Entrevista
Entrevista
Roberto Romano, filósofo
A seu modo, o Estado brasileiro é perfeitamente ético
Daniel Teixeira
Cláudio Gradilone
Edição 26.05.2017 - nº 1020
Edição 26.05.2017 - nº 1020
Prestes a completar 72 anos, o paranaense Roberto Romano,
doutor em filosofia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales,
de Paris, disse não ter se surpreendido com a crise política deflagrada
pelas delações do empresário Joesley Batista, no dia 17 de maio. Para
ele, é mais uma demonstração das malformações do Estado brasileiro.
Esses desvios, avalia, são antigos e moldam a ética do País até hoje.
Desembarcaram no começo do século XIX, com as caravelas que trouxeram a
Corte portuguesa à então colônia. Para Romano, as mudanças já estão
ocorrendo, mas serão lentas. Ele falou à DINHEIRO:
DINHEIRO – O presidente da República pode
perder o cargo por obstrução da Justiça. Isso quer dizer que o Estado
não tem ética? Qual sua reação?
ROBERTO ROMANO – Não foi de surpresa, mas
foi de tristeza, de decepção com o País em que vivemos. Não me considero
nem otimista, nem pessimista, procuro ser sóbrio. Esse evento veio
trazer uma luz bem mais forte sobre a estrutura absolutamente corrupta
do Estado brasileiro. Nós costumamos associar os parlamentares, os
ministros e o presidente da República à corrupção. Mas essa revelação
mostra que o caso é mais grave. As notícias mostram a impossibilidade de
uma atuação eficaz do sistema de Estado. Mostram que a proposta de
Platão, adotada por Montesquieu, da existência de diversos poderes que
se fiscalizam e que se controlam reciprocamente, não funciona.
DINHEIRO – O senhor concorda que Judiciário está mais atuante em termos institucionais?
ROMANO – Não. A atuação do Judiciário, as
próprias funções do Judiciário, são irrelevantes quando se pensa na
atuação do Estado como um todo. A ex-presidente Dilma Rousseff e o atual
presidente estão sendo julgados no Tribunal Superior Eleitoral, o TSE.
As notícias revelam uma atuação do Executivo para tentar obstruir o
funcionamento da Justiça. A mera consideração de que o Executivo tentou
obstruir a atuação do Judiciário é incompatível com o bom funcionamento
das instituições.
DINHEIRO – Na quarta-feira 24, Ministérios
foram incendiados e o presidente convocou as Forças Armadas. Isso está
longe de ser normal, não?
ROMANO – Exatamente. É mais uma prova do mecanismo absolutamente disfuncional em que o Estado brasileiro se transformou.
ROMANO – Exatamente. É mais uma prova do mecanismo absolutamente disfuncional em que o Estado brasileiro se transformou.
DINHEIRO – Por que isso está ocorrendo?
ROMANO – Uma instituição não é uma
entidade isolada em si mesma. Ela é um organismo, formado e movido por
seres humanos. Nos Três Poderes há indivíduos agindo fora da lei. Isso
faz as instituições funcionarem de maneira enviesada, pervertida. O
presidente da República tem uma função constitucional importantíssima:
ele é o fiador do bom funcionamento do Estado. Quando ele é pego
tentando obstruir a Justiça, o que se pode esperar? E as consequências
são muito graves para a sociedade e para a economia.
DINHEIRO – Como assim?
ROMANO – Pense em um trabalhador, em um
investidor, ou em um empresário honesto, que não tenha se envolvido na
Lava Jato. Como eles podem confiar que seus direitos serão respeitados?
Pensando racionalmente, qualquer empresário que não seja partícipe de um
esquema mafioso está colocando seu dinheiro na incerteza. Isso é
terrível para a economia.
DINHEIRO – Qual a origem dessas distorções?
ROMANO – Voltemos aos clássicos. O que é o
Estado? A palavra Estado vem do termo grego stasis, que significa
guerra, conflito, contradição. O Estado é, e sempre será, uma reunião
provisória e instável de múltiplos interesses: sociais, econômicos,
religiosos e ideológicos. O aparelho estatal foi inventado para garantir
alguma estabilidade na luta desses interesses opostos. Permitir um
equilíbrio que funcione entre indivíduos, empresas e sindicatos.
DINHEIRO – Isso não tem funcionado dessa maneira no Brasil.
ROMANO – Não. Temos uma tradição de
resolver as coisas pelo uso da força. Não só a força física, mas também
por meio da força jurídica, da força política. Em muitos casos, o Estado
– e isso vale desde o governo federal até as prefeituras de pequenos
municípios – resolve as questões tendo em vista interesses específicos.
Basta olhar para o notícias dos últimos anos. Mensalão, Lava Jato, tudo
isso tem sido a crônica da proteção de uns em detrimento de outros. E o
pior é que tudo ocorre por meio do Estado.
DINHEIRO – Qual seria a saída? Reduzir a atuação do Estado ao mínimo?
ROMANO – Não. Mesmo os liberais mais
radicais não propõem a abolição do Estado. Eles tentam reduzir sua
atuação na vida social e econômica, mas é preciso que o Estado exista
para garantir os direitos dos diferentes da maioria. Mas o Estado
brasileiro não faz isso.
DINHEIRO – O Estado brasileiro é anti-ético
?
?
ROMANO – Não. A seu modo, o Estado brasileiro é perfeitamente ético.
DINHEIRO – Essa é uma afirmação surpreendente.
ROMANO – Sempre há uma incompreensão do que é ética. Normalmente, associamos a palavra ética ao conjunto de normas corretas. Na verdade, a ética é o estudo minucioso dos costumes aceitos por uma sociedade ou por um grupo social, tanto os corretos quanto os incorretos. Um dos problemas graves da ética é que ela é um fato coletivo. Ela se opõe à moral, que é mais ligada ao plano subjetivo, ao embate do indivíduo com sua própria consciência. Assim, sendo coletiva, a ética é um conjunto de práticas e valores que, de tanto serem repetidas, se tornam habituais e automáticas. Eu li um livro dos depoimentos obtidos na operação Mãos Limpas, que investigou os políticos italianos durante os anos 1990. Há um testemunho, absolutamente delicioso, de um prefeito de uma pequena cidade italiana. Ele admitiu tranquilamente que recebeu propinas, porque achava que aquilo era um brinde, um presente. Era o mesmo que ganhar um panetone no Natal. Até ele ser preso, não lhe passava pela cabeça que o que estava fazendo era contrário à moral. A ética social brasileira e a ética política brasileira são automatizadas nesse sentido péssimo. Para a maioria dessas pessoas, não há nenhum problema no seu modo de atuação. Ao iniciar uma atividade, o indivíduo não pensa em uma concorrência leal. Ele pensa em canalizar para si a força do Estado.
DINHEIRO – O Estado, então, é cooptado e acaba atuando como um concorrente?
ROMANO – Sim, e um concorrente muito
desleal. Ele tem vários monopólios. Tem o monopólio da força, com as
polícias e as Forças Armadas. Tem o monopólio da norma jurídica. E tem o
monopólio dos impostos. Com esses monopólios, um Estado cooptado pode
usá-los para distribuir privilégios aos aliados e para ameaçar e
chantagear os adversários. Quem paga impostos não obtém nenhuma vantagem
direta para si, mas quem recebe financiamentos subsidiados dos bancos
estatais, aí ganha um apoio que faz diferença.
DINHEIRO – Essas práticas são antigas na sociedade brasileira, não?
ROMANO – Muito. Essas práticas
antidemocráticas têm origem histórica. Não podemos nos esquecer que,
quando desembarcou em 1808, D. João VI trouxe consigo a
contrarrevolução. Ele se contrapunha aos ideais da Revolução Francesa,
da revolução americana e mesmo da revolução puritana, que havia ocorrido
décadas antes, na Inglaterra. Todos esses movimentos eram inspirados no
Iluminismo e traziam os princípios clássicos da democracia: liberdade
de imprensa, separação entre o público e o privado, responsabilização do
governante pelos seus atos. Já as idéias que chegaram com a Corte
portuguesa eram contrárias a isso. Não podemos nos esquecer que a
Constituição outorgada de 1824 estabelecia a irresponsabilidade do
imperador. Ou seja, o imperador não poderia ser processado pelos seus
atos. Em 1988, a Constituinte estabeleceu o foro privilegiado para o
presidente, ministros e parlamentares. O princípio é o mesmo. Se eu não
posso ser julgado, ou se eu só posso ser julgado pelos meus pares, que
terão uma avaliação viesada, a Justiça que existe para mim não é a
Justiça que existe para o cidadão comum.
DINHEIRO – A situação atual é um problema da Constituição de 1988?
ROMANO – Não só, mas aquela Constituição é
um produto doutrinariamente duplo. É confusa e contraditória. Tem
pontos muito positivos, democráticos, e tem excrescências, como o foro
privilegiado. É um Frankenstein. É como uma cidade medieval, cheia de
vielas, ruas estreitas e escuras, e cada uma delas é um nicho de
interesse de uma parcela da sociedade que possui algum poder. Um
conjunto de tugúrios não é uma cidade. Esse Frankenstein não pode servir
de base para uma reforma séria do Estado brasileiro.
DINHEIRO – O senhor espera mudanças no curto prazo?
ROMANO – Difícil. Nossa história é
acidentada. Tivemos duas ditaduras truculentas no século XX, e sofremos
depois com alguns governos ineptos e corruptos. Temos uma ética torta
pelo hábito, e que deturpa todas as relações: as relações da sociedade
com ela mesma, da sociedade com o Estado, e do Estado com ele mesmo.
Voltar a um caminho de democracia e republicanismo é difícil. Não
podemos esperar chegar, no curto prazo, ao grau de eficiência que existe
na Europa e nos Estados Unidos. Nos falta aquela cultura republicana.
Quando entro em qualquer repartição, vejo um cartaz enorme na parede,
dizendo que é crime o cidadão desacatar o servidor público. Seremos um
país republicano quando, ao lado desse cartaz, houver outro dizendo que é
crime o servidor público não atender adequadamente às demandas do
cidadão.
DINHEIRO – Não há nenhuma solução possível?
ROMANO – Há, sim, mas as soluções são
tópicas e vagarosas. Houve alguns avanços, como, por exemplo, a Lei de
Responsabilidade Fiscal (LRF). É interessante notar que, nas
manifestações de 2013, um dos protestos era contra as tentativas de
atenuar essa lei. Os registros do Ministério Público Federal mostram que
40% dos governantes processados com base na LRF foram sancionados com
pena. Pouco importa se essas penas foram apenas multas, ou sanções
administrativas. Uma pena leve é preferível à impunidade. É pouco perto
do que precisamos, mas aos poucos melhoramos os padrões. Outro exemplo é
a ficha limpa. Tem inúmeros problemas de ordem constitucional, mas é um
elemento que está ajudando a melhorar. Repercute na imprensa, mobiliza
as lideranças de movimentos sociais importantes. Porém, a solução que me
parece mais eficaz é algo que, neste momento, é utopia.
DINHEIRO – O que é?
ROMANO – A proposta do jurista Modesto
Carvalhosa, de uma assembleia constituinte que redesenhasse o Estado e a
política brasileira. Sem isso, o País é ingovernável.