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sexta-feira, 26 de maio de 2017

sto é Dinheiro entrevista Roberto Romano, 26/05/2017

Entrevista
Roberto Romano, filósofo
Entrevista
Roberto Romano, filósofo
A seu modo, o Estado brasileiro é perfeitamente ético
Daniel Teixeira
Cláudio Gradilone
Edição 26.05.2017 - nº 1020

Prestes a completar 72 anos, o paranaense Roberto Romano, doutor em filosofia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris, disse não ter se surpreendido com a crise política deflagrada pelas delações do empresário Joesley Batista, no dia 17 de maio. Para ele, é mais uma demonstração das malformações do Estado brasileiro. Esses desvios, avalia, são antigos e moldam a ética do País até hoje. Desembarcaram no começo do século XIX, com as caravelas que trouxeram a Corte portuguesa à então colônia. Para Romano, as mudanças já estão ocorrendo, mas serão lentas. Ele falou à DINHEIRO:

DINHEIRO – O presidente da República pode perder o cargo por obstrução da Justiça. Isso quer dizer que o Estado não tem ética? Qual sua reação?
ROBERTO ROMANO – Não foi de surpresa, mas foi de tristeza, de decepção com o País em que vivemos. Não me considero nem otimista, nem pessimista, procuro ser sóbrio. Esse evento veio trazer uma luz bem mais forte sobre a estrutura absolutamente corrupta do Estado brasileiro. Nós costumamos associar os parlamentares, os ministros e o presidente da República à corrupção. Mas essa revelação mostra que o caso é mais grave. As notícias mostram a impossibilidade de uma atuação eficaz do sistema de Estado. Mostram que a proposta de Platão, adotada por Montesquieu, da existência de diversos poderes que se fiscalizam e que se controlam reciprocamente, não funciona.

DINHEIRO – O senhor concorda que Judiciário está mais atuante em termos institucionais?
ROMANO – Não. A atuação do Judiciário, as próprias funções do Judiciário, são irrelevantes quando se pensa na atuação do Estado como um todo. A ex-presidente Dilma Rousseff e o atual presidente estão sendo julgados no Tribunal Superior Eleitoral, o TSE. As notícias revelam uma atuação do Executivo para tentar obstruir o funcionamento da Justiça. A mera consideração de que o Executivo tentou obstruir a atuação do Judiciário é incompatível com o bom funcionamento das instituições.

DINHEIRO – Na quarta-feira 24, Ministérios foram incendiados e o presidente convocou as Forças Armadas. Isso está longe de ser normal, não?
 ROMANO – Exatamente. É mais uma prova do mecanismo absolutamente disfuncional em que o Estado brasileiro se transformou.
DINHEIRO – Por que isso está ocorrendo?
ROMANO – Uma instituição não é uma entidade isolada em si mesma. Ela é um organismo, formado e movido por seres humanos. Nos Três Poderes há indivíduos agindo fora da lei. Isso faz as instituições funcionarem de maneira enviesada, pervertida. O presidente da República tem uma função constitucional importantíssima: ele é o fiador do bom funcionamento do Estado. Quando ele é pego tentando obstruir a Justiça, o que se pode esperar? E as consequências são muito graves para a sociedade e para a economia.

DINHEIRO – Como assim?
ROMANO – Pense em um trabalhador, em um investidor, ou em um empresário honesto, que não tenha se envolvido na Lava Jato. Como eles podem confiar que seus direitos serão respeitados? Pensando racionalmente, qualquer empresário que não seja partícipe de um esquema mafioso está colocando seu dinheiro na incerteza. Isso é terrível para a economia.

DINHEIRO – Qual a origem dessas distorções?
ROMANO – Voltemos aos clássicos. O que é o Estado? A palavra Estado vem do termo grego stasis, que significa guerra, conflito, contradição. O Estado é, e sempre será, uma reunião provisória e instável de múltiplos interesses: sociais, econômicos, religiosos e ideológicos. O aparelho estatal foi inventado para garantir alguma estabilidade na luta desses interesses opostos. Permitir um equilíbrio que funcione entre indivíduos, empresas e sindicatos.

DINHEIRO – Isso não tem funcionado dessa maneira no Brasil.
ROMANO – Não. Temos uma tradição de resolver as coisas pelo uso da força. Não só a força física, mas também por meio da força jurídica, da força política. Em muitos casos, o Estado – e isso vale desde o governo federal até as prefeituras de pequenos municípios – resolve as questões tendo em vista interesses específicos. Basta olhar para o notícias dos últimos anos. Mensalão, Lava Jato, tudo isso tem sido a crônica da proteção de uns em detrimento de outros. E o pior é que tudo ocorre por meio do Estado.

DINHEIRO – Qual seria a saída? Reduzir a atuação do Estado ao mínimo?
ROMANO – Não. Mesmo os liberais mais radicais não propõem a abolição do Estado. Eles tentam reduzir sua atuação na vida social e econômica, mas é preciso que o Estado exista para garantir os direitos dos diferentes da maioria. Mas o Estado brasileiro não faz isso.
DINHEIRO – O Estado brasileiro é anti-ético
O corrupto Marcelo Odebrecht, que já brilhou no Fórum de Davos
O corrupto Marcelo Odebrecht, que já brilhou no Fórum de Davos (Crédito:Cicero Rodrigues)
?
ROMANO – Não. A seu modo, o Estado brasileiro é perfeitamente ético.

DINHEIRO – Essa é uma afirmação surpreendente.
ROMANO – Sempre há uma incompreensão do que é ética. Normalmente, associamos a palavra ética ao conjunto de normas corretas. Na verdade, a ética é o estudo minucioso dos costumes aceitos por uma sociedade ou por um grupo social, tanto os corretos quanto os incorretos. Um dos problemas graves da ética é que ela é um fato coletivo. Ela se opõe à moral, que é mais ligada ao plano subjetivo, ao embate do indivíduo com sua própria consciência. Assim, sendo coletiva, a ética é um conjunto de práticas e valores que, de tanto serem repetidas, se tornam habituais e automáticas. Eu li um livro dos depoimentos obtidos na operação Mãos Limpas, que investigou os políticos italianos durante os anos 1990. Há um testemunho, absolutamente delicioso, de um prefeito de uma pequena cidade italiana. Ele admitiu tranquilamente que recebeu propinas, porque achava que aquilo era um brinde, um presente. Era o mesmo que ganhar um panetone no Natal. Até ele ser preso, não lhe passava pela cabeça que o que estava fazendo era contrário à moral. A ética social brasileira e a ética política brasileira são automatizadas nesse sentido péssimo. Para a maioria dessas pessoas, não há nenhum problema no seu modo de atuação. Ao iniciar uma atividade, o indivíduo não pensa em uma concorrência leal. Ele pensa em canalizar para si a força do Estado.
DINHEIRO – O Estado, então, é cooptado e acaba atuando como um concorrente?
ROMANO – Sim, e um concorrente muito desleal. Ele tem vários monopólios. Tem o monopólio da força, com as polícias e as Forças Armadas. Tem o monopólio da norma jurídica. E tem o monopólio dos impostos. Com esses monopólios, um Estado cooptado pode usá-los para distribuir privilégios aos aliados e para ameaçar e chantagear os adversários. Quem paga impostos não obtém nenhuma vantagem direta para si, mas quem recebe financiamentos subsidiados dos bancos estatais, aí ganha um apoio que faz diferença.

DINHEIRO – Essas práticas são antigas na sociedade brasileira, não?
ROMANO – Muito. Essas práticas antidemocráticas têm origem histórica. Não podemos nos esquecer que, quando desembarcou em 1808, D. João VI trouxe consigo a contrarrevolução. Ele se contrapunha aos ideais da Revolução Francesa, da revolução americana e mesmo da revolução puritana, que havia ocorrido décadas antes, na Inglaterra. Todos esses movimentos eram inspirados no Iluminismo e traziam os princípios clássicos da democracia: liberdade de imprensa, separação entre o público e o privado, responsabilização do governante pelos seus atos. Já as idéias que chegaram com a Corte portuguesa eram contrárias a isso. Não podemos nos esquecer que a Constituição outorgada de 1824 estabelecia a irresponsabilidade do imperador. Ou seja, o imperador não poderia ser processado pelos seus atos. Em 1988, a Constituinte estabeleceu o foro privilegiado para o presidente, ministros e parlamentares. O princípio é o mesmo. Se eu não posso ser julgado, ou se eu só posso ser julgado pelos meus pares, que terão uma avaliação viesada, a Justiça que existe para mim não é a Justiça que existe para o cidadão comum.

DINHEIRO – A situação atual é um problema da Constituição de 1988?
ROMANO – Não só, mas aquela Constituição é um produto doutrinariamente duplo. É confusa e contraditória. Tem pontos muito positivos, democráticos, e tem excrescências, como o foro privilegiado. É um Frankenstein. É como uma cidade medieval, cheia de vielas, ruas estreitas e escuras, e cada uma delas é um nicho de interesse de uma parcela da sociedade que possui algum poder. Um conjunto de tugúrios não é uma cidade. Esse Frankenstein não pode servir de base para uma reforma séria do Estado brasileiro.
Congresso aprova Constituição em 1988
Congresso aprova Constituição em 1988 (Crédito:Arquivo ABr)
DINHEIRO – O senhor espera mudanças no curto prazo?
ROMANO – Difícil. Nossa história é acidentada. Tivemos duas ditaduras truculentas no século XX, e sofremos depois com alguns governos ineptos e corruptos. Temos uma ética torta pelo hábito, e que deturpa todas as relações: as relações da sociedade com ela mesma, da sociedade com o Estado, e do Estado com ele mesmo. Voltar a um caminho de democracia e republicanismo é difícil. Não podemos esperar chegar, no curto prazo, ao grau de eficiência que existe na Europa e nos Estados Unidos. Nos falta aquela cultura republicana. Quando entro em qualquer repartição, vejo um cartaz enorme na parede, dizendo que é crime o cidadão desacatar o servidor público. Seremos um país republicano quando, ao lado desse cartaz, houver outro dizendo que é crime o servidor público não atender adequadamente às demandas do cidadão.

DINHEIRO – Não há nenhuma solução possível?
ROMANO – Há, sim, mas as soluções são tópicas e vagarosas. Houve alguns avanços, como, por exemplo, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). É interessante notar que, nas manifestações de 2013, um dos protestos era contra as tentativas de atenuar essa lei. Os registros do Ministério Público Federal mostram que 40% dos governantes processados com base na LRF foram sancionados com pena. Pouco importa se essas penas foram apenas multas, ou sanções administrativas. Uma pena leve é preferível à impunidade. É pouco perto do que precisamos, mas aos poucos melhoramos os padrões. Outro exemplo é a ficha limpa. Tem inúmeros problemas de ordem constitucional, mas é um elemento que está ajudando a melhorar. Repercute na imprensa, mobiliza as lideranças de movimentos sociais importantes. Porém, a solução que me parece mais eficaz é algo que, neste momento, é utopia.

DINHEIRO – O que é?
ROMANO – A proposta do jurista Modesto Carvalhosa, de uma assembleia constituinte que redesenhasse o Estado e a política brasileira. Sem isso, o País é ingovernável.

Gamberini entrevista Roberto Romano sobre a crise política Jornal da Gazeta

https://www.tvgazeta.com.br/videos/rodolpho-gamberini-entrevista-roberto-romano-prof-de-etica-da-unicamp-sobre-situacao-politica/

Comissão Especial para analise das Dez Medidas contra a Corrupção

https://www.youtube.com/watch?v=WbBNy6NNdJE

Prof. Roberto Romano da Silva Unicamp. Considerações sobre o Projeto de Lei que procura aprimorar o combate à Corrupção no Brasil. Câmara dos Deputados-Brasilia 23/08/2016

terça-feira, 23 de agosto de 2016








Prof. Roberto Romano da Silva

Unicamp.



Considerações sobre o Projeto de Lei que procura

 aprimorar o combate à Corrupção no Brasil.


Câmara dos Deputados-Brasilia

23/08/2016



Agradeço o convite para me dirigir a representantes do povo brasileiro. Deixarei de tocar nos ítens com os quais concordo e outros, onde me falta competência. Não me deterei nas penas e dosimetria propostas. Juristas podem analisar com apuro tais elementos. O projeto, se elevado à norma, trará benefícios à sociedade, ao Estado e à política, neles escoimando desvios. O texto é bem ordenado e oportuno. A justificativa, no meu entender modesto, traz problemas que merecem atenção. Peço sua paciência para os pontos que enumero, pois eles brotam de um apelo à prudência.

“O poder corrompe. O absoluto corrompe absolutamente”. O enunciado de Lord Acton serve hoje como clichê. Se o contextualizamos no entanto, sua tese ajuda a refletir sobre a presente crise mundial de Estados e nações. Em carta ao bispo Creighton, Acton discute a responsabilidade de quem dirige os poderes. Suas frases sobre o mando corrosivo se complementam do seguinte modo: “O poder absoluto desmoraliza”. O bispo Creighton dizia ser preciso evitar a corrupção. É a atitude comum em coletivos prejudicados por malfeitores públicos. Leis seriam ideadas para prevenir costumes imorais.  “Eu não me preocupo”, replica Acton, “em evitar a corrupção, mas em saber como ela surge”. Muitos analistas se limitam à atitude de Creighton, poucos seguem o malefício até sua gênese.

Infelizmente, noto no projeto de lei traços do bispo Creigthon e não os de Acton. E nele percebo notas que podem levar, não ao reforço  da ética pública, mas à desmoralização. A paciência que solicito dos senhores é necessária porque devemos passar pelas nossas origens quando se trata do regime democrático. A maioria dos atuais conceitos políticos vem da Grécia clássica, e dela também nos chegam defeitos a serem vistos com prudência.

A isonomia, o princípio da responsabilização nos cargos públicos, a accountability e outros aspectos democraticos surgem na Grécia e foram redescobertos na Renascença a partir do século 15. Todo país moderno usou os textos históricos, jurídicos, filosóficos gregos para inventar o Leviatã, o Estado soberano que a todos obriga a seguir as leis. A accountability, lema da revolução puritana inglêsa, base essencial nos Estados Unidos, na França, e  outras terras livres, retoma as lições de Platão na República e nas Leis. Montesquieu, suposto idealizador da harmonia entre forças estatais, extrai a tese e muitas outras das Leis platônicas. Em artigos, livros e trabalhos acadêmicos, insisto no ponto. Até aí, o lado positivo da nossa herança grega.

Passo aos ângulos negativos. A democracia ateniense caiu por vários motivos. Decisivo foi o desmedido poder imperial que ela se arrogou e teve o ápice na guerra do Peloponeso. SegundoTucídides, a ambição corrupta do povo ateniense levou às aventuras imperiais que destruíram a hegemonia de Atenas e o regime democrático. A cidadania, desde que os oligarcas perderam o controle financeiro e político, teve com Solon restituida a sua pequena propriedade, condição para  entrar no gozo dos direitos cívicos. Os cidadãos de média e pequena posse, para cumprir a liturgia dos cargos públicos, deixam o interior do país e se mudam para a capital. Dalí, não cuidam mais das colheitas, o que os faz carentes de recursos próprios. Cleon, o campeão democrático, aumenta os subsídios para que eles exerçam seus cargos.  Exemplo: alguns óbulos eram pagos pela presença nos julgamentos com centenas de juízes. Como garantir a constância de tais honorários? Apontando cidadãos como culpados de vários crimes, o que inflaciona o número de processos e consequentes dinheiros aos que participam do tribunal.

Os críticos do regime, sobretudo Aristóphanes e Platão, mostram que tais práticas levam à corrupção e desmoralizavam a democracia. Aristófanes, na peça As Vespas, denuncia a prática de  manter os cidadãos às custas dos cofres públicos. Como vespas, os juízes populares picam uns aos outros e aos cidadãos comuns, produzem inchaço no coletivo. Eles adoecem o corpo político. É preciso inventar processos, culpados, sentenças, para garantir o óbulo dos que integram o tribunal. Algo similar ocorre na Ekklesia, a assembléia do povo, ancestral da nossa Câmara dos Deputados. O pagamento de cidadãos privados para cumprir ofícios públicos inverte a ordem do poder, anuncia os seus limites éticos e administrativos. Platão se refere à cidade inchada de humores por culpa da incessante luta de todos contra todos na disputa pelo controle das finanças públicas. Hobbes brota, ao mesmo tempo de Platão e de Tucídides, pois o tema da guerra de todos contra todos pertence ao campo essencial daqueles pensadores. Assim, quanto mais processos, quanto mais culpados, mais o sistema de justiça democrático segue para a ruína.

Uma técnica para obter réus para os tribunais era o uso de sicofantas. Segundo um historiador da Grécia democrática, o recurso aos delatores ocorre sobretudo nos séculos 4 e 5 AC. As práticas ligadas a eles, segundo o autor, mostram similaridade com o sistema da chantagem (black mail) nos sistemas democráticos modernos. Italo Calvino indica a Itália como sociedade onde todos se aproveitam do dinheiro público e depois criam uma ética interior e pessoal para justificar a corrupção generalizada. Ou seja, da cidadania comum aos políticos, poucos escapam do usufruto que empobrece os cofres públicos. A democracia parece sustentar-se em atos ilegítimos, proibidos pelos seus próprios princípios, como o da accountability. Norberto Bobbio tem lúcidas páginas sobre o comércio político a que se reduz boa parte dos Estados contemporâneos. ([1])

A sociedade troca favores e presentes com os magistrados, políticos, ministros. Tal mercadejo na Grécia clássica se chama doro, presente.  A tradução portuguesa é suborno.  O poeta Hesíodo chama o rei corrupto de δωροφάγους,  comedor de presentes (Trabalhos e os Dias, 38-40). Platão intitula os funcionários corrompidos como “tomadores de presentes e amantes do dinheiro”(República, 390d). E cita a frase poética: “Os presentes movem  deuses / presentes persuadem péssimos reis”.

Se o poder é movido pelos favores e a base democrática é o não favor, mas a isonomia, como combater subornos?  Recordemos que os próprios cidadãos na democrática Atenas sobrevivem com os presentes da polis que os sustenta nos cargos. Como vencer a corrupção e a troca de presentes? Caçando corruptos e aliciadores de benesses e, se necessário, inventando culpados ou atribuindo culpas a inocentes. ([2]) O instrumento para tal fim era o sicofanta. A palavra, desde tempos remotos, significa a pessoa que acusa falsamente.([3]) Lysias, político e pensador da época, explica o sicofanta. A sua prática, diz ele, “é acusar, mesmo contra os que nada fizeram de errado, porque destes últimos eles arrancam mais lucro”. Sicofantas ajudam a combater a corrupção, mas eles próprios são corruptos, entre outras coisas pela prática da chantagem. ([4])

Dada a experiência histórica, não só da Grécia mas de múltiplos regimes democráticos e autoritários modernos, tenho dúvidas de ordem ética  sobre o  Art. 38 do projeto.  “O terceiro que, não sendo réu na ação penal correlata, espontaneamente prestar informações de maneira eficaz ou contribuir para a obtenção de provas para a ação de que trata esta lei, ou, ainda, colaborar para a localização dos bens, fará jus à retribuição de até cinco por cento do produto obtido com a liquidação desses bens. Parágrafo único. A retribuição de que trata este artigo será fixada na sentença”.  Foi refletido, na redação do artigo,  o passivo moral que a prática instaura ou reitera? Não estaríamos retomando a lide das vespas atenienses e dos sicofantas? A definição de Lisias é  forte e tenho dúvidas sobre se ela não se aplicaria à sociedade brasileira. Diz ele, repito, que os inocentes chantageados dão mais lucros aos sicofantas, do que os verdadeiramente corruptos. É contra a fé pública mover profissionais da delação paga.

O segundo ponto que preocupa no projeto é o teste de integridade, no artigo 48. O Estado democrático moderno, apesar de preso nas malhas da burocracia com o seu segredo do cargo inexorável, busca romper com a raison d’État e o sigilo. A transparência deve comandar os poderes e os meios administrativos. Estados onde imperaram a exceção, afastada a transparência, mantiveram o sigilo e o ampliaram em detrimento da liberdade cidadã. Se o legislativo, o executivo, a justiça devem prestar contas de seus atos aos cidadãos, como instaurar um modo de percepção da provável desonestidade de funcionários com base no segredo? “Artigo 50: Os testes de integridade consistirão na simulação de situações sem o conhecimento do agente público, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para cometer ilícitos contra a Administração Pública”. Poderes secretos seriam atribuídos a Corregedorias, Controladorias, Ouvidorias ou órgãos congêneres de fiscalização e controle. Tais organismos devem dar ciência, de modo sigiloso, ao Ministério Público, para que este recomende medidas complementares. E ainda mais segredo: Artigo 55: A administração Pública não poderá revelar o resultado da execução dos testes de integridade, nem fazer menção aos agentes públicos testados. A frase “respeitado o direito à intimidade” surge como algo estranho no contexto.

Deixando de lado a eficácia do teste, algo muito discutido pela literatura especializada, ([5]) insisto no segredo e na sua manipulação.  Os organismos movidos para aplicar os testes estão acima de qualquer inspeção no ato mesmo em que o efetivam? E o termo “simulação” no projeto? Um mestre político, jurídico e científico é Francis Bacon. No ensaio sobre “Simulação e Dissimulação” ele indica a essência da palavra e da coisa: “A simulação é profissão falsa e a mais culpável e menos política, exceto em matérias eminentes e raras. E um costume generalizado de simulação (em seu último grau) é vício”. O principal erro dos atos simulados, termina Bacon, é que eles privam “a pessoa de um instrumento principal de ação:  a confiança e a crença”.

Uma técnica ética e moral estabelecida por Kant, para testar a prática baseada em máximas, é perguntar se elas podem ser universalizadas, omnia et singula. Caso contrário, ela não é moral. Os procedimentos do teste de integridade podem ser universalizados para toda a cidadania e todos os que, nos poderes, exercem cargos? Por exemplo, na Justiça ? A resposta é negativa. Volto a Platão: nas Leis ele instaura pela primeira vez na história jurídica e política a tese dos checks and balances, depois herdada por Montesquieu. Abusos de um poder devem ser controlados pelos outros, coletivamente dispostos. No teste de integridade o indivíduo está solitário, sem apoio de seus representantes como os sindicatos e associações, diante de um poder invisível que só responde a posteriori, mas deve silenciar o nome e as condições do interrogado. Perdoem, mas estamos no domínio do Processo, escrito por um autor que denunciou o abuso do segredo.

Finalmente, passo à boa fé que, diz Bacon, desaparece com práticas de simulação e dissimulação no poder e na sociedade. Noto um ponto : os partidos políticos poderão ser punidos pelo uso de recursos ilícitos. Existe, no entanto, quem julgue encontrar nas suas direções boa fé na admissão daquelas finanças (Cf. Editorial de O Estado de São Paulo, “Quando só a boa-fé não basta”, 19/08/2016, p. A3). É árduo separar o tesoureiro ou integrante de um partido e a totalidade da agremiação. Mas seria de todo relevante, no caso, provar a conivência do todo partidário em casos específicos.  Algo similar ocorre na coleta de provas não assistidas pela ordem legal, mas realizadas em boa fé pelos investigadores e/ou acusadores.

Importa refletir um pouco sobre o significado da locução “boa fé”que  herdamos do latim bona fide. O exemplo que vem à lembrança é o do autor da mais profunda ética ocidental, Bento de Spinoza. No Tratado Teológico-político, ao elogiar a cidade de Amsterdã ele exalta o quanto a liberdade é fundamental para a sua vida pública. Naquela urbe, diz ele, “pessoas de todas as nações e seitas vivem em concórdia e se preocupam apenas, para dar crédito a alguém, rico ou pobre, se ele costuma agir como pessoa de boa fé ou dolosamente”(num bona fide, an dolo solitus sit agere”. (TTP, capítulo XX). Spinoza distingue os sentidos da fé e da boa fé. Do religioso ao político, ele segue a ligação entre fé e obras: “a fidelidade no Estado como a fidelidade para com Deus só é conhecida pelas obras”. Spinoza parte do conceito jurídico vigente na época, a idéia de bona fides cujo significado é confiança, crédito. ([6])

Como a maioria de nossos conceitos jurídicos, o lema da boa fé vem da Grécia e de Roma. Em Atenas o termo original para tal situação é πίστις. ([7]) Já a Fides designa confiança recíproca entre  contratantes e aparece nos mais antigos textos conhecidos. ([8]) Em Cicero, a boa fé se define “como o fundamento da justiça. Ela é a verdade e a constância nas promessas e acordos. E devemos seguir os estoicos, que diligentemente investigam a etimologia das palavras. E devemos aceitar seu argumento de que a ‘boa fé’ é assim chamada porque promete ‘fazer o bem’ embora alguns possam achar que esta derivação é um erro”. ([9])

É preciso notar que o termo “boa fé” não é unívoco e sem ambiguidades. Como enunciam trabalhos jurídicos –antigos e recentes–, trata-se de uma noção vaga. Tal fato não impede que ela tenha acolhimento em vários setores do direito. Mas não há consenso algum “sobre a exata natureza legal da boa fé. Esta imprecisão terminológica afeta inevitavelmente a função preenchida pela boa fé no direito contemporâneo”. E no entanto, “parece que um bom número de sistemas considera que a boa fé se aplica às leis que tratam das obrigações em geral, e não apenas às leis do contrato”. ([10])

No comercio e na política pode-se falar com maior propriedade de boa fé, porque existe algo que vai além dos que fazem o acordo: a mercadoria, o dinheiro, o poder estatal que efetiva obras  em proveito dos governados. Quando o ato é unilateral e não beneficia como no contrato a outra parte de modo evidente, com dificuldade podemos separar o conceito de boa fé do seu aspecto subjetivo.([11]) Ele reside no íntimo do indivíduo que age, não é fenomênico para usar a linguagem kantiana, mas apenas noumênico, se limita à consciência do agente. Mas consciência não se revela sem equívocos no mundo visível. Aliás, neste ponto Rousseau, emulado por Kant, é mais claro: “Toda a moralidade de nossos atos está no juízo que trazemos em nós mesmos. Se é verdade que o bem seja bem, ele deve estar no fundo de nossos corações como em nossas obras e o primeiro prêmio da justiça é sentir que a praticamos”. ([12]) Para que a consciência própria seja reconhecível no e pelo coletivo é preciso indicar as obras resultantes. E tais obras, na investigação criminal, não podem negar a lei positiva. A sequência que vai dos quid facti ao quid iuris deve ser estabelecida sem quebras subjetivas. Não é preciso seguir Hans Kelsen para notar as dificuldades  de uma visão subjetiva que, ampliada,  pode se tornar equívoca e arbitrária. ([13])

Pergunto se a noção de bona fides, no projeto, não deveria ser mudada por uma outra, a de equidade, a epieikeia formulada por Aristóteles, o corretivo para as leis positivas que regem a sociedade e o Estado. ([14]) Em certos casos a lei comum não consegue ser obedecida in totum, os casos precisam ser considerados como exceção à regra geral. É preciso retificar a lei devido  à sua generalidade. A epieikeia reside na retificação prudente da lei geral. Ela não nega a lei geral, mas a corrige quando é preciso aplicá-la a casos particulares anômalos. ([15]) Mas aí temos outro problema: se o conceito de epieikeia vale para o acusador, ele também pode ser movido pela defesa, pois a justiça e a equidade o exigem. A bona fides deveria ser atribuída aos que investigam e acusam e aos acusados, por exemplo os partidos políticos.

Tais pontos são trazidos por mim não para obstaculizar o trabalho que levou ao atual projeto, subscrito por dois milhões de compatriotas e apresentado pelo Ministério Público, ao qual me alio desde longa data. São observações de prudência ética, para que conceitos problemáticos não sejam tomados como imperativos, o que pode suscitar, em médio ou longo prazo, autoritarismos oriundos da luta contra a corrupção. A experiência jacobina  nos alerta contra o excesso no combate à corrupção: a guilhotina não é um instrumento idôneo para atenuar o fato corrupto. ([16]) Este é a coisa mais amplamente partilhada pelos seres humanos. Lutar para que a corrupção se atenue é dever ético. Sem autoritarismos, no entanto, porque regimes autoritários que alegadamente foram impostos para lutar contra a corrupção,  produziram apenas corrupção sigilosa, a exemplo do que ocorreu em nossa terra nas ditaduras do século 20.

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[1] “No mercado político democrático o poder se conquista com votos, um dos modos de conquistar votos é
 comprá-los e um dos modos para se livrar das despesas é servir-se do poder conquistado para conseguir benefícios mesmo pecuniários daqueles que possam receber vantagens daquele poder (…) Considerada a arena política como uma forma de mercado, onde tudo é mercadoria, ou coisa comprável e vendível, o político se apresenta num momento como comprador (do voto), num segundo momento como vendedor (dos recursos públicos dos quais, graças aos votos se tornou potencial dispensador)”. “Quale il Rimedio?” In L’Utopia Capovolta (Torino,La Stampa, 1990), p. 32 e ss
[2] MacDowell, Douglas M. The Law in Classical Athens (Ithaca/NY, Cornell University Press, 1978), p. 34.

[3] Matthew R. Christ, The Litigious Athenian (Baltimore:  The Johns Hopkins University Press, 1998).


[4] “Sicofanta era o homem que fazia processos sem justificação, seja porque ele tinha esperança de pegar um réu inocente e dele obter a paga devida a um promotor bem sucedido, ou porque ele tinha a esperança chantagear o réu ao idnuzi-lo a pagar proprina para fazer o processo terminar”.  Douglas M. MaDowell, op. cit. p. 62. Todo o capítulo de MacDowell sobre o sicofanta é muito ilustrativo dos perigos por ele trazidos.  Não tenho tempo para analisar todo o ponto aqui, remeto ao estudo de Donato Loscalzo, “Doro Fig-Sandaled’ (Cratin.Fr. 70 Kassel-Austin and Aristoph. Eq. 529) and other aspects of comic Sycophantia”, in Classical Association of South Africa, Acta Classica Supplementum IV, Corruption and Integrity in Ancient Greece and Rome, Classical Association of South Africa. 2-12.

[5] Wiley, C. e Rudley, D. L. : “Managerial issues and  responsabilities in the use of integrity tests”.  In Labor Law Journal (1991); Coyne I., e Bartram, D. “Assessing the effectiveness of integrity tests, a review”. In International Journal of Testing.   in https://www.researchgate.net/publication/247502634_Assessing_the_Effectiveness_of_Integrity_Tests_A_Review também Lisa L. Harlow, Stanley A. Mulaik, James H. Steiger: What If There Were No Significance Tests? Mahwah, NJ, Lawrence Erlbaum Associates, 1997. Também: Harold M. Hyman, To Try Men's Souls: Loyalty Tests in American History, (Berkeley, CA, University of California Press, 1959) .

 



[6] Carlo Guinzburg : “Tolérance et Commerce. Auerbach lit Voltaire”in  Tortonese , Paolo (Ed.) :  Erich Auerbach la líttérature en perspective,  (Paris, Presses Sorbonne Nouvelle, 2009), p. 119-120.
[7] Cf. J. Hellegouarch’h : Le vocabulaire latin des relations et des partis politiques sous la république (Paris, Les Belles Lettres, 1972), p. 25. Em Platão o termo pode significar fé ou crença que resulta da retórica (persuasio ou Glaube). No Lexicon Platonicum, sive vocum platonicarum INDEX, (Lipsae, Libraria Weidmanniana,  1838) ,V. III, p.106, ele designa a fidei, a fiducia. É bom recordar que nos manuais de retórica forense gregos, no momento clássico, “pistis” era uma das partes do discurso do logógrafo, o avô dos nossos advogados. A defesa contava com o prooimion (introdução),  a diegésis (narrativa), a pistis (provas), epílogos (conclusão). Cf. Lanni, Adriaan: Law and Justice in the Courts of Classical Athens (Cambridge, University Press, 2006)  p. 45. Se fôssemos estritamente platônicos, teríamos bastante relutância em aceitar o termo “boa fé” em campos do agir e do pensar. O filósofo coloca aquela posição como a penúltima na escala do saber, apenas superior à eikasia (conjectura). Acima dela situam-se a dianóia (raciocínio) e finalmente a noesis ou epistême (conhecimento). República, 511e a 511d.
[8] Hellegouarch’h, op. cit. p. 27.
[9]Fundamentum autem est iustitiae fides, id est dictorum conventorumque constantia et veritas. Ex quo, quamquam hoc videbitur fortasse cuipiam durius, tamen audeamus imitari Stoicos, qui studiose exquirunt, unde verba sint ducta, credamusque, quia fiat, quod dictum est, appellatam fidem”.  M. Tullius Cicero. De Officiis. With An English Translation. Walter Miller. (Cambridge. Harvard University Press) 1913 in Perseus Project, http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A2007.01.0047%3Abook%3D1%3Asection%3D23

[10] “Good Faith”  in Principes Contractuels Communs, projet de Cadre Commun de Référence, v. 7, cap. 5. Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française, Société de Législation Comparée, dirigée para Bénédicte Fauvarque-Cosson. http://www.legiscompare.fr/web/IMG/pdf/0-Couvertures_4_de_couv_vol_7.pdf

[11] Cf. Chris Coope : “The doctor of philosophy will see you now”, in Anthony O'Hear (Ed.) : Conceptions of Philosophy. (Cambridge, University Press, 2009).

p. 212.
[12] Jean Paul Sartre foi um dos pensadores modernos que mais percebeu a complexa relação entre boa fé e má fé, ambas enquistadas na consciência e diante do mundo opaco . A boa fé, diz ele em O Ser e o Nada, “busca fugir da desagregação íntima de meu ser rumo ao em si que ela deveria ser e não é”. A má fé, “busca fugir do em si na sua desagregação íntima de meu ser”. Em seu movimento comum, “a má fé reassume a boa fé e desliza rumo à origem mesma de meu projeto”. Ou seja, a boa fé traz a má fé no seu ventre, como diz Sebastião Trogo: “Má fé e conversão, dois pilares da antropologia sartreana”Revista Síntese, número 37, 1986, pp. 51-59. 
[13] Não apenas no positivismo jurídico, mas em pensadores como Hegel a presença e a obediência da lei estabelecida é conditio sin qua non para deixar o arbítrio. “Sem o direito, a fraude e o crime são juízos. Julgar, para Hegel, é um ato especulativo, não de reflexão, mas um agir para o sujeito para quem dizer é fazer, fazer é dizer, o ato do corpo e da alma. Calar pode ser um juízo, bem como ‘julgar com os pés’ indo embora. Posso negar que o direito seja respeitado, quero então fazer reconhecer o não respeito do direito pelo direito, que então quero respeitar : o juízo é então, no essencial, uma ato de palavra do gênero : ‘não estou de acordo’ ou ‘não é conforme à lei’ ou ainda ‘a lei me dá razão’. Na fraude, o direito também é reconhecido, mas a minha ação consiste em fazer passar a aparência pela essência, afirmo que é conforme ao direito fazer tal coisa ao fazer a coisa, mas sei muito bem que não é verdade e a ação que compreende um dizer faz aparecer meu intento mentiroso. O exterior é desmentido pelo interior, minha hipocrisia abre minha subjetividade”. Hervé Touboul, “Le crime et le sujet dans la philosophie du droit de Hegel” in Philosophique, Annales littéraires de l ‘Université de Franche-Comté, 15, 2012, pp. 25-44. http://philosophique.revues.org/542

[14] Os autores dos Principes Contractuels Communs, projet de Cadre Commun de Référence, citados acima, chega à conclusão próxima à que adianto, ao indicar o conceito de “fairness” : “Contractual fairness is protected by a reliance on notions which are different from, and to a certain extent, more precise than, the notion of good faith”.
[15] Anton-Hermann Chroust, Aristotle's Conception of Equity (Epieikeia), 18, Notre Dame Law. Rev.119 (1942).Available at:http://scholarship.law.nd.edu/nd lr/vol18/iss2/3


[16] Durante o governo jacobino, dirigido por um líder cujo apelido era “O Incorruptível”, existiu o uso da coisa pública para fins partidários e pessoais, crimes praticados por grupos que afirmavam defender a moral política. Cf. Michel Benoit 1793 La République de la tentation : Une affaire de corruption sous la Ière République (Paris, Ed. de l’Armançon, 2008). “Ninguém pode garantir que um partido, governo ou mesmo Estado (para não falar no coletivo religioso) seja hegemonicamente honesto ou desonesto. A pesquisa e análise exigem rigor epistemológico e prudência moral”, Roberto Romano, Entrevista MPD Dialógico, http://mpd.org.br/a-mpd-dialogico-roberto-romano-afirma-que-brasil-beira-caminho-sem-volta/

 


terça-feira, 23 de maio de 2017

El País

Citação a ministros do STF na delação JBS eleva desconforto com juízo na Corte

Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes aparecem na delação do empresário Joesley Batista

A polêmica delação do empresário Joesley Batista, dono da holding J&F colocou a Lava Jato no coração do Executivo, e de quebra, respinga uma dose de veneno dentro do Supremo Tribunal Federal (STF). Dois ministros da instituição, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, foram mencionados nos depoimentos e grampos feitos pelo magnata, fomentando um clima de desconfiança sobre os dois magistrados. Algo visto como preocupante, uma vez que cabe ao STF julgar os processos da Lava Jato envolvendo pessoas com direito ao foro privilegiado – dentre eles o próprio presidente Michel Temer, também enredado no esquema por Batista.
Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes
O ministro Gilmar Mendes.
Gilmar Mendes foi flagrado em uma gravação feita pela Polícia Federal em 26 de abril. Na conversa com o senador afastado Aécio Neves (PSDB-MG), que estava grampeado com autorização da Justiça, eles discutem a aprovação do projeto de lei que pune abuso de autoridade. A matéria foi duramente criticada por juízes e procuradores envolvidos na Lava Jato por abrir brechas para que eles sejam processados pelas pessoas que investigam e julgam. O tucano pede ao ministro para que interceda junto ao senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) para que ele acompanhe seu voto na sessão. “Você sabe um telefonema que você poderia dar que me ajudaria na condução lá. Não sei como é sua relação com ele, mas ponderando... Enfim, ao final dizendo que me acompanhe lá, que era importante... Era o Flexa, viu?”, afirma Aécio no diálogo gravado.
Mendes responde: “Tá bom, tá bom. Eu vou falar com ele. Eu falei... Eu falei com o Anastasia [senador Antonio Anastasia (PSDB-MG)] e falei com o Tasso [senador Tasso Jereissati (PSDB-CE)]... Tasso não é da comissão, mas o Anastasia (...) Eu falo pra com ele... E falo com ele... Eu ligo pra ele... Eu ligo pra ele agora.”. O Senado aprovou a matéria em 26 de abril por 54 votos a 19. Flexa Ribeiro acompanhou o voto de Aécio. Em nota a assessoria de Mendes afirmou que "desde 2009 o ministro (...) sempre defendeu publicamente o projeto de lei de abuso de autoridade, em palestras, seminários, artigos e entrevistas, não havendo, no áudio revelado, nada de diferente de sua atuação pública”. A nota afirma ainda que “os encontros e conversas mantidas pelo ministro Gilmar Mendes são públicos e institucionais". Até o momento, Moraes não se posicionou sobre o caso.

Um dia antes da gravação, no dia 25 de abril, Mendes tomou a polêmica decisão de suspender um depoimento de Aécio para a Polícia Federal, a pedido do senador tucano, em um processo que investiga esquema de corrupção na Furnas Centrais Elétricas.O peessedebista queria ter acesso aos autos com as falas das testemunhas que já haviam comparecido ao tribunal. Em seu despacho, o ministro afirma que “o argumento da diligência em andamento não autoriza a ocultação de provas para surpreender o investigado em seu interrogatório”. O depoimento de Aécio foi remarcado para a semana seguinte, dia 2 de maio.

As menções a Mendes aumentam a tensão entre o STF e o Ministério Público Federal. O ministro já havia entrado em rota de colisão com o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que em maio pediu seu afastamento do caso envolvendo Eike Batista. A mulher do magistrado, Guiomar Mendes, faz parte do escritório de advocacia que representa o empresário em vários processos. Dias antes do pedido feito pela PGR, Mendes mandou soltar o empresário, preso preventivamente desde o final de janeiro sob acusação de corrupção ativa, organização criminosa e lavagem de dinheiro. Pouvo depois, vazou a informação que a filha de Janot Letícia Ladeira Monteiro de Barros trabalhava em escritório que atendia OAS e a Braskem, braço petroquímico da Odebrecht, ambas investigadas pela Lava Jato. Nos bastidores, Mendes teria rido do episódio, afirmando “o trapezista morre quando pensa que voa”, segundo a Folha de S. Paulo.

Para o professor Thomaz Pereira, da Faculdade Getúlio Vargas Rio, agora o Supremo terá que responder a uma pergunta importante: “esses ministros poderão decidir nos inquéritos em que são mencionados?”. De acordo com ele, “independentemente das menções serem verdadeiras ou não, a melhor solução seria que estes dois ministros se declarassem suspeitos e impedidos de decidir nestes casos”, deixando a o julgamento a cargo dos outros magistrados. "Isso preservaria Mendes, Moraes, e a própria Corte”, diz.

Pereira afirma que algum nível de interação entre os poderes Legislativo e Judiciário é normal. “Existe um grau de interação que é inevitável. O que acontece, no entanto, é que quanto mais você interage, naturalmente podem acontecer situações que ficam numa zona cinzenta entre o que é necessário do ponto de vista institucional e coisas que podem ser questionadas quanto à sua normalidade”. Uma solução, segundo o professor, seria que os contatos entre ministros e parlamentares fossem “públicos e transparentes: que isso esteja na agenda oficial das partes”.
Para a PGR, Temer, Aécio e Moraes tentaram articular esquema para que inquéritos da Lava Jato ficassem com delegados pré escolhidos por eles

Já Alexandre de Moraes foi mencionado em conversa gravada por Batista com Aécio. O tucano critica o atual ministro da Justiça, Osmar Serraglio (PMDB-PR), a quem chama de “um bosta do caralho”, e elogia Moraes. O parlamentar menciona um esquema para tentar influenciar a distribuição dos inquéritos da Lava Jato para delegados específicos, o que, de acordo com ele, não se concretizou. Para a Procuradoria-Geral da República, Aécio teria tentado, ao lado do presidente Michel Temer e de Moraes, “organizar uma forma de impedir que as investigações avançassem, por meio da escolha dos delegados que conduziriam os inquéritos, direcionando as distribuições, mas isso não teria sido finalizado entre ele, Michel Temer e o ex-ministro da Justiça e atual ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes”.

Para Roberto Romano, professor de Ética e Política da Unicamp, existem diferenças fundamentais entre o caso de Mendes e Moraes com relação aos fatos trazidos à tona pela delação de Batista. “Mendes já havia externado publicamente sua posição com relação ao tema [lei que pune abuso de autoridade], não vejo a gravação como um motivo que justifique o impedimento para julgar questões ligadas ao inquérito”, afirma. Além de defender medidas contra excessos cometidos pelas autoridades, o ministro é crítico contumaz dos métodos da Lava Jato, que incluem prisões preventivas por prazo indeterminado.

Já com relação a Moraes, “o caso é mais complicado”, segundo Romano, uma vez que envolve seu “ex-patrão Michel Temer”. “Acho que ele deveria se declarar impedido, assim como o Toffoli [Dias Toffoli] deveria ter se declarado impedido em casos envolvendo seus ex-patrões do PT”, diz o professor. No passado Toffoli prestava assessoria jurídica para a legenda na Câmara dos Deputados, além de ter sido advogado do partido nas eleições presidenciais de 1998, 2002 e 2006. Mesmo assim o ministro se considerou apto a participar do julgamento do mensalão, que atingiu em cheio o PT.
“O Judiciário por vezes se comporta como um poder extraterrestre, que não se submete a algumas regras básicas”, afirma Romano. Ele cita ainda os diversos pedidos de impeachment que foram protocolados contra Mendes, "mas que não avançam porque a Corte se auto blinda”.

“O Judiciário por vezes se comporta como um poder extraterrestre, que não se submete a algumas regras básicas”

Os dois ministros citados têm forte ligação com o PSDB. Mendes foi indicado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso e nunca escondeu sua simpatia pelo partido. Além disso, sempre teve relação próxima ao mandatário, tendo se encontrado em algumas ocasiões fora da agenda oficial, inclusive numa carona no avião presidencial na viagem a Portugal, para o funeral de Mario Soares, em janeiro. Mendes acabou não indo ao funeral. Já Moraes foi filiado à legenda até fevereiro deste ano, quando deixou a chefia do Ministério da Justiça, que ocupou a convite de Temer, ao ser indicado para a vaga do ministro Teori Zavascki, morto em acidente de avião em janeiro.

O mal estar ganhou dose extra com a delação da JBS, quando Joesley afirmou aos procuradores que durante reunião no palácio do Jaburu, residência de Temer, o presidente teria afirmado que poderia ajudar Eduardo Cunha (PMDB-RJ), preso pela Lava Jato, com “dois [ministros], mas que com 11 [o total de juízes da Corte] seria complicado”.

Esta não é a primeira vez que o nome de um ministro da Corte aparece em vazamentos de delações ligados à Lava Jato. No ano passado informações do depoimento ainda não homologado do ex-presidente da empreiteira OAS Léo Pinheiro dão conta que funcionários da construtora teriam feito uma vistoria na residência do ministro Dias Toffoli. Posteriormente ele contratou uma empresa indicada por Pinheiro para realizar as reformas. Em nota, Toffoli afirmou que arcou com todas as despesas da obra. O delator e senador cassado Delcídio do Amaral também mencionou em seus depoimentos uma suposta influência sobre membros do STF, sem detalhar quem seriam seus contatos na Corte.

Aécio divulgou nota afirmando que “não existe qualquer ato do senador, como parlamentar ou presidente do PSDB, que possa ter colocado qualquer empecilho aos avanços da Operação Lava Jato”. Mais à frente, a assessoria do tucano afirma que “como presidente do partido, o senador foi um dos primeiros a hipotecar apoio à operação”. A irmã dele, Andrea Neves, foi presa preventivamente na quinta-feira da semana passada.

Prensa Latina

Catedrático brasileño alerta: permanencia de Temer agrava corrupción

 
Brasilia, 23 may (PL) La permanencia en el cargo del presidente Michel Temer constituye hoy un factor que puede agravar la corrupción en el Congreso, del cual permanece rehén, alertó el catedrático de la Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Roberto Romano. (PLRadio)

Temer puede profundizar su relación con los parlamentarios sobre bases promiscuas, sostuvo Romano y recordó que 'él ya hizo eso para conseguir las reformas, distribuyendo fondos, cargos y perdonando deudas a los Estados y municipios'.

A juicio del profesor del Instituto de Filosofía y Ciencias Humanas de la Unicamp, el titular del Ejecutivo profundizó la corrupción y esa situación tiende a agravarse, pues a medida que el peligro (de caída) aumenta, el precio de los corruptos también se eleva.

En declaraciones amplificadas la víspera por la Red Brasil Actual, el filósofo brasileño advirtió además que si ahora Temer tiene que pagar por su permanencia en el Palacio de Planalto - y no más por las reformas que hunden a los trabajadores en una incerteza judicial absoluta - 'aumentará la inestabilidad jurídica en el país'.

Romano se refirió asimismo a los posibles escenarios para la salida de la actual crisis política, agudizada con las delaciones del empresario Joesley Batista y que impulsaron al Supremo Tribunal Federal a autorizar una investigación contra Temer por presuntos delitos de obstrucción de la justicia, corrupción pasiva y asociación delicitiva.

La salida menos traumática sería que el Tribunal Superior Electoral resolviera casar la fórmula ganadora en las elecciones presidenciales de 2014, que integraron Temer y la depuesta presidenta constitucional Dilma Rousseff, pues se trataría de una decisión tomada por la justicia, opinó.

Mientras, las otras dos hipótesis que se manejan: la renuncia (a la cual Temer se niega rotundamente) y el impeachment son remotas; en el caso de la última, 'por cuenta de la relación fisiológica de Temer con su base congresual', señaló.

Un informe de la consultoría de riesgo político Eurasia Group divulgado este lunes aquí reveló que las posibilidades de caída del gobierno de Temer crecieron de un 20 por ciento en diciembre del pasado año al 70 por ciento en la actualidad.

Las condiciones para que Temer se mantenga en el poder son cada vez más precarias, indicaron especialistas de la institución, para quienes el momento político 'debe continuar contrario a él en el Congreso, los tribunales y en las calles'.

Desacreditar a Joesley Batista y cuestionar las evidencias existentes pueden salvarlo por algún tiempo, pero la estrategia (jurídica) es vulnerable ante las acusaciones que continúan sin explicación, consideraron los analistas de Eurasia Group.

lam/mpm

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Rede Brasil Atual

apoio comprado

Roberto Romano: permanência de Temer agrava a corrupção

"Preço dos corruptos aumenta de acordo com a situação do perigo", afirma o filósofo da Unicamp. Demais professores da universidade opinam sobre as saídas para a crise
por Redação RBA publicado 22/05/2017 11h45
Temer base
Base de sustentação de Temer na Câmara e no Senado é, na verdade, "a base de achaque", diz professor
São Paulo – Fragilizado pelas denúncias que o atingem a partir das delação de executivos da JBS, o presidente Michel Temer (PMDB-SP) permanece refém do Congresso, e pode aprofundar a relação com os parlamentares em bases promíscuas, agravando a corrupção. Segundo o filósofo Roberto Romano, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), acuado, Temer representa ameaça inclusive ao Judiciário.

"Trata-se de um cenário terrível, mas é bom lembrar que ele já tem feito isso para conseguir as reformas, distribuindo verbas, perdoando dívidas de Estados e municípios e distribuindo cargos, ou seja, Temer tem aprofundado a corrupção. Essa situação tende a se agravar, como é sabido. O preço dos corruptos aumenta de acordo com a situação do perigo em que está o chefe do Executivo", afirma Romano, em breve análise publicada pelo Jornal da Unicamp.

Segundo o professor, a base de sustentação de Temer na Câmara e no Senado é, na verdade, "a base de achaque". "A cada vez que Temer tiver que pagar pela sua permanência – e não mais pelas reformas –, aumentará a instabilidade jurídica no país", diz Romano, que ressalta ainda que esse conjunto de reformas proposto por Temer jogam os trabalhadores na "incerteza jurídica absoluta".
Diante do impasse criado pela permanência de Temer na presidência, Romano aponta que a sua cassação pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é a saída menos traumática, pois trataria de decisão tomada pela Justiça, em último caso. Para o professor, as outras duas hipóteses – renúncia e impeachment – são remotas, a última por conta da relação fisiológica de Temer com a sua base congressual.

Outros intelectuais da Unicamp expressam suas opiniões no jornal da entidade. Para o cientista político Reginaldo Moraes, a questão da sucessão de Temer é ainda mais grave que a sua queda. Com os presidentes do Senado e da Câmara também indiciados por corrupção, caberia a missão à presidenta do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, que, segundo ele, "é uma pessoa absolutamente despreparada para qualquer coisa".

Segundo ele, Cármen Lúcia na presidência poderia se desgastar ao ter que conter manifestações diretas, inclusive com o uso da força policial na repressão. Ainda assim, a presidenta do STF segue sendo a opção para as forças conservadoras, que devem evitar, a todo custo, a realização de eleições diretas.

"Eleição direta é a última coisa que querem no momento, sobretudo com o quadro de desmantelamento das lideranças conservadoras, alinhadas com a Globo e que estão todas muito mal na fotografia", diz Reginaldo, que prevê, ainda, cenário de desmanche das forças políticas e polarização.

A socióloga Walquíria Leão Rego aponta "rachaduras nas próprias forças golpistas", em duelo entre forças ligadas ao Ministério Público Federal (MPF), STF e o atual governo, e diz que o problema, para essas forças, é a força política do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

"Acho que o grande projeto deles é não deixarem ocorrer as eleições em 2018 porque, para permiti-las, eles teriam que arrumar alguma coisa para impedir a candidatura Lula, que já é muito forte. Não dá para saber, nem eles estão se entendendo. Por que a Globo, que sempre ataca o Lula, de repente parece fazer diferente? Não dá para entender o que acontece. Acho que podemos imaginar vários cenários possíveis, inclusive um golpe ainda mais à direita do que já foi", diz Walquíria.
O também sociólogo Marcelo Ridente aponta que, apesar de toda a crise institucional, forças do mercado ainda apostam em manter de pé o plano de aprovação das reformas trabalhista e da Previdência. "Resta saber se haverá clima político no Congresso para aprovar tudo isso, com essa crise do governo."