retornar à vida anterior ao pacto serão esmagados, mesmo que sejam muito fortes. E temos a imagem célebre do Leviatã para definir o nexo entre as pessoas e o coletivo. Vejamos uma outra vez a figura monstruosa
 No Leviatã, os seres humanos integram o corpo do gigante sem nenhum intervalo, dando-se a unidade absoluta das partes no corpo do Estado. No caso da Virgem, percebe-se não apenas a diferença do tamanho (Maria imensa, os súditos pequenos) mas os corpos não se fundem. Tal distância corresponde à transcendência do poder religioso. Maria intercede pelos homens, mas seu corpo não é formado por eles. O soberano hobbesiano não depende de nenhuma transcendência porque expressa de imediato a vontade dos que o constituem e conhece diretamente a vontade coletiva. Não existe intervalo entre o coletivo e cada um dos que assumiram o pacto de submissão. E se por acaso surgir alguma fissura entre ambos, o indivíduo que a produz é réu de traição a si mesmo, porque deseja o pacto. O poder é imanente em termos absolutos, o que simplifica ou mesmo suspende a questão da legitimidade. O Leviatã protege os indivíduos deles mesmos. Ou cada um aceita integrar-se nele, ou assume a guerra primitiva que põe a sua própria existência em risco perene. Cada um, a partir do pacto de submissão, sente e pensa como um “nós” que domina as veleidades de autonomia e independência individual.

 Horst Bredekamp, estudioso do fascínio pela máquina que assalta a alma ocidental, escreveu bela análise sobre o Leviatã, protótipo do poder mecânico onde se integram os indivíduos num coletivo finito, contrário à transcendência religiosa. Em Estratégias Visuais de Thomas Hobbes, ele expõe a gênese das imagens utilizadas pelo filósofo e as suas fontes nas teorias ópticas, na retórica e nas tradições místicas. Seu mote encontra-se nas palavras de Hobbes: os homens podem prever a sua própria preservação e uma vida com maior contentamento. Eles só podem fugir da guerra que surge das paixões “quando não existe um poder visível para lhe impor respeito” (Leviatã, segunda parte, Of Commonwealth). Hobbes, argumenta Bredekamp, inicia a moderna teoria do Estado a partir da óptica, matéria que estudou durante anos e inseriu em sua obra principal com figuras tão cuidadosamente escolhidas que resultam de estratégias visuais. O autor também observa o De corpore (1655), onde Hobbes desenvolve sua teoria das marcas e sinais. As marcas ajudam a memória, os sinais definem-se por sua publicidade. Eles comunicam assuntos e podem dar início a ações. Bredekamp dá como exemplo de um sinal público o colapso das Torres Gêmeas em 11 de setembro. O sinal do Estado encontra-se na unidade. O contrato que o forma é mais do que um acordo, pois trata-se da união real de pessoas (in personam unam vere omnium unio). Nele, as vontades são reduzidas a uma só.

Com base nessa imanência absoluta do Estado, fortificaram-se na modernidade teorias e práticas cujo paroxismo ocorreu nos Estados fascistas e estalinistas do século 20. Hobbes não tem culpa pela radicalização de seu protótipo político. Ele não precisaria mesmo ser chamado ao Tribunal de Nuremberg a exemplo de seu admirador, Carl Schmitt . () E não se pode afirmar que a estrutura de mando cujo modelo é a transcendência efetiva os sonhos de salvação nela prometidos. O fato é que Estados modernos ainda não se livraram da cautela teológica, outros Estados colocam-se diretamente sob ela (ou pelo menos seus governos, como é o caso dos EUA nos dias de G.W. Bush e dos sacerdotes que definem a sorte do Irã e de outras terras) ignorando tudo o que, desde as Luzes, se conquistou no plano democrático. O modelo hobbesiano surge como paradigma do césaro papismo, no qual a religião é jogada em plena consciência invisível dos governados. Ela não tem estatuto público. As tentativas de radicalizar o banimento do fato religioso positivo, as igrejas existentes, mesmo das consciências, terminou em desastre, como ocorreu com o jacobinismo da Revolução francesa e com a URSS e seus dependentes. Vejamos, no futuro, o que pode advir para os dominados, ao dispor do do Leviatã ou dos sacerdotes infalíveis. Futuro pouco lisonjeiro.
Roberto Romano