Flores

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sábado, 30 de março de 2019

A Universidade e o Neo-liberalismo. Roberto Romano. Palestra feita em Belém do Pará há muito tempo atrás. No entanto, tristemente, guarda atualidade atroz.


A Universidade e o Neo-liberalismo

Infelizmente, os senhores convidaram, para falar sobre o tema A Universidade e o Neoliberalismo, um estudioso da Filosofia.Num primeiro instante, enuncio certos conceitos fundamentais do próprio liberalismo e do Estado para, depois, me referir ao núcleo da questão. Um engano trazido pelo item "neo", aposto ao liberalismo, é o de fazer o espírito olvidar o significado mais duro do próprio liberalismo. Longe de ser um ideário simples e democrático, o conjunto de doutrinas que o termo "liberal" evoca é muito complexo. Ele pode encerrar atitudes libertárias e democratizantes, opostas ao poder absoluto do rei, por exemplo, mas pode também trazer em si mesmo, como veneno escondido, teses contrárias à democracia. Não raro, ele traz alguns dogmas perfeitamente genocidas, justificando as atuais façanhas de seu filho, o suposto "neo" liberalismo. Não existe nenhuma correção de rumos, para pior, no que hoje apontamos sob o "neo". Ele radicaliza os traços mais hediondos do movimento que o gerou nos séculos XVIII e XIX.

Tomemos alguns exemplos teóricos estratégicos. O liberalismo une-se, quase universalmente, ao pensamento de John Locke. Leiamos o que esse pensador afirma no Segundo Tratado sobre o Governo: "o maior e principal fim, pelo qual os homens reúnem-se em sociedade, e se colocam sob um governo, é a preservação da propriedade" (II, 124). Ser homem é ser proprietário, o trabalho fundamentando essa antropologia. Quem não trabalha pode ser, inclusive, escravizado pelos homens "bons", os proprietários. Citemos Locke: um homem, "tendo cometido, por sua falta, um ato que merece a morte, aquele contra o qual foi cometida esta falta, o tem em seu poder, e pode usá-lo, para seu próprio serviço. E isso não é um dano para ele, pois enquanto ele considera o peso de sua escravidão demasiado, diante de sua vida, ele pode, resistindo à vontade de seu senhor, trazer para si a morte que deseja". Comenta a Professora Maria Sylvia Carvalho Franco, em artigo sobre nosso liberal,

"O desleixo no trabalho, atividade basicamente aquisitiva, fundamento da propriedade, justifica, na ordem lógica e ética, no sistema de Locke, o seu confisco e uso em favor dos operosos e racionais. Do mesmo modo, a quebra da paz e harmonia originárias, configurando crime, colocam o delinqüente à mercê do ofendido, cabendo-lhe apreender seus bens–trabalho, propriedades, vida"("All the world was America", Revista USP, Dossiê Liberalismo).

Desse modo,

"a presença do escravo, no Segundo Tratado, nada apresenta de contraditório com o liberalismo: prática e teoricamente (...) a justificativa da escravidão é uma conseqüência última, que deriva dos seus pressupostos: o poder atribuído ao espécime perfeito de confiscar, de modo total, os predicados constitutivos da pessoa humana, naqueles considerados defeituosos e nocivos" (Ibid.).

Nessa tarefa de fundamentar a igualdade dos iguais, os proprietários operosos, Locke move todos os saberes de seu tempo, sobretudo a história natural, classificando os indivíduos segundo suas marcas exteriores. Quem trabalha coloca em operação uma força, oferecida por Deus, e adquire propriedade sobre as coisas exteriores, ao mesmo tempo em que assegura a propriedade de si mesmo. Quem não trabalha não aceita o dom divino, ameaça as propriedades alheias, sobretudo a propriedade sobre o corpo. Desse modo, segundo Locke, os que não trabalham devem ser vistos como "bestas feras" contra as quais os piores castigos precisam ser aplicados e, dentre eles, a perda da existência ou a escravidão.
Quem estuda a história inglesa, desde o final da Idade Média até o século XVII, sabe que os "preguiçosos" compunham, na verdade, a massa de camponeses expulsos de suas terras, as quais passaram ao domínio da aristocracia e dos ricos mercadores. Desse modo, ao atribuir aos desapropriados a "culpa" de sua não propriedade, Locke universaliza argumentos que servem, até hoje, para definir uma desigualdade lógica, fruto de uma desigualdade histórica e economicamente estabelecida. 

• • "A série de argumentos sistematizados por Locke, em sua doutrina, é autoconcludente: o conceito de homem como espécie na ordem natural, a lógica e o entendimento classificatórios que o agrupam e distribuem por uma taxinomia, distinguindo os perfeitos e os degenerados; a atualização de sua potencialidade específica, concebida" (Ibid). 

Tudo isso conduz a "um inclemente domínio político e socioeconômico".

Inspecionando as doutrina liberais de Locke e comparando-as às falas "neoliberais", conclui a Professora Carvalho Franco

• "Não há como tornar o chamado ‘neoliberalismo’ distinto e menos agressivo que a doutrina clássica: os princípios que sustentam o seu desenvolvimento são os mesmos: propriedade seletiva, mercado soberano, liberdade como prerrogativa de alguns, diferenças, cada vez maiores, atribuídas aos que sucumbem nos processos competitivos" (Ibid).
Esse ponto é nuclear porque, não raro, quando se indicava, antes da onda neoliberal de hoje, certos traços imanentes ao liberalismo, como o perfeito convívio com a escravidão, sempre algum bem pensante dizia não ser possível confundir racismo com liberalismo. Entretanto, o que notamos, nos argumentos de Locke, é a perfeita adequação do principio da propriedade e liberdade de todos os proprietários. Quem não é proprietário é fera que pode e deve ser colocada a serviço dos que são iguais entre si. O escravo pode possuir qualquer pigmentação da pele: basta que ele tenha atentado, ou possa vir a atentar, em algum momento, contra a propriedade, a marca humana dos "homens bons", para ser reduzido ao status de não homem.
Locke não é único liberal prestigioso a proferir essas doutrinas terríveis. Os textos de doutrina jurídica cantam os louvores a I. Kant, o pai do liberalismo e da idéia moderna de autonomia.
Vamos conferir o que diz o teórico da Critica da Razão Pura:

"Os negros da África só receberam da natureza o gosto pelas tolices... Branco e negro, essas duas raças de homens, parecem tão diferentes em sensibilidade quanto na cor. O culto dos fetiches, muito honrado entre os negros, é talvez uma espécie de idolatria tão miserável que parece contradizer a natureza humana. Uma pena de pássaro, um chifre de vaca, uma ostra ou qualquer outra coisa comum, desde que tenha sido consagrada por algumas palavras, torna-se objeto de veneração. Os negros são extremamente vadios e tão tagarelas que é preciso dispersá-los com golpes de bastão" (KANT. Observações sobre o Belo e o Sublime, Quarta Seção, "Sobre os caracteres nacionais").

No juízo negativo, é ressaltado o elemento valorizado no branco europeu: a sua capacidade intelectual, o seu gosto sensível, o seu trabalho. Nesse passo, Kant continua, de modo explícito, um herdeiro direto de Locke, David Hume. No seu ensaio sobre os caracteres nacionais, diz também o liberal Hume:

Suspeito que os negros, e em geral todas as espécies de homem (porque há quatro ou cinco tipos diferentes), são naturalmente inferiores aos brancos. Nunca houve uma nação civilizada de outra compleição, a não ser entre os brancos, nem indivíduo algum tanto nas ações quanto nas especulações. Não existem engenhosas manufaturas entre eles, nem arte, nem ciência (HUME).

Poupo os senhores das teses "científicas" de Hume, um dos mais eminentes filósofos da Luzes, sobre os povos não brancos.
Mesmo Hegel, o poderoso criador da moderna dialética, apresenta uma visão bem definida nesse assunto:

"(...) o negro representa o homem natural em toda a sua selvageria e petulância; é preciso abstrair todo respeito e moralidade, o que chamamos sensibilidade, se desejamos compreendê-lo; nada pode ser encontrado neste caráter que lembre o homem. Os prolixos relatos dos missionários confirmam isto plenamente" (HEGEL. Lições sobre a Filosofia da História).

Termino a inspeção indicando os liberais de nosso tempo. Segundo os patronos da USP, os Mesquita, donos do jornal O Estado de São Paulo, os pretos seriam, e cito diretamente suas frases, "uma toxina", definida pela "massa impura e formidável de dois milhões de negros subitamente investidos das prerrogativas constitucionais (...) fazendo descer o nível da nacionalidade na mesma proporção da mescla operada" (apud: Capellato, 1993).

Com essa visão excludente, eles pensaram a Universidade de São Paulo, produtora de elites acima do povo "impuro". A universidade, para Mesquita Filho, cumpre no "organismo social" o papel do "sistema nervoso no organismo animal". Cabe-lhe, além disso, "restaurar a disciplina na mente popular" (apud: CAPELLATO, 1993 e ROMANO, 1985). Não espanta, pois, se encontramos teses congruentes, nesse plano, mas agora universalizadas para todo o povo brasileiro, preto ou branco, no liberal, neoliberal e fascista Roberto Campos. A sua doutrina é a de que ainda impera, nos meios "realistas" do Estado e da chamada sociedade civil, o eugenismo, sementeira permanente dos vários regimes deste século, de Mussolini a Pinochet. Os textos de Roberto Campos martelam a única solução para o Brasil: colocar-se de quatro diante dos Estados mais fortes e impedir a existência de novos brasileiros.

Comentando o pungente livro de Viviane Forrester (1997) sobre o cassino financeiro, que joga sempre mais desempregados na miséria, disse Roberto Campos: falar em "excluídos" cito as suas palavras grosseiras, é "empulhação". Na verdade, arremata, muitos dos chamados "excluídos", no máximo, "poderiam ser ditos ‘ainda não incluídos’, fabricados pelo espermatozoide delirante. Aos 18 milhões que moravam nas cidades em 1950, foram acrescentados 100 milhões pela paternidade irresponsável". Desse modo, o economista faz as contas e decide o que deve ser feito com os filhos do esperma delirante. Soluções finais não precisam ser apenas as que usam campos de concentração. Pode-se transformar um país inteiro em imenso campo de morte. Somos, hoje, pouco mais de 160 milhões de habitantes. Se, como afirma Roberto Campos, 100 milhões, dentre nós, surgem apenas da loucura, o diagnóstico está pronto. O tratamento usado, por enquanto, reside nos confiscos de rendas, de emprego, de escolas, de hospitais.

Assim, quando nos referimos ao neoliberalismo, esquecendo o seu vínculo com o próprio liberalismo, perdemos uma continuidade histórica, que alicerçou, nas consciências nacionais e nas classes, "argumentos" que hoje servem para colocar nossos povos na passividade diante dos atentados à vida humana, feitos em nome do livre mercado. A consciência moderna está pavimentada por ideias de exclusão, que parecem o seu contrário, a igualdade e a liberdade de todos. Esse é primeiro ponto que eu gostaria de recordar com os senhores.

O segundo gira ao redor de alguns conceitos importantes para entendermos o que se passa, hoje, no plano do Estado e quais as inovações trazidas pelo neoliberalismo. O Estado moderno, surgido das lutas contra o mando feudal e o poder discricionário da nobreza, pouco a pouco concentrou em si três monopólios essenciais, que definem a esfera pública. O primeiro monopólio é o da força física. Somente a instituição estatal possui o direito de polícia e de arregimentar exércitos. Ninguém, ou nenhuma instituição além do Estado, pode constranger corpos dos cidadãos e dos estrangeiros, em caso de grave ruptura com a vida comum, dentro dos limites do país e fora dele. Desse modo, nenhum particular pode armar-se e constranger os outros particulares com a força física.

No Brasil, apenas para exemplo, temos o costume de tomar como fato corriqueiro a contratação de guardas para nossas casas, como os fazendeiros julgam normal contratar capangas e milícias para suas propriedades, matando cidadãos impunemente. Durante a ditadura, tivemos os esquadrões da morte, as organizações secretas de assassinato e tortura, lideradas e executadas por empregados estatais, como alguns militares, mas sem que esses atos fossem oficiais. A força física do Estado só é um monopólio porque, supostamente, é orientada para preservar a vida de todos os cidadãos. Sendo aquelas organizações dirigidas para a morte de alguns cidadãos e, idealmente, de todos os que se opunham ao governo, elas eram, rigorosamente, anti-estatais, embora semi-oficializadas.
O segundo monopólio é o da norma jurídica. Só o Estado tem a prerrogativa de editar leis com vigor universal, valendo para todos e para cada um dos cidadãos. Nesse sentido, ninguém pode definir o que indivíduos, grupos, classes devem fazer obrigatoriamente. Tendo o Estado três faces, a Legislativa, a Executiva e a Judiciária, só em caso de uma ditadura, atingida por meio de golpe de Estado, um dos poderes, quase sempre o Executivo, se apropria ilegalmente desse monopólio, que deve ser repartido entre os três setores, suprimindo ou colocando o Parlamento e os tribunais sob tutela.
No caso da ditadura militar, os "Atos Institucionais" foram uma usurpação, pelo Executivo ocupado pelos castrenses, de prerrogativas que pertenceriam ao Estado na sua integridade. Em nossos dias, as Medidas Provisórias, embora sem a profundidade dos Atos Institucionais, porque supostamente devem ser ratificadas pelo Congresso, usurpam os plenos poderes do Parlamento e do Judiciário.
O terceiro monopólio é a gestão e alocação do excedente econômico. Só o Estado pode impor taxas, definir impostos obrigatórios para todos os cidadãos. Como só ele retira parte da riqueza produzida pela sociedade como um todo sob forma de impostos, só ele pode aplicar esses recursos. Ou seja, tendo o monopólio da força e da norma jurídica, somado ao monopólio da gestão do excedente econômico, só o Estado pode e deve gerir o que se chama de políticas públicas: saúde, educação, lazer, guerra, segurança interna, cultura, etc. Por mais privatizada e privatizadora que seja a instituição estatal, só ela pode definir o que a sociedade como um todo deve fazer nesses setores.
Nossa tradição estatal se caracteriza, desde a Colônia até hoje, pelo excesso no uso centralizado, posto nas mão de um só poder, o Executivo, desses monopólios que deveriam constituir a característica do Estado. Somos uma Federação regida pelo Executivo Federal e, nela, os poderes locais, os municípios, e regionais, os Estados, são entidades totalmente passivas e dependentes do que se passa no núcleo nacional.
Desde a Colônia, sim, mas também durante o Império, as Regências, a Velha República, as ditaduras Vargas e militar, o governo central abusou da força física. Nossa federação foi imposta através dos canhões, abafando tendências autonomistas e, no limite, separatistas de Norte a Sul. Os Farrapos, a Farroupilha, a República do Equador, os Mascates, etc. foram movimentações derrotadas com muito uso de força física. Isso criou o hábito de considerar "normal" que o governo do centro impusesse a sua vontade na ponta das baionetas ou, como ainda em 1932 em São Paulo, nas patas do cavalos, amarrados no obelisco paulista. Desde então, os atos repressivos do governo, com ou sem golpes de Estado, foram uma constante.
O Executivo federativo também abusou da uniformização legal. Entre nós, as normas legais são ideadas e impostas ao todo do país, sem nenhum respeito pelas particularidades regionais e pelos poderes dos Estados e municípios. É o oposto do que ocorreu na federação americana. Todos sabem que a constituição daquele país é centralista (Kramnick, 1993). Mesmo assim, ela mantém grande autonomia dos Estados, em todas as matérias, da educação à saúde e desta às leis penais.
Temos, também, excesso de centralização fiscal, em detrimento de nossos municípios e Estados. O Brasil é uma pirâmide fiscal invertida: ao contrário de outras federações, onde o retorno dos impostos vai diretamente, em primeiro lugar, aos municípios e às províncias, e apenas a menor parte segue para o governo central, dado que as maiores despesas encontram-se na base; aqui a maior parcela, desde sempre, vai para o centro federativo, que "redistribui" os recursos de acordo com suas conveniências, ou seja, as do Executivo. Certas normas fiscais são um verdadeiro atentado a qualquer autonomia regional ou municipal. A "lei Kandir", que arranca verbas dos Estados, prejudicando a saúde, a educação, a pesquisa, é uma dessas teratologias jurídicas.
Semelhantes excessos no três monopólios do poder resultam na hiperbólica centralização das políticas públicas, produzindo a sua ineficiência. São exemplos disso os casos de Caruaru, da retomada das doenças de massa e outros.
Todo esse processo centralizador segue, com lógica férrea, até às últimas consequências. A centralização de força, norma jurídica, apropriação do excedente econômico desemboca não só na centralização de tudo no Executivo. No interior deste último, ela se concentra nas chamadas "áreas econômicas". Os seus ocupantes não foram eleitos, nem o serão. Trata-se de um exercício irresponsável como o do rei absoluto. Um gabinete do Banco Central concentra maior poder do que todo o Parlamento e, não raro, do que todos os Tribunais. Os planos econômicos, aplicados na calada da noite, preparados por "técnicos", do plano Cruzado ao Real, passando pelo confisco ocorrido no "governo" Collor, todos constituem verdadeiros golpes de Estado, sem que ninguém possa impedi-los, sem que os cidadãos tenham condições de recusá-los. Impostos como a CPMF são assumidos, desviados de sua finalidade propalada, e nenhuma autoridade responsável pode reverter essa situação.
Termino esse ponto com o seguinte elemento: a política nacional, em todos os níveis, não é federativa, não é democrática, não recolhe a iniciativa de todo o Estado, mas tem a hegemonia do Executivo e, dentro dele, da área econômica, decidindo com raciocínio tacanho a maior parte dos negócios públicos, como a educação, a saúde, a Ciência e Tecnologia, etc. Os gabinetes ministeriais desses setores são apenas servos sob comando de seus superiores, os econômicos. Isso tem sido confessado, clara e distintamente, pelo atuais ministros da Educação, da Ciência e Tecnologia, etc.
Temos, pois, que o neoliberalismo se ergue sobre um passado de justificativa de desigualdades e que ele, no Brasil, teve representantes piores do que seus idealizadores europeus. Perto de Roberto Campos, o nosso "liberal", Locke, Hume e Kant são verdadeiras Madres Tereza de Calcutá. Nossa tradição política e jurídica é centralizadora, com base no abuso dos três monopólios, atributos de todo poder de Estado.
Passemos ao nosso problema. Assistimos, no mundo, sobretudo após a II Grande Guerra, algumas revoluções científicas e tecnológicas. A primeira foi a aplicação intensiva de capitais em técnicas inovadoras (energia nuclear, automação, produtos sintéticos, computadores, eletrônica). A segunda ocorreu nos anos 60, com uma segunda geração de computadores, eletrônicos, sintéticos e novas técnicas de comunicação. A primeira foi uma passagem do trabalho intensivo na indústria para o capital intensivo como o centro da acumulação, em escala mundial. A segunda foi do capital intensivo para a tecnologia e saber intensivos. Desse modo, surgem novas indústrias baseadas na tecnologia de ponta e com conteúdos científicos, como eletrônica e computação, telecomunicações, robótica, cibernética, ciência aeroespacial, biotecnologia. Esses fatos dão-se, não por acaso, nos países do Norte. Os efeitos dessas mudanças se fazem sentir, imediatamente, na quebra das barreiras nacionais. Os países do Norte aumentam em escala inusitada o controle das tecnologias, das informações, dos serviços (sobretudo as finanças) enquanto o trabalho intensivo domina os países do Sul, sem que ele passe para a outra fase, já atingida pelos países do Norte. Desse modo, ocorre uma uniformização econômica mundial, orientada segundo as opções dos Estados que possuem bases para acumular lucros, a partir de seu privilegiado status técnico e científico. Esses países concentram o controle financeiro, técnico, científico em benefício e sob gerência de elites nacionais mas com impacto multinacional.
Com isso, medidas que antes e pouco depois da II Guerra tendiam ao aumento da potência de um país, em detrimento de outros, através imediatamente do uso externo do monopólio da força física (como a doutrina Monroe, com o "big stick") ou como, durante a Guerra Fria, requisitavam o uso da forca física unida aos esforços diplomáticos intensos, mais a espionagem, como ocorreu na maior parte dos países da América Central e do Sul, com os Estados Unidos patrocinando golpes de Estado militar para definir seu controle, passam a ser incômodas ou irrelevantes para a política dessas grandes potências. Claro, se preciso, elas apelam para a força física, como ocorre atualmente no embate entre o governo iraquiano e os Estados Unidos. Mas o eficaz mesmo, no domínio, vem das armas técnicas, de informação, de controle financeiro, etc.
Os capitais dos países do Norte são impostos aos dominados, criando-se elites locais transnacionalizadas, sob o comando das elites hegemônicas. Com esse dado, surgem as teses e as práticas de uma "transnacionalização" dos Estados não hegemônicos. Em cada país dominado, temos elites tecnocráticas lideradas por elites localizadas nos EUA ou na Europa. Os instrumentos dessa hegemonia (técnicas de ponta, serviços que empregam intensamente saberes científicos, finanças, etc.) permanecem nos países citados. As elites "locais", as dos países controlados, tendem a não operar mais na lógica do Estado nacional, com os três monopólios definidos acima. Elas abrem mão de conceitos e práticas tidos como "ultrapassados", como os que definem a idéia de "soberania nacional".
Ocorre que os países dominados não são terra apenas de elites. Eles contam com milhões de seres humanos, cujos padrões de vida diminuem em qualidade, em favor dos trabalhadores dos países que possuem os elementos da segunda revolução científica e tecnológica. Enquanto o desemprego diminui nos EUA, por exemplo, sendo o menor dos 20 últimos anos, ele aumenta nos países que abrem mão do incentivo às técnicas, à educação, às ciências em nível de massa. O Brasil é o quinto importador dos EUA não por acaso. A massa de recursos drenados diretamente para a economia americana deixou de ser algo irrelevante no mercado interno daquele país. Acordos como o do SIVAM, sabe-se, assegurariam empregos para americanos do Norte aos milhares. E nada aqui.
Tendo o recurso à força física bruta se revelado ineficaz, com o fracasso das ditaduras militares, e anacrônico em termos da comunicação em escala mundial, o "novo modelo" assumido nas relações de poder, assimétrico entre os países hegemônicos e os dominados, é o da "democracia política", cujo alvo precípuo é o de concentrar as atenções permanentes das massas em processos eletivos, afastando-as o mais possível de suas demandas e exigências sociais. Desse modo, governantes são eleitos, parlamentares idem e seus atos recebem todos os holofotes, de modo a que não se discuta a ação das elites tecnocráticas, não eleitas mas unidas aos centros de decisão transnacionais. O foco principal cai sobre a corrupção dos governantes, no Executivo e nos Parlamentos ou Judiciário, de modo a enfraquecê-los ao máximo, mas sempre em nome da "democracia", ou seja, das eleições permanentes. Nenhuma palavra é permitida sobre os negócios bilionários entre os centros financeiros transnacionais e as elites tecnocráticas subordinadas.
E chegamos ao campo neoliberal. O que significa mesmo esse vocábulo composto? Trata-se de um conjunto discursivo e de um modus operandi destinados, fundamentalmente, a definir condições ótimas para a mobilização total do capital. Por isso, e na lógica que vimos seguindo, o primeiro passo dos seus adeptos e serviçais é o de eliminar, nos Estados submetidos, os três monopólios que indiquei acima. Trata-se de eliminar, ali, o monopólio da força, da norma jurídica e do excedente econômico. Para que o capital tenha certeza de não se perder naquelas terras, urge estabilizar a sua economia, segundo os parâmetros ideais para ele, capital transnacional. E isso deve ser feito no maior número possível de países para que, surgindo dificuldades em um deles, o capital possa dele sair e penetrar, com segurança mínima, nos outros. Se aparece uma zona de turbulência na Ásia, é preciso que o Brasil ofereça condições para o acolhimento desses capitais. Assim, estabilidade financeira, obtida à custa do retraimento das demandas sociais das massas, e juros altos são polos de atração dos mencionados capitais.
É tempo de introduzirmos um complicador nesse panorama. Falamos dos três monopólios do Estado moderno. Mas esses monopólios, como vimos no caso brasileiro, variam de país a país. Em nosso caso, eles foram açambarcados pelo Executivo federal. Ocorre que, sendo capitalista, nosso Estado, com hegemonia absoluta do Executivo, ainda apresenta uma face dupla e contraditória. Ele, ao mesmo tempo, providencia, através de suas elites irresponsáveis, nos gabinetes econômicos, as condições para a acumulação transnacional dos capitais e ainda representa a nação que não é possível transnacionalizar, a maioria de milhões, marginalizados do movimento financeiro, técnico, científico, educacional, de saúde, etc. Como é evidente a contradição dessas duas faces, os Estados submetidos são claramente entidades hamletianas; para eles, "to be, or not to be, that is the question". Os governantes, não apenas enquanto demagogia, mas por uma contradição real, precisam, ao mesmo tempo, abrir os cinco dedos, indicando políticas sociais responsáveis, e fechá-los, para recolher impostos, definir normas jurídicas, aplicar a força física em proveito do capital transnacional.
Assim, no mesmo passo em que se anunciam programas retumbantes de "comunidades solidárias" e "universidades" idem, os governos devem, como prioridade absoluta, assumir medidas que reduzem os referidos programas à poeira. Eles devem adotar políticas fiscais e monetárias (usando o monopólio do excedente econômico) que assegurem a "estabilidade" para os capitais transnacionais. E precisam providenciar a estrutura básica para a atividade econômica global (aeroportos, portos marítimos, rede de comunicações, sistemas educacionais, de acordo com o que o capital internacional requer de seu país) . Eles devem, além disso, e ao mesmo tempo, prover a ordem social, ou seja, a estabilidade política, o que exige produzir ou manter instrumentos de coerção e controle das consciências.
Ou seja: ao contrário do que se afirma em muitas teses de "ciência política", "filosofia política", "história", "economia", não estamos assistindo ao fim do Estado nacional, com os três monopólios descritos. Existe, sim, a passagem dos Estados nacionais para o status de Estados neoliberais, onde os três monopólios são empregados para conciliar interesses contraditórios: os interesses das grandes massas dos excluídos pelo processo de acumulação de saberes e riquezas e os interesses dos capitais transnacionais.
Chegamos ao tema "A universidade e o neoliberalismo". A universidade reúne o que se chama o setor "intelectual". Nela, residem e operam os grupos e indivíduos que um autor italiano, Antonio Gramsci, indicou como "os técnicos em legitimação". Voltemos rapidamente aos três monopólios: eles só podem ser empregados por longo tempo se forem "legítimos". Quando ocorre o abuso deles, por exemplo, sem que a sociedade civil tenha delegado o seu uso a autoridades eleitas, como na ditadura, os intelectuais unidos ao regime de exceção (caso de Roberto Campos, Delfim Netto e outros) produzem "argumentos" para legitimar tal emprego. Também o Estado neoliberal possui semelhantes "experts" em legitimação. Eles "teorizam" as condições ideais de controle e mando, apresentando a política empírica, a que se faz sob o comando do capital transnacional, como a "única via possível".
Tanto nos países hegemônicos como nos subordinados, a "comunidade" formada pelos "experts em legitimação" produz mais do que simples nexos teóricos. Sem ela, a prática do controle político e econômico é impossível. É de seu interior que surgem os "técnicos" e "assessores" cujo fim, nos ministérios e demais organismos de governo, é a elaboração de políticas públicas que permitam reunir, num só ato, os traços contraditórios: responder às demandas de saúde, educação, etc. das grandes massas e as bases para a expansão, sem demasiados sustos, do capital transnacional.
Hoje, como indica Robert Cox (1987),

"(...) a produção intelectual é organizada como a produção de bens ou de outros serviços. As bases materiais das redes são providas por organizações formais (usualmente não governamentais) como agências mobilizadoras e coordenadoras com diretores de pesquisa e de fundos (de fontes às vezes mais, às vezes menos visíveis) para estudos dirigidos, conferências financiadas e simpósios ou discussões informais (...) A base material das redes responde pela seleção dos participantes, o que garante certa homogeneidade ao redor do centro da ortodoxia a ser implantada".

Ou seja, apesar da ortodoxia, tais redes não deixam de lado, absolutamente, idéias "aceitáveis" para o núcleo. A política dessas redes, continua Cox, e isto é importante para nós, que temos um governo de universitários, é "conseguir intelectuais que tenham influência política, ouvidos pelos que tomam as decisões nas cúpulas, ou mesmo se tornando, eles próprios, os que decidem, formando equipes decisórias em termos políticos". Essa missão foi definida, ampliada e garantida pelo governo dos Estados Unidos, com o rótulo de "luta pela democracia" no mundo. Democracia, é claro, segundo os parâmetros norte-americanos. Termino minha fala mencionando o programa do ex-secretário de Estado americano, George Schultz (1983), cujo objetivo é o de captar e treinar as elites universitárias do mundo inteiro, para que aplique a "democracia", estilo USA, nas terras dominadas.

O primeiro item, diz Schultz, é o "treino das lideranças", o que envolve um amplo leque de atividades para selecionar e treinar uma base extensa de líderes intelectuais, em terras estratégicas, através de seminários e outros meios, em programas das universidades estadunidenses. 

O segundo item refere-se à "educação", ou seja, "inculcar os princípios e práticas da democracia e o caráter e valores dos Estados Unidos nos sistemas educacionais de outros países". Isso implica, adianta o político norte-americano, penetrar nos sistemas educacionais e na mídia dos países alvo.
 
O terceiro item é o de "fortalecer a democracia", ou seja, organizar, fundar, aconselhar partidos, uniões, mídia, negócios e grupos civis nos países alvo. "Aqui, novamente", diz o secretário, "devemos reunir organismos não governamentais norte-americanos para a maior parte do trabalho".

O quarto item é o de "dirigir ideias e informações", organizando fóruns e publicações, todos dirigidos para as elites, de um lado, e, através de campanhas na mídia, atingir consenso e influência nas massas, com a noção dos padrões americanos de vida. 

Finalmente, o quinto item diz respeito ao desenvolvimento de laços pessoais e institucionais entre equipes americanas e dos países alvo. Esses itens entram numa agenda completa de captação e cooptação de universitários dos países alvo, para as "reformas" requeridas pela política econômica e social americana.
 
Nesse aspecto William I. Robinson (1996) tem um trabalho estratégico, que deve ser lido, analisando o que se passa, hoje, nas relações entre Estados Unidos e Chile, Filipinas, Nicarágua, Haiti. O modus operandi, entretanto, é similar ao aplicado ao Brasil, cabendo nos itens estabelecidos por Schultz. Boa parte do que indiquei acima, vem dessa análise.
 
Como os senhores constatam não me detive, nesse quadro, nas "reformas" definidas para a Universidade brasileira. Em primeiro lugar, indiquei a ideologia que sustenta o neoliberalismo, a qual lança raízes no próprio liberalismo, ou seja, na ideia de que o centro antropológico fundamental é a propriedade e que este é o valor a ser protegido, acima de tudo. A propriedade e o mercado onde ela se movimenta. Em segundo lugar, sugeri que, longe de ser uma abolição do Estado, a prática e o ideário neoliberal consistem no uso do mesmo, com os seus três monopólios, para servir ao capital transnacional, cuja sede reside nos países hegemônicos, em especial nos EUA.
 
No caso brasileiro, essa tarefa é facilitada, considerando-se a enorme concentração de poderio no governo federal, o que torna toda a máquina do Estado dócil para as diretivas transnacionais. Ao mesmo tempo, considerando-se as grandes massas urbanas brasileiras e sua pressão constante por serviços sociais, essa tarefa torna-se mais complicada. Daí, advêm a imensa propaganda, nos meios persuasivos na mídia, e a cooptação exacerbada das supostas elites acadêmicas, com programas como o Pronex, enquanto recursos são extraídos aos milhões da pesquisa e da formação acadêmica, nos campi e nos laboratórios de pesquisa. Uma excelente análise desse ponto encontra-se na coletânea A quem pertence o amanhã?, especialmente nos artigos de Malaguti (1997) e Carcanholo (1997).
 
Cabe insistir, entretanto, que não é fácil para o governo subordinado agradar ao mesmo tempo aos donos do capital e atender aos requisitos mínimos das massas, como a saúde, etc. Daí, a permanente exposição, diante da mídia, de "salvadores da saúde", da "universidade", etc., mesmo que se trate de pessoas que, em curto prazo, desmintam seu papel soteriológico, transformando-se em coveiros daqueles setores, em proveito do livro caixa.
 
Em último lugar, sugeri que, não raro, lemos análises sobre o neoliberalismo como se ele fosse autônomo do fato bruto, antigamente chamado "imperialismo" na teoria política, o que torna as mesmas análises algo subjetivas (a "culpa" seria deste ou daquele governante, tomado isoladamente) e desligadas da política internacional.
 
Termino dizendo que os EUA receitam o Estado mínimo, para nós, com função definida de proteger os capitais dos países hegemônicos, garantindo para si o uso dos três monopólios, não só em plano interno aos EUA, mas, sobretudo em plano externo. O monopólio da força eles o exercem de modo imperial, inclusive com a adesão de países, como o Brasil, que até hoje mantinham certa autonomia nesse plano. O atual presidente da República brasileira, pressuroso, mostrou-se disposto a mandar soldados brasileiros ao Iraque, com a desculpa de "obter pontos" junto ao Grande Irmão do Norte, na disputa por uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU.
 
O monopólio da norma jurídica eles o exercem inclusive com explícitos atentados ao direito internacional, como a "lei" que garante aos EUA invadir, com suas polícias e até exércitos, países onde criminosos ou supostos criminosos estejam, mesmo que estes indivíduos não sejam cidadãos norte-americanos. Além disso, eles exercem esse monopólio do jurídico, em defesa da sua propriedade, através de pressões diretas ou indiretas sobre os países dominados, como no caso da lei de patentes.
 
O monopólio do excedente econômico eles o exercem através de um protecionismo ímpar e sanções a produtos vindos dos países subordinados e através de instituições de controle como a ALCA, cujos fins colidem, em substância, com as tímidas tentativas dos governos sul-americanos de se protegerem minimamente nesse trato assimétrico, através de instrumentos como o Mercosul. Antes de discutir, portanto, as medidas tópicas que estão sendo tomadas contra as universidades públicas, os institutos de pesquisa, etc. pelo governo subordinado do Brasil, pareceu-me importante lembrar esses pontos lógicos, históricos, econômicos, para que não tombemos na luta contra os efeitos, sem considerar as causas. Estas são múltiplas e complexas. Enfatizei apenas algumas, para permitir nossa discussão. Se me excedi no tempo, abusando da vossa paciência, peço-vos desculpas e coloco-me ao dispor para as críticas e perguntas julgadas necessárias.

BIBLIOGRAFIA
• CAPELLATO, Maria Helena. O bravo matutino. São Paulo. Alfa Ômega Ed.,1993.
CARCANHOLO, R. Contra a ofensiva neoliberal. A hipocrisia e a impotência. In: Malaguti, M. L. Carcanholo, M. D. e Carcanholo, R. (Org.). A quem pertence o amanhã? São Paulo: Loyola, 1997.
CARVALHO FRANCO, Maria Sylvia. All the world was America", Revista USP, Dossiê Liberalismo.
COX, Robert. Production, power, and world order: social forces in the making of History. N.Y. Columbia University Press, 1987.
FORRESTER, Viviane. O horror econômico. São Paulo. Unesp Ed. 1997.
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KANT, I. Critica da Razão Pura.
KRAMNICK, Isaac (apresentador). James Madison, Alexander Hamilton, John Jay. Os artigos Federalistas. 1787-1788. Trad. M. L. X .A. Borges, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Ed. 1993.
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SCHULTZ, George. Revista Current Policy, número 456, do Departamento de Estado, Bureau of Public Affairs, Washington, fevereiro de 1983.
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terça-feira, 26 de março de 2019

Dr. Roberto Romano, palestra no 5º Seminário Internacional Independência Judicial e Direitos Humanos Federação de Associações de Juízes para a Democracia da América Latina e Caribe. Atibaia (São Paulo) de 14 a 17 de setembro, 2006.


5º Seminário Internacional Independência Judicial e Direitos Humanos
Federação de Associações de Juízes para a Democracia da América Latina e Caribe.
Atibaia (São Paulo) de 14 a 17 de setembro, 2006.

Dr. Roberto Romano/ Unicamp

Rousseau, creio, disse uma vez : ´a criança que conhece apenas seus pais, não os conhece bem´. Este pensamento deixa-se aplicar a muitos outros conhecimentos, na verdade, a todos os que não possuem uma natureza pura: quem nada entende além da química, nada entende, inclusive dela”. ([1])

A epígrafe remete para o problema das relações entre disciplinas, sobretudo quando se trata de se propor uma análise dos cursos de Direito. Os enunciados sobre Rousseau e a criança cabem perfeitamente em reflexões sobre a oportunidade de se instaurar um novo setor de ensino em nossa Universidade. Mas tal curso possui, na ordem universitária, uma antiguidade que ajudou a definir o mundo atual e trouxe para a vida política, econômica, societária, paradoxos temíveis tanto no saber quanto na existência coletiva. A tradição do ensino e da prática do direito, além de sua pesquisa e ordenamento teórico, produziu formas legais complexas e só analisáveis com refinados e poderosos instrumentos heurísticos unidos a enorme erudição. Examinar o curso de Direito significa seguir caminhos pisados durante séculos pelos seres humanos, com a necessidade premente de adaptar tais sendas à carências do nosso mundo e do Brasil contemporâneo. 

Um crítico das instituições universitárias, Imanuel Kant, sublinha a essência do ensino jurídico de modo claro e insofismável. Trata-se em tal atividade acadêmica de “buscar as leis que garantem o meu e o teu (se o docente procede como é preciso, como funcionário do Estado) encontrando-as não na razão mas no Código oficialmente promulgado, e este último tem a sanção da autoridade suprema. Não podemos com legitimidade pedir  ao seu estudioso que prove a sua verdade e seu bom fundamento, nem defendê-las contra as objeções da razão. Pois elas são, de início, ordenamentos que tornam justa uma coisa. Quanto a pesquisar se tais ordenamentos são eles mesmos justos, esta é uma questão que os juristas devem fortemente recusar como contrária ao bom senso. Seria ridículo querer escapar à obediência de uma vontade externa e suprema sob pretexto de que esta última não se coaduna com a razão. Pois o respeito devido ao governo consiste precisamente no fato de que ele não deixa aos governados a liberdade de julgar sobre o justo e o injusto, segundo suas próprias concepções, mas segundo a prescrição do poder legislativo”. ([2])

Em conflito permanente com o setor da Filosofia (que no século 18 ainda sintetizava a maior parte dos estudos sobre a natureza e a vida humana, incluindo as matemáticas, a física e demais campos), as três Faculdades “superiores” (Teologia, Medicina, Direito) seriam produzidas fora do campo inter-disciplinar  reunido sob o nome da “amizade pelo saber”. Como as três faculdades privilegiadas pelo governo permitem a obediência à lei positiva, o povo a elas se acostumou e, longe de querer a autonomia da vontade e do juízo, propostas para a vida moral e para a pesquisa científica (filosófica…) os que pagam impostos exigem coisas “práticas” do ensino universitário. “Todas as suas conversas fiadas” —Kant põe tais frases na boca do cidadão comum— “filósofos, eu  as conheço há muito tempo. Mais eis o que desejo saber de vós enquanto sábios: como poderei, mesmo sendo um bandido, obter no entanto,  pouco antes do fechamento das portas, um bilhete de entrada para o reino celeste; como ganhar meu processo mesmo que esteja errado; como, mesmo que use e abuse descuidadamente as minhas forças físicas, permanecer sadio e viver muito tempo?”. ([3])

 No item dedicado especialmente ao conflito entre a Filosofia e a Faculdade de Direito, Kant lança a ponta mais acerada contra os efeitos, na vida civil, do manuseio dos juristas pelos governantes. O pensador afirmara anteriormente que o povo, nos governos despóticos, “deseja ser dirigido, isto é, na linguagem dos demagogos) enganado. Mas ele não quer ser dirigido pelos cientistas universitários (sua sabedoria é por demais elevada para ele) mas por seus agentes que sabem fazer, pelos eclesiásticos, funcionários da justiça, médicos. Tais práticos têm para si as presunções mais vantajosas. O governo, que só pode agir sobre o povo por seu intermédio, é ele mesmo treinado a impôr às Faculdades uma teoria que não saiu do puro saber dos cientistas, mas se estabeleceu em razão da influência que, por ela, seus agentes de negócios podem exercer sobre o povo”. ([4])

“Agentes de negócios” (Geschätmänner), certamente esta não é a marca de um ser livre e que colabora para a autonomia do juízo e da vontade cidadã.  Como garantir a obediência e, ao mesmo tempo, a livre força volitiva de um povo? “Nossos políticos, no campo em que são influentes” dizem que “é preciso tomar os homens tal como eles são e nunca como os pedantes que ignoram o mundo, ou como os bons sonhadores, imaginam que eles devem ser. Em vez de afirmar ´como eles são´, deveriam melhor dizer ´o que nós os fizemos´ por um constrangimento injusto, por desígnios pérfidos sugeridos ao governo. Nós os fizemos com a cabeça dura e inclinados à rebelião; logo, sem dúvida, quando o governo relaxa um pouco as rédeas, tristes consequências se produzem, as quais justificam as predições desses homens de Estado, supostamente sagazes”. ([5]) Teólogos, médicos e juristas são  “instrumentos de governo” (Werkzeug der Regierung) e servem aos políticos para que estes garantam sua influência sobre a população. Tal costume universitário é condenado por Kant em proveito da livre pesquisa e da autonomia cidadã. 

O juízo do grande pensador ético não é róseo quando se trata do curso de direito. Evidentemente as  falhas dessa Faculdade derivam, na sua maioria, dos alvos políticos e governamentais. Kant sublinha o conúbio entre os interesses dos políticos e os interesses particulares,  num Estado que não se pauta pela autonomia. Para o cidadão imerso no mercado, por exemplo, o importante na prática do direito é o lucro, não importa se para conseguí-lo as regras da justiça e do direito devam ser “adaptadas” aos seus alvos comerciais. Outro lado grave da crítica kantiana às faculdades “superiores” é que elas representam, contra a pesquisa científica, o lado não autônomo da Universidade. Elas são dirigidas pelos Ministérios que impõem os estatutos, os manuais de ensino, a censura. Com isso, tais escolas ameaçam diretamente a pesquisa livre e autônoma nos campi. Territórios isolados nas universidades, elas não partilham os progressos dos saberes trazidos pelas ciências. Estas só conseguem progredir porque se baseiam na liberdade de investigação. Muita cautela, portanto, deve ser empregada —se as análises kantianas sobre o curso de direito ainda valem— quando se imagina instaurar um curso de direito numa universidade estatal contemporânea.    
 
Enquanto Imanuel Kant se volta contra o excessivo apego aos interesses menores do comércio e do controle dos corpos pelo governo, outro pensador do século dezoito investe contra o arcaísmo da Faculdade de Direito com seu apego à uma forma de ensino e pesquisa desligada dos problemas contemporâneos. “Nossa faculdade de direito é miserável. Não se lê aí uma palavra do direito francês; tampouco do direito das gentes, como se ele não existisse em absoluto; nada de nosso código nem civil nem criminal; nada de nosso processo; nada de leis; nada de nossos costumes; nada tampouco dos ofícios e dos contratos. — Do que se ocupam pois? — Ocupam-se do direito romano em todos os seus ramos, direito que não tem quase nenhuma relação com o nosso; de modo que aquele que acaba de ser condecorado com uma borla de doutor em direito encontra-se tão impedido se alguém lhe corrompe a filha, lhe rapta a mulher ou lhe contesta a propriedade de seu campo, quanto o último dos cidadãos. Todos os seus belos conhecimentos lhe seriam infinitamente úteis se ele se chamasse Mévio ou Semprônio e se nós retrogradássemos aos tempos de Honório ou de Arcádio. É ai que ele pleitearia superiormente a sua causa. Sob Luis XVI, ele é tão tolo como o habitante de Chaillot, e bem mais tolo que o camponês da Baixa Normandia. A faculdade de direito não habita mais um velho edifício gótico; mas ela fala godo debaixo das soberbas arcadas do edifício moderno que se lhe erigiu”. ([6] )   

No Conflito das Faculdades Kant é mais demolidor do que preocupado em edificar um novo curriculum de direito. Já Diderot (trata-se de um plano encomendado por Catarina 2, para uma Universidade russa) apresenta o curriculum ideal para o referido curso. A modéstia dos meios financeiros é suprida pelo filósofo com a modéstia do agenciamento humano. Em sua universidade o curso de direito seria ministrado apenas por oito professores: um para o direito natural, um para a história da legislação, um para as instituições do direito das gentes, um para os Institutos de Justiniano, dois para o direito civil nacional, um para o direito eclesiástico em geral e ao mesmo tempo para o direito nacional, um para o processo civil e criminal. O curso seria cumprido em quatro anos e, em cada ano, os estudantes seriam instruídos por dois professores.

No primeiro ano, dedicado ao direito natural ([7]) e à história da legislação, o professor deveria levar o ensino mais longe do que o oferecido aos alunos no curso de moral que precedeu sua entrada nessa escola. Puffendorf (Dos deveres do Homem e do Cidadão) e Burlamaqui (Direito Natural) são sugeridos por Diderot como fontes a serem usadas. O ensino da legislação seria dedicado às leis da Grécia e de Roma, além das de outras nações antigas. A fontes bibliográficas incluiriam Antoine Thysius (Das repúblicas mais célebres), Ubbon Emmius (A antiga Grécia esclarecida), Heineccius (História do Direito Romano) e Hoffmann (também História do Direito Romano). 

No segundo ano seriam ministrados o ensino do direito das gentes e das Institutas de Justiniano. ([8]) O professor deveria concentrar-se na doutrina dos contratos devido a importância basilar dos romanos neste setor. No terceiro ano viria o direito civil nacional, antigo e moderno, e o direito eclesiástico. No quarto ano, novamente o direito civil acrescido do criminal e do processo civil. Cada passagem de um ano para outro deveria ser antecipada por um exame público dos alunos, exames cuja severidade deveria ser absoluta. Neles, tanto estudantes quanto mestres estariam em perene emulação. No fim do curso, antes de pretender o ingresso num tribunal, seria obrigatório rigoroso exame perante o corpo junto ao qual o candidato deseja operar. Todos os cidadãos, de todas as condições, assistiriam tais exames, também vigiados pelos representantes do Estado. Os professores deveriam permanecer sempre nos quadros da mesma disciplina, para que pudessem aperfeiçoar ao máximo a sua técnica e conhecimentos. 

E vem a parte “prática” da proposta. Todo professor, após 15 anos de trabalho sem desvios, deveria ser aposentado honrosamente. Ele poderia entrar e ter assento nos diferentes tribunais da magistratura, o que seria lisonjeiro para ele e útil para o tribunal, “que por essa política continuaria a recrutar incessantemente homens que teriam prestado suas provas de probidade e de luzes na ciência das leis”. No campo do governo, um especialista em direito natural e das gentes seriam útil na diplomacia. E seguem-se outras justificativas para o apelo do governo aos egressos da carreira juridico-universitária. ([9]) Note-se que a especialização (Direito, Medicina, etc) dar-se-ia após um curso comum no qual os rudimentos do essencial, no saber humanístico e científico, seriam passados aos estudantes. Também importa notar que Diderot não aceita na vida universitária uma especialização excessiva : “O objeto de uma escola pública não é de modo algum produzir um homem profundo, em qualquer gênero que seja; mas iniciá-lo em um grande número de conhecimentos cuja ignorância lhe seria prejudicial em todos os estados da vida, e mais ou menos vergonhosa em alguns. A ignorância das leis seria perniciosa em um magistrado. Seria vergonhoso que ele fosse mal habilitado na verdadeira eloqüência. A pessoa entra ignorante na escola e sai escolar; a gente se faz mestre por si mesma, dirigindo toda a sua capacidade natural e toda a sua aplicação para um objeto particular. O que se deve obter de uma escola pública? Bons elementos”. ([10])

No século 19, apesar de todos os esforços dos intelectuais que ajudaram a definir o direito democrático, em especial na França revolucionária, o lugar do ensino jurídico na universidade ainda era percebido de maneira negativa, de modo muito próximo à crítica de Kant. Quando se tratou, na Alemanha, de instituir a Universidade de Berlim, vários projetos foram consultados pelos responsáveis. Embora a escolha tenha recaido sobre o plano de Humboldt, algumas propostas foram marcantes no processo. Dentre elas, a do jacobino Fichte, admirador da Revolução Francêsa e seu propagandista na Alemanha. ([11]) Neste autor, como seria inevitável num discípulo de Kant, a faculdade de direito é vista de maneira extremamente crítica, na companhia da Medicina e Teologia. Importa notar que a maior reprovação às referidas escolas vem do fato de que elas, segundo Fichte, ter-se-iam isolado do estudo e da estrutura mais ampla do saber acadêmico, transformando-se numa espécie de universidade no interior da universidade.

“As três faculdades pretensamente superiores”, escreve Fichte, “teriam prosperado há bom tempo se, ao considerar sua verdadeira essência, elas tivessem reconhecido a si mesmas no todo coerente do saber e se, por conseguinte, não tivessem colocado a si mesmas, em se gloriando de sua necessidade prática e de seu favor junto à multidão, como uma realidade independente e eminente, mas pelo contrário se subordinassem a este conjunto coerente e, com a humildade que convem, tivessem reconhecido sua dependência. Na medida em que desprezaram as demais, foram desprezadas e os estudantes de outros domínios não tiveram nenhum conhecimento daquilo que elas desejavam possuir exclusivamente para si mesmas —foi então muito prejudicial tanto ao seu estudo quanto ao saber em geral na sua totalidade.” ([12])

Após indicar a auto-suficiência da escola jurídica, o seu isolamento das demais disciplinas científicas e humanística, Fichte apresenta o que deveria ser, no seu entendimento, o alvo dos estudos jurídicos. “A matéria científica da jurisprudência é um capítulo da história e do modo pelo qual foi tratada até hoje, ela é apenas um fragmento desse capítulo. Ela deveria ser uma história da formação e do desenvolvimento do conceito de direito entre os homens (Fichte sublinha, RR), conceito do direito que, ele mesmo, independentemente desta história, enquanto soberano (Fichte sublinha, RR), não como servidor (ainda é Fichte quem sublinha, RR), já deveria ter sido descoberto pelo filosofar. Na perspectiva habitual, puramente prática, que lhe é assinalada em primeiro plano  —apenas formar juízes, o que é uma tarefa subordinada— ela é a história desta formação do conceito nos países em que vivemos e no máximo, sob os romanos, e nisto ela é apenas um fragmento. Mas seu alvo prático último é  formar o legislador e, neste ângulo, o capítulo inteiro poderia ser-lhe bem necessário. Pois embora o que deveria ser uma lei seja conhecido absolutamente a priori, no entanto a arte de descobrir a figura particular desta lei para cada época e adaptá-la a ela deveria exigir neste assunto a experiência da época, conhecida em sua totalidade”. 

Assim, uma formação correta exige que o ensino do direito não se limite a um fragmento teórico ou prático (estudar a jurisprudência ou o direito romano, de um lado, ou formar os “operadores do direito”, de outro). O ensino deve abranger capítulos inteiros do livro onde foi escrita a história, livro que contem as ciências físicas, as matemáticas, e as humanidades. Enquanto o ensino do direito estiver preso em si mesmo, sem o trato com outros ângulos da cultura, ele será fragmentário e, por isto mesmo, não verdadeiro e sem condições de ser aceito pelas demais áreas de pesquisa. Outro requisito é que ele deve saber unir a tradição do direito, o direito romano por exemplo, ao que se passa aqui e agora. O culto de uma lei ou conjunto de leis sem historicidade é vazio e sem maior significado cultural. 

Para que serve o ensino do direito, no mundo coletivo ? Para formar operadores do direito e legisladores. Ambas as profissões, no entanto, escreve Fichte, “são aplicações práticas da história. Assim, a jurisprudência tem como sua enciclopédia primeira a enciclopédia da história, enquanto esta é um solo no qual ela repousa. Ela é a utilização científica do entendimento nela implicada e ela, na sua prática mais elevada é propriamente a arte de engendrar  uma história e, seguramente, uma história mais feliz do que a executada até hoje. Mas o preparo para a aplicação prática na vida cai fora do domínio da escola, e neste ponto seria preciso mandar os jovens para os colégios de exercício, sob a vigilância dos quais  —mas não sob a responsabilidade dos magistrados a quem seriam confiados— eles se preparassem para a futura administração dos assuntos”. Os estudos jurídicos seriam dirigidos por uma Comissão de enciclopedistas (como Fichte os definiu acima) que se encarregariam da formação prática, independemente da escola jurídica. Finalmente, os cursos de direito deveriam instituir curricula menos extensos do que os anteriores, visto que seria encorajado o princípio da pesquisa em união com o todo acadêmico. 

Mesmo com esse sentido, o direito passou a ser visto com desdém pelos filósofos posteriores a Fichte. Schelling ([13]) enxergava em semelhante ensino apenas o elemento empírico, sem possibilidade alguma de elevá-lo ao plano do conceito científico. Ele deveria ser exposto aos estudantes na medida mesma em que era praticado nos assuntos particulares e públicos, diante dos tribunais. Seu estudo não poderia se mesclar à filosofia, profanando-a. Depois das críticas de Kant ao ensino jurídico, pensa Schelling, vieram os kantianos com o desejo de usar a filosofia como serva de uma “ciência do direito” (aspas usadas por Schelling) e também de reformular o direito natural. “Esta maneira de filosofar revela-se apenas como uma corrida aos conceitos, pouco importa sua natureza, desde que se trate de um detalhe, para que o sujeito que colocou a sua mão sobre eles, pelo trabalho que se dá para arrancar bem ou mal todo o resto a partir desse ponto particular, possa dar a ilusão de um sistema próprio, mas que logo será suplantado por um outro sistema igualmente original, etc”. Condenado à prática e à empiria, o direito não poderia ser elevado à condição das outras ciências universitárias. Como se nota, o curso de direito é visto com muitas reticências depois de Kant. 

Os malentendidos entre a universidade e os cursos jurídicos e sobretudo as oposições entre a filosofia e o setor do direito foram exacerbados com Hegel.([14]) É mesmo possível dizer que existem duas filosofias do direito : a dos juristas e a dos filósofos. A influência hegeliana no campo da filosofia do direito filosófica foi enorme, mas pequena entre a praticada pelos juristas. Como consequência, os mesmos juristas aumentaram o seu interesse por I. Kant. Este último foi estratégico, por exemplo, na Escola do Direito Histórico (Gustav Hugo, Carl von Savigny e outros). Mesmo no século 20, pode-se dizer que o grande interesse dos juristas foi dirigido a Kant e não a Hegel. Isto se deve à pouca informação do mesmo Hegel em partes relevantes como o direito romano, contentando-se o filósofo com obras secundárias. Além disso, outras contradições entre o pensamento dos juristas e o do hegelianismo, no plano especulativo, levaram ao alheiamento recíproco das partes, em proveito do kantismo. Os trabalhos de Hans Kelsen são amostra deste itinerário. Mas no esforço de fornecer ao direito um fundamento científico, terminou-se por novamente isolá-lo do conjunto acadêmico constituído pelas outras disciplinas do espírito, o que vai na contramão da crítica kantiana ao ensino jurídico de seu tempo. 

Não apenas no campo do transcendentalismo (kantiano ou idealista) o embate entre o ensino jurídico e o próprio estatuto da doutrina do direito encontrou críticas pesadas. Emile Durkheim, quando em viagem à Alemanha, ao encontrar os cursos de direito no interior da vida pública e universitária, fez algumas considerações pouco elogiosas sobre o ensino jurídico, não apenas germânico mas europeu. O ensino das ciências em geral e do direito em particular, escreve Durkheim, não leva adiante a pedagogia da ética. Desse modo, diz ele, “é assustador que façamos tão pouco esforço para produzir uma opinião pública esclarecida, quando esta última é o soberano poder entre nós”. Os políticos, acrescenta, na sua maioria vêm das Faculdades de Direito, mas nada aprendem alí sobre sobre “a natureza da lei, dos códigos morais, costumes, religiões, o papel e as relações entre as várias funções do organismo social”. ([15]) Ou seja: os políticos frequentam escolas de direito que não lhes ensinam as bases dos saberes sociais mais amplos. Daí, não agem sobre a opinião pública, soberana na democracia, deixando-a ao sabor dos eventos e sem acesso aos caminhos éticos necessários. Como não foram educados para a ética, também ignoram a mesma ética nos seus tratos públicos e com a opinião das massas. 


Nas idas e vindas do trato das escolas de direito com a universidade e, mais particularmente, com a disciplina que se encarrega de prover uma visão de totalidade para o mundo ético, artístico e científico —a filosofia— nota-se uma constante: o fechamento do ensino jurídico em suas próprias fronteiras, de onde saem estudantes e docentes para rápidas incursões no mundo da política, dos laboratórios, do artesanato artístico. Deste modo, não surpreende que em  universidades como a Unicamp, o projeto de instauração de um curso de direito esteja marcando passo desde 1982, sem que por ele se empolguem os pesquisadores do campus na sua totalidade. Qual razão existiria para produzir um curso jurídico novo, se a prática deste mesmo curso seria a da plena auto-suficiência no interior da universidade? Qual o proveito epistemológico, metodológico, prático enfim, seria dele extraído, se o seu conteúdo não adentra para territórios que interessam as ciências exatas, as tecnológicas, as humanidades e a própria medicina? Existem problemas jurídicos gravíssimos em todas essas áreas do saber, tanto nos obstáculos ao seu desenvolvimento (a genética os conhece em profusão) como na normatização legal dos mesmos (patentes, direitos autorais, etc). Mas o modelo imperante nos cursos jurídicos mais influentes no país ainda não oferecem elos inter-disciplinares com os demais campos do saber, de modo que o curso de direito seria apena uma escola a mais na estrutura universitária.


Retorne-se à epigrafe inicial. Ela foi colhida em recentíssimo artigo dedicado à reforma do ensino jurídico na Alemanha em nossos dias.  ([16]) Nela é dito, na verdade, que o curso jurídico dedicado apenas ao estudo das leis e das técnicas forenses ou ligadas ao Direito, não ensina sequer a lei, porque não a entende. Para conseguir tal alvo é preciso pesquisar a sociedade, o Estado, as instituições religiosas, políticas, econômicas, a psicologia das massas e uma infinidade de elementos definidos nas outras ordens de estudo. Num país cuja tradição de ensino jurídico e de críticas sobre o lugar deste setor na Universidade é muito rica e polifacetada (os exemplos acima são poucos e escolhidos) é importante verificar o interesse na modificação do que poder-se-ia chamar de ratio studiorum sem nenhum receio. Os autores propõem a adequação dos cursos jurídicos aos desafios do século 21, tendo em vista a sua maior eficácia e rigor acadêmico. O ponto de partida das medidas a serem implementadas é encontrado na Universidade de Bremen, na qual ocorreria, segundo os mesmos autores, uma exemplar interação dos cientistas políticos, sociólogos, economistas e filósofos nos trabalhos pedagógicos e de pesquisa na área do direito. Aquela universidade, existente na história alemã anterior, foi fechada em 1810 por Napoleão e substituida no mesmo ano pela Universidade Humboldt. Na última parte do século 20, aquele campus se distinguiu por deixar a estrita especialização e assumir uma agressiva política de esforço inter-disciplinar, o que causou impacto em todo o setor acadêmico na Alemanha.




[1] Georg Christoph Lichtenberg, Professor de  matemática e de ciências naturais na Universidade de  Göttingen (1742-1799). Rousseau hat, glaube ich, gesagt: Ein Kind, das bloß seine Eltern kennt, kennt auch die nicht recht. Dieser Gedanke lässt sich [auf] viele andere Kenntnisse, ja auf alle anwenden, die nicht ganz reiner Natur sind: Wer nichts als Chemie versteht, versteht auch die nicht recht.

[2] Kant, Imanuel: Der Streit der Fakultäten, “Eigentümlichkeit Der Juristenfakultät” in I. Kant Werkausgabe (Frankfurt Am Main, Suhrkamp Verlag, 1977), Band XI, 1. Página 287.
[3] Kant, I. op. cit. páginas 293-294.
[4] Idem, página
[5] Kant, idem, ibid, página 352.
[6] Denis Diderot: “Plan d´une université” in Versini, L (Ed.), Oeuvres (Paris, Robert Laffont, 1995), T. III, Politique, página 422. Sigo a excelente tradução de J. Guinsburg in Diderot, Obras (São Paulo, Ed. Perspectiva, 2000), T. I, Filosofia e Política, página 274.
[7]   “Dentre todas as noções da moral, a de direito natural é uma das mais difíceis de se determinar. Principios que podem ajudar a resolver tamanha dificuldade : 1) se o homem não é completamente livre, não haverá nem bondade nem maldade raciocinada. Importa, pois, estabelecer solidamente a realidade da liberdade, bem distinta do que é voluntário. 2) o homem que faz a um outro o que não gostaria que lhe fizessem, deve confessar sua maldade, ou conceder a todos a mesma autoridade que ele arroga para si. 3) Quais criticas poderíamos portanto fazer ao homem atormentado por paixões tão violentas que a vida se tornaria para ele um peso oneroso, se não as satisfaz, e que para adquirir o direito de dipôr da existência alheia, lhes abandona a sua . 4 ) é preciso apresentar a este homem o verdadeiro e o justo, raciocinando com ele. 5) E lhe responder  que não existe nenhuma autoridade para forçar os outros a aceitar o mercado que lhes oferece, e que o próprio mercado é injusto. 6) Mas quem poderá decidir o que é justo ou injusto? As vontades particulares são suspeitas, a geral é sempre boa. 7) É esta vontade que deve fixar os limites de todos os deveres. Tudo o que cenceberdes será bom, sublime, se pertence ao interesse geral. Onde consultar esta vontade? Nos princípios do direito escrito, nas ações sociais dos povos selvagens, etc. Consequências deste principio: a vontade geral é sempre a melhor”. Encyclopédie, verbete “Direito Natural”.
[8] No verbete “Direito” da Encyclopédie, são enumerados e discutidos os vários segmentos do direito, tanto no que diz respeito ao mundo civil, quanto ao que se relaciona com o direito político e internacional. Embora o artigo não tenha sido escrito por Diderot, quem conhece o modus operandi do filósofo enquanto editor da obra sabe que a revisão e a elaboração final do texto passaram por ele.
[9] Diderot, op. cit. página 476 e seguintes. Edição Guinsburg, página 363 e seguintes.
[10] Diderot, op. cit, página 428; Guinsburg, página282.
[11] Cf. Joh. Gottl. Fichte: Beitrag zur Berichtigung der Urteile des Publikums über die französische Revolution (Hamburg, Felix Meiner Verlag, 1973). Há tradução francêsa : Considérations sur la Révolution Française (Paris, Payot Ed, 1989).
[12] Fichte, J.G : “Plano Dedutivo de um Estabelecimento de Ensino Superior a ser fundado em Berlim, que estaria em íntima união com a Academia de Ciências” in Philosophies de l´Université. L´Idéalisme allemand et la question de l ´université. Schelling, Fichte, Schleiermacher, Humboldt, Hegel. (Paris, Payot, 1979), página 195.
[13] Schelling, F.W.J. : “Lições sobre o método dos estudos acadêmicos” in Philosophies de l` Université, ed, cit, páginas 128-129.
[14] Cf. Gardies, Jean-Louis: “Alguns malentendidos entre Hegel e os Juristas”, in Hegel et la Philosophie du Droit.  Ensaios por E. Weil, K.-H. Ilting, E. Fleischmann, B. Bourgeois, J.l. Gardies (Paris, PUF, 1979), página 131 e seguintes.
[15] Cf. Lukes, Seteven: Émile Durkheim, his life and work (London, Penguin Books, 1977), página 88.
[16] Leibfried, Stephan, Möllers, Christoph, Schmied, Christoph, Zumbansen, Peer::Redefining the Traditional Pillars of German Legal Studies and Setting the Stage for Contemporary Interdisciplinary Research” in German Law Journal,  Review of Developments in German, European and International Jurisprudence, número 8 (August 2006) no site http://www.germanlawjournal.com/