Curso
Direitos Humanos, Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo.
Roberto
Romano
O
capítulo 21 do Leviatã trata dos integrantes do povo e de sua liberdade. O
escrito inglês grafa “subjects” para os subordinados, mas em latim o termo é
“cidadãos”. O termo “freedom” no texto latino é libertas. O que significa
a palavra? Ausência de “obstáculo externos ao movimento: “absentiam
impedimentorum motus externorum”. Libertas é aplicada a criaturas irracionais,
inanimadas e também para as racionais. É negada a separação entre os entes. O
fato de ter razão, não implica possuir liberdade diferente à da ordem natural.
Se
uma coisa é ligada (tyed) ou envolvida de modo a se mover no
espaço delimitado pela oposição de um corpo externo, não tem liberdade
de ir além. Definição relevante na determinação da diferença entre governados
e governante. Este, para Hobbes, é
“legibus solutus” como no absolutismo anterior e o soberano democrático o será nos escritos de
Spinoza.
Obstáculos
externos causam perda da liberdade. Mas se o obstáculo ao movimento reside na
própria “natura” da coisa, lhe falta não
liberdade, mas poder de se mover. É o caso da pedra que permanece imóvel ou do
homem preso (affixus) ao leito pela
doença. Homem livre é o que, em coisas
que sua força e inteligência (ars, competencia) lhe permitem realizar, não
é obstaculizado de fazer as que tem
vontade.
Libertas
só tem sentido em corpos e não inclui o não suscetível de movimento e que não
se limita com um obstáculo. “A Estrada é livre”, não designa a Estrada, mas as
pessoas que nela transitam, ou não, segundo nela existam ou não obstáculos.
“Falar livremente” não se refere à liberdade da voz, ou da elocução, mas de um
homem não obrigado por nenhuma lei a falar de modo diferente do que faz.
“Vontade livre”: não é liberdade da vontade, desejo, inclinação, mas da pessoa
não é obstaculizada quando efetiva a sua vontade, desejo, inclinação.
Medo
e liberdade são compatíveis. Quando alguem joga ao mar os bens por medo da
morte, o ato é voluntário. Ele gostaria de não fazê-lo se tal fosse a sua
vontade. A ação do homem é livre : quem paga dividas por medo da
prisão, por exemplo, nenhum corpo impediria o devedor de guardar seu dinheiro.
Pagar é dispor da liberdade. De modo
geral, todas as ações efetuadas nas repúblicas (Commonwealths) por medo da lei,
os homens tinham a liberdade para delas se abster.
Liberdade
e necessidade são compatíveis. Água: tem liberdade e necessidade de correr com
a inclinação ao longo do rio. As ações humanas entram numa cadeia de causas cuja
primeira é Deus, todas as acões, embora livres, são necessarias. Deus vê e
dispõe todas as coisas e vê que a liberdade dos homens na efetuação do querido
por eles, se acompanha da necessidade de fazer o que Deus quer. Embora os
homens façam muitas coisas das quais Ele não é o autor, eles não podem ter
paixão ou apetite por alguma coisa sem que a vontade divina seja a causa.
A vontade divina garante a necessidade
da vontade humana, caso oposto a liberdade seria desmentido e obstáculo à
onipotência e liberdade divinas. [Aspecto ontológico da cadeia de causas que
unem liberdade e necessidade]
Mas
do mesmo jeito que os homens, para se proporcionar a paz e preservar a si
mesmos, inventaram (excogitaverunt) um homem artificial, a República, eles inventaram cadeias artificiais, as leis civis
que eles mesmos, por convenções mútuas, prenderam nos lábios do homem ou da
assembléia, a quem eles deram o poder soberano e em suas próprias orelhas. Tais
cadeias, por sua própria natureza, não têm força. No entanto, pelo efeito do
perigo (mas nunca de sua dificuldade) que haveria em rompê-las, pode-se fazer
com que elas resistam. [Aspecto político da cadeia de causas que unem liberdade
e necessidade].
É
apenas sobre essas cadeias que se fala da liberdade dos cidadãos. Como não
existe república sem regras para presidir as ações e palavras dos homens (o que
é impossível), em todos os dominios em que as leis silenciam, a pessoas têm
liberdade de fazer o que a própria razão indica como o mais útil. Analisaremos
a polissemia, antes do pensamento hobbesiano, desta noção de utilidade, ou interesses
individuais e coletivos.
No sentido próprio, de liberdade corporal, o
de não ser encadeado nem preso, seria absurdo exigir uma liberdade que já
existe.
No
sentido de ser livre das leis, seria absurdo, porque os “libertos” da lei
ficariam presas dos outros homens. Por mais absurdo que possa parecer, é ficar
livres das leis que eles exigem. Não sabem que as leis são impotentes sem a
espada nas mãos de um homem ou de muitos, para executá-las.
A
liberdade dos governados só reside nas coisas em que, ao regulamentar suas
ações, foram silenciadas pelo soberano (liberdade de comprar, vender, contratar
entre si, escolher sua casa, genero de comida, oficio, educar seus filhos como
julgam conveniente, etc).
Mas
o poder soberano de vida e morte não é abolido por essa liberdade. Nada do que
o representante soberano faça ao governado pode ser dito injustiça ou injúria.
Todo governado é autor de todo ato cometido pelo soberano. Logo, este nunca
falta em direito a quem quer que seja, a não ser enquanto ele ele mesmo é
sujeito a Deus, e obrigado assim a observar as leis da natureza.
Ocorre
em muitas repúblicas que um cidadão seja executado por ordem do poder supremo, embora
nenhuma das partes esteja errada em relação uma à outra (o caso de Jefté que
sacrifica sua filha) pois o morto tem a liberdade de executar a ação pela qual,
no entanto, é executado sem injustiça. O mesmo quando o soberano manda executar
um inocente. Pois aí não se trata de uma injustiça cometida contra o executado,
mas contra Deus. O direito de fazer qualquer coisa foi dado pelo executado ao
soberano. Mas o soberano é súdito de Deus, o qual, pela lei da natureza, proíbe
iniquidade. Davi, ao matar Urias, afirma ter pecado apenas contra Deus.
Também
no ostracismo ateniense, o poderoso é banido por dez anos e no entanto os
cidadãos não pensam agir com injustiça embora nunca perguntem qual crime
cometeu o banido mas sim qual prejuízo ele cometeria no futuro. Eles também
baniam sem saber quem exatamente castigavam. Quando baniram Hiperbolos, é
porque ele era um bufão. Ninguém acusaria os atenienses por usar o direito de
banir, nem a Hiperbolo por ser bufão. Pouco importa se a anedota narrada por
Hobbes seja verdadeira ou não. Tucídides, que ele traduziu, diz simplesmente
que Hiperbolos, o último a ser ostracizado, era um demagogo desonesto, não
simples bufão.
A
liberdade antiga não é a dos particulares, mas a da república. Do mesmo modo
que os particulares sem república usufruem de liberdade soberana, sem posse
garantida ou segurança, pois vivem em guerra perpétua, numa liberdade absoluta
(sem laços), cada república tem a liberdade absoluta de fazer o que bem entende
e buscar o mais favorável ao seu interesse. Atenas e Roma eram
livres, não os seus particulares, porque não tinham a liberdade de resistir aos
seus representantes, mas estes últimos tinha a liberdade de resistir aos
ataques estrangeiros. Na cidade de Luca há uma divisa: Libertas. Ninguem pensa
que nela os particulares têm a liberdade ou imunidade e não devem servir a
república. Monarquica ou popular, a liberdade é sempre a mesma.
O
Leviatã
foi publicado em 1651. Hobbes está em Paris em 1640. Em 1638 foi publicado na
mesma cidade de Paris o livro de Henri de Rohan Le parfaict capitaine,
seguido de um Discours sur l ´interest des princes et estats de la chrestienté,
dedicado a Richelieu. O texto é dedicado à análise política da situação
exterior e interna da França, num momento perigoso para a estabilidade do país.
Rohan
dissocia o conceito de interesse do Estado e o de
“utilidade pública” ou “comum”, que vêm da Antiguidade e da Idade Média. Nos
dois últimos tem-se uma ratio, ou norma, que serve para medir os atos de
governo e permitia selecioná-los de modo hierárquico, avaliar o seu nexo com o interesse comum ou público.
O
termo “Interesse” vem da forma substantiva do verbo inter-esse, com sentido
de “se encontrar no meio”, “se encontrar entre”. Interest significa
“importa”, “isto me diz respeito”, como em Tácito (Histórias, I, 30, 2: “É
do vosso interesse, camaradas, que os celerados não façam um imperador [vestra
commilitones interest]”.
Mas
não é nos textos de história que se fixou o sentido de interesse no mundo
romano, mas nos escritos jurídicos. Na reflexão sobre o vínculo entre direito,
lei e interesse, os juristas tentam fixar as relações entre interesse público e
privado, resultando a hegemonia do primeiro sobre o segundo. As fórmulas Rei
publicae interest e quod
privatim interest não surgem nas leis republicanas, mas nos
jurisconsultos do século II, Ulpiano, Paulo e Papiniano.
Utilitas
publica (da contraposição utilitas publica/utilitas
privatorum) vem de utor e com uti e usus liga-se à posse e ao
gozo de algo. Mas o traço concreto de uso e gozo é remetido a um elemento mais
abstrato em termos jurídicos, com categorias destinadas a definir e garantir o
uso e o gozo, como é o caso de usus fructus, usus capio, usurpatio,
abutus.
([1])
Na
abstração do sentido, sua universalização, a noção de utilitas chega a designar
as posses de um grupo social ou coletividade entendidas como “coisas públicas”
(res
publicae). Onde o interesse designa o valor do objeto
ou da ação a utilitas designa a modalidade da situação da coisa tendo em
vista o sujeito que a possui. A coisa pública, a Commonwealth tal como a
entende Hobbes, tem predomínio sobre ao que está ligado ao quod privatim interest.
Como garantir a res publica, no entanto, se as leis podem ser interpretadas e,
pior, interpretadas com fraude pelos particulares ou, mesmo, por juízes e
advogados?
O
antecessor de Hobbes, Francis Bacon, ao falar sobre o papel dos juizes, enuncia
que o dever maior é “suprimir a força e a
fraude, pois a força é mais perniciosa quando aberta e a fraude quando
oculta e disfarçada”. (Of judicature).
Os juízes garantem a
obediência às leis. Mas eles devem ser limitados pelo soberano. Recorde-se os
enunciados sobre a “liberdade” antes expostos no capítulo 21 do Leviatã.
([2]) As leis, diz Hobbes, têm
como autor os cidadãos. Mas eles colocam nas mãos do soberano o poder de
enunciá-las, interpretá-las, aplicá-las. Caso contrário, a guerra de todos
contra todos, continuada pela fraude na defesa dos interesses próprios,
dissolve toda república.
“Lex est mandatum ejus personae, sive hominis sive curiae, cujos
praeceptum continet obedientiae rationem”. ([3]) Desnecessário dizer a
importância dessa tese hobbesiana para se pensar o difícil relacionamento entre
os interesses públicos e os privados. Enquanto “a lei natural é imediata em
nós, pois conhecemos o mandamento divino em nossa razão, a lei civil é mediada
pelo conjunto de regras com as quais a comunidade, por escrito ou oralmente, ou
qualquer outro sinal adequado (signum
idoneum) de sua vontade, comanda o uso da vontade para distinguir o certo
do errado, o contrário à regra do que não é contrário”. ([4]) Só a Commonwealth pode editar leis civis. O soberano é o único
legislador não submetido às mesmas leis civis.
Segundo
Hobbes, a soberania bane da ordem
pública os juízos com origem privada, pois
eles geram a polêmica. Não existe medida comum para o juízo moral e indivíduos
diferentes percebem as coisas de modo diferente, desenvolvem diferentes
paixões. Ninguém concorda sobre o bem e o mal, certo ou errado, justo ou
injusto. E o juízo de cada um tende a se ampliar ao infinito, na medida mesma
do desejo que desconhece limites. A guerra universal não é apenas física, mas
psicológica porque inveja e ódio campeiam e cada pessoa julga-se mais esperta
do que a outra.
Paixões
diversas e igualdade no poder mortífero levam à miséria. É impossível arrancar
a força física dos homens, mas factível obrigá-los a não exteriorizar sua
opinião privada. Todos devem perder no mundo civil o “direito” de impor o juízo
próprio aos demais. Visto que todos, no
interior da natureza, possuem um direito igual, cada um pode entrar no pacto.
Mas todos submetem-se ao juízo de um árbitro. Só o soberano guarda o direito
natural e usa sem restrições a força física e o juízo próprio. ([5])
O
soberano concentra o poder de julgar em todas as matérias, nas leis, na
administração, nos tribunais, guerra
ou paz, controla a religião, decide o
bom e o ruim. Este é o pressuposto para colocar
limites nos desejos infinitos dos cidadãos. No pacto que define a gênese
da ordem estatal, nada sobra para o direito de resistência. Entre a realidade como a vemos e como ela
existe ocorrem diferenças por construírmos um mundo pela imaginação que, por sua vez, é movida pelos nervos. O
intelecto dos indivíduos não possui perfeito conhecimento dos demais homens.
Estratégico na ordem individual “não é a verdade mas a imagem que faz a paixão.
A tragédia afeta mesmo o assassino, quando bem desempenhada” (The Elements of Law). Paixão e imagem
geram rebeliões. O uso correto das palavras não consiste na verdade, mas serve
para evitar ambigüidades nocivas. A distinção entre o nosso interior e o mundo
externo acentua a ausência de medida comum de bem e mal. Os indivíduos
discordam sobre o certo e o errado e são incompetentes
para emitir tais juízos. “Os homens, veementemente amorosos de suas próprias
novas opiniões (as mais absurdas) e decididos com obstinação a mantê-las, deram
às opiniões o reverenciado nome de consciência, como se julgassem ilegal
mudá-las ou falar contra elas”.
Os homens fundamentam seus atos em raciocínios, concebem “a
consequência dos nomes de todas as partes para o nome da totalidade, ou dos
nomes da totalidade e de uma parte para o nome da outra parte (…) E os juristas
somam leis e fatos para descobrir o certo e o errado na ação dos homens
privados”. Todo homem pode errar no cálculo, o que não quer dizer que inexista
o bom juízo. “Ao surgirem controvérsias sobre um cálculo as partes precisam,
por mútuo acordo (by their own accord) recorrer à razão certa de um árbitro ou juiz,
a cuja sentença se submetem (…) Quando os que se julgam mais sábios do que
todos os demais gritam e exigem uma razão certa para juiz, só procuram garantir
que as coisas sejam asseguradas não pela razão dos outros homens, mas pela sua.
É tão intolerável agir assim na sociedade dos homens como no jogo, escolhido o
trunfo, usar como trunfo em todas as outras ocasiões a série de que se tem mais
cartas na mão.” ([6])
Hobbes afasta a fraude no “jogo” da sociedade
civil, mas em proveito do soberano não preso
a regras. Os particulares não têm mais direito (pois assumiram o pacto)
de cometer fraudes. O soberano, cuja função é salvar o povo, não sofre
semelhante limitação. Apuremos a imagem do jogo, muito presente nos textos
hobbesianos. O jogo opera com a inteligência e a imaginação dos indivíduos. Na
sociedade civil, se todos jogarem sem regras, desaparece o jogo e nenhum
jogador parte da igualdade das chances porque o truque se esconde e não se
indica quem o usa (caso contrário, ele se transforma em guerra). O jogador sem
regras usa o segredo, a simulação e a dissimulação. Ele finge seguir as regras,
mas guarda para si mesmo o fato de que as desrespeita, simula aceitá-las,
dissimula truques. O jogador comum opera com a imaginação e a discreção: ele
deseja ganhar, imagina-se no instante em que vence (pode imaginar os frutos do
ganho como riquezas, amores, etc) e ao mesmo tempo não pode revelar as cartas.
O soberano não segue regras (não é jogador) e usa a discreção, a imaginação, a
simulação e a dissimulação. Ele opera em pleno direito natural.
Esse
ponto é exposto por Hobbes no escrito dirigido pore le contra Sir Edward Coke,
o campeão jurídico inglês que se opôs à vontade absolutista de James I e que
foi, justo por isto, confinado à Torre de Londres em várias ocasiões pelo
monarca que desejava não só legislar, como impôr diretamente a lei na qualidade
de juiz com assento nos tribunais. Embora em sentido diverso ao de James I,
Hobbes não aceita os pressupostos jurídicos de que Common Law estaria acima
do poder soberano. O argumento mais
grave do filósofo contra o jurista Coke encontra-se no debate da traição (o que
supõe o direito de resistência ou de magnicídio, defendido na Revolução inglesa
e por juristas francêses, como no caso dos monarcômacos). ([7])
Hobbes
usa o argumento banal nos textos que defendem a razão de Estado: salus
populi é suprema lex. E “a segurança (safety) do povo de um
reino consiste na segurança do Rei, e da força necessária para defender seu
povo, contra os inimigos externos e os súditos rebeldes.”. E seguem as frases
delicadas, em termos de lógica e direitos, do filósofo: “”Se todo homem
tivesse, com o fito de gerar rebelião contra o Rei, em palavras escritas ou em
conselhos, negado ao Rei que governa o título de legítimo (lawful), quem escreve
prega ou fala tais palavras, vivendo sob a proteção das leis régias, trata-se
de alta traição (…) E distinguir o que é traição pela lei comum (common
law) de todos os demais crimes inferiores que consideramos, é preciso
dizer que se tal altra traição tivesse
efeito, destruiría todas as leis ao mesmo tempo; e tendo sido cometida por um
súdito, trata-se de um retorno à hostilidade, por fraude (treachery) e por conseguinte tais
fraudes devem ser vistas, pela lei da razão, como originadas por ignóbeis e
fraudulentos (treacherous) inimigos, os quais devem por elas responder”. ([8])
A
imaginação indiscreta não é força. Quem usa o intelecto para o jogo, exerce
deliberada dissipação da mente (mind).
Na ordem familiar são permitidos jogos com os sons e palavras equívocas com
ambigüos significados, na desregrada sequência da imaginação (Fancy). Mas tal jogo é proibido no
sermão ou diante de pessoas desconhecidas ou às quais deve-se reverência. A
discreção traz as regras do trato que determinam a loucura (brilhante, pouco
importa) de uns e a lucidez de outros. É possível ser discreto, mas perverso.
“Caso à prudência se acrescente o uso de meios injustos ou desonestos, como os
que os homens são levados a usar por medo e necessidade, temos a perversa
sapiência (Crooked Wisdome) a que se
chama astúcia (Craft) um sinal de
pusilanimidade. A magnanimidade é o desprezo dos expedientes injustos ou
desonestos, enquanto a Versutia
—astúcia, sutileza— consiste em afastar um perigo ou incômodo presente mediante
um maior ainda, como roubar uma pessoa para pagar a outra, esperteza de vistas
curtas”.
Como fazer todos os jogadores seguirem as regras, sem truques?
Apenas com a força física posta nas mãos do soberano, o qual tornou-se, com o
pacto, não um juiz mas um árbitro jamais submetido a qualquer lei existente.
Para atenuar as forças naturais egoístas dos indivíduos, só a força das armas
que se tornam monopólio do soberano. “As
leis da natureza, justiça, equidade, modéstia, benevolência, conselhos como fazer aos outros o que gostaríamos que eles
nos fizessem sem o terror de algum poder (…), são contrárias às nossas
paixões naturais, estas nos empurram para a parcialidade, orgulho, vingança e
que tais. E pactos sem a espada, são apenas palavras (Covenants, without Sword, are but Words) e não possuem nenhuma força (strength) para assegurar um homem”.
O terror do poder dita as regras do jogo político e as impõe para
todos e para cada um. A lei não é
conselho, mas ordem do poder soberano,
regra para uso e distinção do bem e do mal e do que é contrário ou não à
regra (Rule). As leis são
interpretadas pelo soberano e apenas por ele, ou pelos que ele designa para a
tarefa de julgar. Elas não são julgadas pelos particulares. Quando o juízo
privado pretende mudar as leis e o poder público, age tendo em vista a
“consciência”. assume o papel de estraçalhador da Commonwealth. No De cive
(capítulo 12) lemos que “muitos homens, que mesmo sendo bem apegados à
sociedade civil, fazem por carência de saber (knowledge) inclinar a mente dos súditos à sedição, quando ensinam,
aos jovens, a doutrina conforme às suas opiniões nas escolas, e ao povo todo
nos seus púlpitos. Os que desejam levar aquela disposição aos atos, colocam
todo o seu esforço nisso: primeiro, eles juntam todos os doentiamente afetados
na facção e na conspiração; depois, eles mesmos buscam ter a maior força na
facção. Eles os colocam na facção enquanto fazem de si mesmos os relatores e
intérpretes dos conselhos e ações do homem individual, e nomeiam as pessoas e
lugares para reunião e para deliberar sobre as coisas nas quais o governo atual
deve ser reformado, segundo deve parecer melhor aos seus interesses. O alvo é
fazer deles mesmos os que governam a facção e a facção deve ser tolhida por uma
outra facção; ou seja, eles devem ter suas reuniões secretas em separado,
apenas com poucas pessoas, reuniões nas quais eles podem ordenar o que devem a
seguir propor numa Assembléia Geral, e por quem, e sobre quais assuntos e em
que ordem cada um deverá falar, e como eles atrairão os mais poderosos e
populares dentre os homens para a facção de seu lado. E quando eles conseguem
grande o bastante, a qual podem dirigir (rule)
pela sua eloquencia, eles a mobilizam para administrar os negócios. E assim, às
vezes eles oprimem a sociedade (Commomwealth)
quando não existe outra facção maior para se opor a eles; mas na maioria das
vezes eles conseguem fazer aquilo e começam uma guerra civil. Porque a Loucura
e a eloquência concorrem para a
subversão do governo, de maneira igual à das filhas de Pélias, rei da Tessália,
que conspiraram com Medéia contra seu pai. Elas iam restaurar o ancião
decrépito em sua juventude, por conselho de Medéia cortaram-no em pedaços e o
colocaram para ferver; em vão esperando o momento em que ele viveria novamente.
Assim o povo comum em sua loucura, como as filhas de Pelias, desejando renovar
o governo antigo, é conduzido pela eloquência de homens ambiciosos, como se
tivessem enfeitiçados por Medéia; divididos em facções eles consomem em chamas
em vez de reformar o governo”. ([9])
“É
preciso obedecer mais a Deus do que aos homens” ? ([10]) A questão é impertinente porque as leis não governam
consciências, mas regem palavras e atos. A Biblia ensina a obedecer o soberano “em todas as
coisas”. O dilema (obedecer Deus ou obedecer o soberano) é desconhecido entre
Judeus, Gregos, Romanos e gentios. Naqueles povos, as leis civis definiam o
justo e o virtuoso e o culto externo a Deus. Os católicos têm essa dificuldade
porque exigem para a autoridade religiosa poderes acima do civil. Quanto aos
atos, a paz só é conseguida quando eles são regulados. Caso contrário, persiste
a divisão no Estado devido à “liberdade” de consciência. Ser papista, luterano,
calvinista, arminiano, como no passado paulistas, apolineanos, cefasianos não
impede a obediência à ordem pública. “Paulo mostra que as
questões trazidas pelos raciocínios humanos (human ratiocination) são perigosas para a vida cristã. No mundo
civil quem resiste a um rei porque duvida de seu título ou porque é dominado
pelas paixões, merece punição.Sendo a consciência apenas “opinião” ela não deve
ela ser abolida, mas restrita no espaço público, que não pode ser uma soma
heteróclita de opiniões, mas resultado de uma só “opinião” racional.
O debate
sobre o destino post-mortem deve ser
afastado das leis que regem o corpo social. Segundo Pierre Bayle “o sumário do Leviatã é que sem a paz não existe
segurança no Estado e a paz não subsiste
sem comando e o comando sem armas; as armas nada valem se não forem postas nas
mãos de uma pessoa; o medo das armas não
conduz à paz os impulsionados a combater por um mal ainda mais terrível
do que a morte, isto é, pelas dissenções sobre as coisas necessárias à salvação
eterna”. ([11])
O Estado possui uma potência que chega ao nível espiritual, sempre que se trata
da república. No pacto, o indivíduo aliena o direito de
agredir os demais. O soberano, no entanto, choca-se com algumas barreiras para
a sua soberania. Em termos lógicos: se todos abrem mãos de seu direito natural
para afastar a morte, não tem sentido o Estado exigir contra eles o direito de
vida e morte. A segurança é inalienável.
Ferdinand
Tönnies ([12])
editor e estudioso de Hobbes, contrário ao saber político e social mecânicos do
Leviatã (Tönnies pertence à
sociologia romântica) define dois modêlos contrários de ordem social, incluindo
a pública. A sociedade é mecânica enquanto a comunidade é organismo vivo. “A
distância que vai de uma ferramenta artificial ou a determinada máquina
construída para certos fins, até um sistema orgânico ou a alguns orgãos
concretos de um corpo animal, é a que vai de um conglomerado de vontade —vontade sobreposta— a um conglomerado de
vontade vontade essencial”. Ou seja, “Tönnies pinta a sociedade com as cores da
filosofia do direito de Hobbes, onde cada um é inimigo do outro e apenas a lei
pode assegurar uma ordem externa.” ([13])
A noção de poder, em Hobbes, não se desvincula da linguagem. Yves
Charles Zarka chega a afirmar que a sua doutrina não se liga “tanto à física,
mas à semiologia”. ([14]) Fala, gestos, escrita sujeitam-se à ambigüidade e ao equívoco. A lógica fornece princípios do correto emprego das
denominações. A pacificação requer uma lingua na qual os equívocos sejam
atenuados. A lingua, antes embebida nas paixões, com o estado de
natureza, no Estado é a única forma passível de uso científico com a
proposição, porque afirma e nega,
possibilita o juízo sobre o falso e o verdadeiro. “Quando um homem raciocina a
partir de princípios indubitáveis por experiência, todos os engodos dos
sentidos e equivocos de palavras evitados, a conclusão feita por ele concorda
com a reta razão. Mas quando da
conclusão ele pode, por bom raciocínio, derivar algo que contradiga qualquer
verdade evidente, concluiu contra a razão e tal conclusão é absurda.” Dos
absurdos nascem os fanatismos religiosos e políticos. No trato comum, são
usados nomes extraídos da ignorância coletiva e na fala então importa, para que
eles sejam lembrados, a coerência de uma concepção para outra. Mas se as
palavras ajudam a memória, a comunicação e a vida em comum, elas podem
transformar o convívio num inferno. Pelas palavras e raciocínios ultrapassamos
as feras. Elas desconhecem o verdadeiro e o falso e não possuem juízo, não
multiplicam uma não verdade por outra, como fazem os homens.
As
paixões iniciam todos os movimentos voluntários e da fala. Querendo mostrar aos
outros o saber, opiniões, concepções e desejos, e para isso inventado a
linguagem, os homens transferem o
discurso mental às palavras. E a ratio
torna-se oratio “porque na maioria
dos homens o costume tem um poder tão grande que se a mente sugere uma palavra
inicial, o resto delas segue-se pelo habito e a mente não as acompanha. É o que ocorre entre os mendigos quando rezam
seu paternoster. Eles unem tais
palavras e de tal modo, como aprenderam com suas babás, companhias ou seus
professores, e não têm imagens ou concepções na mente para responder às
palavras que enunciam.” ([15])
As palavras, quando se trata de uma lei, precisam ser entendidas
por todos os que a devem acolher. Como seguir uma ordem quando ela foi emitida
em lingua obscura, acessível apenas aos juristas ? Não basta o juiz entender as partes: é preciso que ele sempre
se faça entender. ([16]) Para que se obedeça é
obrigatório que a lei seja promulgada em lingua conhecida por ele. Urge que a
pessoa saiba as penalidades a que se submeterá e se defenda em lingua acessível
ao juiz e aos concidadãos. Se os últimos o compreendem, mesmo o juiz parcial
terá trabalho para impôr uma sentença errônea.
O
juiz pode errar quando interpreta a lei. Logo, ele deve estudar a
equidade. “Por exemplo, é contra a lei
da natureza punir o inocente; e inocente é o absolvido judicialmente,
reconhecido inocente pelo juiz. Coloque agora o seguinte caso: um
homem é acusado de crime capital e face ao poder e a malícia de algum inimigo,
a corrupção freqüente e parcialidade dos juízes, foge com medo, é pego e
conduzido a um julgamento e como não tinha culpa, é absolvido mas condenado a
perder seus bens; esta é uma condenação manifesta do inocente. Não há lugar do
mundo em que isso poderia ser uma interpretação da lei da natureza, ou
transformado em lei pelas sentenças dos juízes precedentes que fizeram o mesmo.
Porque o primeiro que julgou, o fez injustamente; nenhuma injustiça pode ser
modelo de juízo para os juizes subsequentes. Uma lei escrita pode proibir os
homens inocentes de voar e eles podem ser punidos por voar; mas que voar por
medo de injúria seja tomado por presunção de culpa, depois que alguém já foi
absolvido judicialmente do crime, é contrário à natureza da presunção, que não
tem lugar depois que o juízo foi dado”.
Hobbes distingue o
cavilador e o intérprete. Um cavilador traz outros, ao infinito. Mas deve
existir um intérprete, o juiz ordinário, que também interpreta as leis não
escritas. As sentenças desse juiz não podem obrigar outros juizes “porque um
juiz pode errar até na interpretação das leis escritas; mas nenhum erro de um
juiz subordinado pode mudar a lei, a qual é a sentença geral do soberano”.
Quais as condições para que o juiz seja intérprete das leis? Entendimento reto da principal lei da
natureza, a equidade, que não depende das leituras de outros homens, mas da
bondade da razão natural própria. Segundo: desprezo de bens desnecessário e
promoções. Terceiro, ser capaz de num julgamento retirar de si todo medo, ira,
ódio, amor e compaixão. E finalmente, paciência para ouvir, atenção diligente
na escuta, memória para reter as peças, aplicação ao que ele tiver ouvido. A
razão, que chega à equidade, deve afastar ou controlar as paixões mais notórias
do trato entre as pessoas. Hobbes acentua a ambição como algo que não deve
integrar a alma do juiz. Tanto, ou mais do que as outras paixões, a fome de
bens ou cargos tolda o juízo, torna a mente fechada para as evidências e para a
fala das testemunhas, do réu, da outra parte.
No
Leviatã, a mente apaixonada curva-se
à fantasmagoria que ela própria gera, tendo como objeto os demais seres
humanos. É o reino da mentira. O Behemoth traz a seguinte afirmação : “Um Estado pode
constranger à obediência, mas não convence ninguém de erro, nem altera as
mentes dos que acreditam possuir a melhor razão. A supressão da doutrina não
une mas exaspera, aumenta a malícia e o poder dos que nela acreditam” ([17])
“Porque as palavras não são isentas de jurisdição?”. Hobbes une as falas sediciosas à atividade
rebelde, particularmente na análise da autoridade espiritual que tenta
controlar a soberania civil”. ([18]) Tais
falsos mestres são os agentes do “Reino das Trevas”, em contraste com a luz da verdadeira religião
e do entendimento. “Em particular, os pregadores sediciosos do Evangelho
interpretam a Escritura para provar, acima de tudo, que sua igreja é o reino de
Deus. Consequentemente, as pessoas que eles enganam obedecem tais mestres mais
do que aos soberanos civís.” ([19])
Além dos
mentirosos pregadores que desejam impor a soberania de seu grupo, seitas ou
igrejas, sobre todos os demais cidadãos, Hobbes refere-se no Leviatã às Histórias ou Ficções das
pessoas galantes. Este é um lugar comum da filosofia contra os historiadores e
os poetas. A condenação da mentira é velha como a filosofia, ou ainda mais
arcaica. ([20])
Se é preciso impedir a fraude, o truque, para conseguir a estrita obediência às
leis urge que o soberano impeça a difusão de mentiras, o refinamento na arte de
escrever com duplicidade. O Estado deve banir, com os mentirosos habituais, os
que trapaceiam no jogo político de maneira eficaz, pois eles modificam o
sentido das palavras e das frases. Proibidas as armas físicas, é preciso cuidar
das espirituais, começando com as exercidas na lingua.
A polissemia atropela a obediência,
enquanto a mentira é truque insidioso que reintroduz a ferocidade recíproca. Nos Elements of law os termos Sleight and strength [slit
and strent, astúcia e força] são usados para definir o estado de
natureza no trato dos homens. A dupla de palavras apresenta grande interesse na
análise hobbesiana da existência antes que a multidão se transforme em Estado. ([21]) Os humanos, mesmo depois do pacto, enganam-se
mutuamente com truques hábeis de linguagem, no mesmo instante em que
desobedecem a lei e tentam usar a força física. ([22]) Como o pacto não é obedecido por todos
os indivíduos, sendo motivo de queixa contra os atos ilegais dos que, na
república, são importantes e ricos, o soberano é impelido a agir de acordo com
a simulação, a dissimulação e a mentira. Ele é presditigitador e mágico, mestre
na arte de enganar, sobretudo pelo raciocínio. Aproximemos a lente do panorama
inaugural do Estado. Se na sua gênese, à multidão fosse permitida a licença de
enganar por meio de truques, jamais haveria segurança coletiva. E se fosse
permitido aos indivíduos os truques sofísticos no espaço público, permaneceria
a insegurança. Mas se fosse proibido ao soberano o uso das simulações e
dissimulações, zonas inteiras de poder seriam conhecidas pelos inimigos
externos e utilizadas pelos cidadãos ambiciosos de vantagem própria, o que
anularia as regras do pacto.
Surge o
problema por excelência do pensamento filosófico e político: o acesso à razão e
a vitória sobre os engodos de outros Estados e dos particulares. Hobbes conhece
os textos de Seneca. A fama conduz aos atos mais insensatos, pois exige a boca
e os ouvidos da multidão que se deixa enganar pelos demagogos. ([23])
No Leviatã e no De corpore, por ser restrita
à experiência a prudente sabedoria não possibilita a generalização cognitiva,
não produz a medida universalmente válida do justo e do injusto. ([24])
Nos Elements of law a prudência dá
lugar à força que inibe as paixões desagregadoras dos particulares, força usada
pelo soberano autorizado no pacto. ([25])
A disciplina se apresenta como o eixo político no De cive : ad societatem homo
aptus non natura; sed disciplina (I,2). A prudência, ligada à razão de
Estado, aparece aqui e ali no De cive.
No mesmo livro Hobbes diz que os governantes conservam a astúcia e a força (sleight or force). Vimos que nos Element of law, sleight é palavra usada com
o vocábulo strength, para
definir o estado de natureza.
Quando
afirma no De cive uma Reason of City (Civitas, no latim), Hobbes
guarda o sentido renascentista dado à razão estatal, tendo como núcleo a
prudência. Daí o apelo, notável no referido volume, ao segredo e aos espiões.
Entre o segredo (a máxima obscuridade) e os espiões (encarregados de penetrar a
obscuridade alheia) a prudência do soberano traz segurança para a Civitas. Os soberanos que usam sleight or force [slit or force]
permanecem no estado de natureza e podem usar a força, a fraude, a mentira, a
espionagem, não precisam manter a palavra porque não existe nenhum pacto que
una os Estados, nenhum soberano que
imponha uma lei obrigatória para todos.
Se
no âmbito mundial opera a razão de Estado em guerra permanente, no plano
interno a transferência do poder mortal não pode deixar ambiguidade na lei, Nas
relações de cidadão a cidadão a mentira ou engodo deve ser reprimida. No Leviatã quase desaparecem as antigas
formas de pensamento prudencial, ou seja, da razão de Estado. Se esta última
opera com force and fraud, o uso de
semelhantes técnicas de dominação entre cidadãos conduziria à ruina da
república. ([26])
Contra o uso da força e da fraude, no interior da república, o soberano deve
providenciar para que o povo não seja ignorante “ou pouco informado das bases,
e razões dos seus direitos essenciais; porque assim os homens são seduzidos
fácilmente, e levados a resistir-lhe, quando a República deve exigir seu uso e
exercício”. ([27])
Em qualquer Estado, generaliza Hobbes, sem a obediência o povo é dissolvido por
“homens poderosos que digerem com muita dificuldade tudo o que estabeleça um
poder para controlar suas afecções”. Os “eruditos também resistem ao poder que descubra seus
erros, e diminua a sua autoridade (Authority)”. Enquanto os poderosos, estão
cheios de ambição de poder e os letrados mergulham na ambição de autoridade,
porque suas mentes estão abarrotadas de doutrinas mentirosas e
fraudulentas, “as mentes do povo comum,
enquanto não forem tingidas pela sua dependência diante dos poderosos, ou
rabiscada pelas opiniões dos doutos, são como papel limpo, apropriadas para
receber tudo o que a Autoridade Pública nelas imprimir”. ([28])
E encontramos novamente a fábula de Medéia : o
desobediente deseja reformar a República, mas a destrói “como as ensandecidas
filhas de Peleu, na fábula, as quais desejando renovar a juventude do seu pai
decrépito, por conselho de Medéia o
cortaram em pedaços e o colocaram para ferver, sempre com suas estranhas ervas,
mas não fizeram dele um homem novo. Este desejo de mudanças é como a
desobediência do primeiro mandamento divino: porque Deus disse, Non habebis Deos alienos: Não terás deuses de outras nações´., e em outro lugar
, em relação aos reis, que eles são deuses”. ([29]) Quais
“deuses” não podem coexistir com o “deus mortal”, o Leviatã ? Os
poderosos, os letrados, as cidades que pretendem possuir independência na
República. “Os que pretendem agir segundo a prudência política”, diz Hobbes,
tendem a afirmar a “liberdade de disputar o poder absoluto”. Estes são os
poderosos e populares. “A menos que a República (Commonwealth) tenha muito penhor de sua fidelidade, eles são uma
doença muito perigosa; porque o povo, que poderia receber seu movimento da
autoridade soberana, pela adulação (flattery)
e pela reputação de um homem ambicioso, é arrancado de sua obediência às leis
para seguir um homem cujas virtudes e designios eles não conhecem. E isso é
mais comumente perigoso num governo popular do que na monarquia, porque um
exército com possui maior força e número pode facilmente fazer acreditar que
eles são o povo. É assim que Julio Cesar, que subiu ao poder pelo povo e contra
o senado, tendo ele mesmo vencido as facções de seu exercito, controlou o
senado e o povo. E este modo de agir de homens ambiciosos é rebelião clara, e
pode ser comparada aos efeitos da feitiçaria (witchcraft). Outra doença da República é “a grandeza imoderada de
uma cidade, quando ela pode fornecer para fora de seu próprio circuito o número
e a despesa de um grande exército, como também doentio pode ser o número de
corporações, que nos intestinos da república são como vermes nas entranhas de
um homem natural. E devemos acrescentar a liberdade de disputa contra o poder
absoluto conduzida pelos campeões da prudência política, os quais alimentados
na maior parte na laia do povo, e animados por doutrinas falsas, sempre dão palpites
sobre as leis fundamentais e molestam a república, como vermezinhos chamados
ascarídeos pelos médicos”. ([30])
[1] Esta passagem deve-se, toda ela, ao excelente estudo de Christian
Lazzeri, na Introdução do livro de Henri de Rohan, De l ´intérête des princes et des
Etats de la chrétienté (Paris, PUF, 1995), pp. 10 e ss.
[2] Os enunciados sobre a liberdade surgem em vários instantes dos
escritos hobbesianos. As vezes, eles são exatamente iguais, ou ligeiramente
diversos, dos conceitos postos no Leviatã. Como ocorre no Capítulo 33 do
manuscrito Thomas White´s De mundo examined: “Ações apenas são
voluntarias, paixões e faculdades como sentimentos, entendimento, amor
(loving), medo (fearing), desejo (wishing and not wishing), não são voluntarios
(…) Entre os animais, é propriamente ditto livre o que possui o poder de
executar toda ação, embora ainda não possua o desejo de agir. Entre os
inanimados (…) o rio corre livremente e não é proibido de fluir, seja por seus
bancos ou impedimentos externos”. Hobbes designa dois impedimentos para a ação
humana: a coerção (ou medo) e a persuasão (ou amor). Cf. op. cit. Edição Harold
Whitmore Jones (London, Bradford University Press, 1976), pp. 406 e ss.
[3] “Lei
é o mandamento daquela pessoa, homem ou assembléia, cujos preceitos exigem a
obediência” (De cive, XIV, 1).
[4]
Hobbes, Leviatã, Ed. Macpherson, página 312.
(6) Esse ponto é tratado de maneira oposta
por Spinoza. Sendo a força física um elemento do espaço e os juízos a
modificação do pensamento e sendo ambos, pensamento e força física, modos da
substância infinita, Deus ou Natureza, cada indivíduo possui em si mesmo a
força e o pensamento que seguem ao infinito. Não é possível arrancar deles a
força e o juízo próprios. Algo só pode ser movido por algo que apresenta as mesmas
determinações modais. Um corpo não pode ser movido ou forçado pelo pensamento.
E um pensamento só pode ser modificado por outro pensamento. Usar a força para
impôr a soberania é um erro ontológico e epistemológico, e violência que não garante o Estado, visto que
os indivíduos recebem o pensamento da substância infinita divina. Pode-se
tentar controlar os pensamentos, mas ele não aceita os limites da força física
e os limites da imaginação religiosa ou política. Este é o sentido da frase
spinozana quando o Eleitor Palatino convidou o filósofo para dar aulas sem
“perturbar a religião oficialmente estabelecida”. Resposta
clara: “Desconheço em quais limites minha liberdade filosófica deveria
ser contida para que eu não parecesse desejar a perturbação da religião
estabelecida”. (Carta a Fabritius, 30/03/1773). Cf. Spinoza. Oeuvres
complètes. (Paris, Gallimard, 1954), Coleção Pléiade, página 1284.
[6]
Sainte Beuve (Port-Royal) diz que entre Hobbes e Pascal há mais proximidade
do que se imagina. A questão do jogo e do truque é analisada com a perspectiva
do poder e da justiça por Pascal, sendo continuado no século 18 por filósofos
como Condorcet.
[7] O assunto é extenso em demasia para este escrito. Para maiores
informações, o livro ainda clássico é o Roland Mousnier, L`Assassinat d´Henry IV
(Paris, Gallimard, 1964).
[8] Treachery: cujo significado é Betrayl of trust, do
francês antigo trecherie, de trechier,
“to cheat”. No francês atual tricherie, engodo, operar desonestamente,
quebrando uma regra em uso, fingindo seguí-la. Cf. Dictionnaire Alphabetique et
Analogique de la Langue Française, ou Petit Robert (Paris, Société du
Nouveau Littré, 1972). Para o texto de Hobbes, cf. A dialogue between a philosopher
and a student of the Common laws of England (Paris, Dalloz Ed. 1966),
p. 126. Esta edição traz o estudo introdutório de Tullio Ascarelli.
[9] De
cive, 12 in Gert, B. (Ed.) : Thomas Hobbes Man and Citizen
(Cambridge, Hackett, 1993, páginas
254-255. Esta crítica
hobbesiana em imagens é seguida no século 18 por Edmund Burke, um dos maiores
escritores contra-revolucionários que, nas
Reflections on French Revolution indica
as filhas de Pelias de modo idêntico. “To
avoid, therefore, the evils of inconstancy and versatility, ten thousand times
worse than those of obstinacy and the blindest prejudice, we have consecrated
the state, that no man should approach to look into its defects or corruptions
but with due caution, that he should never dream of beginning its reformation
by its subversion, that he should approach to the faults of the state as to the
wounds of a father, with pious awe and trembling solicitude. By this wise
prejudice we are taught to look with horror on those children of their country
who are prompt rashly to hack that aged parent in pieces and put him into the
kettle of magicians, in hopes that by their poisonous weeds and wild
incantations they may regenerate the paternal constitution and renovate their
father's life”. O texto de Edmund Burke pode ser encontrado no seguinte lugar
da Internet : http://www.cpm.ll.ehime-u.ac.jp/AkamacHomePage/Akamac_E-text_Links/Burke.html
[10] Cf. The
Elements of Law Natural and Politic / by Thomas Hobbes Electronic Text
Center, University of Virginia Library.
[11] “Le précis de
cet ouvrage est que, sans la paix il n'y a point de sûreté dans un État, et que
la paix ne peut subsister sans le commandement, ni le commandement sans les
armes; et que les armes ne valent rien si elles ne sont mises entre les mains
d'une personne; et que la crainte des armes ne peut point porter à la paix ceux
qui sont poussés à se battre par un mal plus terrible que la mort, c'est-à-dire
par les dissensions sur des choses nécessaires au salut. Ejus autem summa haec fuit, sine Pace impossibilem esse incolumitatem,
sine Imperio Pacem, sine Armis Imperium, sine opibus in unam manum collatis
nihil valere Arma, neque metu Armorum quicquam ad pacem profici posse in illis,
quos ad pugnandum concitat malum morte magis formidandum; nempe dum consensum
non sit de iis rebus, quae ad salutem aeternam necessariae creduntur, pacem
inter cives, non posse esse diuturnam”. Pierre Bayle, Artigo “Hobbes” do Dictionnaire Historique et
Critique. 4e édition, Tome Second (C-I). Amsterdam et Leyde 1730
[12] Thomas
Hobbes Leben und Lehre (Stuttgart-Bad Cannstatt, 1971), páginas
272-273.
[13] Cf. El
Asalto a la Razon. La trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta
Hitler. (Barcelona, Grijalbo, 1968), páginas 480-481.
[14] Cf.
Yves Charles Zarka: “Langage et pouvoir” in Hobbes et la pensée politique
moderne.(Paris, PUF, 1995), página 63.
[15] Hobbes, Thomas
: The
Elements of Law, 1, 5. “Of Names, Reasoning, and Discourse of the
Tongue”. Electronic Text Center, University of Virginia Library. (http://etext.lib.virginia.edu/toc/modeng/public/Hob2Ele.html)
[16] Citado por Michèle Aquien e Georges
Molinié : Dictionnaire de rhétorique et de poétique (Paris, Librairie Générale
Française, 1996, páginas 93.
[17] Thomas Hobbes, Behemoth; or, the Long Parliament (1682), ed. Ferdinand Tönnies
(London: Simpkin, Marshall, and Co., 1889; reprint ed., Chicago: University of
Chicago Press, 1990), página p. 62.
[18] Leviathan,
ed. C.B. Macpherson, Cap. 43, pp. 609-61. Cf. Simon Kow, “Hobbes’s Critique of
Miltonian Independency” in Animus, A Philosophical Journal for our Time (http://www.swgc.mun.ca/animus/current/kow.htm).
Kow cita o Leviatã :
“there have been in all times in the Church of Christ, false Teachers,
that seek reputation with the people, by phantasticall and false doctrines; and
by such reputation (as is the nature of Ambition),
to govern them for their private benefit.”
[19] Cf. Mark Whitaker, “Hobbes’s View of the
Reformation,” History of Political
Thought 9 (1988): 49 pp. 54-55; Stephen Holmes, “Political Psychology in
Hobbes’s Behemoth,” in Thomas Hobbes and Political Theory, ed.
Mary G. Dietz (Lawrence: University of Kansas Press, 1990), pp.
128-130. Segundo Kow, “The Political turmoil for Hobbes was in part a
result of the misuse of language and the consequent disjunction between things
and their proper signification”.
[20] Pierre
Vidal-Naquet: “De Platon, du mensonge et
de l'idéologie”, in Les assassins de la
mémoire (Paris, Points Seuil, 1995).
[21] “In this estate of man therefore,
wherein all men are equal, and every man allowed to be his own judge, the fears
they have one of another are equal, and every man's hopes consist in his own
sleight and strength; and consequently when any man by his natural passion, is
provoked to break these laws of nature, there is no security in any other man
of his own defence but anticipation. And for this cause, every man's right
(howsoever he be inclined to peace) of doing whatsoever seemeth good in his own
eyes, remaineth with him still, as the necessary means of his preservation. And
therefore till there be security amongst men for the. keeping of the law of nature
one towards another, men are still in the estate of war, and nothing is
unlawful to any man that tendeth to his own safety or commodity; and this
safety and commodity consisteth in the mutual aid and help of one another,
whereby also followeth the mutual fear of one another.
"2": 2. It is a proverbial saying, inter arma
silent leges”. Elements of law, I,
XIX, 1-2.
[22] O Cambridge
Advanced Learner´s Dictionary apresenta as seguintes explicações para sleight : “sleight of hand: speed and
skill of the hand when performing tricks: Most
of these conjuring tricks depend on sleight of hand.” E também “skilful hiding of the truth in order
to gain an advantage: By some statistical
sleight of hand the government have produced figures showing that unemployment
has recently fallen.” As duas
definições entram perfeitamente no que afirmamos sobre a razão de Estado, um
jogo desonesto vencido por truques e por embustes.
[23] Numa
bibliografia imensa, cito apenas o texto de Pierre Aubenque, La
prudence chez Aristote, (Paris, PUF, 1963). Os interessados poderão
pesquisar o tema junto aos especialistas em Aristóteles.
[24] Cf.
Gianfranco Borrelli: Ragion di Stato e Leviatano. Conservazione e
Scambio alle origini della modernità politica. (Bologna, Il Mulino,
1993), páginas 230 e seguintes.
[25]
“Pois vendo que as vontades da maioria dos homens são governadas apenas pelo
medo, e que onde não existe poder coercitivo não existe medo; as vontades da
maioria dos homens seguiriam suas paixões ambiciosas de prazer, avidez e
semelhantes, para quebrar os seus pactos, quem desejasse guardá-las, seriam
postos em liberdade, sem outra lei senão a que sai deles mesmos”. Elements of law, Parte II, Cap. 1. “Of the Requisites to the Constitution of a
Commonwealth”.
[26] “Every
sovereign ought to cause justice to be taught, which, consisting in taking from
no man what is his, is as much as to say, to cause men to be taught not to
deprive their neighbours, by violence or fraud, of anything which by the
sovereign authority is theirs”. Leviatã, cap. 30 : “Of the office of
the sovereign representative”.
[27] O
mesmo cap. 30, na edição Macpherson, página 377.
[28]
Página 379.
[29] Ed.
Macpherson, página 380. Quem segue a
tradução brasileira da Ed. Martin Claret, preste atenção porque esta última
frase (and in another place concerning Kings, that they
are Gods) falta alí. Citação do
Salmo 81, 6 : Ego dixi : Dii estis, et filii Excelsi omnes. Na Biblia do Rei
James I : “I have said, ye are Gods”. A frase hobbesiana radicaliza o Rei
James I no seu livro On divine right of Kings (capítulo
20) : “The state of monarchy is
the supremest thing upon earth; for kings are not only God's lieutenants upon
earth, and sit upon God's throne, but even by God himself are called gods.
There be three principal similitudes that illustrate the state of monarchy: one
taken out of the word of God; and the two other out of the grounds of policy
and philosophy. In the Scriptures kings are called gods, and so their power
after a certain relation compared to the divine power. Kings are also compared
to fathers of families: for a king is truly Parens
patriae, the politique father of his people. And lastly, kings are compared
to the head of this microcosm of the body of man. Kings are justly called gods,
for that they exercise a manner or resemblance of divine power upon earth: for
if you will consider the attributes to God, you shall see how they agree in the
person of a king. God hath power to create or destrov make or unmake at his
pleasure, to give life or send death, to judge all and to be judged nor
accountable to none; to raise low things and to make high things low at his
pleasure, and to God are both souls and body due. And the like power have
kings: they make and unmake their subjects, thev have power of raising and
casting down, of life and of death, judges over all their subjects and in all
causes and yet accountable to none but God only. . . I conclude then this point
touching the power of kings with this axiom of divinity, That as to dispute
what God may do is blasphemy....so is it sedition in subjects to dispute what a
king may do in the height of his power. But just kings will ever be willing to
declare what they will do, if they will not incur the curse of God. I will not
be content that my power be disputed upon; but I shall ever be willing to make
the reason appear of all my doings, and rule my actions according to my laws. .
. I would wish you to be careful to avoid three things in the matter of
grievances: First, that you do not meddle with the main points of government; that
is my craft . . . to meddle with that were to lesson me . . . I must not be
taught my office.Secondly, I would not have you meddle with such ancient rights
of mine as I have received from my predecessors” . Os interessados podem ler o
livro de James I, (Basilikon Doron) onde são dados os argumentos
sobre a proximidade entre Deus e o Rei. A versão do
livro está no endereço: http://www.jesus-is-lord.com/kjdivine.htm . Em James I e Hobbes, a sequência do Salmo é
“esquecida”: “ but ye shall die like men, and fall like one of the princes”.
Cf. Roberto Romano, O Caldeirão de Medéia (SP, Perspectiva, 2001) páginas 338-339. “Quem recomenda que a lei deve governar parece
recomendar que só Deus e a razão devem governar, mas ele também deveria
acrescentar que se um homem governa, soma-se um animal também; porque o apetite
é como um animal selvagem e a paixão deturpa o governo do melhor homem. Logo, a
lei é razão sem desejo = ho men oun ton nomon keleuôn archein dokei keleuein archein ton theon kai ton noun monous, ho d' anthrôpon keleuôn prostithêsi kai thêrion: hê te gar epithumia toiouton, kai ho thumos archontas diastrephei kai tous aristous andras. dioper aneu orexeôs nous ho nomos estin”. Aristóteles, Politica, 3. 1287a, Site Perseus.
[30] Cf.
Jonathan I. Israel: Radical Enlightenment. Philosophy and the making of Modernity,
1650-1750 (New York, Oxford University Press, 2001), página 258 e
seguintes.