Hobbes e a mentira, curso de graduação/Unicamp
CURSO DE GRADUAÇÃO/UNICAMP. SEGUNDO SEMESTRE DE 2005
PROF. ROBERTO ROMANO
A condenação da mentira antes de Hobbes e muito antes dos pensadores do século 18 pode encontrar um modelo em Montaigne. Vejamos o Ensaio sobre os mentirosos. “Na verdade mentir é um vicio maldito. Somos homens e nos prendemos uns aos outros apenas pela palavra. Se conhecêssemos o horror e o peso da mentira, nós a puniríamos pelo fogo, mais justamente do que os demais crimes. (…) Se, como a verdade, a mentira só tivesse um rosto, estaríamos em melhores condições. Pois tomaríamos como certo o oposto do que diria o mentiroso. Mas o reverso da verdade tem mil figuras, e o seu campo é indefinido”.
Note-se que Montaigne insiste no fato de que a mentira é policromada, polifacetada, cambiante. A verdade, por sua vez, possui apenas uma face, uma cor (ou melhor, é transparente). Entre o cão que se conhece e um estranho, cuja linguagem ignoramos, o melhor é ficar com o cachorro adianta ainda Montaigne em outra passagem do Ensaio que acabamos de inspecionar. A palavra verdadeira é a base da vida em sociedade, sem ela, nos perdemos nas variantes e nos equívocos.
A mentira, não raro, esconde-se na obscuridade da escrita ou da fala. Assim, quando no século 18 Diderot e seus amigos empreendem criticar o pensamento tirânico ou demagógico, eles prestam muita atenção à clareza dos termos, seguindo a tradição filosófica que passou por Hobbes. Assim, no verbete “Clareza” diz-se que diversas causas prejudicam a referida clareza no discurso. Em primeiro lugar, um discurso é obscuro quando o seu tema está longe do alcance dos leitores ou dos ouvintes, despossuidos dos saberes básicos para uma correta compreensão. Assim, a filosofia é obscura para os que, dela, não têm o conhecimento preliminar. “Reclamar da obscuridade de semelhantes discursos é com frequência reclamar da própria ignorância”. Também os termos das artes e das ciências, são fonte de obscuridade, mesmo para leitores inteligentes. O jargão prejudica o entendimento. O pedantismo, para não falar em charlatanismo, dos especialistas conduz à obscuridade. A brevidade em demasia é fonte de obscuridade. O escritor que deseja clareza deve usar o espaço disponível para indicar os princípios, os resultados, os detalhes de um assunto. Pessoas muito eruditas tombam na obscuridade porque se recusam a explicitar todos os elementos de seu tema, que elas supõem conhecidos, ao leitor. A falta de método também acarreta obscuridade. A falta de clareza no discurso também recebe origem da falta de clareza na sua concepção, porque se fala de idéias não distintas e sem ordem. A falta de estilo também acarreta obscuridade discursiva. O exibicionismo do saber erudito, o desejo de mostrar grande espirito, traz obscuridade. Mas o principal é a união da verdade e da clareza: discursos clarissimos podem ser mentirosos, e discursos verdadeiros podem ser obscuros. Uma exame cautelo da lingua, da lógica, do estilo, etc., podem ajudar a comunicação clara entre as pessoas.
Se a mentira e a obscuridade devem ser curadas, o grande proveito de tal operação salutar segue para a sociedade e para a vida política e jurídica. É com esse ânimo que o verbete “Dissimulação” da Enciclopédia expressa o problema dos governos e dos particulares nos assuntos cotidianos e nas ações de Estado. A razão de Estado opera com o segredo obscuro e com a dissimulação. E o redator do verbete mostra a diferença entre “dissimular”, “esconder”, “enganar com disfarce”. Esconde-se por um segredo profundo, o que não se deseja manifestar. Dissimula-se por uma conduta reservada o que não se deseja que seja percebido. Se disfarça por aparências contrárias, o que se deseja afastar da penetração das pessoas. O homem escondido vigia a si mesmo para não se trair por indiscrição. O dissimulado, vigia os outros para não deixar que eles o conheçam. O disfarçado mostra-se como outro do que é realmente para retrucar. No caráter da pessoa que torna uma sociedade feliz encontra-se a franqueza e a sinceridade. “Os bons principes olharam a dissimulação como um mal necessário: os tiranos, como Tiberio, Luiz XI, etc., dela falam como se fosse de uma veirtude. Não há dúvida que o segredo é com frequência necessário contra a disposição dos que desejariam interromper nossos empreendimentos legitimos. Mas a necessária precaução seria incomparavelmente mais rara, só empresas que se pudessem confessar, sem nenhuma reprovação, fossem formadas. E os autores do verbete adiantam algumas regras no campo da dissimulação : 1) Não estimar o caráter dos que, sem escolha ou distinção, são reservados e secretos. 2) Só fazer segredo das coisas que merecem o segredo. 3) Agir de tal modo, que seja preciso o mínimo de segredo.
Diderot, no verbete “Mentira”, acrescenta alguns matizes na análise dessa forma de falar, escrever, portar-se. Se a mentira, os equivocos, as restrições mentais são odiosas, diz ele, “existem nos discursos falsidade inocentes, autorizadas ou exigidas pela prudência; pois se a palavra é o interprete do pensamento, não segue-se sempre que seja preciso dizer tudo o que se pensa. É, pelo contrário, certo que o uso desta faculdade deve ser submetido às luzes da reta razão, a quem pertence decidir quais coisas é preciso desvelar, ou não. Enfim, para sermos obrigados a declarar ingenuamente o que temos no espirito, é preciso que aqueles a quem falamos tenham o direito de conhecer os nossos pensamentos”. O exemplo fornecido logo a seguir no verbete é importante, tratando-se da razão de Estado, da mentira e da verdade. O rei Musladin Sadi condenou à morte um de seus escravos que, não percebendo nenhuma esperança de graça, começou a maldize-lo. Como o principe não entendia o dito pelo condenado, pediu explicações a um cortesão. Este, que tinha bom coração e estava disposto a salvar o culpado, respondeu: ´ Senhor, o miserável diz que o paraíso espera os que moderam a colera, e perdoam as faltas; e implora clemência´. O rei perdoou o escravo e lhe deu graça. Logo outro cortesão de máu carater, gritou que não cabia a um homem de sua condição mentir na presença do rei, e se voltando para o principe disse: ´Senhor, quero dizer a verdade; este infeliz proferiu contra o Senhor indignas maldições, e este nobre disse uma mentira formal`. O rei, percebendo o máu caráter de quem assim falava, respondeu: ´Pode ser; mas a sua mentira vale mais do que a sua verdade, porque ele tentou salvar um homem, enquanto você procurou perdê-lo. Ignora você esta sábia máxima, que a mentira que traz o bem, vale mais do que a verdade que produz o dano?”.
Retornemos a Hobbes. Nos Elements of law, ele usa os termos Sleight and strength, para definir o estado de natureza no trato dos homens uns com os outros. A dupla de palavras apresenta grande interesse na análise hobbesiana da vida humana no momento imediatamente anterior ao instante decisivo em que os indivíduos postos em multidão acertam as bases do Estado. ( ) Os humanos possuem a capacidade de enganar uns aos outros através de truques hábeis, no mesmo ato em que usam a força física. O Cambridge Advanced Learner´s Dictionary apresenta as seguintes explicações para sleight : “sleight of hand: speed and skill of the hand when performing tricks: Most of these conjuring tricks depend on sleight of hand.” E também “skilful hiding of the truth in order to gain an advantage: By some statistical sleight of hand the government have produced figures showing that unemployment has recently fallen.” Notemos que as duas definições entram perfeitamente no que afirmamos sobre a razão de Estado, um jogo desonesto vencido por truques e por embustes. Explica-se tal proximidade entre o momento imediatamente anterior à geração da república e o tempo em que ela já está constituida: tanto em relação à cidadania, no interior de suas fronteiras, quanto diante dos outros Estados, o soberano é impelido necessáriamente a agir de acordo com a simulação, a dissimulação, a mentira. O presditigitador e mágico que dirige o poder estatal deve ser mestre na arte de enganar, sobretudo pelo raciocínio. Nos aproximamos do sentido mais comum na cultura ocidental para designar, no plano do pensamento, a capacidade de ludibrio pelo raciocínio: em Platão e Aristóteles o truque lógico deve-se à destreza de um personagem antipático, o sofista. Este último usa os golpes de mão e as ambigüidades semânticas para enganar e para apoiar o raciocínio falacioso.
Aproximemos a lente desse panorama inaugural do Estado. Se no ato de gerar o Leviatã, aos indivíduos que pertencem à multidão fosse permitida a licença de enganar por meio de truques, jamais haveria segurança na república. E se fosse também permitido aos mesmos indivíduos usar no espaço coletivo os truques sofísticos, a insegurança permaneceria intocada. Mas se fosse proibido ao soberano o uso das simulações e dissimulações, zonas inteiras de poder seriam conhecidas pelos inimigos externos e utilizadas pelos cidadãos em vantagem própria, anulando as regras do pacto.
Estamos em pleno meio de um problema partilhado pelo século XVII filosófico e político, qual seja, o acesso à razão e a vitória sobre os engodos que só pode ser conseguida utilizando-se a mesma astúcia dos mágicos e sofistas. Leiamos as Cartas a Lucilius (CII) : o mote da missiva escrita por Seneca é a questão da fama após a morte do indivíduo. Lucilio começara o debate afirmando que “Nenhum bem consiste em coisas distintas e separadas; e a fama consiste em coisas assim”. Responde Seneca que certas questões lógicas são misturadas com questões éticas. É preciso analisar o problema lógicamente e também no plano ético. Questões lógicas ou éticas, todas elas têm como fim a conduta e foram inseridas sob o tópico apropriado. Seneca parte de uma descrição das coisas e afirma que existem corpos contínuos (um homem) e compostos (navios, casas, e tudo o que resulta quando são unidas partes separadas numa soma total). E existem corpos feitos de coisas distintas, nos quais cada membro permanece separado (exército, populaça, senado). As pessoas que integram esses últimos corpos são unidas em virtude da lei ou funções mas, por sua natureza, são distintas e individuais. Nada é um bem, se é composto de coisas distintas. Porque um bem singular deve ser verificado e controlado por uma alma singular. E a qualidade essencial de cada bem singular deve ser singular. Seneca já prevê as críticas à semelhante tese: “A nomeada (claritas) é apenas a opinião favorável dos homens bons. Porque a reputação não consiste nas observações de uma só pessoa e a má reputação não consiste na desaprovação de uma só pessoa, assim a boa fama não significa que agradamos a uma pessoa apenas. Para constituir uma boa fama é necessário o acordo de muitos homens distintos e respeitáveis. Mas isso resulta da decisão de um número, em outras palavras, de pessoas distintas. Assim, ela não é um bem. E vocês afirmam, novamente, que a fama é o louvor dado a um homem bom por homens bons. Louvor significa discurso, e discurso é elocução com um significado particular. E a elocução, ainda que venha dos lábios de homens bons, não é um bem si mesma. Porque todos os atos de um homem bom é necessariamente um bem; ele grita seu aplauso e ergue sua reprovação, mas não se pode dizer que gritar e erguer são bons —embora sua conduta inteira seja admirada ou receba elogios— e muitos aplaudiriam um espirro ou tosse. Logo, a fama não é um bem.”
Hobbes conhece os textos de Seneca, particularmente os relativos à moral. A fama conduz aos atos mais insensatos, visto que ela exige a boca e os ouvidos da multidão indiscreta, que aceita mentiras sem maiores análises e se deixa enganar pela retórica dos demagogos. Poder-se-ia dizer que Hobbes, então, valoriza uma virtude pública e privada, que recomenda o maior cuidado com as palavras e com as ambições dos que as usam em proveito próprio? Seria necessário buscar algum vinculo entre o pensamento hobbesiano e a prudência? Esta última virtude é tema de boa parte da filosofia anterior ao século 17, de Aristóteles até o Renascimento. ( ) Hobbes, no entanto, não segue a linha maior da prudência, a não ser nos escritos introdutórios da sua tradução de Tucídides e em outras obras menores. No Leviatã e no De corpore a prudência recebe tratamento negativo. Enquanto restrita ao plano da experiência, a prudência não possibilita a generalização cognitiva e não produz a medida universalmente válida do justo e do injusto. ( ) Nos Elements of law a prudência deixa de ser o eixo do pensamento político e dá lugar à força que inibe as paixões desagregadoras do soberano autorizado no pacto. ( ) A disciplina, então, se apresenta como o eixo da política, sobretudo no De cive : ad societatem homo aptus non natura; sed disciplina (I,2). A prudência, no entanto, ligada à noção de razão de Estado, aparece aqui e ali no mesmo De cive. Por exemplo, no mesmo livro Hobbes refere-se à possibilidade de os governantes conservarem e exercitarem a astúcia e a força (sleight or force). Vimos acima que nos Element of law, sleight é palavra usada em conjunto com o vocábulo strength, para definir o estado de natureza. Quando afirma, ainda no De cive, que existe uma Reason of City (Civitas, no latim), Hobbes ainda guarda o sentido dado à razão estatal no Renascimento e na retórica que defendia aquela política, tendo como núcleo a prudência. Daí o apelo ao segredo e aos espiões, notável no referido volume. Entre o segredo (a máxima obscuridade) e os espiões (encarregados de penetrar a obscuridade alheia) a prudência e a imprudência do soberano podem trazer segurança ou perigo para a Civitas. Os soberanos que usam sleight or force, permanecem no estado de natureza, e podem usar a força, a fraude, a mentira, a espionagem e não precisam manter a palavra, porque não existe nenhum pacto que una os Estados e, portanto, nenhum soberano que imponha uma lei obrigatória para todos os países.
Se no âmbito mundial a razão de Estado funciona, apesar da guerra permanente de todos os Estados contra todos, no plano interno, com o pacto, a transferência do poder mortal, não pode existir ambiguidade na lei e relações de força de cidadão a cidadão. Menos ainda, relação mentirosa ou de engodo entre eles. No Leviatã quase desaparecem as antigas formas de pensamento prudencial, ou seja, da razão de Estado. Se esta última opera com force and fraud, o uso de semelhantes técnicas de dominação entre cidadãos conduz à ruina da república. Assim, diz Hobbes, “every sovereign ought to cause justice to be taught, which, consisting in taking from no man what is his, is as much as to say, to cause men to be taught not to deprive their neighbours, by violence or fraud, of anything which by the sovereign authority is theirs”. ( ) Contra o uso da força e da fraude, no interior da república, o soberano deve providenciar para que o povo não seja ignorante “ou pouco informado das bases, e razões dos seus direitos essenciais; porque assim os homens são seduzidos fácilmente, e levados a resistir-lhe, quando a República deve exigir seu uso e exercício”. ( ) Em qualquer Estado, generaliza Hobbes, sem a obediência (que traz a concórdia ao povo) o povo mesmo é dissolvido em pouco tempo. E quem dissolve o povo? “Homens poderosos”, os quais “digerem com muita dificuldade tudo o que estabeleça um poder para controlar suas afecções”. Mas também os “Eruditos (Learned)” que também resistem ao poder que “descubra seus erros, e portanto dimunua a sua autoridade (Authority)”. Enquanto os primeiros, os poderosos, estão cheios de ambição de poder, e os letrados mergulham na ambição de autoridade, porque suas mentes estão abarrotadas de doutrinas mentirosas e fraudulentas, o “as mentes do povo comum, enquanto não forem tingidas pela sua dependência diante dos poderosos, ou rabiscada pelas opiniões dos doutos, são como papel limpo, própria para receber tudo o que a Autoridade Pública nelas imprimir”. ( )
E encontramos novamente a fábula de Medéia, narrada no De cive: Quem é desobediente e deseja reformar a República desse modo, na verdade a destrói “como as ensandecidas filhas de Peleu, na fábula, as quais desejando renovar a juventude do seu pai decrépito, por conselho de Medéia o cortaram em pedaços e o colocaram para ferver, sempre com suas estranhas ervas, mas não fizeram dele um homem novo. Este desejo de mudanças é como a desobediência do primeiro mandamento divino: porque Deus disse, Non habebis Deos alienos: Não terás deuses de outras nações´., e em outro lugar , em relação aos reis, que eles são deuses”. ( ) Quais são os “deuses” que não podem coexistir com o “deus mortal”, o Leviatã ? Os poderosos, os letrados, as cidades que pretendem possuir independência no interior da República. “Os que pretendem agir segundo a prudência política”, diz Hobbes, tendem a afirmar a “liberdade de disputar o poder absoluto”. Estes são os poderosos e populares. “A menos que a República (Commonwealth) tenha muito penhor de sua fidelidade, eles são uma doença muito perigosa; porque o povo, que poderia receber seu movimento da autoridade soberana, pela adulação (flattery) e pela rpeutação de um homem ambicioso, é arrancado de sua obediência às leis, para seguir um homem cujas virtudes e designios eles não conhecem. E isso é mais comumente perigoso num governo popular do que na monarquia, porque um exército possui maior força e número se pode facilmente fazer-se acreditar que eles são o povo. É assim que Julio Cesar, que subiu ao poder pelo povo e contra o senado, tendo ele mesmo vencido as facções de seu exercito, controlou o senado e o povo. E este modo de agir de homens ambiciosos é rebelião clara, e pode ser comparada aos efeitos da feitiçaria (witchcraft). Outra doença da República é a grandeza imoderada de uma cidade, quando ela pode fornecer para for a de seu próprio circuito
Another infirmity of a Commonwealth is the immoderate greatness of a town, when it is able to furnish out of its own circuit the number and expense of a great army; as also the great number of corporations, which are as it were many lesser Commonwealths in the bowels of a greater, like worms in the entrails of a natural man. To may be added, liberty of disputing against absolute power by pretenders to political prudence; which though bred for the most part in the lees of the people, yet animated by false doctrines are perpetually meddling with the fundamental laws, to the molestation of the Commonwealth, like the little worms which physicians call ascarides.
Montaigne, Essais I, IX “Des Menteurs”. Em nossos dias, embora os mentirosos e as mentiras tenham aumentado em escala ciclópica, os pensadores que se dedicam ao estudo do falso, deliberado ou não, não são muitos. E quase todos dependem dos clássicos e atingem, no máximo, Nietszche (aliás, pouco entendido sobretudo neste aspecto). Cf. entre os “recentíssimos”, Campbell, Jeremy: The Liars Tale. A history of Falsehood (New York, WW.Norton & Company, 2001).
“In this estate of man therefore, wherein all men are equal, and every man allowed to be his own judge, the fears they have one of another are equal, and every man's hopes consist in his own sleight and strength; and consequently when any man by his natural passion, is provoked to break these laws of nature, there is no security in any other man of his own defence but anticipation. And for this cause, every man's right (howsoever he be inclined to peace) of doing whatsoever seemeth good in his own eyes, remaineth with him still, as the necessary means of his preservation. And therefore till there be security amongst men for the. keeping of the law of nature one towards another, men are still in the estate of war, and nothing is unlawful to any man that tendeth to his own safety or commodity; and this safety and commodity consisteth in the mutual aid and help of one another, whereby also followeth the mutual fear of one another. "2": 2. It is a proverbial saying, inter arma silent leges”. Elements of law, I, XIX, 1-2.
Numa bibliografia imensa, cito apenas o texto de Pierre Aubenque, La prudence chez Aristote, (Paris, PUF, 1963). Os interessados poderão pesquisar o tema junto aos especialistas em Aristóteles.
Cf. Gianfranco Borrelli: Ragion di Stato e Leviatano. Conservazione e Scambio alle origini della modernità politica. (Bologna, Il Mulino, 1993), páginas 230 e seguintes.
“Pois vendo que as vontades da maioria dos homens são governadas apenas pelo medo, e que onde não existe poder coercitivo não existe medo; as vontades da maioria dos homens seguiriam suas paixões ambiciosas de prazer, avidez e semelhantes, para quebrar os seus pactos, quem desejasse guardá-las, seriam postos em liberdade, sem outra lei senão a que sai deles mesmos”. Elements of law, Parte II, Cap. 1. “Of the Requisites to the Constitution of a Commonwealth”.
Leviatã, cap. 30 : “Of the office of the sovereign representative”.
O mesmo cap. 30, na edição Macpherson, página 377.
Página 379.
Ed. Macpherson, página 380. Quem segue a tradução brasileira da Ed. Martin Claret, preste atenção porque esta última frase (and in another place concerning Kings, that they are Gods) falta alí. Citação do Salmo 81, 6 : Ego dixi : Dii estis, et filii Excelsi omnes. Na Biblia do Rei James I : “I have said, ye are Gods”. A frase hobbesiana radicaliza o Rei James I no seu livro On divine right of Kings (capítulo 20) : “The state of monarchy is the supremest thing upon earth; for kings are not only God's lieutenants upon earth, and sit upon God's throne, but even by God himself are called gods. There be three principal similitudes that illustrate the state of monarchy: one taken out of the word of God; and the two other out of the grounds of policy and philosophy. In the Scriptures kings are called gods, and so their power after a certain relation compared to the divine power. Kings are also compared to fathers of families: for a king is truly Parens patriae, the politique father of his people. And lastly, kings are compared to the head of this microcosm of the body of man. Kings are justly called gods, for that they exercise a manner or resemblance of divine power upon earth: for if you will consider the attributes to God, you shall see how they agree in the person of a king. God hath power to create or destrov make or unmake at his pleasure, to give life or send death, to judge all and to be judged nor accountable to none; to raise low things and to make high things low at his pleasure, and to God are both souls and body due. And the like power have kings: they make and unmake their subjects, thev have power of raising and casting down, of life and of death, judges over all their subjects and in all causes and yet accountable to none but God only. . . I conclude then this point touching the power of kings with this axiom of divinity, That as to dispute what God may do is blasphemy....so is it sedition in subjects to dispute what a king may do in the height of his power. But just kings will ever be willing to declare what they will do, if they will not incur the curse of God. I will not be content that my power be disputed upon; but I shall ever be willing to make the reason appear of all my doings, and rule my actions according to my laws. . . I would wish you to be careful to avoid three things in the matter of grievances: First, that you do not meddle with the main points of government; that is my craft . . . to meddle with that were to lesson me . . . I must not be taught my office.Secondly, I would not have you meddle with such ancient rights of mine as I have received from my predecessors” . Os interessados podem ler o livro de James I, (Basilikon Doron) onde são dados os argumentos sobre a proximidade entre Deus e o Rei. A versão do livro está no endereço: http://www.jesus-is-lord.com/kjdivine.htm . Em James I e Hobbes, a sequência do Salmo é “esquecida”: “ but ye shall die like men, and fall like one of the princes”. Cf. Roberto Romano, O Caldeirão de Medéia (SP, Perspectiva, 2001) páginas 338-339. “Quem recomenda que a lei deve governar parece recomendar que só Deus e a razão devem governar, mas ele também deveria acrescentar que se um homem governa, soma-se um animal também; porque o apetite é como um animal selvagem e a paixão deturpa o governo do melhor homem. Logo, a lei é razão sem desejo = ho men oun ton nomon keleuôn archein dokei keleuein archein ton theon kai ton noun monous, ho d' anthrôpon keleuôn prostithêsi kai thêrion: hê te gar epithumia toiouton, kai ho thumos archontas diastrephei kai tous aristous andras. dioper aneu orexeôs nous ho nomos estin”. Aristóteles, Politica, 3. 1287a, Site Perseus.
Diderot
O favor como técnica de controle e dominação encontra-se no plano mais amplo do Sobrinho de Rameau. Os fios que unem a sociedade em que Jean François se move, com suas cambalhotas para agradar os mestres e seus preferidos, foram tecidos na sociedade política conhecida como Ancien Régime. E o tempo da tecitura data, pelo menos, de Felipe o Belo. Mas ela foi acelerada no Renascimento. A ordem dos favores impera na corte e nos elos entre nobres importantes e outros, menos poderosos. Ela segura em redes complexas de nepotismo, apadrinhamentos, interesses, o rei a todos e a cada um dos súditos. Não por acaso, o título monárquico é o de Pai. Projeta-se na ordem pública o que se determina na vida familiar.
Como enuncia Joël Cornette ( ) “O reino é organizado como uma família mais ampla de início, na qual as ligações de sangue e proximidade são hegemônicas, onde o rei sempre é percebido sob os traços de pai benevolente, do pater familias, concedendo suas benesses aos seus e sabendo distinguir, entre seus próximos, os que as merecem. Henrique IV, chefe benfeitor de clã, permanece para sempre como o que fez dos franceses ‘irmãos ’, ‘primos’, ‘amigos’, um clã que tem sentido não quando ele está em guerra ou em paz, mas porque está reconciliado (...) Todas as famílias concomitantes e superpostas, de Versalhes até a mais humilde choupana, são dominadas pela família mística: o Pai, o Filho e o Rei da França. Pois a essência divina da monarquia, pensada, difundida, teorizada definitiva e eficazmente a partir da ressacralização de Henrique IV, confere a esta dimensão paterna da monarquia um valor sagrado. Segundo uma propaganda oficial, as famílias terrestres do reino francês apenas transcrevem a família celeste, dos santos, dos anjos, do povo de Deus.”
Ademais, o trabalho do rei é o de prover os seus próximos “construindo uma rede familiar e doméstica que assegure a boa marcha do governo. Para tanto, é preciso achar subsídios. Os monarcas mais atilados elaboraram, com seus conselheiros, sistemas que ligam o ‘doméstico ao administrativo’, a fidelidade à venalidade, o ‘serviço de sua pessoa na administração da coisa pública’. Assim a monarquia criou em permanência a estrutura clientelar com ramos horizontais no espaço geográfico, limitadas apenas pelas fronteiras , com implicações verticais na hierarquia social, descendo até os submetidos à talha e à corvéia”. ( )
A ascensão social e política é feita pelos grupos e indivíduos naquela imensa rede de favores instaurada pelo absolutismo. O rei precisa cooptar os nobres, estes precisam exibir poder ao rei. E ambos os lados precisam de operadores que permitam a fluidez dos interesses, a sua realização sempre dependente dos alvos concorrentes ou paralelos aos dos coletivos familiares ou de “amigos” que os mantinham. A política do “é dando que se recebe” não foi instaurada no Brasil, como se nota. A sociedade e o Estado absolutistas constituíam, diz um historiador, “redes de amizade, de primos, de camaradas de colégio e combate, companheirismo, afinidades diversas, encontros de vizinhos”. Elas eram, para um nobre, “uma rede de interdependência na qual ele se inseria desde o nascimento, onde se casava e que lhe permitia sustentar, ou aumentar, a reputação de sua casa. É um capital que em parte ele herdara de seus parentes, que deveria fazer frutificar, antes de o transmitir por sua vez aos filhos. O gosto das relações, o culto da amizade, contavam tanto quanto o sentido da honra e do devotamento”. ( )
O reino, grande família, era movido pelos alvos das famílias. As redes horizontais de parceria e cumplicidade buscavam, todas, ascender na escala do Estado. O meio era encontrar conexões em estratos cada vez mais altos de redes de interesse e favor, até atingir os arredores do trono. Assim, os elos de clientela e fidelidade se tornavam a cada momento mais amplos e complexos. Entre os termos que assinalam os pactos tácitos (o termo é posto no Sobrinho de Rameau) está o que enuncia que alguém “pertence” a um outro, é sua “criatura” ou seu “doméstico”. Todos estes termos servem, perfeitamente, para descrever Jean François e seus concorrentes na busca da ascensão e sobrevivência. Só que tudo mais degradado, mais vil, desprovido da ilusão nobre da honra, da glória, etc. ( )
Tais cadeias de solidariedade uniam três tipos de pessoas: o patrão, o cliente, e os “brokers” (os intermediários), ou seja, o corretor. A clientela é algo praticado desde os tempos de Roma. Deixemos um pouco os tempos absolutistas modernos e nos dobremos sobre o clientelismo em Roma. ( )
Como ainda no Antigo Regime, as relações políticas de Roma ocorrem nos círculos complexos das famílias. As coalisões são formadas na base familiar, com as gentes e as familiae. O consulado romano foi possível, com certa estabilidade, com fundamento no trato dos grupos familiares e de sua clientela. A prática da adoção de indivíduos por famílias é uma outra maneira de manter vínculos de força e de poderio político. O costume de adotar, mantido pela sociedade, foi posto em movimento pelos imperadores, mas a partir de uma prática jurídica anterior: as famílias em filho homem como herdeiro, adotavam alguém que passava a usar o seu nome, dando-lhe sobrevivência e coesão. Adotar era um meio de estabelecer alianças entre famílias. ( ) Os cargos maiores de Roma eram gratuitos, porque os seus ocupantes eram ricos e poderosos, não sendo próprio à sua dignidade receber para administrar. Receber salários para exercitar o governo é próprio de um regime que deseja fornecer livre acesso ao poder para todos os cidadãos. E Roma era uma aristocracia, não uma democracia. Mesmo sua república não era democrática. Assim, toda a eficácia política, guerreira ou econômica repousa sobre a influência de certos indivíduos de certas famílias no circulo social. Não existe matiz igualitário em Roma: ou a pessoa pertence à uma família poderosa, ou à uma família pobre. Há os que governam, uma elite, e a massa dos que obedecem. Trata-se da relação patres/plebs.
Dessa relação, conflitiva em toda a república e império romanos, surge uma prática de manipulação dominadora exemplar: o patronato e a clientela. Não se trata de algo inédito, inventado em Roma. Já na Grécia existia o patronato, sendo que um conservador como Fustel de Coulanges imagina ser ele “uma prática das mais conformes à natureza humana”. O próprio Fustel analisou tal costume na Gália e nos povos germânicos. ( ) Os habitantes das cidades conquistadas por Roma se tornavam clientes do general que os venceu, este recebe o título de patronus. Os escravos libertos por manumissio,( ) entravam para a clientela do patrono. Tais casos não dizem muito para a dominação política, pois os seus partícipes dominados eram escravos. Importante é o ato “pelo qual um cidadão livre se coloca sob a proteção de uma pessoa mais poderosa e mais influente, o seu patronus. Esta forma de clientela se distingue essencialmente da anterior, porque é constituída por uma adesão livremente contraída após entendimento estabelecido entre as duas partes, o que se chama fides.” A clientela é oferecida para todos os que não possuem a plena cidadania. Ela resulta de um pacto solene, no qual o patrão enuncia a fórmula : Ego in fidem te recipio. Ela não traz prejuízos à posição jurídica do cliente, ela é puramente moral, não cai no domínio público. Os clientes, embora não sejam patrícios, podem pertencer a todas as categorias sociais, desde que encontrem apoio de um mais poderoso. A clientela é hereditária, mas pode ser rompida, ou estabelecida com maior número de patronos. Aí, a conciliação da fides a um ou a outros, é mais complicada.
O cimento que faz a fides permanecer, sólida, é o fauor (favor). Favere assume o sentido “ser favorável”, na lingua comum e na política. Ao termo fauere corresponde fautor : “aquele que favorece”. Ele aparece em data mais avançada da república. Favor é o que sustenta o político nas eleições, com aprovação popular. Ele significa o próprio voto (favor) mas não a campanha, que tem por nome officium. O favor se acompanha de sinais externos, em especial de laude, gratulationes, plausus, clamor (a manifestação externa do fauor). Trata-se de um termo também usado no teatro. A partir do teatro, o termo pode ter sido aplicado à política. Pouco a pouco o termo passa a significar “popularidade”. Fauere, por sua vez, significa “trabalhar para o aumento da posição política de alguém”. Se o cliente tem o dever moral de sufragar nas eleições o nome de seu patrono, este último deve proteger o cliente. Mas como, na república, existe a ficção da soberania popular (a monarquia caíra com Tarquínio, o soberbo), o favor do voto tem como nome o eufêmico beneficium. Tal relação pode, se transformar em obsequium (indulgência, cumprimento, complacência), blanditiae (de blandus, lisonjeador, adulador, acariciador), ambitio (na república a busca dos candidatos por votos, para solicitar aos cidadãos individuais os seus votos por meios corretos e legais) . ( )
Cicero louva a amizade desinteressada, algo que só pode existir entre os boni viri, os integrantes do patronato. Ricos, eles não precisam de nada material para obter dos seus iguais. Mas, recorda Hellegouarc‘h, para o mesmo Cicero um dever dos amigos é ajudar o parceiro na carreira política. O comentador aponta para a contradição entre os princípios elevados da ética e as realidades da ordem prática. “Cicero esteve sempre entre as duas opções e nunca escolheu formalmente entre elas. Ele constata que a virtus não tem muito lugar na atividade pública quando a tomamos em sentido moral estrito e que é difícil acordar moral e política”. Assim, no ideário romano, permanece a amizade em sentido elevado, mas o que se pratica, de fato, é o interesse momentâneo, a amizade breuis et suffragatoria. As amicitiae “se constituem como elemento importante da política; elas são feitas e desfeitas segundo as circunstâncias e necessidades do momento; só o interesse comanda e o sentimento não tem muito a ver com elas. A influência de um personagem é de algum modo proporcional ao número de amigos que ele soube adquirir”. Na ausência de partidos organizados, “o político não tem outro recurso para expandir sua influência a não ser unir-se ao maior número de pessoas possível, as quais lhe trarão por sua vez apoio dos que lhes são apegados”. Há uma distinção, entretanto: os amici pertencem ao patronato, os inferiores formam a clientela. Tal é a teoria, como no caso da amizade em geral, como virtude moral, e como prática efetiva. Assim, era possível colocar no plano dos amigos, pessoas que o mais correto seria colocar no âmbito dos clientes. “Esta extensão súbita e diplomática do número de amigos devia ser particularmente importante na época de campanha eleitoral”. Assim, conclui Hellegouarc’h, “precisamos renunciar a toda distinção entre amicus e cliens. Embora na origem as duas palavras se apliquem a situações muito diferentes, elas se perverteram no uso e se tornaram intercambiáveis segundo as necessidades e as circunstâncias.” ( )
Segundo o Contrato Social, nas antigas repúblicas virtuosas, “cada um tinha vergonha de dar publicamente seu sufrágio a uma opinião injusta ou a um assunto indigno, mas quando o povo se corrompeu e seu voto foi comprado, foi conveniente que o segredo fosse instituído para conter os compradores pela desconfiança e fornecer aos salafrários (´fripons´) o meio de não serem traidores”. ( ) Ao comentar os comícios, Rousseau diz que as leis de eleições dos chefes não eram os únicos pontos submetidos ao seu julgamento. O povo romano, diz ele, tendo usurpado as mais importantes funções do governo, pode-se dizer que a sorte da Europa era regulada por aquelas assembléias. “Esta variedade de objetos dava lugar a diversas formas que tomavam tais assembléias, segundo as matéria sobre as quais ele deveria se pronunciar. Para julgar essas diversas formas, basta compará-las. Rômulo, ao instituir as curias, desejava conter o senado pelo povo e o povo pelo senado, dominando igualmente sobre todos. Ele deu, portanto, ao povo, assim, toda autoridade do número para equilibrar (balancer) a da potência e das riquezas que ele deixava aos patrícios. Mas, segundo o espírito da monarquia, ele no entanto deixou mais vantagem aos patrícios por influência de seus clientes na pluralidade dos votos. Esta instituição admirável dos patrões e clientes foi uma obra prima de política e humanidade, sem a qual o patriciado, tão contrário ao espírito da república, não teria podido subsistir. Roma apenas teve a honra de dar ao mundo este belo exemplo, do qual não resultará jamais abuso e que, no entanto, jamais foi seguido”. ( ) Quanto ao fato de que a clientela serviu aos patronos ricos, Rousseau tem plena razão histórica. Se tal invenção foi algo excelente, em termos políticos e de humanidade, pode-se imaginar se o filósofo ironizava cruelmente, ou se foi atacado, quando escrevia as linhas acima, por um súbito ataque de realismo. Como a segunda opção é improvável...
Voltemos ao Antigo Regime francês, espaço de clientela e de favores. Em troca da proteção e benesses recebidas, o cliente deve servir ao seu patrão “com docilidade e lealdade, ajudá-lo a conseguir seu alvo, por exemplo, lhe fornecendo informações, o servindo com a pena ou espada, adotando suas inclinações, ambições, e às vezes seguindo-o na adversidade”. O patrão “ajuda seu cliente, se for preciso o veste, o alimenta, hospeda, lhe procura emprego, empresta ou dá o dinheiro para comprar um cargo, o empurra na ascensão social, o defende contra seus adversários. As vezes ele organiza seu casamento, educa ou casa seus filhos. Tal patrão, se não for uma pessoa rica, pelo menos é alguém influente, capaz de intervir em favor de seu protegido o recomendando aos mais poderosos do que ele”. ( )
A ausência de reciprocidade traz ruptura, traição, acusações de ingratidão. Agora o terceiro elemento : o corretor, ou broker. Ele é uma espécie de patrão pela metade, que põe sua própria clientela para servir um outro, mais poderoso. Ele facilita as negociações. “O patrão principal precisa desses ‘cafetões’ –entremetteurs– numerosos e eficazes para ampliar sua influência, assegurar o apoio de meios ou redes que ele não pode abordar diretamente. O corretor tem sua vantagem em fazer frutificar seu próprio capital de relações, monetarizando em preço alto seu papel de mediação e buscando por sua vez assegurar para si mesmo o monopólio do mercadejo (courtage), o que o patrão nem sempre tem interesse em conceder”. ( )
Essas relações de favor e de influência são essenciais na sociedade do antigo regime. Elas permitem entender o funcionamento do poder num sistema estatal incompletamente institucionalizado, como a França do período, formando a “monarquia administrativa”. Note-se o leve tom de etnocentrismo na análise de Petitfils. A França “foi” assim no Antigo Regime. Outras culturas, “incompletamente institucionalizadas” de hoje, sofrem os mesmos males do clientelismo. É possível perguntar se na França e nos demais países “completamente institucionalizados”, o favor e as relações de clientelismo foram abolidas. O autor, na sua exposição, cita para os dias de agora François-Xavier Guerra, cuja tese de doutoramento defendida na França se intitula Le Mexique. De l ‘ancien régime à la révolution ( ) Ele também cita Steffen Schmidt (Friends, Followers and Factions: a reader in political Clientelism). ( ) Poder-se-ia pensar que as relações de favor do Antigo Regime seriam persistências anacrônicas do feudalismo.
Antes de François-Xavier Guerra discutir a ordem mexicana, no Brasil Maria Sylvia Carvalho Franco tematizou, para compreender a lógica que norteia a sociedade e a política nacional, as relações de favor, de “amizade” e de compadrio . Em Homens Livres na Ordem Escravocrata, a autora conceitualiza a partir de textos históricos e depoimentos, a rede de relações tecida entre poderosos fazendeiros, sitiantes mais pobres e os dominados no baixo da escala social. O grande proprietário, diz ela, manteve relações aparentemente horizontais com o sitiante. Ela começa pelo depoimento de um integrante de família rica em Resende, nascido em 1870. “Não havia desigualdade entre fazendeiros e sitiantes; havia mesmo amizade. Se um deles chegava à nossa porta, vinha para a mesa almoçar conosco”. ( ) Aqui temos a noção de amiticia, imperante na sociedade romana e que, nela, apresentava uma polissemia imensa, a ponto de se precisar suspender a busca de sua designação “correta”. A ambigüidade da palavra entra na prática do político romano, do nobre francês, do fazendeiro brasileiro. Como prova da “igualdade” com o sitiante, era dito que eles e grande proprietários eram compadres.
Assim como a amicitiae romana, ou do antigo regime, a prática do compadrio suspende, de maneira imaginária, a diferença de nível e de riqueza. A autora cita Antonio Cândido ( ) :“Os vínculos estabelecidos entre padrinho e afilhado eram tão ou mais fortes que os de consangüinidade : não apenas o padrinho era obrigado a tomar o lugar do pai, sempre que necessário, mas tinhas que ajudar seu afilhado em várias ocasiões (...) o afilhado, por sua vez, ajudava o padrinho em tudo o que este necessitava, e freqüentemente tomava o nome da família”. No compadrio, ressalta o fato de um dos lados, o mais poderoso, “se apresenta como um patrocínio do superior e uma decorrente submissão do inferior.”. A criança pobre deve ser “encaminhada na vida”, com ajuda do mais forte. A autora cita Coldman ( ) : “Como naturalmente o padrinho deseja cumprir sua promessa com a menor despesa possível, o que de melhor pode fazer senão prover o jovem, tão logo tenha idade adequada, com um emprego público? E se o governo não tem o suficiente número de cargos à sua disposição, como poderia a influência do Duque, Marquês, Barão, Comendador, ser mantida mais facilmente que criando novos cargos e novos funcionários?”. A autora lembra o que significa, no Brasil, o termo “apadrinhar”. Poderíamos dizer a mais, que em nossa terra, “quem tem padrinho, não morre pagão”, ou seja, sempre alcança os empregos públicos ou privados, quando funciona a rede de favores recíprocos.
“Ampliando-se as trocas do compadrio para situações sociais, compreende-se como deriva dele toda uma intrincada rede de dívidas e obrigações, infindáveis porque sempre renovadas em cada uma de suas amortizações, num processo que se regenera em cada um dos momentos em que se consome”. ( )
A igualdade fictícia, trazida pelos ritos sagrados e pela “amizade” interessada, mostra sua face de dominação em momentos de apuro financeiro. O patrono ajuda o sitiante, este devolve em apoio político. Diz um rico, em depoimento anotado pela autora: “se os sitiantes da redondeza estavam em dificuldades ou queriam comprar um pedaço de terra, emprestavam dinheiro de meu pai; em compensação, esta gente sempre o acompanhava, eram seus eleitores ou seus cabos, pois ele era o chefe conservador da zona (...) Não havia compra de voto. Não havia concorrência entre os chefes políticos: não adiantava, quem era conservador era conservador e quem era liberal era liberal”. Deduz a autora: “a dependência” em que os protegidos estavam, “tornava inelutável a fidelidade correspondente. Sua adesão em troca dos benefícios recebidos é tão automática, que nem sequer são tomadas medidas que assegurem seu voto; tampouco se cogita de providências para atrair eleitores cuja fidelidade está definida para com o lado contrário. Umas seriam desnecessárias, e outras inúteis”.
Presos à política local ou no máximo regional, os dominados não perceberam o alcance de eventos como a Independência do Brasil e similares. “Estado, na consciência desses homens se confundia com a pessoa do príncipe e governo se identificava com seus atos e decisões, ou com a de seus representantes”. Assim, a consciência política dos setores livres e pobres não vai além da pessoa que lidera o elo entre os dois extremos da cadeia de domínio. A visão institucional do Estado e de seus interesses nacionais ou internacionais falta a tais setores. Os nexos entre patrono e cliente são definidos: “a lealdade inclui o reconhecimento do benefício recebido, o sentimento de gratidão por ele, e o imperativo de sua retribuição equivalente”. Mas “o fabricar de lealdades e fidelidades através de um processo cumulativo de recíprocos encargos e favores promovia, sucessivamente, a eliminação completa da possibilidade de um existir autônomo”. O poder, então, é impossível de ser concebido “senão mediante o prisma formado pela encarnação do poder: este transfigura a realidade social, convertendo-a nas formas objetivadas da existência daquele que é ideado como superior, e plasma as categorias através das quais ela é conhecida, confinando-as a imagens que não podem transcender essa mesma situação vital particular, personificada e alheia”. Isto mostra o peso do comportamento mecanizado do dependente e sua incapacidade para apreender a organização e a dinâmica da política em nível institucional. Atitude similar, de “amizade” ocorre entre patronos e agregados. O morador ficava nas terras do patrono se fosse amigo. “Agregado ou camarada, a anulação de sua vontade se revela na simples incapacidade de tomar uma decisão autônoma”. Uma testemunha, no caso de rapto de jovem, diz que o réu “lhe fora pedir para ter guardada em sua casa a menor e ele respondera que não o podia fazer sem o consentimento de seu patrão, porque era agregado”. Sua recusa, adianta a autora, “tem a ver menos com o risco de transgredir a lei, que de incorrer na desaprovação do fazendeiro”.
O favor permeia, assim, os elos entre patronos e gente livre, mas pobre no Brasil. E se atentarmos para o fato de sermos uma sociedade desigual por excelência, a ficção da igualdade jurídica e política se esvai rapidamente. No mesmo passo, guardamos as práticas políticas do Antigo Regime, como por exemplo a diferenciação entre operadores do Estado e “pessoas comuns”, simples pagadores de impostos, sem maiores direitos e poderes. Os cargos dos “amigos” e apadrinhados continuam em uso, na troca de favores entre oligarcas que tentam se aproximar do poder, na corte. ( ) Os mesmos padrinhos tentam, por meio dos seus clientes, alicerçar alianças com seus pares oligárquicos, tudo segundo a receita absolutista.
As relações de amizade, no mundo moderno, seguem o padrão explicitado em Roma: amizade ligada a interesses de ascensão social ou política, breuis et suffragatoria. Voltemos ao Sobrinho de Rameau. Em primeiro lugar, ele cumpre o papel de broker entre personagens ricos e suas vítimas que devem sucumbir ao desejo “amoroso”. Mas ele, como diz um comentador, é apenas um “masca dinheiro, um pobre doador de lições, sem clientela e sem reputação” (Charles Asselineau, em prefácio ao Sobrinho de Rameau). ( ) Sem clientela e sem reputação, o Jean François serve apenas no âmbito interno de seu patrão, ele não possui a utilidade e o estatuto de um “amigo”. Seus ofícios entram no rol das coisas abjetas, como o de cativar mocinhas para a lubricidade de personagens ricos e inescrupulosos. ( )
Logo no início do texto, antes mesmo de dizer o nome do Sobrinho, Jean François, o autor diz que ele “tinha se introduzido, não sei como, em algumas casas honestas nas quais tinha seus talheres, mas à condição de não falar sem autorização. Ele se calava e comia com raiva”. Pouco depois, falando de seu tio músico, o sobrinho diz que ele “é um filósofo em sua espécie. Ele só pensa em si mesmo”. E gente assim, “não sabem o que significa ser cidadão, pai, mãe, irmão, parentes, amigo”. Jean François entra nas casas “honestas”, nelas come, mas não fala, ou seja, é destituído do elemento essencial da sociabilidade, a linguagem, onde se estabelecem os vínculos de amizade, parentesco, de política, etc. Já o filósofo, e seu tio é um, está liberado daqueles elos sociais. A receita de bem viver assumida neste ponto é a sabedoria de Rabelais cumprir o dever, sempre falar bem do prior, “deixar o mundo seguir segundo a sua fantasia”. As condições subalternas têm uma sabedoria : ou nada falar, ou falar bem dos patrões. Não existe ilusão de igualdade na perspectiva do Sobrinho. E o poder da fala se concentra na mentira dos poderosos : “eu estava um dia à mesa com um ministro do rei de França, que tem espirito para quatro; ele nos demonstrou claro como um e um fazem dois, que nada era mais útil aos povos do que a mentira, nada mais prejudicial do que a verdade”. Quem possui o poder de falar, mente, sobretudo se está no topo da hierarquia política. Estamos em plena sátira à razão de Estado, algo que suscita a ira diderotiana. Na raison d‘État se estabelece a heterogeneidade entre o mundo dos governados e o universo dos dirigentes. Como diz um comentador do problema, na aurora do Estado moderno “a verdade do Estado é mentira para o súdito. Não existe mais espaço político homogêneo da verdade; o adágio é invertido: não mais fiat veritas et pereat mundus, mas fiat mundus et pereat veritas. As artes de governar acompanham e ampliam um movimento político profundo, o da ruptura radical (…) que separa o soberano dos governados. O lugar do segredo como instituição política só é inteligível no horizonte desenhado por esta ruptura (…) à medida que se constitui o poder moderno. Segredo encontra sua origem no verbo latino secernere, que significa separar, apartar”. ( )
Diderot, numa Carta intitulada “Sobre o Exame do Ensaio sobre os Preconceitos”, escrito por Frederico da Prússia, o rei que iniciou sua carreira “filosófica” com um livro contra Maquiavel, defende o autor do Ensaio, D’ Holbach. Este, no seu escrito, aconselhava os príncipes a renunciar aos preconceitos da nobreza e da glória militar, abolir os privilégios reconhecendo o mérito verdadeiro realçado por uma educação pública de qualidade, e assegurando0 que deve-se dizer sempre a verdade ao povo ( ) Ora, Frederico é o rei que chegou a propor à Academia de Berlim , em 1777, “se pode ser útil enganar o povo ?”. ( ) No dia 23 de outubro de 1777, na sessão primeira da Academia de Berlim (Nouveaux Mémoires de l ‘Academie de Prusse, VIII, 46) Formey leu uma carta de Frederico na qual o rei perguntava “se é útil enganar o povo ?”. Em 1778 a Academia mudou a pergunta para “É útil para o povo ser enganado, seja que os induzamos em novos erros ou mantenhamos aqueles nos quais ele lavora ?”. Foram dadas 33 respostas, 20 pela negativa, 13 afirmativas, 4 foram tidas como boas para a primeira categoria, 7 para a segunda. Duas foram premiadas, a do alemão Becker na primeira categoria, a do matemático francês F. de Castillon na segunda. ( )
Segundo d’ Holbach, lido por Diderot, o homem ama a verdade. Diderot considera, como idéia favorita, que “não existe nenhum exemplo de que verdade tenha sido prejudicial nem para o presente, nem para o futuro” ( ) É o que o filósofo diz ao Sobrinho : “apesar do ministro sublime que citastes, acredito que se a mentira pode servir um momento, ela é necessariamente prejudicial em longo prazo, e que ao contrário a verdade serve necessariamente em longo prazo, embora ela possa prejudicar no momento”. Mesmo movimento no Sonho de D’ Alembert : “Bordeau: pensais que a mentira tem suas vantagens e a verdade os seus inconvenientes. Senhorita de Lespinasse –Sim. Bordeau : Eu também. Mas as vantagens da mentira duram um momento e as da verdade são eternas; mas as sequências incômodas da verdade, quando ela as tem, passam rápido, e as da mentira só acabam com ela. Examinai os efeitos da mentira na cabeça do homem e seus efeitos na sua conduta; na sua cabeça, ou a mentira se ligou de tal modo à verdade, e a cabeça é falsa; ou ela é bem e consequentemente ligada à mentiram e a cabeça é errônea. Ora, qual conduta poderíeis esperar de uma cabeça ou inconseqüente em seus raciocínios, ou consequente em seus erros ? –Lespinasse – O último desses vícios, menos desprezível, e talvez a ser mais temido do que o primeiro”. ( )
O verbete Raison d’ État da Encyclopédie determina os limites da verdade e da mentira do governante para com os governados: é preciso saber “se a raison d' état autoriza o soberano a fazer sofrer algum dano a um particular, quando se trata do bem do Estado”. É fácil responder: “se prestarmos atenção que, ao formar a sociedade, a intenção e a vontade de cada indivíduo deve ter sido sacrificar seus próprios interesses aos de todos, sem o que a sociedade não poderia subsistir. É certo que o todo é preferível à sua parte; entretanto nessas ocasiões, sempre incômodas, o soberano se recordará que deve uma justiça para todos os seus governados, dos quais ele é igualmente o pai; ele não dará por razões de Estado motivos frívolos ou corrompidos que o empenhariam para a satisfação de suas paixões pessoais ou as dos seus favoritos; mas ele gemerá diante da necessidade que o obriga a sacrificar alguns dos membros para a salvação real de toda a sociedade”. A mentira é o alicerce de todas as religiões, sobretudo do cristianismo (verbete cristianismo, XIV, 145). Montaigne, que é considerado por Diderot, é por ele condenado por considerar que existe mentira útil (Carta a Falconet, setembro de 1766).
Quanto à política do favor, o próprio Diderot dela não escapava na vida real. Basta recordar suas relações com Catarina 2, e outros elos sociais e políticos que lhe renderam bons recursos financeiros. Um personagem que aparece no Sobrinho, no entanto, mostra plenamente a efetividade do clientelismo e dos patrocínios políticos.
Trata-se de Palissot de Montenoi (1730-1814). Diderot o descreve como cínico, parasita, enganador. Em primeiro lugar, ele se instala no círculo “devoto” na corte do rei Stanislas da Polônia. Alí, encontra “proteção” em todos os sentidos. Frederico da Prússia, sendo péssimo escritor mas adulado por intelectuais, o conde de Stainville, mais tarde Duque de Choiseul e primeiro ministro, o aluga, ou aluga sua pena para criticar Frederico. Mais tarde, Palissot se beneficia dos favores de Choiseul, em 1755 ele consegue a Receita Geral dos Tabacos de Avinhão. Vítima de um desonesto, o mesmo Choiseul lhe perdoa uma dívida. Quando Diderot estava no máximo de tensão, pois periclitava a Enciclopédia, ele escreve as “Cartinhas sobre os grandes filósofos”, onde opõe Locke, Condillac, Voltaire aos enciclopedistas, sobretudo Diderot. Palissot, adulador de Luis XV e Luis XVI, adulará a Revolução, na sua parte mais extremista. Recebe uma cadeira no Conselho dos Anciãos e depois um cargo de administrador da Biblioteca Mazarino. ( )
“Antiga política” a que vigorou na Idade Média, edificada com os frangalhos do pensamento grego e romano. No século 12 o debate ocorre em relação às virtudes políticas. Apenas no século 13 os fragmentos do saber antigo começam a a ser unidos de modo coerente, definindo-se as condições intelectuais para o Renascimento. Tal aglomerado de idéias, que dificilmente poder-se-ia intitular como sistema une-se às formas de pensamento que surgem nas cidades livres, os municípios que se tornaram praticamente autônomas em toda a Europa mas sobretudo na Itália onde chegaram a se determinar como repúblicas (formadas nos séculos 11 e 12). ( )
Municípios : Roma, foedus, cai o império romano do Ocidente, feudalismo, anarquia, cidades municípios em luta contra a Igreja, os nobres, o imperador. Elas perdem sua autonomia e sua independência com a centralização do Estado. Na Itália e na Alemanha, apenas no século 19 o poder central conseguiu abolir a independência daqueles antigos municípios romanos. ( ) No momento em que as cidades republica se firmam, três são as correntes que orientam a lingua política: a tradição das virtudes (magnificamente representadas na Alegoria do Bom Governo), o aristotelismo, o direito romano. As cidades da Liguria, Lombardia, Emilia, Toscana, seguem a forma de governo no qual os cidadãos não obedecem príncipes mas apenas a senadores eleitos por eles. Além disso, os cargos tinham duração limitada, os Consules eram trocados a cada ano. A “ideologia” ciceroniana e o direito romano formavam o ideário das republicas indicadas. O maior cargo de autoridade era o Podestà, ou Potestà, que possuía poder judiciário, militar, administrativo e decisão na diplomacia. Mas seu estatuto era de eleito limitado pelos estatutos da cidade. Ele não tinha poder legislativo e, no fim do mandato, prestava contas ao Conselho dos Síndicos sobre como foram mobilizados por ele os recursos públicos e as pessoas a ele submetidas.
Tal princípio tem sua origem remota na chamada dokimasia (δοκιμασία) ( ) grega: antes e depois do mandato o dirigente devia ser examinado, quando suas contas eram aprovadas, ou não. Temos aí as bases da accountability democrática, princípio expulso da cena pública, liminarmente, pela razão de Estado, desde o século 17 até os nossos dias. Contra a razão mencionada se ergueram as revoluções inglesa, norte-americana, francesa. Do fracasso, desvio ou retrocesso dessas revoluções, renasceu a razão de Estado no século 19 e, depois, no século 20. Na Revolução Francesa, a confiança nas virtudes republicanas, com o Termidor, foi recusada como resquício subjetivo que não garantia a “governabilidade” contra os povos submetidos pela polícia ou exércitos, sobretudo após o domínio de Napoleão.
A seleção, nos escritos roussoístas, de escritos e sentidos, deu-nos algumas versões mentirosas sobre o pensador. E isto não foi obra do acaso. Com o golpe do Termidor, a Revolução Francesa deixou o campo dos valores e passou ao plano mentirosamente mais sólido do interesse econômico e social como base da política. As representações intelectuais do século 18, incluindo as de Rousseau, as de Diderot e mesmo as de um aristocrata como Voltaire, insistiam na virtude cidadã como base do governo não tirânico. Esta doutrina foi reforçada no período jacobino, sobretudo sob Robespierre. Com o golpe do Termidor, ela foi afastada na teoria e na prática políticas.
Comenta Alain Badiou num texto luminoso: “o ponto central é que ao princípio da Virtude se substituiu o princípio do interesse. O termidoriano exemplar (…) é certamente Boissy d’ Anglas. Seu grande texto canônico é o discurso do 5 Messidor ano 3. Citemos: ‘Devemos ser governados pelos melhores (…) ora, com poucas exceções, só encontrareis semelhantes homens entre os que, tendo uma propriedade, são apegados ao país que a contém, às leis que a protegem, à tranqüilidade que a conserva’.”. A virtude, comenta Badiou, “é uma prescrição subjetiva incondicionada, que não remete para qualquer determinação objetiva. É por este motivo que Boissy d’ Anglas a recusa. Não se exigirá do dirigente que ele seja um político virtuoso, mas que ele seja um representante governamental dos ‘melhores’. Estes não constituem uma determinação subjetiva. É uma categoria definível condicionada absolutamente pela propriedade. As três razões evocadas por Boissy d’ Anglas para entregar o Estado aos ‘melhores’ são essenciais e tiveram grande futuro: —para um termidoriano, o país não é, como para o patriota jacobino, o lugar possível das virtudes republicanas. Ele é o que contém uma propriedade. O país é uma objetividade econômica. —Para um termidoriano, a lei não é como para o jacobino, a máxima derivada do nexo entre princípios e situação. Ela é o que protege, e singularmente o que protege a propriedade. Assim, sua universalidade é totalmente secundária. Conta a função. —Para um termidoriano, a insurreição não poderia ser, como o é para o jacobino quando a universalidade dos princípios é pisoteada, o mais sagrado dos deveres. Pois a reivindicação principal e legítima do proprietário é a tranqüilidade. Encontramos, assim, o tripé fundamental de uma concepção objetiva do país, de uma concepção conservadora da lei, e de uma concepção securitária das situações. Uma primeira descrição do conceito de termidoriano nele vê a nuvem do objetivismo, do status quo ‘natural’ e da seguridade”. ( )
Justo porque o princípio objetivo impera a partir do Termidor e as noções de justiça, valor, virtude, são esvaziadas ao máximo, dando-se preferência à propriedade; porque não é mais permitido mudar a política sem a licença do mercado, o poder passa a desempenhar o papel de protetor da propriedade —velha tese de Locke—( ) contra os que não podem se encontrar no rol dos “melhores”. Não é preciso consultar os autores liberais do período, ou mesmo o que sobrou dos que defendiam o jacobinismo, para perceber que a garantia da propriedade deu-se com a mais dura violência. Termidoriano foi o império e termidoriana a restauração monárquica. Em ambos os períodos, o elemento “objetivo” invadiu a política e a cultura, deixando para os indivíduos apenas os devaneios românticos e a sensibilidade exacerbada. ( )
A passagem do “subjetivo” (as virtudes) para o “objetivo” marca o realismo ou razão de Estado. A política deixa de ser assunto da vontade, do querer coletivo ou individual, e se transforma em algo exterior aos planos dos homens, com estatuto “natural”. Quando o realista age, ele se ancora nas “leis da objetividade”, como se o Estado e a vida social seriam apenas uma réplica mais complexa dos mundo natural. Assim, os valores como a virtude deixam de ter sentido, eles são mais representações Ideeles do que realidades empíricas ou ideais. É como se o mundo político estivesse submetido às determinações expostas na Crítica da Razão Pura, deixando para o campo da Razão Prática o vazio metafísico. Quem se curva ao mundo político tal como ele “é” apenas “obedece leis objetivas” e quem tenta transformar as relações corrompidas é apenas um sonhador, nada mais.
Algo similar ocorreu no início do século 14, quando a maioria das repúblicas mudam a sua forma de governo em proveito de um signore ou família, com os príncipes. Azzo VII se torna principe de Ferrara a partir do cargo de podestà. Ele fez o Conselho Comunal prometer que, na sua morte, seria reconhecido seu sobrinho, Obizzo, Signore de Ferrara. Este foi aclamado Signore com o poder de governar segundo sua vontade. Em todas as antigas repúblicas, a mudança foi mais ou menos difícil e controvertida. Algumas cidades como Bolonha e Gênova alternaram república e principado. Outras, como Florença e Siena resistiram como repúblicas e caíram sob o domínio principesco apenas no século XVI.
O ideal virtuoso e republicano, a “política”, tem sua base estratégica em Macróbio, no comentário ao ciceroniano Sonho de Scipião (parte da República escrita por Cicero) ( ). Naquele sonhos os políticos virtuosos são premiados quando morrem, com a felicidade eterna. O essencial guardado pelos republicanos : “nada do que ocorre na terra é mais agradável ao Deus supremo que governa todo o cosmos do que o estabelecimento de associações e federações de homens unidos por princípios de justiça (iure sociati) que chamamos comunidades (civitates), Os governantes e protetores delas (rectores et servatores) dela vêm e para e para ela retornam após sua morte” (Comentário do Sonho de Scipião). A virtude garante a felicidade do governante. A equação é platônica. O político prudente, segundo Macróbio, ordena seus atos pela razão, desejando o que é reto, justo. Este político permite a felicidade coletiva.
Seria Maquiavel o inverso dos ideais elaborados por Cicero? Segundo seus críticos do século XVI e XVII ele é o corruptor das verdadeiras políticas e modificou a mais nobre arte humana, transformando-a em instrumento de servidão. Segundo Inocent Gentillet, ele inventou máximas totalmente “malvadas (meschantes) e sobre elas construiu uma ciência política ainda mais tirânica”(Discours sur les moyens de bien gouverner et maintenir en bonne paix un royaume ou autre principauté, citado por Viroli).
As virtudes integram os princípios ciceronianos da política. Se a justiça não assegura a todos o que lhes cabe, some a sociedade pela ação de sentimentos baixos como a inveja e a sedição. Para que exista justiça é preciso que a virtude impere nos governantes e nos governados. Seria Maquiavel inimigo da justiça, amigo das sedições ? Segundo James Harrington (Oceana, 1656) ele encobriu idéias republicanas sob a capa do elogio da dissimulação e ferocidade principescas. Harrington distingue duas espécies de prudência: o governo de jure, com justiça e obediência à razão, e o governo onde “alguns poucos homens sujeitam uma cidade ou nação e governam segundo seus (ou seu) interesse privado”. Este é o governo segundo os homens e não segundo as leis.
Viroli, que sigo ainda aqui, nota um pensamento de Hannah Arendt segundo o qual “Maquiavel é o único teórico político pós clássico que fez um esforço extraordinário para ‘restaurar a política na sua dignidade antiga’”. Outros comentadores, como Hans Baron, comparam o autor e o cidadão republicano ao autor de O Príncipe. Note-se uma peculiaridade: naquele texto não usa o termo “político” e nem seus equivalentes. Para esta constatação, Viroli é devedor de Dolf Sternberger. ( ) Segundo Viroli, não existia mais terreno para se falar em política, dada a nova lingua que estava sendo forjada e imposta praticamente, a da tirânica razão de Estado. Este juízo de Viroli pode ser discutido. Assim, outros autores, partindo também da constatação de Sternberger indicam um outra caminho. Segundo Giovanni Giorgini, ( )Viroli tem razão, mas é preciso qualificar seu enunciado. O Príncipe trata do “grau zero” da política, a situação na qual é “preciso instalar as condições para a possibilidade da política, criando ex novo ou salvando a comunidade política. Maquiavel aprendeu muito bem a lição de Tucídides (a soteria poleos é a mais importante consideração para um estadista) e também a lição do pensamento político romano ( salus reipublicae suprema lex esto).”. Assim, o Príncipe deveria ser lido como “uma variação do tema sobre o status necessitatis, a condição extrema e excepcional na vida de uma comunidade política (...) O príncipe, especialmente o novo, é com frequência forçado a agir contra a fé, a caridade, a humanidade, a religião, para preservar o Estado, citando Maquiavel na sua famosa frase, ele não deve separar-se do bem, se pode, mas estar pronto para o mal, se forçado. (...) O mal é especialmente necessário quando h]a corrupção no Estado ou quando a comunidade política enfrenta a destruição que vem de fora. E existe corrupção quando as leis favorecem apenas um segmento da comunidade e favorece a ambição dos poderosos. Em tal situação o vocabulário da política é pervertido: homens perniciosos são ditos industriosos no mesmo tempo em que bons cidadãos são tido como loucos”. Temos aí, novamente, a tese da “purga” invertida indicada por Platão, no seu retrato da tirania.
Notadas as divergências dos comentários, devemos ressaltar que, para Viroli, o vocabulário político anterior se justificaria, no entanto, nas cidades republicanas. O assunto de Maquiavel, no Príncipe, é o Estado do príncipe e, como tal, estado algo a ser preservado e dirigido. Viroli cita Maquiavel quando este diz o seguinte : “deixarei o raciocínio (ragionare) das repúblicas, porque em outra ocasião arrazoei muito. Trataremos apenas do principado (...) e discutirei como estes principados são passíveis de governar e manter”. Maquiavel, em Istorie Fiorentini fala de Cosimo, segundo o qual não é possível manter Estados com rosários (paternostri). Cosimo pensa no seu Estado, o dos Medici, não no poder soberano da comunidade política de Florença. Outro ditado da nova política ilustra a diferença entre Estado republicano e Estado de alguém: “é melhor uma cidade arruinada do que perdida”. Tal ditado expõe muito corretamente a política do Papa Julio 2, quando invadiu Bologna pretextando restaurar as antigas franquias daquela cidade. A sátira de Erasmo contra o pontífice é virulenta. ( ) Cosimo defende o seu stato e para isso exilou, confiscou, etc. Os cidadãos que não obedeciam não eram inimigos da república, mas do seu Estado. Ele premiou os amigos e partidários, como é evidenciado por Platão.
Segundo Viroli, Maquiavel, à semelhança dos humanistas do Quatrocentto, não fala da arte do Estado (na qual o Príncipe se baseia) como sinônimo do antigo vivere politico porque, para ele, “stato” não era apenas outro termo para republica, mas uma forma específica de organização que exclui a tirania e o governo despótico, sendo incompatível com o governo de alguém. Se um cidadão ou partido domina os demais acima das leis e acima dos magistrados, desaparece a república. Tres tipos de Estado, como se nota a partir do Principe: a) stato del Turco, despótico; b) stato di Francia (reino moderado); c) Stati qui sono consueti a vivere con le loro leggi e in libertà, repúblicas.
Maquiavel, assim, não usa o termo ‘político’ porque no Príncipe não existe política no sentido republicano. Ele escreve sobre a arte do Estado, a de preservar ou reforças o estado de alguém. O debate sobre o governo tirânico no qual a polis “pertence” a alguém e o governo político onde todos, governantes e governados, obedecem a Lei, é antigo como a filosofia. Em Platão, Aristóteles, etc. existem notas estratégicas sobre o tema.
Marcello Gigante, em Nomos Basileus ( ) apresenta um tratamento clássico do tema. Como ele mesmo diz, o assunto toca fundo no problema da justiça e da injustiça, “quanto no problema da legitimidade e da injustiça”. E também na questão da legitimidade da violência no mundo dos violentos. Hoje, adianta ele, “se pratica a violência em nome do ‘direito’ do punho, descoberta antiga do homem ainda deseducado. Mas tal ‘direito’ não tem raiz divina, nem o homem conseguiria codificá-lo. Hoje o interesse econômico elevou a nomos novíssimo uma história inglória, com a violência do mais forte sobre os mais fracos. Sobram apenas as teorias ‘intimistas’ do desfalecimento da consciência moral, e cuja ação inclui os procedimentos tortuosos e de bajulação”. Gigante escreve logo após a IIa Guerra Mundial, com o fascismo vencido, bem como o nazismo. O estalinismo estava no auge. A pergunta sobre o político, o republicano, o justo, permanece, bem como a questão dos saber se obedecemos leis ou somos servos de outros homens. Aqui, poderemos recordar as invectivas de Etienne de la Boétie, no Discurso da Servidão Voluntária. Somos cidadãos dignos deste nome, ou apenas objeto do poder?
Em Nomos Basileus temos exibidos os elos entre moral, força e direito no pensamento grego, de Homero a Platão. Nos poemas épicos, Zeus garante a diké (a lei), mas o termo nomos aparece apenas no composto eunomia (em antítese à hybris, OD. XVII, 487). Hesíodo fala de nomos genericamente como norma de vida: Zeus determinou um nomos para os animais (mas sem diké) e outro para os homens, e tal nomos é fundido na diké, contraposta à Bia, a violência física, a pura força. (“For the son of Cronos has ordained this law for men, that fishes and beasts and winged fowls should devour one another, for right is not in them; but to mankind he gave right which proves [280] far the best. For whoever knows the right and is ready to speak it, far-seeing Zeus gives him prosperity; but whoever deliberately lies in his witness and foreswears himself, and so hurts Justice and sins beyond repair, that man's generation is left obscure thereafter”. Trab. Dias, 276-280, Perseus Project).
A primeira vez em que a idéia de que a violência pode se harmonizar com a lei encontra-se em Solon, quando ele defende sua reforma. Ele afirma: “com o império do nomos, conciliando violência e justiça, cumpri esta obra”. O sintagma Nomos Basileus se encontra em Píndaro, que recorda como Hércules se apoderou das vacas de Gerion com a força. Mas a própria violência pode ser justa, se imposta pelo Nomos soberano. Nomos é a vontade de Deus. Mesmo perplexos, devemos nos inclinar diante do Nomos que autoriza a violência (como a de Hércules contra Gerion). Heródoto (III, 38) cita o poeta Píndaro ao narrar que Dario perguntou aos Callati (tribo indiana) e aos gregos sobre os funerais. Os indianos comiam os cadáveres dos genitores, viam como sacrilégio cremá-los. Gregos os cremavam e jamais aceitariam comê-los.
Heródoto: “Tais são, pois, as tradições e me parece que Píndaro tinha bem dito ao afirmar que o Nomos é o senhor do mundo”. O sentido dado por Heródoto é relativista mas, segundo Gigante, “as tradições de um povo têm, para ele, o valor de uma norma que ninguém deve violentar”. Demarato teria previsto que os espartanos não cederiam a Xerxes e o combateriam até a morte “porque acima deles está, soberana, a lei”. Segundo Gigante, no pensamento arcaico não existe conflito entre nomos e physis, “o predomínio da divindade é nomos e physis ao mesmo tempo, é lei santa e violenta, ao mesmo tempo”. (Gigante, p. 12). O Nomos basileus preside deuses e homens.
Quando, mais tarde, se distingue outra lei escrita (humana) e outra não escrita (divina) já se nota que a unidade arcaica do nomos foi violada. o que torna problemático o convívio político e social; a ética também se torna relativística. Este é o momento da sofística, com a “descoberta” do direito do mais forte, do nomos physeos. Antes, o direito do mais forte tinha uma só fonte: o divino, como em Píndaro. Os sofistas concedem ao direito do mais forte o fim terrestre e materialista do sympheron, o útil individual. Em Tucídides, Platão, Eurípedes, há o retorno da antiga raiz universal de lei fundamental. Daí a luta contra os sofistas e a tirania, com a unidade do direito e da ética. É o que se chamou, ao longo da Idade Média e no início da Renascença, “política”.
O imaginário medieval sobre o tempo e o eterno é transposto para os programas políticos. De um lado, os católicos da Europa que enxergam na razão de Estado o “inferno”, unindo semelhante doutrina a Maquiavel, e de outro os protestantes que, também vendo na razão de Estado um elemento pecaminoso, atribuem aos católicos todo maquiavelismo. Enfim, temos os que na França são chamados de “políticos”, dispostos a ultrapassar os vetos religiosos para a imposição do Estado sob comando central, do soberano monarca. Começo nosso exame com um autor protestante e republicano do século 17 revolucionário, John Milton, justamente no monumento poético e político denominado O Paraíso Perdido. Todo o poema pode ser lido como uma alegoria da ordem governamental, na passagem das repúblicas para o poder monárquico. Satã contesta a sucessão ao trono do Eterno pelo Filho, considera injusta e não justificada a escolha arbitrária da segunda pessoa da Trindade, em seu detrimento. A partir daí, comanda uma rebelião que mimetiza (apenas mimetiza) os traços republicanos e igualitários do seu movimento. Na verdade, seu programa é tirânico porque o poder seria exercido por ele, em seu nome. O Estado celeste ainda teria um dono, seria de alguém. Nos entrechos da saga luciferina encontramos elementos das doutrinas reais ou fictícias atribuídas a Maquiavel. ( )
Existe hoje, entre os comentadores, quase consenso sobre os elos entre Milton e Maquiavel, em termos culturais. Milton, ao começar seus trabalhos já encontra vários “Maquiavéis” : o amoral, o político teórico, o diabólico do teatro, o satanás dos teólogos, o campeão das virtudes republicanas. O Paraíso Perdido recolhe fragmentos de tais tradições múltiplas mas o poema, sem dúvida, toca essencialmente no problema da sociedade ideal. Recordemos que um dos veios essenciais do protestantismo encontra-se no pensamento de Santo Agostinho e na sua separação rigorosa entre a civitas celeste e a terrestre. A primeira, eterna, serve como belo modelo, impossível de ser alcançado dentro do tempo e do espaço; a segunda é mostra da nossa degradação após o pecado. Em nosso mundo, podemos ansiar pelo paraíso perdido, mas apenas a passagem ao Eterno, pela graça divina, poderemos encontrar a paz e a felicidade. Este ponto ajudou e muito os protestantes reformadores a desconfiar das instituições eclesiásticas visíveis (logo, ligadas ao espaço e ao tempo) e nas autoridades da Igreja e do Estado. Milton segue a tradição protestante, evocando a passagem do Eterno, após a Queda, como melancólica perda de toda felicidade.
Seria possível conciliar os clássicos do pensamento antigo e o cristianismo? A pergunta que teve resposta negativa em Tertuliano (leia-se novamente o Apologeticum) e positiva em muitos padres da Igreja como São Justino, na corrente neo-platônica, ou nos que seguiram o caminho de utilizar pensamentos estoicos como base de sua compreensão do mundo físico e moral ( ) ainda hoje suscita debates no mundo religioso. A posição católica tradicional pensa responder de modo positivo à pergunta. Os escritos de Santo Tomás de Aquino, com forte presença de elementos aristotélicos mas também neo-platônicos, como no caso de Dionisio Areopagita, mostram este encaminhamento positivo. E surgem resultados estratégicos, como o poema de Dante, a Divina Comédia. Alí ocorre o diálogo tenso que se completa, de lado a lado, na cultura cristã e na antiguidade representada por Virgílio.
Além desse ponto, notemos que Milton também enfrenta, na condição de pensador da Reforma, o problema do elo entre indivíduos e comunidade política. Recordemos, novamente, que a Reforma se dirigiu contra o princípio da autoridade visível eclesiástica, liberando assim o indivíduo dos laços comunitários e o entregando à uma solidão fundamental diante de Deus e da humanidade. O vínculo entre indivíduo e Igreja (que reverbera nos tratos do indivíduo com o Estado) situa-se na mais íntima questão do liberalismo e do republicanismo moderno. Quem desejar maiores detalhes sobre o ponto, consulte o clássico escrito de J. G. Fichte, Considerações sobre a Revolução Francesa ( ) Se não mais existe uma Igreja visível, dado o predomínio da Igreja celeste, e se o Estado por sua vez não recebe mais legitimidade do poder religioso, o único fundamento da obediência e confiança no poder público encontra-se na vontade e na consciência, invisível e autônoma, dos indivíduos. Contra tal doutrina se ergueu Hegel e o pensamento moderno. Mas sempre que se fala em liberalismo, deve-se pensar no marco trazido por Fichte, na trilha de Kant.
Voltemos a Dante, um poeta e pensador que defende a independência do poder terreno diante do religioso. ( ) Dante encontra, diante de si, as mesmas aporias ainda hoje não resolvidas, entre o indivíduo e o comunitário, entre o pensamento cristão e o paganismo. Sua síntese é uma resposta provisória, sempre ameaçada pelos integrismos e pela razão de Estado. Indico, para análise, o texto de Erich Auerbach, “Farinata e Cavalcante” ( ). No poeta, diz Auerbach, “a figura humana se impõe de maneira mais forte, concreta e peculiar do que, por exemplo, na poesia antiga. Pois da autoconsumação que compreende toda a vida passada, tanto objetivamente quanto na memória, faz parte de um desenvolvimento histórico individual, uma história, em cada caso individual, de um devir cujo resultado está diante de nós como coisa pronta, mas cujos estágios são apresentados porém, em muitos casos, pormenorizadamente”. Nos tres reinos, existem indivíduos concretos em situação concreta, para usar a frase de Marx na Ideologia Alemã. O Inferno reflete, anamorfóticamente, o Paraíso. Recordemos a alegoria do Bom Governo.
Milton procurou ver o instante inicial da vida humana em sociedade, a Queda que faz irromper o tempo, a corrupção e a opacidade na mente e no corpo humano. Dante exibe o que pode se tornar o homem por suas virtudes ou vícios, paixões e dignidade. Nos dois casos, os poetas individualizam os méritos e as culpas, mas em sentidos diversos: Dante projeta indivíduos concretos, históricos (até papas simoníacos) para o Além. Milton mostra como caímos do Além para o tempo e o espaço, como perdemos e nos perdemos do Eterno. Em Milton não temos os Farinata nem os Cavalcante, nem toda a multidão de indivíduos com nome de família, de cidade, etc. Mas Adão, Eva, os anjos e, sobretudo Satã, têm traços individualizantes marcados. Eles não se perdem em coletivos abstratos, mas têm vida, idiossincrasias.
Maquiavel trata dos mesmos problemas no Príncipe e na Primeira Década de Tito Lívio. Milton deliberadamente evoca o Príncipe na sua pintura de Satã. Deste modo, ele vai contra Maquiavel e, de certo modo, contra Dante e Tomás de Aquino (não esqueçamos o peso de Lutero e de Calvino no entrecho). Para os Reformadores, que seguem o apóstolo Paulo, a sabedoria pagã é loucura diante de Deus. Para Dante e Aquino impera o enunciado de que “gratia non tollit naturam, sed perficit”. Ou seja, no plano da natureza (o dos pagãos) existem possibilidades de salvação e, mesmo, de inspiração para a vida cristã. Se Milton recusa a tradição católica, na qual não se estabelece uma ruptura absoluta entre natureza e Além, pelo menos não uma ruptura sem remédio, ele, no entanto, move o quadro do inferno do poder.
Já no livro primeiro do PP, Satã exibe os traços do Príncipe: impetuoso, confiante em si mesmo, corajoso e tortuoso. Recordemos que no capítulo 18 do Príncipe o governante deve saber usar a fera dentro de si, sendo ao mesmo tempo leão e raposa, segundo as circunstâncias. No capítulo 25, Maquiavel critica a tendência à rigidez de comportamento, do governante que não sabe se desviar de suas inclinações. Então é elogiado quem sabe mudar sua natureza segundo a contingência, ou seja, a Fortuna. Para ele, a virtù é o talento para agir que se alia à prudência. Assim, Satã é ao mesmo tempo maquiavélico e não maquiavélico. Seu discurso nos dois primeiros livros do PP evoca os princípios da força e da astúcia. Entre muitas passagens, os versos 645 do livro I: “Nossa melhor parte consiste/ em operar com desígnios ocultos por fraude ou astúcia/ o que a força não consegue” ( ). Mas surge um problema: Satã é inflexível e imprudente, o que não corresponde às receita de poder apresentadas no Príncipe. Aqui, Milton força um lado do pensamento maquiavélico, o republicano segundo o qual os principados são, na verdade, fracos pois abolem a força que reside na soberania popular. Satã possui a impetuosidade indicada por Maquiavel para que se vença a Fortuna pois esta, como toda mulher é melhor dominada pela força (Cap. 25 Principe). Mas coragem não é o único requisito, pois é preciso sabedoria. sempre recordando que a politica, como diria Bismarck (repetido por um ex-presidente brasileiro) é a arte do possível. Maquiavel não elogia os que, por princípio, perdem o principado. O elogio de Maquiavel também se amplia para as inovações, mas com prudência, porque ao inovar um governante pode abrir a comporta para um oceano de contingências, fora de seu controle. Donde a lição com um oxímoro : a “inovação estável” que exige clarividência e coragem ao mesmo tempo. No mesmo capítulo 25, a Fortuna é comparada a um rio violento que só pode ser detido por diques, desde que ele seja visto com previsão prudente, que se baseia no domínio do passado e do presente, orientando em parte o futuro.
O oceano de contingências que segue a rebelião de Satã mostra inovação imprudente o que é uma fratura na sua virtù. Ele admite sua imprudência ao confessar para Belzebu que tinha menosprezado o poder divina em armas (I, 93-94). No inferno, ele continua inflexível, ou imprudente. Ora, o ensino de Maquiavel é que importa mudar o pensamento segundo as circunstâncias externas. Satã está tão petrificado em seus pensamentos sobre si mesmo que não percebe a radical mudança em seu estatuto. Ele se endurece na força, um perigo contra o qual adverte Maquiavel. Como, devido ao automatismo, os governantes tendem a repetir tudo o que lhes trouxe sucesso, eles perdem a habilidade de inovar e se tornam vítimas da Fortuna, que sempre cria desafios novos (Principe, 25). Satã não endurece por suas vitórias, mas pelo seu fracasso, à semelhança do Faraó, cujo coração vira pedra mais dura a cada nova praga divina. Maquiavel ensina se dobrar diante do poder de fato e de sua vitória. Satã não se dobra diante da vitória divina, mostrando cegueira política. Satã se ilude no presente e no passado. Ele passa a acreditar, como se fosse verdade, que as forças lideradas por ele “abalaram o trono divino” e que Deus mesmo “duvidou de seu império” (PP, I, 105). Ele acredita ter adquirido clarividência com os fatos que testemunhou e praticou. Mas, na verdade, nada aprendeu, porque insiste em combater um poder invencível. Ele se imagina livre para inovar seu futuro, mas é escravo de sua própria natureza. Aqui temos a recordação da República platônica. Nela, nos livros 8 e 9, Sócrates mostra que a personalidade dos tiranos - indefesa diante dos seus próprios desejos, isolado dos outros, miserável. O erotismo de seu próprio ser, puro desejo, nunca pode ser satisfeito, porque é insaciável. Na mística, sabemos, o elo entre Deus e criatura é de ordem absoluta, insaciável na terra, só completa no Eterno, quando toda a beatitude será, como diz o Apocalipse, grátis : δωρεάν (acusativo, como advérbio : graciosamente, sem uma causa, livremente). “Et spiritus, et sponsa dicunt: Veni. Et qui audit, dicat: Veni. Et qui sitit, veniat: et qui vult, accipiat aquam vitæ, gratis” (Apocalipse, 22, 17)
No Príncipe, um enunciado que escandalizou muitos que o leram, foi a recomendação para que o governante esteja apto a fazer o mal. Satã atende ao requisito : “Fazer o que é da boa vontade nunca será nosso labor, / Mas sempre fazer o mal é a nossa delícia,/ pois é contra à sua Alta vontade/ Contra a qual resistimos”. (PP, I, 159-62). Sua busca é o do interesse pessoal, acima de tudo : “viveremos neste vasto recesso,/ Livres, e não prestando contas a ninguém”(PP, II, 253-56). “Free, and to none accountable”. Tal é a divisa do absolutismo da monarquia moderna, absolutismo que jamais foi aceito pela Igreja católica e que, entre protestantes, significava um excesso das prerrogativas do governo civil.
Segundo leitores protestantes e católicos, Maquiavel incentivaria o mal no mundo, em vez de combatê-lo. Leo Strauss não foi o primeiro, nem será o ultimo a identificar maquiavelismo e política da perversão. ( ) Pouco importa que outros leitores, também agudos, digam que Maquiavel sublinha que o mal deve ser feito, segundo o preceito da salvação do povo, “segundo a necessidade”. Seu uso do mal seria pragmático. Já o de Satã é pouco maquiavélico, porque absoluto, auto-destrutivo para seu reino. Ele é fixo em demasia, quando é preciso, para salvar o povo, que os principes ou o povo sejam abertos a inovações. O povo é mais facilmente adaptado para enfrentar novos desafios, tal é a lição posta nos Discorsi (livro III). Em texto político essencial, Milton afirma que as comunidades são de modo inerente mais estáveis do que as monarquias. (The readie and easie way) ( ) . “A realeza foi considerada mais segura e durável, porque o rei e, na maior parte o seu Conselho, não muda durante a sua vida: mas uma comunidade é imortal; e, portanto, ela é mais firme, segura, e muito acima da Fortuna. Porque a morte de um rei causa com frequência muitas alterações perigosas; mas a morte agora e então de um senador não é sentida; a maior parte do corpo senatorial continua e permanece nas grandes e nobres comunidades, como se eles fossem eternos”.
Maquiavel prefere os governos mistos porque eles reúnem as habilidades do “um”, “dos poucos”, “dos muitos” conforme surgem as dificuldades. Naquele regime, o misto, os cidadãos constroem o Estado e, por sua vez, cada cidadão é nutrido pelo todo. A virtude cívica se fortalece com o uso e desaparece com o desuso. Uma pequena nota: a combinação dos três elementos é um axioma dos pensadores contra revolucionários do século 19, contra as teses republicanas ao modo de Maquiavel e das Luzes. Segundo eles, a Igreja é o modelo de poder, tanto civil quanto religioso, porque nela se encontram o um, os poucos, os muitos. Ela é ao mesmo tempo monárquica, aristocrática, democrática.
Milton, como Maquiavel, via nos seus compatriotas gente corrompida, efeminada, indigna da liberdade republicana. Os ingleses de seu tempo seriam “escravos por natureza, animais vagabundos e sem palavra; inaptos para aquela liberdade pela qual eles clamam com barulho, mas aptos a serem reconduzidos rumo à sua velha servidão, como uma espécie de clamorosas e briguentas brutas ( ...) que não sabem como usar a liberdade pela qual lutam”(Eikonoclates, XXVII).
Uma leitura interessante dos poemas miltonianos encontra-se em Christopher Hill, historiador inglês cujos conhecimentos da História de sua terra é dos mais amplos e profundos. ( ) Particularmente no capítulo intitulado “A queda do homem”, encontramos a exegese política do PP e de outros poemas. Trata-se, segundo Hill, de uma crítica virulenta aos revolucionários que, na busca de mudar o mundo da razão de Estado e da monarquia, tombam nas tentações do poder, ou seja, nas tentações da razão de Estado, pioradas pelo orgulho, ganância material, etc. ( ).
Precisamos voltar ao pensamento medieval, com a noção da hierarquia celeste que serve de modelo para a terrestre e política. Repercutem em Tomás de Aquino os escritos de Dionísio, o pseudo-Areopagita, sempre pelo filtro de Agostinho: “um soldado está sujeito ao seu rei e ao seu chefe de exército; em sua vontade ele pode buscar o bem de seu chefe, e não o de seu rei, ou o contrário. Mas se o chefe recusa a ordem do rei, a vontade do soldado será boa se recusar a vontade do chefe em favor da real; ela será ao contrário má, se obedece a do chefe contra a do rei, pois a ordem de um princípio inferior depende da ordem do princípio superior.” As substâncias separadas, adianta Aquino, “não são apenas ordenadas em relação a Deus, mas umas em relação às outras, da primeiro até a última”. (Summa contra gentiles).
O universo inteiro segue, dos anjos aos governantes, a ordem hierárquica essencial. “A bondade da criação não seria perfeita sem uma hierarquia dos bens segundo a qual alguns seres são melhores que os demais; sem isto todos os graus do bem não seriam realizados e nenhuma criatura seria semelhante a Deus por sua preeminência sobre as outras. Assim a bondade última dos seres desapareceria com a ordem feita de distinção e disparidade; bem mais a supressão da desigualdade dos seres arrastaria a supressão de sua multiplicidade: um é o efeito melhor do que o outro pelas próprias diferenças que distinguem os seres uns dos outros, como o vivente e o inanimado e o racional do não racional”. Esta escala cósmica e ontológica (sobremodo axiológica) continua na soberania política: “a perfeição para todo governo é prover os seus súditos no que diz respeito à sua natureza, tal é a noção mesma de justiça nos governos. Do mesmo modo, pois, que para um chefe da cidade opor-se — se não for apenas de maneira monentânea em função de certa necessidade —a que os súditos cumpram sua tarefa , seria contrário ao sentido de um governo humano, do mesmo modo a sua natureza seria oposta ao sentido do governo divino.”
Aquino, com base na doutrina da hierarquia celeste, escreveu minuciosas observações sobre o livro de Jó. As mais relevadoras, no vínculo entre poder e orgulho, encontram-se em notas sobre os derradeiros versículos do poema. Diz Tomás: “após o Senhor descrever as particularidades do diabo sob a imagem do elefante, o maior dos animais terrestres, ele o descreve na figura do Leviatã, ou da baleia que é o maior animal marinho”. O poder do Leviatã não pode ser evitado ao modo humano, pela lisonja ou ameaças. Assim, “o diabo não teme o homem”. A potência de Satan é imensa. E Aquino enfrenta, ao seu modo, o problema arcaico da teodicéia: Deus não é cruel por ter suscitado o poder demoníaco. “Por tê-lo suscitado não sou cruel”. A onipotência divina não poupará o poderoso Leviatã : “todas as coisas sob o céu são minhas”.
Aquino segue para as linhas finais: “Nenhuma potência sobre a terra é-lhe comparável. Ele foi feito para não temer ninguém. Ele vê grande em tudo; ele mesmo é o rei de todos os filhos do orgulho”. A versão latina, utilizada pelo doutor da Igreja, é a da Vulgata, a mesma que suscitou o imaginário hobbesiano sobre o poder terrestre: non est super terram potestas quae comparetur ei, qui factus est ut nullum timeret. Omne sublime videt : ipse est rex super universos filios superbiae.( )
Ao comentar este passo, o filósofo cristão ressalta a incomparável e indizível força do Altíssimo, infinitamente superior à do Leviatã. Quando o diabo for vencido, “os anjos do Senhor temerão admirando o poder divino; mas nessa admiração muitos efeitos da virtude divina são-nos conhecidos e (o autor do livro de Jó, RR) introduz aqui ”e o terror os purificará “; com efeito, como diz Dionísio no capítulo 6 dos Nomes divinos (na verdade, trata-se do tratado sobre as Hierarquias Celestes, RR), os anjos são ditos purificados não de uma impureza, mas da ignorância; como toda criatura corporal, se comparada aos santos anjos, é pouca coisa, não se indica por aí que os anjos celestes estão muito espantados com o cetáceo corporal, a menos que talvez se enxergue homens nestes santos anjos; os anjos de que tratamos assistem a decadência de Satan, o Leviatã espiritual que foi transido pela justiça divina quando caiu do céu pelo pecado, então os anjos admiraram a majestade divina e se purificaram ao separar-se de sua companhia”.
Finaliza Aquino : “…o intento do demônio é agarrar tudo o que é sublime. E como essas coisas são próprias do orgulho (…) o diabo não só em si mesmo é orgulhoso, mas ultrapassa todo o mundo em sua soberba e mostra-se como fonte de orgulho para os outros, (…) ele mesmo é rei de todos os filhos do orgulho, ou seja, dos escravos do orgulho e que o tomam por guia”. Que lições Job (e cada ser humano após ele) tira da parábola do Leviatã? Responde Aquino: “o que mais deveria ser temido por Jó é que o diabo pedisse para lhe tentar, levando-o ao orgulho e ao seu reino; ser-lhe-ia necessário evitar as disposições e as palavras que respiram orgulho”.
Satan quer agarrar tudo o que é sublime. E como essas coisas são próprias do orgulho (…) o diabo não só em si mesmo é orgulhoso, mas ultrapassa todo o mundo em sua soberba e mostra-se como fonte de orgulho para os outros, (…) ele mesmo é rei de todos os filhos do orgulho, ou seja, dos escravos do orgulho e que o tomam por guia”. Que lições Job (e cada ser humano após ele) tira da parábola do Leviatã? Responde Aquino: “o que mais deveria ser temido por Jó é que o diabo pedisse para lhe tentar, levando-o ao orgulho e ao seu reino; ser-lhe-ia necessário evitar as disposições e as palavras que respiram orgulho”.
Apesar dos muitos choques entre o ensino católico, representado por Tomás de Aquino e as doutrinas protestantes —na interpretação da origem do mal e do poder mundano— existe pouca discrepância nas duas percepções sobre a rebelião de Lúcifer. Tudo o que enunciei sobre o comentário tomista foi assumido nas várias igrejas e seitas reformadas. Mesmo autores que ajudaram poderosamente a separar o Estado de seus fundamentos religiosos, como Francis Bacon, usam o símile angélico para expor os nexos entre conhecimento e poder político. “O desejo de poder em excesso causou a queda dos anjos; o desejo de saber em excesso causou a queda do homem”. Essa fórmula adquire um significado grave se aproximada do aforismo baconiano célebre: knowledge and power meet in one. Sim, desde que limites sejam respeitados.
As achegas anteriores permitem-nos visualizar o maior poema cristão sobre o poder e o conhecimento, após o Inferno dantesco. Refiro-me ao Paraíso Perdido. Milton constrói a sua trama e mantém a espinha dorsal da hierarquia, herança do neo-platonismo, certamente de Proclus, mas com muita segurança também de Dionísio, o pseudo-Areopagita. Sem ela, fica sem nenhum sentido cada passo do imenso drama cósmico desenvolvido de modo épico. Sobre Milton, tudo foi dito e tudo ainda resta a dizer. Saliento apenas o aspecto da soberba que marca, no caminho dos versos, a Queda satânica e o campo da política humana. Como sublime artesão do verso, Milton exercita um imaginário que vai além dos textos e dos motivos encontrados na vasta história do cristianismo ou da cultura judaica e grega que o moldaram. Assim, não se recobrem totalmente os personagens angélicos e suas atribuições, em Dionísio Areopagita e no poeta inglês. Na hierarquia celeste, os anjos ocupam os lugares mais próximos do Altíssimo, idéia ampliada por Milton com todos os recursos culturais a seu dispôr.
A soberba une-se de imediato à política angélica no Paraíso Perdido. Lúcifer, o glorioso, desejou “ombrear com Deus, se Deus se lhe opusesse” e “do Onipotente contra o Império e trono/Fez audaz e ímpia guerra”. Sua marca, desde então, encontra-se na “Soberba,
empedernida, ódio constante”. Na queda, ele traz o sinal do medo, algo próximo em demasia ao exercício político: “De sua coma fúlgido privado; Ou quando posto por detrás da lua, /E envolto no pavor de escuro eclipse,/Desastroso crepúsculo derrama/Pela metade do orbe, e os reis consterna/Em seu poder temendo algum desfalque./Obscurecido, mesmo assim fulgura/Mais que os outros arcanjos, seus consócios;/Mas dos raios profundas cicatrizes/Aram-lhe o rosto macerado, aonde/Mil cuidados contínuos se aposentam/Sob o ouropel de intrépida coragem/De ultriz tenção, de refletido orgulho”. Nas suas falas aos dirigidos, anjos de escalão menor na via ascendente dos seres, o monarca do inferno é soberbo orador, em todos os sentidos. Domina a retórica com maestria e nela exibe sua plena arrogância. Diante do silêncio temeroso do exército maligno, que teme assaltar o trono divino, “Com orgulho monárquico se expressa : ´Dos céus prole sublime, empíreos tronos, /Sois intrépidos, sim! mas não estranho/Que hoje o silêncio e hesitação vos prendam./ É dilatado e aspérrimo o caminho/ Que à luz do Empíreo vai das trevas do Orco”. As indicações do orgulho luciferino são múltiplas, ao longo do poema. Todas conduzem ao mesmo ponto : “Guerrear nos Céus, dos Céus o Rei supremo,/ De lá me arrojam a ambição, o orgulho,/ Mas…ai de mim! por quê ? Justo e benigno, / De tal retribuição credor não era,/Ele que o ser me deu, que nessa altura/Me colocou imerso em brilho, em glória”.
No sistema doutrinário de John Milton, a recta ratio encarna-se na pessoa do Cristo, sinômino de harmonia e de paz, enquanto Satan é a razão que delira e arma laços para os demais seres. Como diz um comentador, “Cristo é o Logos da cristandade neo-platônica e o agente executivo de Deus, ao mesmo tempo abolindo a rebelião e criando o universo e o homem de acordo com a sua ´grande Idéia`” (Bush, D., 1977: 167). Assim, o sistema do mundo e do poder exigem a soberania da razão e da vontade racional sobre as paixões, sobretudo contra a libido dominandi. A grande raiz de todos os males sociais ou éticos encontra-se no orgulho. O mesmo comentador chega a enunciar que “o orgulho e a presunção constituem o tema inteiro de Milton”. Para tudo resumir, “o orgulho que aspira para além dos limites e das necessidades humanas, o desejo de poder pelo conhecimento é o motivo que se encontra em toda a tentação de Eva por Satan”. Deste modo, Milton teria diagnosticado, na pessoa de Lúcifer, os males todos de nossa modernidade, com o naturalismo, o liberalismo sem peias, o orgulho irreligioso. Ele também mostrou “a vontade de potência, pública e privada, a presunção intelectual, o desejo egoista, buscando seus fins pelo uso da força e da fraude e destruindo a ordem divina e natural no mundo e na alma”. (Id. Ibid., 171-174)
Um trecho do poema suscita debates acalorados entre os comentadores. Trata-se dos versos onde Cristo se dirige à primeira pessoa da Trindade dizendo: “Omnipotente Pai, razão te assiste/Para te rires de teus vãos contrários/E seguro tratares com desprezo/Seus tumultos e ardis, inúteis, fátuos.” O riso divino não é novidade alguma na época. Recordemos Pascal: na célebre 11ª Carta a um Provincial encontra-se toda uma teologia do riso contra a presunção tola e orgulhosa dos homens. Segundo Pascal, a própria divindade criou o riso para colocar Adão no seu devido lugar: “nas primeiras palavras ditas por Deus ao homem após a Queda, encontra-se uma caçoada e uma ironia picante (…) pois seguindo-se a desobediência de Adão (…) parece pelas Escrituras que Deus, em castigo, tornou-o sujeito à morte e após tê-lo reduzido à miserável condição devida ao pecado, riu-se dele (…) com palavras de brincadeira, `Eis que o homem tornou-se um de nós`. Ironia cruel e sensível pela qual Deus o espetou vivamente”. Deste modo, o riso foi merecido pelo homem, a quem Pascal nomeia, em italiano, ridicolosissimo eroe !.
O riso divino levanta a questão: todo o Paraíso Perdido armaria uma enorme comédia na qual anjos e homens seriam apenas e tão-somente heróis superlativamente ridículos? Esta possibilidade não é alheia à cultura ocidental anterior a Milton. Nas Leis, Platão pede que imaginemos seres vivos, como nós, espécies de marionetes fabricadas pelos deuses: “fomos produzidos para o seu divertimento, ou para um fim sério? Não o sabemos.”. E. Curtius lembra que Lutero usou, para designar a justificação, o termo Spiel Gottes quando se trata dos homens. Se tragédia ou comédia, não está ao alcance do homem decidir o sentido último da existência. Robert Burton, a grande fonte moderna sobre a melancolia, ao falar dos demônios, lembra o dito platônico: ludus deorum sumus. (Burton, R., 2001: 326)
É possível enxergar no Paraíso Perdido as duas faces, a cômica e a trágica. O melhor seria percebê-lo como terrível tragicomédia35 na qual o sentido existencial se perde ou se ganha, conforme a situação do sujeito. C.S. Lewis, em ensaio clássico sobre o Satan de Milton afirma o primeiro traço —o ridículo— como chave hermenêutica. Razão em demasia conduz à loucura. É assim que Lúcifer —o ente em cuja consciência mais se depositou a luz da razão— ensandeceu por completo. Sua razão é louca. Este é o significado da epígrafe de seu texto, posta por Lewis: …le genti dolorosi/ C´hanno perduto il ben de l ´intelleto. (Dante).
Essa lembrança do verso dantesco, devida a C.S. Lewis, tem enormes razões históricas atrás de si, sobretudo no campo da medicina imediatamente anterior ao poema de Milton. Ao estudar a prática terapêutica do século 16, Jean Ceard discute os nexos entre melancolia e influência diabólica. O melancólico é triste como Lúcifer, mas “se o diabo pode teoricamente nos aplicar mil doenças, ele no entanto tem predileção pelas que ofendem o cérebro e os nervos”. Se perseguirmos esta via, o demônio de Milton experimenta o seu próprio mal, pois é melancólico e perdeu o siso. Ceard lista os acometidos pela enfermidade na Bíblia, sobretudo nos escritos cristãos. Ali encontramos um lunático epiléptico (Mateus, 17, 14 ss), um maníaco licântropo (Lucas, 8, 27 ss), um outro doente de “convulsão da espinha” (Lucas, 13, ss). O diabo prefere “as doenças de nervos e do cérebro, o que deve nos alertar para certo número de representações pouco conscientes e incompletamente formuladas”.
Desde remotas épocas a forma literária em O Paraíso Perdido confunde os analistas. Juizos categóricos conduzem a recusas e a teses problemáticas, como a de Hegel: “Milton parece, tendo-se em conta a sua época, um modelo digno de admiração, seja pela cultura reunida por meio do estudo da antiguidade, seja pela correta elegância da expressão. Ele, no entanto, é absolutamente inferior a Dante na profundidade de conteúdo, na energia, na originalidade da invenção e fatura e particularmente pela objetividade épica. De fato, de um lado o conflito e a catástrofe do Paraíso Perdido pende para um caráter dramático, de outro (…) a tendência lírica e didascalico-moral constitui um traço peculiar de se afastar muito do assunto, no que diz respeito à forma original”. Cf. GWF Hegel, Estetica, Trad. N. Merker e n. Vaccaro, (Milano, Eunaudi, 1976, T. 2), p. 1241. Os “defeitos” encontrados por Hegel são pequenos, se o diagnóstico do filósofo é comparado a outras exegeses.
Fernel, para quem a loucura, fruto do jogo dos humores, consiste na “depravação do funcionamento da faculdade principal da alma que reside na substância cerebral como em seu domicílio” e cujo nome latino é desipientia e os gregos são paraphrosyne e paranóia, ou seja, mentis alienatio. A melancolia ao mesmo tempo provoca e destrói o intelecto, “ela é o seu aliado mais eficaz e seu inimigo mais terrível” (Ceard). Segundo Jean Taxil, outro médico da época, “os corpos que o diabo possui interiormente são melancólicos, pois é o humor a verdadeira sede, no qual o diabo se apraz, e do qual ele produz tão estranhos efeitos”. O próprio diabo é melancólico e o poder diabólico é coberto pelo manto da melancolia...
1 La monarchie, entre Renaissance et Révolution, 1515-1792, Histoire de la France Politique-2, (Paris, Seuil, 2000), página 518.
2 Cornette, op. cit. página 519.
3 Petitfils, Jean/Christian : Louis XIV (Paris, Perrin, 2002), página 49.
4 Petitfils, op. cit. página 50. Daqui para a frente, será feita uma paráfrase deste livro, salvo quando indicado explícitamente, as idéias e análises são dele.
5 Usarei o rigoroso livro de Hellegouarc’h , J.: Le vocabulaire latin des relations et des partis sous la République (Paris, Les Belles Lettres, 1963).
6 Hellegouarc’h, op. cit. página 13.
7 Cf. Coulanges, Fustel : Histoire des institutions politiques de l ‘ancienne France, vol. V, Les origines du système féodal (Paris, Hachette, 1907), página 193. Hellegouarc ’h, página 17.
8 Existem tres formas legais de libertação dos escravos: a per vindictam, que imita as legis actiones, e as formalidades da reivindicação entram nas mesmas formulas requeridas para os bens móveis ou imóveis. Escravo e dono comparecem diante do praetor. O dono, livre, pede a liberdade do escravo. O dono toca o escravo com uma vara (vindicta ou fistuca) dizendo: “Quero que este homem fique livre segundo o jure Quiritium (acessível apenas aos cidadãos de Roma, oposto ao direito acessível a todos, o dominium ex jure gentium)”. O magistrado pode exercer tal ato, em maior ou menor grau de sua jurisdição. Depois o escravo pode ser livre pelo censo: no censo, o dono diz que ele é livre. E finalmente, por testamento. (Cf. Manumissio, no Dicionário de Saglio e Daremberg.
9 Toda a passagem acima é extraída de Hellegouarc ‘h. op. cot. cf. páginas 178-179.
10 Hellegouarc’h, op. cit. páginas 48- 56. O autor desenvolve um estudo longo e minucioso de todas as palavras ligadas à amiticia, desde o termo comites (os acompanhantes e auxiliares de um político), de onde vem comitê em nossa lingua, até necessitudo, que permeia relações prática e de favor, unida à familiaritas.
11 Contrat social, Livro IV, capítulo IV. In Oeuvres complètes, Paris, L´Intégrale, 1971, T. 2, p.570.
12 Cf. Du Contrat Social ou Principes du Droit Politique (Paris, Bureaux de la Publication, 1865), página 163.
13 Petitfils, op. cit. página 50.
14 idem, ibid. página 51.
15 (Paris, Harmattan).
16 Berkeley, 1977. Poderiam ser acrescentados pelo autor outros títulos como Clapham, Christopher : Private Patronage and Public Power: political clientelism in the modern State (London, France Pinter, 1982) e também Einsentadt, S.N. e L. Roniger: Patrons, Clients, and Friends: interpersonal relations and the structure of trust in society (Cambridge, University Press, 1984). E também Boissevain, Jeremy: Friends of friends: networks, manipulators and coalitions (Oxford, Basil Blackwell, 1974).
17 Homens Livres ... (São Paulo, IEB, 1969), página 80.
18 Antonio Cândido de Mello e Souza: “The brazilian family” in A. Marchand e I. Lynn Smith, Brazil portrait of half a continent (New York, Dryden Press, 1951), página 289.
19 Coldman, John: Them months in Brazil (Edinburgh, R. Grant & Son, MDCCCLXX), página 52.
20 Carvalho Franco, op. cit. página 81.
21 13/04/2011 13:40 : “Não concursados dominam 30% dos cargos de confiança no governo” O retrato da máquina pública no início do governo Dilma Rousseff revela a existência de 6.689 funcionários não concursados nos cargos de confiança da Presidência e dos ministérios - o equivalente a quase um terço do total de postos preenchidos por nomeações. Destes, quase 500 estão nas duas faixas salariais mais altas do funcionalismo. Dilma herdou da gestão Luiz Inácio Lula da Silva uma estrutura burocrática que permite a nomeação de cerca de 21,7 mil pessoas para cargos de confiança - os chamados DAS, exercidos por quem tem função de chefia ou direção e pela elite dos assessores da presidente, de ministros e de secretários. Em fevereiro deste ano, 31% desses cargos eram ocupados por não concursados, e 64% por servidores de carreira, segundo dados do Portal da Transparência do governo federal. Há ainda uma pequena parcela de servidores cedidos por órgãos de outras esferas - do Legislativo, de governos estaduais e de prefeituras municipais, por exemplo.” Cada Minuto, Alagoas. 15/02/2009 - 09h01 E na Folha On Line : “Cargos de confiança crescem 32% no país em cinco anos”. “Os cargos de confiança em Estados, municípios e no governo federal aumentaram 32% em cinco anos, saltando de 470 mil no início de 2004, para 621 mil pessoas agora (...) Os dados oficiais sobre as administrações diretas foram compilados pela Folha. Os cargos de confiança são os chamados comissionados, que podem ser ocupados por servidores de carreira ou por pessoas de fora do serviço público. A fatia ocupada pelos comissionados no total de servidores na ativa também aumentou nos últimos cinco anos. Nos Estados, a fatia aumentou de 5% para 6% -- eram 115 mil em 2004 contra 158,8 mil agora (alta de 37,4%). No caso dos municípios, os comissionados passaram de 7,9% do total de servidores em 2004 para 8,8% em 2008. No governo federal, os cargos de confiança passaram de 17.609, no começo de 2004, para 20.656 (subida de 17,3%). O crescimento do total de civis ativos foi de 7,67%, chegando 537,4 mil, segundo o Planejamento. A fatia ocupada pelos comissionados oscilou de 3,5% para 3,8%.”
22 (Paris, Poulet/ Malassis Ed., 1862), página IV.
23 Para análises do personagem encarnado no “pobre diabo”, nas quais inclusive são feitas críticas ao radicalismo de Diderot na caracterização de seus inimigos jornalistas naquela categoria, cf. Duranton, Henri (org) : Le pauvre Diable. Destins de l ‘homme de lettres au XVIIIe siècle, Colloque international Saint-Étienne/2005 (Publications de l ’Université de Saint- Étienne, 2006). Jean Sgard nota, naquele volume, na pagina 62, que os “grandes senhores ou financistas asseguram para si uma clientela de artistas e de escritores que contribuem para seu estatuto e sua glória”. Não é este o caso de Jean François.
24 Cf. Jean-Pierre Chrétien-Goni: “Institutio Arcanae”, in Lazzeri, Christian e Reynié, Dominique: Le pouvoir de la raison d´état. Paris, PUF, 1992, p. 137.
25 Cf. Versini, L. : Introduction à la Lettre de M. Denis Diderot sur l ‘Examen de l ’Essai sur les préjugés in Oeuvres,T. III (Paris, Robert Laffont, 1995), página 163.
26 Cf. Hegel, G.W. F. : Principes de la philosophie du droit (Paris, Vrin, 1975), § 317, página 319 (Trad. Robert Derathé).
27 Cf. Le Neveu de Rameau, Jean Fabre (Genève, Droz, 1977), nota 33, páginas 128-129,
28 Diderot, Lettre...página 167.
29 Rêve de D’ Alembert, in Oeuvres, T. I, (Paris, Robert Laffont, 1994), página 665.
30 Fabre, páginas 145-149.
31 Viroli, Maurizio: From Politics to reason of State (Cambridge, Univ. Press, 1992). Grande parte das próximas análises são definidas a partir do livro indicado.
32 Para a noção de “município” cf. Le Dictionnaire des Antiquités Grecques et Romaines de Daremberg et Saglio in http://dagr.univ-tlse2.fr/sdx/dagr/index.xsp o verbete “Municipium”, com todas as suas dificuldades.
33 Cf. Harry Thurston Peck, Harpers Dictionary of Classical Antiquities, 1898, in Perseus Project : http://www.perseus.tufts.edu/ “(δοκιμασία). The name used at Athens to denote the process of ascertaining the capacity of the citizens for the exercise of public rights and duties. If, for instance, a young citizen was to be admitted among the Ephebi (q.v.), he was examined in an assembly of his district to find out whether he was descended on both sides from Athenian citizens, and whether he possessed the physical capacity for military service. All officials, too—even the members of the Senate—had to submit to an examination before entering upon their office. The purpose of this was to ascertain, not their actual capacity for the post, which was presupposed in all candidates, but their descent from Athenian citizens, their life and character, and (in the case of some offices which involved the administration of large sums) even the amount of their property. The examination was carried on in public by the archons in the presence of the Senate, and any one present had the right to raise objections. If such objections were held to be valid the candidate was rejected; but he had the right to appeal to the decision of a court, which would take cognizance of the matter in judicial form. On the other hand, if he were accepted, any one who thought his claims insufficient had the right of instituting judicial proceedings against him. If the decision was adverse he would lose his office, and was further liable to punishment varying according to the offence charged against him—which might be, for instance, that of unlawfully assuming the rights of a citizen. A speaker in a public assembly might thus be brought before a court by any citizen, for no one not possessed of the full right of citizenship could legally address the people. The question might thus be raised whether the orator were not actually atimos, or guilty of an offence which involved atimia (q. v.)". Para uma análise da atimia, cf Roberto Romano : "Homossexualidade, Metafísica e Morte. A honra masculina e o Direito de Matar.” in rOBERTO rOMANOSILVA'S bLOG.
34 Cf. Alain Badiou, “Qu´est-ce qu ´un thermidorien?” in Kintzler, Catherine et Rizk, Hadi: La république et la terreur. Paris, Kimé, 1995, pp. 56-57.
35 Cf. Maria Sylvia Carvalho Franco, “All the world was America”, Revista USP, dossier liberalismo.
36 I Colóquio Rousseau “Rousseau, verdades e mentiras” Faculdade de Ciências e Letras - UNESP – Araraquara . Conferência de Abertura Prof. Dr. Roberto Romano UNICAMP, publicado no volume Rousseau, verdades e mentiras.
37 Texto que pode ser lido em COMMENTAIRE DU SONGE DE SCIPION , LIVRE PREMIER Oeuvre numérisée par Marc Szwajcer in http://remacle.org/bloodwolf/erudits/macrobe/scipion1.htm
38 Dolf Sternberger, Machiavellis ‘Prince’ und der Begriff des Politischen (Wiesbaden, Steiner Ed., 1974) 35.
39 The Place of the Tyrant in Machiavelli’s Political Thought and the Literary Genre of the Prince, The Italian Academy for Advanced Studies at Columbia University Lunch Seminar, 18 February 2004 (PDF) in academiccommons.columbia.edu/download/.../paper_sp04_Giorgini.pdf
40 Ela pode ser lida em português, em site protestante é verdade, no seguinte endereço : http://solascriptura-tt.org/Seitas/Romanismo/DialogoPapaJuliusExclususESaoPedro-Erasmo.htm
Alí também pode ser notada a razão de Estado, mas vivida e aplicada no campo da razão da Igreja. Erasmo avança crítica que antecedem de maneira clara o conteúdo da Lenda do Grande Inquisidor.
41 Napoli, Glaux Ed., 1956)
42 Um texto interessante, e que será acompanhado por mim, é o de Riebling, Barbara: “Milton on Machiavelli: Representations of the State in 'Paradise Lost.'” in Renaissance Quarterly. Volume: 49, 3, 1996, páginas 573ss.
43 Um livro a ser lido com interesse é o de Spanneut, M. : L ‘ stoicisme des pères de l ’Église, de Clement de Rome à Clement d’Alexandrie (Paris, Seuil, 1957),
44 Existe tradução francêsa : Considérations sur la Révolution Française (Paris, Payot, 1974). Ver sobretudo o capítulo sobre a Igreja e a Revolução.
45 cf. Kantorowicks, Ernst: The King’ s two bodies, Princeton, New Jersey, 1970). Sobretudo o capítulo sobre Dante e o homem como centro político.
46 Mimesis, Ed. Perspectiva, 1973.
47 Paradise Lost, Edited by Scott Elledge (NY, W.W. Norton & Company, 1975), página 24.
48 Cf. Strauss, Leo: Thoughts on Machiavelli (Univ. Chicago Press, 1978).
49 The readie and easie way to establish a free Commonwealth, 1660 in John Milton Select Prose (Penguin, 1974), página 327 e seguintes.
50 Cf. Milton and the English Revolution (Middlesex, Penguin, 1979).
51 Analiso o problema do poder e do orgulho em artigo intitulado “Os laços do orgulho, reflexões sobre a política e o mal” editado pela Revista Unimontes Científica (http://www.ruc.unimontes.br/index.php/unicientifica/article/view/101).
52 Tomás de Aquino : Job, un homme pour notre temps. (Paris, Tequi Ed. , 1982).
53 A Septuaginta usa o termo Basileus para indicar o Leviatã, o rei dos orgulhosos. Cf. Septuaginta, Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 1979, p. 842. A tradução de Lutero une o fato régio e a animalidade do poder: “…er ist König über alle stolzen Tiere”. (…ele é o rei de todas as feras arrogantes”) Cf. Lutherbibel erklärt, Stuttgart, Deutsche Bibelgellschaft, 1987, p. 816. Na Bíblia do Rei Tiago 1 da Inglaterra, o enunciado diz “He beholdeth all high things; he is a king over all the children of pride”. Cf. The New Scofield Reference Bible, Authorized King James Version, NY, Oxford University Press, 1967, p. 599.
54 Cf. Francis Bacon: “Of Goodness & Goodness of Nature” : “The desire of power in excess, caused the angels to fall; the desire of knowledge in excess, caused man to fall: but in charity there is no excess; neither can angel, nor man, come in dan ger by it. The inclination to goodness, is imprinted deeply in the nature of man; insomuch, that if it issue not towards men, it will take unto other living creatures”. Cf. Francis Bacon, The Moral and Historical Works, London, George Bell & sons, 1874, p. 33. Uso como texto base a edição de Scott Elledge: John Milton, Paradise Lost (NY/London, W.W. Norton & Company, 1975). Será também utilizada por mim a tradução de A.J. Lima Leitão, O Paraíso Perdido (BH/RJ, Villa Rica Ed., 1994). Para uma exposição autorizada sobre o tema, cf. West, Robert West: Milton and the Angels. Athens: University of Georgia Press, 1955.
Diderot
Roberto Romano.
Ao analisar a Divina Comédia, especialmente as passagens sobre o Purgatório, Erich Auerbach (1) afirma que aos habitantes daquele lugar, como têm a alma separada dos corpos, Dante concede um corpo espectral tornando-os reconhecíveis para que posssam se exprimir e sofrer (2) A relação dos referidos entes com a vida terrena limita-se à memória. O poeta acrescenta que eles possuem conhecimentos do passado e do futuro, os quais ultrapassam as medidas terrenas. Todos enxergam com nitidez como se fossem hipermétropes. Acontecimentos ocorridos na terra num passado longinquo estão ao seu alcance. Eles podem predizer o futuro mas permanecem cegos para o presente terreno, pois vivem uma experiência parada no tempo. Os mortos estão privados do presente terreno e das suas mudanças, mas a memória e a participação no mesmo mundo é imaginada por Dante de tal modo, que a paisagem do além está cheia dele. Existem filósofos que vivem como se estivessem no purgatório dantesco, porque exibem visão aguda, conhecimento do passado e do porvir, mas seu juízo sobre o presente em que vivem é quase nulo.
Diderot parece integrar o número daqueles autores. Ele abriu caminhos para o pensamento filosófico, político, científico e artístico no século 18. Seu diagnóstico do mesmo século, no entanto, deixa muitas sombras para a crítica. Quase todos os testemunhos severos do pensador sobre seus dias vieram a lume post mortem. É o caso, em especial, do Sobrinho de Rameau. Os manuscritos sobre o Projeto de uma Constituição, acerba crítica do pretenso “despotismo esclarecido” de Catarina 2 mostram o quanto era violenta a inconformidade que residia na mente diderotiana em relação aos usos e costumes políticos contemporâneos. Mas é sobretudo no relacionamento entre ética e estética que os textos diderotianos mostram sombras espessas. Defensor da liberdade e das procedimentos técnicos em todas as áreas do espírito, ele ajudou muito na tarefa emancipatória da modernidade. Mas a sua apologia das artes foi definida por valores transcendentes ao campo artístico, a ele impondo amarras que não lhe cabem. “O sestro de Horácio era versejar, o meu, moralizar”. A frase diz bem o problema herdado pelos comentadores de Diderot: sua idéia da arte, liberadora tendo-se em conta os costumes do século 18, é marcada por preocupações de ordem ética. Não estaria aí uma pista para se entender os ideários do século 19 e 20 que pretenderam domesticar a estética em prol das “sãs doutrinas” ? Para efetivar um juízo seguro sobre tal ponto é preciso um trabalho amplo e objetivo de cotejo dos textos e da vida cultural moderna. Existem tentativas ligadas a fases posteriores da história europeia, nas quais elos são estabelecidos, por exemplo, entre doutrinas políticas e visões estéticas. Os escritos de Paul Benichou, como o fundamental Le temps des prophètes, doctrines de l ´âge romantique, entram nesta linha de pesquisa. No caso do século 18 e principalmente de Denis Diderot, existem os materiais no canteiro de obras, mas poucos trabalhos analisaram sistemáticamente a importância da hegemonia ética sobre as reflexões estéticas do enciclopedista.
Um traço do pensamento diderotiano encontra-se na tentativa, só prosseguida com intensidade igual ou superior no romantismo do século 19, de encontrar conexões entre os sentidos humanos, o que Diderot chama de “tradução” na tarefa de buscar atalhos entre as artes, as ciências, as técnicas. A Encyclopédie traz os materiais para semelhante tarefa. Em textos de crítica literária ou sobre a pintura, a música, a poesia, Diderot apresenta muitas pistas, mas é necessário, evidentemente, indicar as fontes inglêsas e francêsas —além das gregas antigas e romanas— da tarefa empreendida pelo filósofo. Não é possível esquecer John Locke e Berkeley, que deram tanto a base epistemológica quanto o aguilhão a ser vencido para que o pensamento diderotiano se explicitasse. Também não é possível olvidar Condillac, sobretudo o do Ensaio sobre os conhecimentos humanos. Importa, no entanto, sublinhar a exploração da sinestesia, algo que se encontra entre o sonho e o delírio —e por tal motivo, apreciado pelos românticos— para se compreender o quanto importa, na ética e na estética formuladas por Diderot, a tentativa de abrir passagens entre os sentidos e as artes, como pressuposto da reforma da sociedade e do Estado.
Herder fez notar que os sentidos, cada um deles, “tem a sua linguagem específica, os seus sinais, os seus tipos e esquemas. E com eles, também um diferente potencial de conhecimentos e mobilização afetiva. Cada sentido tem a sua ontologia específica. Sendo o mais universal e o mais amplo, a vista tem limites, pois depende das condições da luz e da visibilidade. Mas onde falha a luz e a visão, ainda resta lugar para outras modalidades da percepção humana”. (3) Tal doutrina deve-se a Diderot. O pressuposto da pesquisa com base visual era a permanência do objeto verdadeiro. Diderot recusa ao mesmo tempo o símile optico para o conhecimento e a idéia de ordem para o mundo físico e humano. O caos é anterior e sucede a todo conhecimento. (4) “O universo” diz R. Nicklaus ao comentar a atitude filosófica diderotiana, “desde toda a eternidade toma formas diferentes num devir incessante sem começo nem fim, enquanto nosso mundo finito segue lenta mas inelutavelmente rumo ao seu próprio fim numa ‘depuração geral’”. (5) A partir da Carta sobre os cegos e da Carta sobre os surdos e mudos não existe supremacia dos olhos, os demais sentidos não imitam a vista. É preciso a tradução de um sentido para outro.
Seguidor de Francis Bacon, Diderot assume a idéia do pensador inglês segundo a qual a visão sinótica em ciência é modificável pelo trabalho do pesquisador. A comunicação entre os sentidos corresponde a uma arte. A sua junção permite dizer que não há mais a idéia de espaço único, mas pelo menos de cinco espaços: o optico, o tátil, o sonoro, o cinésico, o olfativo. Cada um deles possui estrutura própria e descontínua em relação a todos os demais. Só a tradução de uns aos outros permitiria captar a simultâneidade entre nós e nós mesmos, entre nós e os demais seres humanos. “Nossa alma é um quadro que se move, segundo o qual nós pintamos sem cessar…o pincel executa em longo prazo o que o olho do pintor abarca num só golpe”. Torna-se preciso “tatear” a alteridade a ser conhecida sob pena de reduzí-la ao idiotismo do sujeito ou de uma função subjetiva posta arbitráriamente como superior (é o caso do imperialismo do olhar, na tradição metafísica) às demais. O próprio sujeito é uma reunião instável de sentidos : “todos os nossos órgãos são apenas animais distintos que a lei da continuidade mantém numa simpatia, numa unidade, numa identidade geral”. O eu, segundo Diderot, “resulta da memória, a qual liga um indivíduo à sequência de suas sensações”. A ciência e a cultura, assim, tornam-se mais árduas, mais exigentes, mais incertas. Não é mais possível aceitar a suposta harmonia, ou o cosmos. O conhecimento pode ser atingido, mas o dogmatismo é refutado na sua raíz. (6)
Cito Laurent Versini, o editor abalizado das obras diderotianas, que analisa o tema indicado acima. Como são constituidos o nosso conhecimento dos objetos e a linguagem? “A partir das percepções simultâneas ou sinestesias. Como o artista poderia expôr essas percepções simultâneas? Ele deve ser ao mesmo tempo pintor, músico e poeta, e jogar com as correspondências e sinestesias como um simbolista. O pintor, condenado ao instantâneo, é o primeiro distanciado, mesmo se escolhe bem o seu ‘momento’. O poeta, que pode desenrolar todo um fresco no tempo, sai vencedor do confronto, idéia que sempre atormentou Diderot, quando ele quis muito honestamente homenagear os pintores nos Salões”. Mas o enciclopedista não desistiu também, nunca, de encontrar analogias que permitissem “reunir as belezas comuns da poesia, da pintura e da música”.
Tal procura o levou a examinar projetos como o do Padre Castel, com o invento do cravo ocular em cujas teclas seriam executadas sinfonias coloridas. Além de mergulhar nos mais obscuros campos da raison d´État e da ética, Diderot dedicou seu tempo à busca da beleza na literatura e nas artes. O pensador desempenhou um papel essencial na história crítica da arte. (7) É claro que ele teve antecessores imediatos como Roger de Piles, do qual conheceu o Abrégé de la vie des peintres (1699) e o Cours de peinture par principes (1708). Nos escritos sobre os Salões, Diderot apoiou-se em Charles Lebrun (8). Consultando-se o livro fundamental de Lebrun, Expressions des passions de l ´âme (1727) (9) é possível notar a relevância dada ao rosto humano, seguindo Lebrun explicitamente André Alciati (10) e Giambattista Della Porta (11). Pela escolha dos autores, pode-se aventar a hipótese de que Diderot busca na pintura a passagem do mundo interior das paixões para a visibilidade representada artísticamente. Como indica Laurent Versini, Diderot conhece, além de livros sobre a referida arte, obras importantes sobre as técnicas antigas e modernas como as seguintes: Laocoonte, o Gladiador que morre, o Hércules de Farnesio, a Venus de Médicis, etc. Tais modelos, copiados milhares de vezes com menor ou maior perícia no mundo artístico e comercial que reproduzia originais, encontram- se na memória de Diderot. Além disso, ele viu quadros da Renascença e do século XVII nas coleções do Duque de Orleans (Palais-Royal) e de outros colecionadores, entre os quais o barão d´Holbach. Como grande parte dos pensadores europeus, ele sempre desejou viajar pela Itália, mas não conseguiu. À semelhança de Imanuel Kant, compensou a falha com livros que descrevem aquele país, por exemplo a Description de l ´Italie do padre Richard (1760). (12) Quando esteve na Russia, Diderot passou por Leyde onde viu, maravilhado, os quadros de Rembrandt. E também esteve no Hermitage. Assim, sua pena fez um apanhado considerável de informações técnicas que lhe serviram bastante quando descreveu quadros de excelente, média ou medíocre qualidade. Com isso, ele penetrou a cultura mais ampla e o campo pictórico que determinaram a Europa do século dezoito, tempo em que Rafael torna-se um paradigma, seguido de Rubens, de La Sueur (assuntos religiosos), Tenier para a pintura de gênero e de Lorrain, Vernet, Robert. Aqueles modelos alarmam, como diz Versini, “os pigmeus” da época diderotiana. Como todo serviço em estado inicial, Diderot começou sua empreitada no mundo da pintura de maneira frouxa. Em 1767, no entanto, apresentou um balanço profundo e extenso daquele ofício na França. O método diderotiano de trabalho reúne técnica e estética e com ele se inicia a união, na crítica, de arte e literatura tal como exercida por escritores como Baudelaire (13) e os irmãos Goncourt. (14) A exemplo de seus adversários, Fréron em especial, (15) Diderot trabalhou como jornalista que remete textos (16 ) para um periódico, com o alvo de informar o leitor. Desse modo, ele forneceu elevação ao jornalismo, afastou-o das práticas cotidianas (libelos, crônicas da corte, sensacionalismos, notícias das bolsas, etc.).
Diderot, bem antes dos Salões, se interessa pelas artes plásticas. Como lembra Pierre Lepape, desde 1758 ele compreendeu as dificuldades da tarefa que reside em entender a pintura. Contra os dilentantes literários que julgavam os quadros com soberana ignorância, ele diz que tais críticos nada sabem “do desenho, das luzes, das cores, nem da harmonia total, nem das pinceladas…”. Como é o seu procedimento habitual, o teórico vai “ao encontro dos pintores, com eles discute os problemas de estética e de técnica”. (16) Os seus comentários mais célebres, os Salões, foram escritos a pedido de Grimm, que mantinha a Correspondência Literária, jornal cujos leitores eram os poderosos europeus (reis, nobres, ricos). Diderot precisava descrever fielmente o que via nos quadros para atrair a atenção dos distantes “observadores” para os procedimentos, os assuntos, a maestria ou ineficácia dos artistas, etc. Já ao dirigir a Encyclopédie ele mergulhara no aprendizado trazido pelos métodos de pintura ao frequentar os próprios artesãos (o que ele fez com quase todos os verbetes que editou ou redigiu). No artigo de sua lavra sobre a composição, pode-se encontrar algumas das bases programáticas dos Salões.
Vejamos o que ele entende por composição na Enciclopédia. (17) Em primeiro lugar, trata-se de uma parcela da arte que representa na tela um assunto qualquer, da maneira mais vantajosa. “Vantagem” aqui significa “emprego eficaz segundo os fins da pintura” e não o jeito de agradar os olhos do observador ou requerer dispêndio monetário do seu bolso. A composição exige que se conheça bem, seja na história ou no interior da natureza, ou ainda na imaginação, tudo o que supõe o assunto. Não basta conhecer, é preciso possuir o gênio (génie) que usa tais dados com o gosto conveniente. Conhecimento e gênio não dispensam a disciplina e o hábito do trabalho duro. Tais são as condições subjetivas para o trabalho artístico. Um quadro bem composto é “um todo fechado num só ponto de vista, no qual as partes concorrem para o mesmo fim e formam por sua correspondência mútua um conjunto tão real, quanto os dos membros num corpo animal, de modo que um pedaço de pintura feito por um grande número de pinceladas ao acaso, sem proporção, sem inteligência ou unidade, não merece o nome de verdadeira composição, tanto quanto estudos esparsos de pernas, nariz, olhos, na mesma cartolina, não merecem o nome de retrato ou mesmo de figura humana”. Os termos desse trecho denunciam, em alguém cujo apelido é Tonpla, Platão invertido, a leitura direta do filósofo grego.
Mas se Diderot conhece os Diálogos na ponta da lingua, ele inverte em sentido materialista as teses platônicas. A figura do corpo indicada acima é extraída do Fedro (238a) e nela faz-se referência ao discurso “que deve ser constituido como um ser vivo, com um corpo próprio, de tal modo que não lhe falte cabeça ou pés, mas possua um meio e extremidades em relação umas com as outras partes, redigidas para um todo”.(18) Não apenas no caso da pintura ou da escrita o preceito platônico é seguido por Diderot. Ele o assume, como sagaz leitor da República, no ordenamento político: o Estado deve ser um todo cujos membros devem ser harmonizados de modo vital : “se o corpo é bem composto, se os seus membros são bons, honestos e bravos cidadãos, patriotas zelosos, homens justos e esclarecidos, que bela coisa é aquele corpo!”. (19) O bom, próprio da ética, encontra-se com o belo, mais apropriado à estética. Ambos são requisitos do convívio entre os seres humanos. Como enuncia Jacques Chouillet: “por mecânico que seja o ´corpo social´, por corpórea que seja a sociedade humana, ela sempre será resolvida numa soma de vontades livres, que o filósofo materialista e determinista que se chama Diderot considera como o último resíduo definível do fenômeno humano”. (20 ) Platão indica o discurso e a grafia, Diderot aponta para a pintura, numa sequência que une, ainda no espírito platônico, a grafia enquanto escrita e arte pictórica. (21) Mas também é clara a presença da Epistola aos Pisões.(22) Diderot a adapta mas não esquece o símile entre pintura e poesia, essencial no texto horaciano. (23 ) É o que afirma o mesmo Diderot logo a seguir: “o pintor é sujeito em sua composição às mesmas leis que o poeta na sua”. A observação das três unidades (ação, lugar, tempo) não é menos essencial na pintura histórica do que na poesia dramática.
A lei da composição é mais vaga em gêneros de pintura diferentes da histórica, a esta última deve-se ater o crítico. E Diderot indica que a unidade do tempo representa uma exigência mais severa para o pintor do que para o poeta. “Concede-se vinte e quatro horas ao último. Ele pode, sem pecar contra a verossimilhança, reunir num intervalo de três horas que dura uma representação, todos os acontecimentos que puderem se suceder naturalmente no espaço de um dia. Mas o pintor possui apenas um instante quase indivisível. É a este instante que todos os movimentos da composição devem se relacionar: entre os movimentos, se noto alguns do instante que precede e do instante que segue, a lei da unidade de tempo é transgredida. No momento em que Calcas levanta o cutelo sobre o peito de Ifigênia, o horror, a compaixão, a dor, devem mostrar-se no mais alto grau nos rostos dos assistentes; Clitemnestra furiosa jogar-se-á sobre o altar, e se esforçará, apesar dos braços dos soldados que a reterão, por puxar a mão de Calcas e se colocar entre sua filha e ele; Agamenon terá a cabeça coberta pelo seu manto.”
É possível distinguir em cada ato uma pletora de instantes diferentes, entre os quais haveria pouca habilidade em não escolher o mais atraente. Trata-se, segundo a natureza do assunto, do instante mais patético, alegre ou cômico. “A menos que leis particulares não ordenem de outro modo e que não se reaveja do lado do efeito das côres, das sombras e das luzes, da disposição geral das figuras, o que se perde do lado da escolha do instante e das circunstâncias próprias à ação.” Ou então, diz ainda Diderot, que não se acredite em submeter o próprio gosto e gênio a certa puerilidade nacional, que não se honre muito frequentemente com o nome de delicadeza de gosto. “Quantas vezes a delicadeza, que não permite ao infeliz Filotecto berrar na entrada da sua caverna, baniu objetos interessantes da pintura!” enuncia Diderot. Cada instante tem suas vantagens e desvantagens. Um deles escolhido, todo o resto é dado. “Prodico supõe que Hercules em sua juventude, após a derrota do javali de Erimanto, foi acolhido num lugar solitário da floresta pela deusa da glória e pela dos prazeres, que o disputaram entre sí: quantos instantes diferentes esta fábula moral não ofereceria ao pintor que a escolhesse como assunto? Seria possível compor com eles uma galeria. Há o instante em que o herói é acolhido pelas deusas, o instante em que faz-se ouvir a voz do prazer, o instante em que a honra fala ao seu coração, aquele em que ele balança em si mesmo a razão da honra e do prazer, o instante em que a glória o toma e o outro, no qual ele decidiu-se inteiramente por ela.” Ao aspecto das deusas ele deve ter sido tomado de admiração e surpresa: terno com a voz do prazer, inflamando-se com a da honra. No instante em que balança suas vantagens, é sonhador, incerto, suspenso. “À medida que o combate interior aumenta e que o momento do sacrifício se aproxima, a tristeza, a agitação, o tormento, as angústias, tomam conta dele, e premitur ratione animus, vincique laborat” (24) E prossegue Diderot : “O pintor sem gosto ao ponto de tomar o instante em que Hercules decidiu-se inteiramente pela glória, abandonaria todo o sublime desta fábula e seria obrigado a dar uma face aflita à deusa do prazer que teria perdido sua causa, o que é contrário ao seu caráter. A escolha de um instante proibe ao pintor todas as vantagens dos outros. Quando Calcas enfiar o cutelo sagrado no peito de Ifigênia, sua mãe deve desmaiar. Os esforços que ela faria para deter o golpe pertencem a um instante passado. Voltar para ele um minuto significa pecar tão pesadamente quanto antecipar mil anos no futuro. Existem no entanto ocasiões em que a presença de um instante não é incompatível com os traços de um instante passado: lágrimas de dor cobrem por vezes um rosto do qual a alegria começa e se assenhorear. “Um pintor hábil colhe um rosto no instante da passagem da alma de uma paixão a outra, e faz uma obra prima. Tal é Maria de Medicis na galeria do Luxemburgo, Rubens a pinta de um jeito que a alegria de ter posto um filho ao mundo não apagou a impressão das dores do parto. Dessas duas paixões contrárias, uma está presente, a outra ausente”.
A fluidez do tempo é o grande obstáculo a ser dominado pelo pintor. “É raro que nossa alma esteja numa base firme e determinada, e como nela ocorre quase sempre um combate de diferentes interesses opostos, não basta saber exprimir uma paixão simples. Todos os instantes delicados perdem-se para quem que não conduz seu talento até lá: não sairão de seu pincel nenhuma dessas figuras que nunca se viu e nas quais percebe-se sem cessar novas finezas à medida que as observamos: seus caracteres serão decididos em demasia para dar tal prazer, eles tocarão mais no primeiro golpe de vista, mas eles lembrarão menos.” A unidade da ação liga-se ao tempo: abarcar dois instantes é pintar simultâneamente um mesmo fato sob dois pontos diferentes de vista. (24) Esta falta é menos sensível, mas no fundo mais pesada do que a duplicidade de assunto. “Duas ações unidas, ou mesmo separadas, podem ocorrer ao mesmo tempo num mesmo lugar. Mas a presença de dois instantes diferentes implica contradição no mesmo fato. A menos que se queira considerar um e outro caso como a representação de duas ações diferentes numa só tela. Os nossos poetas que não sentem possuir gênio bastante para tirar cinco atos interessantes de um assunto simples fundem várias ações numa só, abundam em episódios, e tornam pesadas suas peças na mesma proporção de sua esterilidade. Pintores caem às vezes no mesmo defeito. Não se nega que uma ação principal traga outras, acidentais. Mas é preciso que estas últimas sejam de circunstâncias essenciais à precedente. É preciso que exista ligação e subordinção entre e que o espectador nunca esteja perplexo. Variem o massacre dos Inocentes tanto quanto lhes aprouver. Mas que em qualquer lugar da tela eu lance os olhos e encontre tal massacre. Seus episódios ou me prenderão ao assunto, ou dele me afastarão. E o último desses efeitos é sempre um vício. A lei da unidade da ação é ainda mais severa para o pintor do que para o poeta. Um bom quadro fornecerá algum assunto, ou mesmo uma cena dramática. E um drama apenas pode fornecer matéria para cem quadros diferentes.”
A unidade de lugar, segundo Diderot, é mais estrita num sentido — menos em outro— para o pintor do que para o poeta. A cena é mais extensa em pintura, mas ela é mais una do que em poesia. “O poeta, não restrito a um instante indivisivel como o pintor, passeia sucessivamente o ouvinte de um apartamento a outro, enquanto o pintor se coloca num vestíbulo, numa sala, sob um pórtico, numa relva. E de lá não sai. Ele pode, com a perspectiva, aumentar seu teatro tanto quanto julgar apropriado, mas sua decoração permanece. Ele não muda.” Como o leitor percebe, acompanho o texto diderotiano sem acréscimos. O escrito é demasiado eloqüente e não precisa de comentários em tais pontos.
Sigamos para a subordinação das figuras, que devem se fazer notar segundo o interesse que devemos ter por elas. Existem lugares relativos às circuntâncias da ação, elas devem ocupar naturalmente tais lugares ou deles se afasta. Cada figura precisa ser animada pela paixão e pelo grau de paixão conveniente ao seu caráter. E se uma delas fala, as outras devem escutar. Muitos interlocutores ao mesmo tempo fazem má impressão num quadro, tanto quanto numa reunião social. “Como tudo é igualmente perfeito na natureza, num pedaço perfeito de pintura todas as partes devem ser igualmente cuidadas e só chamar a atenção pela sua maior ou menor importância. Se tivessemos diante de nós o sacrifício de Abraão, o arbusto e o bode não teriam menos verdade do que o sacrificador e seu filho. Todos devem ser igualmente verdadeiros na tela sem termer que os os objetos subalternos sejam façam negligenciar os importantes. Eles não produzem tais efeitos na natureza, por que os produziriam na imitação artística?” Ornamentos, roupas, etc. Não se recomenda o bastante a sobriedade e a conveniência nos ornamentos. “Há em pintura, como em poesia, uma fecundidade infeliz. Se deve ser pintada uma manjedoura, por que apoiá-la contra as ruinas de um grande edificio e erguer colunas num lugar que só posso supor usando conjecturas forçadas? O preceito de embelezar a natureza estragou tantos quadros ! Não se busque embelezar a natureza ! Deve ser escolhida a que convem ao pintor, este deve trazê-la aos olhos escrupulosamente. As roupas devem ser conformes à história antiga e moderna, e não se coloque, numa paixão, judeus com chapéus cheios de plumas.”
As regras gerais da composição são quase invariáveis e as da prática, na pintura, não as podem alterar. Como o escritor narra um fato histórico como poeta ou historiador, um pintor dele faz um assunto de quadro histórico ou poético. No primeiro caso, parece que todos os seres imaginários, todas as qualidades metafísicas personificadas devem ser banidas. A história quer mais a verdade. Não existe um desses desvios nas batalhas de Alexandre. Parece que no segundo caso só deve ser pemitido personificar as que sempre o foram, a menos que se deseje expandir uma obscuridade profunda em assunto bem claro. Não admiro a alegoria de Rubens do parto da rainha como as apoteoses de Henrique: sempre achei que o primeiro desses objetos exigia toda a verdade histórica e o segundo todo o maravilhoso da poesia. Sempre o leitor deve ser advertido que todas essas linhas saem diretamente do texto diderotiano citado. Nada acrescento a elas.
“Uma composição pode ser facilmente rica em figuras e pobre de idéias, uma outra excitará muitas idéias, ou inculcará fortemente uma só, e só terá uma figura. O quanto a representação de um anacoreta ou filósofo absorto numa profunda meditação, não acrescentará à pintura de um isolamento? Parece que um isolamento não exige ninguém. No entanto, ele será bem maior se nela for colocado um ser pensante. Se o pintor faz cair uma torrente das montanhas, e se ele deseja nos espantar, deve imitar Homero colocando um pastor na montanha, que escuta amedrontado o barulho. Pintores devem ler os grandes poetas e recipocramente os poetas precisam ver os trabalhos dos grandes pintores. Os primeiros ganharão em gosto, em idéias, em elevação. Os segundos, exatidão e verdade. Quantos quadros poéticos admirados fariam sentir o seu absurdo se fossem pintados ?” (26)
O pintor que ama o simples, “o verdadeiro, o grande, apegar-se-á particularmente a Homero e a Platão. Nada direi de Homero, ninguém ignora até onde este poeta levou a imitação da natureza. Platão é menos conhecido neste aspecto, mas ouso, no entanto, assegurar que ele não perde para Homero. Quase todas os inícios de seus diálogos são obras primas de verdade pitoresca. E mesmo durante o diálogo elas são encontradas. Tomarei apenas um exemplo, do Banquete. Este, visto comumente como uma cadeia de hinos ao Amor, cantados por uma companhia (troupe, o termo é teatral, RR) de filósofos, é uma das apologias mais delicadas de Sócrates. Sabe-se em demasia a crítica injusta à qual suas ligações estreitas com Alcibiades o haviam exposto. O crime imputado a ele era de natureza tal que a apologia tornava-se uma injúria. E Platão cuida para que ela não seja o assunto principal de seu diálogo. Ele reúne filósofos num banquete e os faz cantar o Amor. A refeição e o hino acabavam quando se ouve um grande barulho no vestíbulo. As portas se abrem e vê-se Alcibíades coroado de hera e cercado por uma companhia (troupe, mesma observação acima, RR) de instrumentistas. Platão lhe supõe esta gota de vinho que aumenta a alegria e dispõe à indiscreção. Entra Alcibíades e divide sua coroa em dias, coloca uma em sua cabeça e a outra em Sócrates. Informado do assunto, fica sabendo que os filósofos cantaram o triunfo do Amor. Ele canta sua derrota pela Sabedoria, ou os esforços inúteis que fez para corromper Sócrates. Este relato é conduzido com tamanha arte, que nele se percebe apenas um jovem libertino que fala por embriaguez, e que acusa a si mesmo sem misericórdia de ter os desejos mais corrpmpidos e o deboche mais vergonhoso. Mas fica no fundo da alma a impressão, sem que em nenhum momento se suspeite, que Sócrates é inocente e que ele é bem feliz de ser inocente porque Alcibíades, teimoso por seus próprios encantos, não deixou de notar ainda a sua força, desvelando seus efeitos perniciosos nos sábios de Atenas. Que pintura seria a entrada de Alcibíades e seu cortejo no meio dos filósofos! Ele não seria menos interessante e digno das pinceladas de Rafael ou de Vanloo, do que a representação desta assembléia de homens veneráveis arrastados pela eloquência e os encantos do jovem libertino, pendentes ab ore loquentis ?”(27)
A passagem do teatro à pintura é sublinhada por Diderot, sobretudo quando se trata de Platão e da figura maior dos Diálogos. O enciclopedista e dramaturgo é obcecado pela morte de Sócrates. A peça La mort de Socrate, apresentada na Comédie Française em 1763 é tributária de Diderot, como observam análises da Correspondance littéraire (01/06/1792 e 15/05/1763). Os textos diderotianos não se cansam de jungir arte pictórica e teatro. (28) Assim este trecho citado por Jean Seznec: “se o espectador (…) encontra-se no teatro como se estivesse diante de uma tela, onde quadros diversos surgiriam sucessivamente (…) haveria um patético na cena, como ocorre com a filha e a mulher de Eudamidas no quadro de Poussin?” (29) A resposta é positiva. Diderot refere-se à pintura Testament d´Eudamidas, no qual via o máximo do sublime em pintura. Aquele grupo de mulher e filha é especialmente mencionado no Salão de 1767. O verbete “composição” é fruto de um trabalho inicial. Mas se atentarmos para os escritos posteriores, sobretudo os publicados após a morte de Diderot, notamos que eles respondem integralmente às exigências postas na Encyclopédie. A questão do tempo e do espaço, aliada à diversidade dos instantes e das paixões humanas. Quem ousaria negar que o Sobrinho de Rameau, além de ser uma peça teatral fantástica é uma sequência de quadros, os mais estritamente obedientes às determinações da unidade de tempo, espaço e de assunto? O tempo: meia hora de conversa entre o vagabundo genial e o filósofo. O espaço: o jardim de Port-Royal. Os assuntos amplos e diversificados obedecem as unidades de sentido a cada movimento. O texto segue os preceitos platônicos, pois se trata de um organismo vivo. Son pittor anch´io, a Diderot pode ser atribuido este mote comum para designar o modo pelo qual ele “pinta” seus romances, sobretudo A Religiosa. (30) Como indica um comentador, naquele romance “as cenas de quadro e de pantomima são perfeitamente integradas na estrutura narrativa e psicológica do romance”. Suzanne Simonin “aproxima explícitamente sua descrição da pintura, conhecida pelo seu correspondente, o marquês de Croismare” (31) Simonin usa o termo “pintar” para a sua descrição dos conventos em que viveu e para cenas isoladas que retrata: “A cena que acabei de pintar foi seguida de um grande número de outras semelhantes que negligencio…Vós, que bem conheceis a pintura, eu vos asseguro, senhor marquês, que era um quadro muito agradável de se ver” (32)
O romance inteiro, como boa parte dos escritos literários diderotianos (não raro, filosóficos) opera com o sentido polissêmico da grafia, tal como indiquei acima para os vínculos entre ele e Platão. Mais, além da unidade entre pintura e escrita, o enciclopedista integra a fábrica dos poemas e o teatro. É como se o grito, son pittor anch ´io presidisse a sua produção imagética, nela colocando a idéia a serviço da arte. Na Religiosa, cuja marcha é entremeada de quadros movidos pelas paixões, cada pintura exibe os elementos patéticos na biografia de Simonin, apresentados por ela aos seus juízes ou possíveis libertadores. “Os sofrimentos que os quadros expõem são parte de um sofrimento mais amplo (ou Paixão) que constituem a narrativa. Como as imagens que convidam os cristãos a jorrar lágrimas diante das várias estações da Paixão do Salvador, os quadros da Religiosa pedem ao leitor que se comova pelas lágrimas e sofrimentos de uma vítima inocente, e que das lágrimas passe à ação. Em cada um dos quadros, o leitor é apresentado à uma visão espantosa. Em cada uma das vezes, é como se Suzanne tivesse dito, ´Voilà!´[literalmente, ´olha aqui!´] ´Observe, e veja meus sofrimentos´. Na retórica clássica esta figura era chamada hypotiposis”. (33)
Num acesso de gosto duvidoso, comum entre cultores de Rousseau, Claude Levi-Strauss caçoa de Diderot e da predileção que o enciclopedista apresenta pelas pinturas em movimento. Ao comentar o problema do contínuo e do discreto na filosofia e na estética, diz o antropólogo sobre o verbete Composição: “Sendo a pintura permanente, ela só o é num estado instantâneo e só pode, afirma Diderot, oferecer da natureza quadros discontínuos: ‘multiplicai o quanto quiserdes essas figuras, haverá interrupção’”. Assim, diz Strauss, “a pintura remete a um problema filosófico mais geral que já surgira na teoria dos números :”como medir toda quantidade continua por uma quatidade discreta?”. Segundo o Diderot citado por Strauss, a lingua traz situação análoga pois existem “expressões dos matizes delicados que permanecem nessariamente indeterminados”. Assim, o enciclopedista parou o seu projeto de transmitir os conhecimentos, “pela impossibilidade de tornar toda a lingua inteligível” (Diderot). Ao inverso do que se passa na pintura, a lingua apresenta um meio termo, pois as raízes revelam uma continuidade entre palavras discretas de natureza igual, sendo estados intermediários análogos aos que a pintura é incapaz de representar. A invariância permitiria superar a antinomia do contínuo e do discreto. Mas Diderot não segue por semelhante via. Esperar-se-ia que ele “se interrogasse sobre a noção de invariância aplicada ao problema próprio da pintura. Em vez disso, parece admitir que os quadros de Greuze já o resolveram : ´é a coisa como deve ter ocorrido´, grita ele no Salão de 1759 sobre o quadro L´Accordée de village. Mas em parte alguma parece que ele buscou, no estilo e nos princípios da composição de Greuze, a consistência da invariância. De fato, o entusiasmo de Diderot por Greuze deve-se a outras considerações.”. Note-se o tom e o jeito: a repetição do termo “parece” é sintomática no crítico. Parece que Diderot deveria ser orientado pelas preocupações de…Strauss.
E agora vem a melhor parte. O problema da invariância irresolvido por Diderot, seria “comparável ao sentido em seu tempo, mesmo pelos amadores da mais bela pintura (Diderot não admirava Chardin?), diante da invenção do cinema. Greuze também inventou algo: representar o instante por meios tão realistas e tão detalhados que eles fornecem, mesmo devido ao tempo requerido para os inspecionar, uma ilusória duração. Richardson já o tinha feito em literatura, bastava transpor: ´o mundo em que vivemos é o lugar da cena; o fundo de seu drama é verdadeiro; seus personagens têm toda a realidade possível; seus caracteres são tomados no meio da sociedade; seus incidentes estão nos costumes de todas as nações bem governadas […] Sem esta arte, minh´alma se dobrando dificilmente em viezes quiméricos, a ilusão seria apenas momentânea e a impressão fraca e passageira”. O que Diderot admira em Richardson e em Greuze, pensa Strauss, seria “exatamente o que será pedido mais tarde à arte cinematográfica: ´os relâmpagos das paixões com frequência feriram vossos ouvidos; mas estais bem longe de conhecer tudo o que há de secreto nos seus acentos e em suas expressões. Nenhum deles deixa de ter a sua fisionomia; todas essas fisionomias se sucedem num rosto, sem que ele deixe de ser o mesmo; e a arte do grande poeta e do grande pintor está em nos mostrar uma circunstância fugitiva que nos havia escapado´. Não seria possível descrever melhor o que pedimos ao ‘gros plan’. E é este o lado ‘western’ antes da letra que cativa Diderot em Joseph Vernet: ´com uma arte infinita, misturar o movimento e o repouso, o dia e as trevas, o silêncio e o ruído`. A história da arte, por vezes, segue o ritmo do acordeão. Com suas “demoras necessárias´, Richardson ampliou inicialmente a literatura que o cinema instantâneo de Greuze comprimirá nos quadros (mas muito longos para serem descritos, ver os Salões). Por sua vez, o cinema que opera por meio de imagens, como a pintura, os ampliará aos multiplicá-los na duração, como o faz a literatura com as palavras”. (34 )
Nas críticas endereçadas por Levi-Strauss a Diderot não é possível silenciar que o acusador se esquece fácilmente do episódio que envergonha a França, terra da cultura e das Luzes ( se desconsiderarmos o desastre do Estado que se traduziu em Vichy) quando foi apresentada ao público A Religiosa de Jacques Rivette. Em 1959 o cineasta imagina o filme com base no romance diderotiano, auxiliado por Jean Gruault. Em maio de 1962, o primeiro cenário é entregue à Comissão de Controle, orgão do Estado francês. A pré-censura pronuncia-se desfavorável ao empreendimento. Em 1963 dá-se uma adaptação teatral do texto, dirigida por Rivette e Gruault, no Studio Saint-Elysées, com ajuda de Jean-Luc Godard e Antoine Bourseiller. O fracasso comercial da peça, somado à extrema rapidez na montagem, evita maiores escândalos. Ainda em 1963 o cenário se modifica, acrescido de um prefácio explicativo, mais a história da Abadia de Longchamp e um sermão de Bourdalue sobre os deveres paternos. Todo o material é novamente submetido ao controle da Comissão mencionada, que atenua o risco de uma proibição. A filmagem demora dois anos por dificuldades técnicas. Rivette escreve e organiza os Cahiers du cinéma. Em 1965, o Centro Nacional de Cinematografia, na pessoa de um burocrata, responde ao diretor sobre a licença: “Creio dever vos convidar à consideração das reservas formuladas sobre o contexto geral do filme A Religiosa, seus temas e seus principais personagens”. Em outubro do mesmo ano, ocorre uma entrevista do presidente do Conselho Nacional de Cinematografia com Georges Beauregard, o produtor do filme. Tudo entravado na pátria da cultura livre…
E surgem os primeiros abaixo-assinados dos pais, clientes das escolas dirigidas pelas Irmãs do Convento des Oiseaux, alertadas pela Central Católica de Cinema. A presidente da União das Superioras Maiores da França escreve para Alain Peyrefitte, Ministro da Informação. Na carta pode-se ler que 120 mil religiosas francêsas estão inquietas pela ameaça de um filme “blasfemo, o qual desonra as religiosas”. Em 15/11/1965, o Ministro responde (faltam três semanas para a eleição presidencial….) o seguinte :”Faço questão de dizer, no que me diz respeito, que partilho totalmente os sentimentos que vos animam…Também asseguro que não hesitarei em utilizar a plenitude dos meus poderes”. O filme deve ser filmado no mesmo período dessa correspondência e campanha. Rivette escolhe a Abadia de Fontevrault, com a permissão da Comissão das Belas Artes. Mas além do ministro da Informação, Marjean Foyer da Justiça não deseja confusões com as forças religiosas. Negada a locação, o diretor filma em Avignon, na Cartuxa de Villeneuve, onde o deputado-prefeito é socialista. Caindo Peyrefitte e trocado por Yvon Bourges, o trabalho é aprovado pela Comissão de Controle (composta por 23 membros, 7 do Ministério, 7 do cinema, 5 sociólogos e juízes, 3 representantes da Associação das Famílias). Quatorze daqueles seres humanos votam “sim”, oito definem-se pelo “não”, um se abstém. Mas a saga continua. Em maio de 1966 o ministro convoca novamente a Comissão de Controle, chamando para ela Maurice Grimand, diretor da Sûreté Nationale para explicar os perigos que a projeção do filme ocasionaria à ordem pública. Votam os seres humanos novamente, resultando em 12 votos pelo “sim”, 8 pelo “não”, e três abstenções… Aí surge uma decisão sublime, em termos de hipocrisia neo-colonialista e censória. O filme é proibido nos países “de missão” (Vietnam, Laos, Cambógia, Madagascar, Síria, Líbano e na Africa em geral). Embora sob perigo, o “adulto” francês poderia assistir a blasfêmia rivetto- diderotiana, já as crianças do Terceiro Mundo… Talvez percebendo o ridículo ou o trágico da ordem anterior, a Comissão de Controle (consultiva) decide-se pela proibição total para adultos francêses e crianças colonizadas, decisão assumida em 31/03/1966.
Em 2 de abril de 1966, o Le Monde traz a notícia, com um comentário de Jean de Baroncelli. Como sempre ocorre na França, país de fina tradição cultural, surge um debate apaixonado e o dossier sobre o caso. Em 05 de abril dá-se a entrevista coletiva do cineasta e do produtor. Circula certo Manifesto dos 1789 (alusão transparente) contra a proibição. Em 14 de abril a medida é discutida pela Assembléia Nacional. Ainda no dia 30 o ministro a explica aos parlamentares. E no dia 6 de maio…o filme é apresentado no Festival de Cannes. Em novembro de 1967, é liberado em Paris.
Vejamos os argumentos das partes envolvidas. Os pais religiosos afirmam que o filme “desfigura as religiosas, antigas educadoras de nossas mães e de nossas esposas e filhos”. Ele seria “um sucesso artístico, sem obscenidades. Não se trata tanto de imagens, mas de um espírito fundamentalmente perverso, o qual desnatura e caricaturiza os valores religiosos”. O governo, por sua vez, pretende, nas palavras de seus funcionários, proteger as religiosas contra a difamação (lei de 1881 sobre a liberdade de imprensa). Na polêmica surge a palavra dos católicos contra a censura, poucos mas bastante representantivos do pensamento religioso aberto para o mundo mais amplo do que as sacristias. Nomes? O padre Oraison, Claude Mauriac, Irmã Marie Yvonne…
Jean-Luc Godard expressa a indignação contra o veto, de maneira digna de um homem das Luzes. Em carta a André Malraux, o chama de “Ministro da Kultura” (Nouvel Observateur, 06/04/1966). E afirma na referida missiva: “Já estava meio cansado de procurá-lo, pedindo-lhe que intercedesse junto aos seus amigos Roger Frey e Georges Pompidou para conseguir o perdão de um filme condenado à morte pela censura, esta Gestapo do espírito. Mas Deus do céu, eu não pensava fazê-lo por seu irmão, Diderot, um jornalista escritor, como você, e sua ´Religiosa´ minha irmã, isto é, um cidadão francês que pede apenas ao Pai que proteja a sua independência (…) Nada espantoso que você não reconheça mais a minha voz quando falo sobre a proibição de Suzanne Simonin, a religiosa de Diderot, sobre assassinato. Não. Nada espantoso nesta covardia profunda. Você faz como a avestruz com as suas memórias interiores. Como você poderia me escutar, André Malraux, se eu telefono do estrangeiro, de um país distante, a França livre?”. E Rivette, em artigo na revista Cinématographe afirma: “desde, digamos, Citizen Kane, os cineastas não podem mais manter uma relação de ingenuidade diante da literatura, sobretudo a grande literatura romanesca do século 19”. E nos Cahiers du Cinéma, diz ele : “a idéia inicial de A Religiosa era um jogo de palavras, era fazer um filme ´celular´, pois era sobre as celas das boas irmãs”. (35 )
Notas
(1) Cf. “Farinata e Cavalcante” in Mimesis, a representação da realidade na literatura ocidental (São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971), em especial as p.
162-165.
(2) “Ora, se innanzi a me nulla s´aombra,/non ti maravigliar più che de´cieli/che l ´uno all´altro raggio no ingombra. /A sofferir tormenti e caldi e geli/simili corpi la virtù dispone/che, come fa, no vuol ch´anoi si sveli.” Cf. La Divina Commedia, “Purgatorio” ( 3, 31ss), a cura de Natalino Sapegno (Firenze, La Nuova Italia Ed., 1956), p.25.
(3) Citado por Leonel Ribeiro dos Santos, Metáforas da Razão, ou economia do pensar kantiano (Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1994), p. 514.
(4) Cf. Crocker, L. Diderot’s Chaotic Order. Approach to a synthesis (Princeton,University Press)1974. E também Maria Laura Magalhães Gomes: “Diderot e o sentido político da educação matemática”, in Revista Brasileira de História da Educação. Número 7, jan/juin 2004, p. 75 e seguintes.
(5) Citado em Romano, Roberto: “Marx e a tradução”, in Armando Boito e outros (Ed.) : A obra teórica de Marx, atualidade, problemas e interpretações (Campinas, Cemarx-IFCH-Xamã Ed.) 2002, segunda edição, p. 46 e seguintes.
(6) Diderot citado por Romano, Roberto : “Marx e a tradução”, ed. cit. p. 46 – 47.
(7) Cf. Versini, Laurent : “Introdução” à seleção dos Salões in Diderot, oeuvres, T. IV, Esthétique- Théatre (Paris, Robert Laffont, 1996), páginas 7 e 8 e p. 171 ss. Farei uso constante daquela excelente análise ao longo deste texto.
(8) Cf. Romano, Roberto: Silêncio e Ruído, a sátira em Denis Diderot (São Paulo, Unicamp Ed. 1997), página 82, nota 3.
(9) Re-editado em 1990: Paris, Aux Amateurs de Livres Ed.
(10) Toutes les emblèmes (1558-1564). Há edição recente em espanhol: Alciato. Emblemas. Manuel Montero e Mario Soria (ed.). Madrid, Ed. Nacional, 1975).
(11) De humane physiognomia (1586). Della Porta dedicou-se à criptografia e à optica, além da fisiognomia, arte de “conhecer” as pessoas pelos traços da face.
(12) Description historique et critique de l ´Italie ou nouveaux mémoires sur l´état actuel de son Gouvernement, des Sciences, des Arts, du Commerce, de la Population & de l ´histoire naturelle. Nouvelle Édition (Paris, Delalain, MDCCLXX). Uso o texto editado eletrônicamente pela Biblioteca Nacional de França (Coleção Gallica).
(13) Cf. “Critique d´Art” in Oeuvres complètes (Paris, Robert Laffont, 1980), p. 603 e ss. Gita May, Diderot et Baudelaire: critiques d'art (Paris/ Genève, Minard/Droz, 1957), p. 109 e 120. Hiddleston, J. A. : Baudelaire and the Art of Memory (Gloucestershire, Clarendon Press, 1999) recorda que o Salon de 1845, como aliás é bem notado pela crítica, retoma o modelo dos Salões diderotianos.Cf. Hiddleston, p. 262.
(14) Os quais reconhecem a presença de Diderot no campo da literatura e da crítica de arte. “Imagino Fragonard saído da mesma forma que Diderot. Nos dois, o mesmo fogo, mesmo brilho. Uma página de Fragonard é como uma pintura de Diderot. (…) quadros de família, enternecimento da natureza, liberdade de um conto livre. Os dois usufruindo da forma precisa, absoluta, do pensamento e da linha. Diderot, conversador sublime maior do que escritor; Fragonard, mais desenhista que pintor. Homens do primeiro movimento, do pensamento jogado totalmente vivo e nascendo diante dos olhos ou da idéia”. Cf. Journal. Mémoires de la Vie litteraire, I (1851-1865) (Paris, Robert Laffont, 1989), p. 494
(15) Cf. Balcou, J. : Le dossier Fréron. Correspondances et documents (Genève, Droz, 1975).
(16) Pierre Lepape: Diderot (Paris, Flammarion, 1991) p.234
(17) Para uma análise ampla das técnicas usadas por Diderot na Encyclopédie, cf. Marie Leca-tsiomis, Écrire l’Encyclopédie. Diderot : de l’usage des dictionnaires à la grammaire philosophique, Oxford, Voltaire Foundation, SVEC, 375, 1999.
(18) Cf. Phaedrus 264 c in Plato I (London, Harvard University Press, 1983) Loeb Classical Library, Trad. Fowler H.N. ). Página 528.
(19) Diderot, Denis: Mémoires pour Catherine II, citado por Anthony Strugnell: Diderot´ s politics. A Study of the Evolution of Diderot´s Political Tought After The Encyclopédie. (The Hague, Martinus Nijhoff, 1973), p. 137.
(20) Chouillet, Jacques : Diderot, poète de l ´énergie (Paris, PUF, 1984), p. 299.
(21) Maria Sylvia Carvalho Franco, em trabalhos inéditos sobre a Filosofia grega e o Renascimento, elaborou longamente este aspecto do pensamento ocidental. Os manuscritos da autora, aos quais tive acesso, trazem os nexos entre a imagem e a escrita, sobretudo no pensamento platônico e nos seus seguidores da Renascença inglêsa e italiana. Os referidos manuscritos estão em fase de finalização e breve serão publicados pela Editora Perspectiva de São Paulo.
(22) “Humano capiti ceruicem pictor equinam/ iungere si uelit et uarias inducere plumas/ undique conlatis membris, ut turpiter atrum /desinat in piscem mulier formosa superne, /spectatum admissi risum teneatis, amici? /Credite, Pisones, isti tabulae fore librum /persimilem, cuius, uelut aegri somnia, uanae /fingentur species, ut nec pes nec caput uni /reddatur formae. Pictoribus atque poetis / quidlibet audendi semper fuit aequa potestas.” “De arte poetica” in Le Opere di Quinto Orazio Flacco, a cura di Tito Colamarino e Domenico Bo (Torino, UTET, 1978), p.534
(23) “Ut pictura poesis”. O dito célebre, conhecido desde Simonides de Cós, é lembrado por Diderot. Mais estratégico, no entanto, nos seus textos, é o conjunto de enunciados que seguem na pena de Horácio: “Existem quadros que golpeiam mais tua atenção, se observados mais de perto e outros, se vistos de um pouco longe. Um ama a penumbra, o outro, que não teme o olhar aguçado de um conhecedor, quer ser posto em plena luz. Este agradou uma vez apenas, e aquela agradará mesmo que revisto dez vezes.”. Horácio, op. cit. p. 556-557.
(24) Aules Persius Flaccus : Saturarum liber, V. “E premido pela razão, luta para se deixar vencer”.
(25) Para uma análise aproximada desses problemas, cf. Hayes, Julie C. : “Sequence and Simultaneity in Diderot's Promenade Vernet and Leçons de clavecin”. Eighteenth-Century Studies (The Johns Hopkins University Press) V. 29, Número 3, 1996, pp. 291-305.
(26) Diderot não segue o dito horaciano sem críticas. “Tous nos petits littérateurs (…) repètent tous les jours le seul hemistiche d´Horace qu´ils sachent: ´Ut pictura poesis erit´. Mas, segue Diderot, “Ut poesis pictura non erit” (Cf. Oeuvres complètes de Diderot por Assezat J. e Tourneux, M. (ed.) (Paris, Garnier, 1875-1877), T. XII, 123-4 e XI, 107). O enunciado horaciano não pode ser assumido literalmente. O problema fora sentido no Renascimento, como diz Robert J. Clemens : “The catch phrase, ut pictura poesis, (…) was taken up and exploited uncritically, with painting and poetry becoming not only sisters, but twin sisters. Only in 1666 did Le Moine De l'art des devises recall Da Vinci and twice point out that emblems or paintings differ from poems in that the sense of the former may be grasped in a moment rather than during a slower unfolding. Yet the Renaissance assembled every possible argument to identify the poetic and pictorial endeavors, which finally led Lessing to assemble every possible counterargument and write the Laokoön. Another catch phrase rooted in the minds of Renaissance humanists was that aphorism attributed by Plutarch to Simonides to the effect that painting is mute poetry and poetry a speaking picture. This phrase held a particular meaning to the emblematists, and they echoed it willingly. Henry Hawkins urged the readers of the Devout Heart, his version of Etienne Luzvic's French emblem book, "If you eye wel and marke these silent Poesies, give ear to these speaking pictures." Remarking on a meaning he read into an emblem of Vaenius, Le Roy de Gomberville qualifies, "Si j'entends bien son langage muet." Barthélemy Aneau tells us that he decided to help the Lyonese printer Bonhomme make use of some plates lying about the print shop: "Alors je estimant que sans cause n'avoient esté faites, je luy promis que de muetes et mortes, je les rendrois parlantes et vives, leur inspirant âme par vive poésie." William Camden quotes the statement of Simonides and judges the pictorial element as dominant in the device and rebus." Cf. Picta Poesis: Literary and Humanistic Theory in Renaissance Emblem Books (Roma, Edizioni di storia e letteratura, 1960), p. 174-175.
(27) Virgilio, Eneida, IV, 79: “Suspensos aos lábios do orador”. Esta apreciação do texto platônico como peça teatral pode ser acrescida pelo uso frequente, por Diderot, de Luciano de Samosata, cuja letra diáfana conduz a sátira e o debate moral até o limite do insuportável. Em Silêncio e Ruído, a sátira em Denis Diderot (Campinas, Ed. Unicamp, 1997) analisei o nexo entre os escritos diderotianos e os textos lucianescos. Na época em que o livro foi publicado eu não tinha em mãos o clássico de Jay Chapman. Ali constatei o quanto ele é importante para a análise conjunta de Luciano, Platão, Diderot. Por exemplo: “The reader of Lucian's dialogue on 'The Household Philosopher' should turn to Diderot's essay called 'Le Neveu de Rameau,'(…). In it Diderot describes his conversations with a needy adventurer, a little brother to the rich, whom he has met occasionally in the public gardens, and who describes his own functions, methods, passions, and ideals as a diner-out, music-master, entertainer, and slave in the houses of the great. Diderot makes no reference to antiquity, yet his essay brings out a very striking resemblance between the social systems of Rome under the Cæsars and of France under Louis XIV and Louis XV. Though Diderot has no ferocity and is tiresome, he has a power of his own which competes with Lucian. One feels, after reading 'Le Neveu de Rameau,' that the art, the morality, the music, the architecture, the manners, the ideals, the unconscious superfine degradations of the age of Louis XV have been poured into our understanding. We need no other commentary, no other indoctrination, no better psychological analysis of that age than we have here in the rambling talk of this talented, disillusioned, tatter-brained, middleaged, sycophant.”. Cf. Lucian, Plato and Greek Morals (Houghton, Mifflin Company, 1931), p. 73-74.
(28) Cf. Scott, B. : “Strategies of happiness. Painting and Stage in Diderot”, French Forum, v. 29, 2004.
(29) Seznec, Jean: Essais sur Diderot et l ´antiquité (Oxford, Clarendon Press, 1957), p. 123, nota 65.
(30) La Religieuse, segundo Diderot, é “a contrapartida de Jacques le Fataliste. Ele é pleno de quadros patéticos. Ele é muito interessante e todo o interesse é reunido na personagem que fala. Estou bem seguro de que ele afligirá mais aos vossos leitores do Jacques os fez rir; donde poderia ocorrer que eles desejassem mais cedo o seu final. Ele é intitulado A Religiosa; e não creio que jamais se tenha escrito sátira mais amedrontadora dos conventos. É um texto para ser folheada ininterruptamente pelos pintores; e se a vaidade não se opusesse, sua verdadeira epígrafe seria a seguinte: Son pittor anch ´io”. Carta a Meister (27/09/1780), in Versini, L. : Correspondance de Diderot (Paris, Robert Laffont, 1997), p. 1309. Cf. Proust Jacques: «La fête chez Rousseau et chez Diderot» (1970), in l'Objet et le le texte. Pour une poétique de la prose française du XVIII siècle (Genève, Droz, 1980). Segundo Proust, Diderot extrai de Richardson o dom de fazer ver, e recomenda a leitura do mesmo Richardson aos pintores e poetas. Para se entender a suposta epígrafe que Diderot daria à Religiosa, Proust indica o Salão de 1759 no qual Diderot mostra detestar Os Cartuxos em Meditação de Jeannet, O quadro “não traz nada do silêncio, nada do selvagem, nada que lembre a justiça divina, nenhuma idéia, nenhuma adoração profunda, nenhum recolhimento interior, nenhum terror, nenhum extase” (p. 150).
(31) Cf. Strugnell, Anthony: “La voix du sage dans l´Histoire des Deux Indes”, in Colloque du Bicentenaire 2-5 septembre, 1984. Textes réunis par Peter France et Anthony Strugnell (Edimburgh, University Press, 1985), p. 36.
(32) La Religieuse, Ed. Pléiade, p. 354 e 359. Cf. Kofman, Sarah: Séductions. De Sartre a Heraclite (Paris, Galilée, 1990), p. 18.
(33) Cf. Caplan, Jay: Framed Narratives. Diderot´s genealogy of beholder (Minneapolis, University of Minnesota Press, 1985), p. 49. Jay cita Dumarsais- Fontanier : “A hypotipose é palavra grega que significa imagem, quadro. É quando nas descrições pinta-se os quais dos quais se fala, como se o tivessesmos atualmente diante dos olhos” Les tropes (Genève, Slatkine Reprints, 1967), volume 1, p. 151.
(34) “En lisant Diderot”, in Regarder, écouter, lire (Paris, Plon, 1993), p. 74–76. Sartre recusou o estruturalismo porque aquele movimento aposentou o sujeito (segundo Levi-Strauss, os seus pressupostos antropológicos estariam norteados por um “transcendental sem sujeito transcendental”) e porque ele teria posto peso demasiado na sincronia, contra a diacronia do pensamento dialético. E para dramatizar sua recusa, disse que se recusava voltar à lanterna mágica, depois da invenção do cinema. Com bastante atraso, Strauss devolve a pelota e aplica sua verve para desqualificar Diderot, visto por muitos comentadores como uma espécie de João Batista de Kant e do sujeito transcendental (ainda recentemente, cf. Paolo Quintili). O tema exposto por Diderot, Sartre e pelo próprio Levi-Strauss, encontra-se nas águas mais profundas da filosofia ocidental, no problema cujos icones maiores são Heráclito e Parmênides. A filosofia, tal como é conhecida, não conseguiu e não conseguirá sem duras penas “resolver” aqueles reptos à inteligência humana. Cobrar a solução apenas de Diderot, dele caçoando como o faz Strauss, é prova de percepção distoricida pelo sectarismo filosófico. Tais questões nunca foram endereçadas por ele a…Rousseau. Et pour cause….
(35)Todo este comentário sobre A Religiosa de Rivette e as controvérsias surgidas quando ele chegou ao público é extraído do artigo de Jean-Claude Bonnet, ”Revoir la Religieuse” in Proust, Jacques e Fontenay, E. de : Interpreter Diderot aujourd´hui, Colloque de Cerisy (Paris, Le Sycomore, 1984), p. 59 e seguintes.
II Congresso Estadual dos Magistrados de Pernambuco.
Dr. Roberto Romano da Silva
Unicamp.
Ementa
O longo texto que segue tem um núcleo lógico concomitante a um outro núcleo, o histórico. Segundo o plano lógico, a independência dos juízes depende da real isonomia dos poderes no Estado. No plano histórico, a nossa gênese enquanto Estado exigiu a diminuição do Legislativo e do Judiciário perante o poder Moderador que controlava o Executivo no Império e cujas prerrogativas passaram ao governo, na República. Resulta a enorme concentração de poderes nas mãos do Executivo federal e a não menos considerável concentração de recursos (financeiros, jurídicos, militares e policiais) no Executivo, em detrimento dos demais poderes. O presidencialismo imperial obstaculiza a democracia, a eficácia das políticas públicas, o desenvolvimento da cidadania na luta pelos direitos. Sem a luta pela isonomia dos poderes e sem o ajuste de contas com a história política nacional, dificilmente teremos o sonhado e pleno Estado de direito federal e, portanto, plena independência para o judiciário. Muitos juízes, com heroísmo silencioso, agem de modo independente. Mas é preciso que o coletivo federal e estadual judiciário tenham independência e respondam sempre à cidadania, com a mais acurada accountability, sem nenhuma interferencia dos outros poderes e sem servir, por sua vez, como legitimador de atentados ao direito e à lei pelos demais poderes. O texto traça uma rápida crônica do poder absoluto para indicar o quanto o nosso Estado ainda possui traços dessa tendência, em especial no Executivo. E termina com algumas questões espinhosas, mas necessárias, sobre as últimas medidas políticas estatais relativas ao Judiciário.
O tema é a independência dos juízes segundo a filosofia. Permitam-me, antes de expor um assunto com tamanhas pretensões, partir do campo oposto ao ideal referido. Refiro-me à burocracia que ameaça indivíduos e grupos do presente e do futuro, com a falta de independência, algo que já ocorreu à humanidade no século XX. É conhecida a tese weberiana, muito próxima do pensamento romântico, de que nos tempos modernos a política, a economia e a religião perderam todo encanto. O sagrado desaparecido teve como sucessores mecanismos que arrancaram dos indivíduos liberdade, força volitiva, pensamento autônomo. A burocracia, “máquina sem vida, é espírito coagulado. E só porque é isto, ela tem o poder de forçar os indivíduos a servi-la e determinar o curso cotidiano de seu trabalho vital (…) Como espírito coagulado aquela máquina viva representa a organização burocrática com sua especialização do trabalho profissional aprendido, sua delimitação das competências, seus regulamentos e relações de obediência hierarquicamente graduados. Unida à máquina morta, a viva trabalha para forçar a jaula (Gehäuse) daquela servidão do futuro a que talvez os homens se vejam obrigados a submeter-se impotentes, como os felás do antigo Egito”. ( )
Se as pessoas comuns seguem dominadas pelas formas burocráticas, também os legisladores e governantes tombam na malhas tecida pela racionalidade dos escritórios. O segredo é renitente prerrogativa da raison d´État ( ) Os justificadores da burocracia a defendem com fanatismo e brandem o “segredo do cargo”. Se a burocracia enfrenta um Parlamento, luta com instinto seguro contra os ensaios ali realizados para abolir o segredo do cargo com meios próprios e conhecimentos especiais. “Um Parlamento mal informado e, portanto, sem poder, é naturalmente melhor acolhido pela burocracia (…) Inclusive o monarca absoluto, e de certo modo ele justamente, percebe a si mesmo quase sempre impotente diante do superior conhecimento burocrático especializado”. ( )
Se aquela rede controla governantes e legisladores, também os juízes caem em suas teias. “Só a burocratização do Estado e do direito reconhece em geral a definitiva possibilidade de rigorosa distinção conceitual entre uma ordem jurídica ´objetiva´ e direitos ´subjetivos´ dos indivíduos garantidos por eles, bem como a separação entre o direito ´público´, ligado às relações entre autoridades e ´súditos´, e o direito ´privado´que regula as relações dos indivíduos dominados entre sí. A burocratização pressupõe a separação abstrata entre o ´Estado´, enquanto sustento abstrato dos direitos de mando e criador das ´normas jurídicas´ e todas as ´atribuições´pessoais dos indivíduos”. ( ) Nas formas burocráticas oficiais existe a perpetuidade do cargo, que não significa a sua posse. Quando no campo judicial são dadas garantias aos juízes e demais funcionários da justiça, contra a destituição ou remoção arbitrárias, tais medidas visam principalmente oferecer “segurança com vistas ao cumprimento rigorosamente objetivo e isento de toda consideração pessoal, o dever específico imposto pelo cargo correspondente. A proporção da ´independência´ outorgada por aquela garantia jurídica na burocracia não causa o incremento da estima ´convencional´— estamental— do funcionário assim garantido (…) O funcionário administrativo, em todos os casos, pode ser despedido com mais facilidade do que o juiz ´independente´”. A independência dos juízes, na hierarquia burocrática, resulta na despersonalização de sua individualidade. Os sistemas burocráticos de poder, mesmo no campo legal, não operam segundo as particularidades subjetivas dos integrantes, das partes à defesa, desta à promotoria, chegando ao juiz.
A independência diante dos antigos poderes garante, paradoxalmente, a mecanização do juiz. Este não mais depende de um soberano definido, indivíduo ou coletividade (rei, papa, aristocracia ou povo), pois a independência diante de pessoas de carne e osso é paga pela inserção na máquina de controle geral. Não espanta que um inimigo conservador da burocracia moderna, Carl Schmitt, assim descreva as operações dos juízes no regime nazista : “legislação, administração e justiça funcionavam, graças a novas simplificações e acelerações do processo, com obstáculos sempre menores, como aparelhos de comando”. Isto levou o mesmo Schmitt a discutir a fieira de tribunais revolucionários ou conservadores de exceção e a repetir a queixa do padre Laberthonnière: “Eu não julgo a vítima, apenas os juízes !”. ( ) A independência dos juízes é tema que exige cautela. Quando se trata de arrefecer o autoritarismo de governantes e legisladores, aquele ideal pode ser visto como incremento de liberdade para os magistrados, em proveito da coletividade. Mas, se ao deixar a dependência anterior o juiz cai na rede burocrática impessoal que o controla externa e internamente, sua independência pode resume-se a um pesadelo político.
Como tentativa de chegar à independência do juiz, tomo Francis Bacon, autor que mais atiladamente adiantou os nexos entre saberes e poder no mundo moderno, conhecido pelo aforismo knowledge and power meet in one. Em países como os EUA e Brasil de hoje, os juízes dizem a última palavra na exegese das leis e da Constituição. Desconhecemos apelo para algum tribunal acima do Supremo. Vigora entre nós, pelo menos em princípio, a autonomia dos poderes, o que faz dos juízes um coletivo que interpreta a lei. O mesmo não ocorre na Inglaterra. Alí, apesar da ampla autonomia dos juízes, as decisões recebem a supervisão do soberano poder legislativo. ( ) Os dois sistemas possuem fundamentos comuns, apesar das diferenças, pois a sua base filosófica enuncia que as pessoas têm direitos anteriores ao Estado e o poder político foi instituido para proteger tais direitos. Como as garantias daqueles direitos são frágeis ( ), o necessário governo é posto pelos indivíduos particulares, unidos para proteger seu corpo e alma.
O modelo inglês enfatiza o governo soberano unitário e nele, para proteção dos indivíduos, o poder deve ser forte porque grupos privados podem conspirar para extrair a vida e a liberdade alheias. A divisão do Estado incentivaria uma parcela social a resistir ao esforços das outras para viver em comunidade política. Os juízes não podem ser totalmente independentes, com a palavra absoluta. Quando eles não agem em harmonia com o todo estatal ou social, apelo deve ser feito ao poder soberano, antes o rei e hoje no Parlamento. O medo trazido pela separação do poder é que ela impeça a defesa dos direitos. O judiciário “responde ao poder encarregado, em último gráu, de garantir os direitos”, sendo o Legislativo o mais próximo da vontade popular. A supremacia pertence ao Parlamento, não ao Judiciário.
No outro lado, o que defende a supremacia do judiciário quando se trata de defender o direito, busca-se impedir que a maioria tiranize a minoria. A constituição escrita unida à separação dos poderes, impede que partes do Estado assumam poderes desproporcionais aos das outras. O sistema inglês, embora acentue a supremacia do Legislativo, garante os juízes na decisão dos casos, pelo menos até o apelo final, permite que eles apliquem leis antigas. Neste plano, a responsabilidade derradeira pela proteção dos direitos pertence ao Parlamento que faz as leis e subordina os juízes. No sistema oposto a autoridade é dividida e concede aos juízes papel especial de impor limites às formas governamentais.
E aqui entra Francis Bacon, entusiasta do procedimento inglês, tendo como discípulo aproximadamente fiel o também filósofo Thomas Hobbes. Bacon subordina, de modo formal, os juizes ao poder soberano, embora lhes atribua importante papel no governo. Papel relevante, sim, mas que eles devem desempenhar calma e indiretamente. Bacon parte de uma tese moderna: os indivíduos possuem alvos privados e o governo deve proteger tanto o seu corpo quanto as suas finalidades. Sem o soberano, eles caem na violência ilimitada. As barreiras contra as ambições particulares são produzidas artificialmente pelo Estado. Segundo Bacon o poder estatal deve ser forte e uno e, portanto, soberano. A unidade é condição do poder, pois um Estado dividido não pode se responsabilizar em caso de fracasso na conciliação dos contraditórios fins privados. Poder único não significa poder monárquico, visto que Bacon indica o soberano como força que pode residir num indivíduo ou numa assembléia. Para ele, os juízes exercem sua autoridade no Estado, mas não de modo a enfraquecer a unidade do poder público. Eles devem ser “leões sob o trono” na expressão usada no ensaio “Sobre a judicatura”. Mas se estão sob o trono, nem por isso perdem a essência leonina. Ao garantir a aplicação da lei, agir como intermediários entre o poder soberano e os indivíduos privados, esclarecer antigas leis, os juízes excercem grande poder no Estado e na sociedade.
Os juízes, afirma Bacon ( ) devem recordar que seu ofício é jus dicere e não jus dare. Interpretar a lei e não fazer a lei. Eles devem ser mais ilustrados que inteligentes, mais respeitáveis do que plausíveis e mais desconfiados do que confidentes. O dever maior do juiz é suprimir a força e a fraude, pois a força é mais perniciosa quando aberta e a fraude quando oculta e disfarçada. Os juízes devem se acautelar contra as construções teóricas sistemáticas e inferências, porque não existe tortura pior do que a tortura das leis. Sobretudo no campo penal, eles devem ter cuidado. Paciência e gravidade nas audiências são necessárias, o juiz que fala em demasia não é um címbalo bem ajustado. São quatro as partes do juiz na audiência : dirigir tudo para a obtenção de evidências enquanto modera a extensão, a repetição, a impertinência da fala. Recapitular, selecionar, e citar os pontos materiais, do que foi dito. E dar a lei ou a sentença. Tudo o que estiver além disso é demasiado e procede da glória, do comichão de falar, da impaciência em ouvir, da memória curta, ou falta de atenção.
Bacon afirma que os juízes, embora não tenham lugar sobre o trono, devem manter o essencial da soberania, segundo a raison d´État. Eles devem “recordar a conclusão das Doze Tábuas Romanas, o preceito de que Salus populi suprema lex e saber que as leis, exceto quando voltadas para aquele fim, são capciosas, oráculos pouco inspiradores. Logo, é bom para o Estado que os reis e estamentos consultem com frequência os juízes. E que os juízes consultem com o rei e estamentos com a mesma frequência. A primeira ocasião, quando se trata de lei que interfira nos assuntos de Estado. E a segunda, quando há alguma análise a ser feita no Estado em matéria de lei. Porque muitas vezes as coisas conduzidas a juízo devem ser ligadas ao meum e tuum, quando a razão e a consequência interessa ao Estado. Assunto de Estado não são apenas as partes da soberania, mas tudo o que introduz alguma alteração considerável, ou precedente perigoso, ou se relaciona com uma grande parte do povo. Não se considere que as leis e a política (policy) se opõem. Elas são como os espíritos e tendões: uma se move com a outra. “Os juízes devem ignorar o seu próprio direito, ao ponto de pensar que nada sobrou para eles, como a principal parte do seu ofício, um uso sábio e aplicação das leis. Porque eles precisam recordar o Apóstolo quando disse de uma lei maior dos que as deles : Nos scimus quia lex bona est, modo quis ea utatur legitime (sabemos que a lei é boa, desde que usada por alguém com legitimidade)”. ( )
Os juízes garantem a obediência às leis. Mas são limitados pelo soberano. O que é a “lei do soberano”? A resposta mais direta encontra-se em Hobbes, secretário de Bacon e tradutor para o latim dos Ensaios. “Lex est mandatum ejus personae, sive hominis sive curiae, cujos praeceptum continet obedientiae rationem”. ( ) Desnecessário dizer a importância dessa tese hobbesiana para se pensar a difícil independência dos juízes. Enquanto “a lei natural é imediata em nós, pois conhecemos o mandamento divino em nossa razão, a lei civil é mediada pelo conjunto de regras com as quais a comunidade, por escrito ou oralmente, ou qualquer outro sinal adequado (signum idoneum) de sua vontade, comanda o uso da vontade para distinguir o certo do errado, o contrário à regra do que não é contrário”. ( ) Só a Commonwealth pode editar leis civis. O soberano é o único legislador, não submetido às mesmas leis civis. Essa tese é de Bacon, para quem a lei depende do soberano, posição contraria à de Coke para quem a Common Law é suprema. O longo tratamento da lei é feito por Bacon no tratado De Dignitate et augmentis scientiarum. No Livro VIII ele escreve sobre a raison d´État e cita Maquiavel, com atilada análise da política exterior no comércio e demais segmentos estratégicos. No título I do Terceiro capítulo do mesmo Livro VIII (“A certeza é a primeira dignidade das leis”) afirma-se: “a melhor lei é a que deixa pouco à disposição do juiz”. A incerteza da lei vem sobremodo de sua forma ambigüa. Se a melhor lei é a que deixa pouco ao juiz, “o melhor juiz é o que menos deixa à sua própria vontade”. Importa deixar clara a gênese da lei. Em toda sociedade civil há uma autoridade legislativa como “absoluto poder (summa potestas) que faz e revoga a lei”. ( )
Bacon ocupou cargos no Estado e na justiça inglêsa. Foi Solicitor General (1607), Attorney General (1613), Lord Keeper (1617) e Lord Chancellor (1618). Sua atividade constante, no entanto, consistiu em aproximar o rei do parlamento, “duas bases e princípios deste Estado (…) que não se anulam, mas se fortalecem e mantêm um ao outro”. Mas ora ele dá um peso maior a um, ora a outro elemento. O rei possui prerrogativas “mediatamente devido às leis, mas imediatamente de Deus” e não pode ser censurado por nenhum juiz, por estar além de toda jurisdição. Mas, como o seu oficio é preservar o público, espera-se que ele não desobedeça a lei. Um bom rei governa com a lei. Embora “legibus solutus, seus atos e garantias são limitados pela lei”. ( ) Bacon defendeu os privilégios dos Comuns em 1593, e por isto a carreira foi-lhe subtraida sob Elizabeth II. O trato com James foi mais balanceado, embora o soberano insistisse num absolutismo extremo que o colocando-se como vice-deus. A confiança de Bacon no Parlamento foi recompensada. Em 1614 os Comuns decidiram que nenhum Attorney General teria lugar na Casa das Leis, mas fizeram exceção para Bacon. ( )
Chegamos aos juízes em Hobbes. É essencial recordar que para o filósofo a soberania bane da ordem pública os juízos com origem privada, pois eles geram a polêmica. Não existe medida comum para o juízo moral e indivíduos diferentes percebem as coisas de modo diferente, desenvolvem diferentes paixões. Ninguém concorda sobre o bem e o mal, certo ou errado, justo ou injusto. E o juízo de cada um tende a se ampliar ao infinito, na medida mesma do desejo que desconhece limites (pleonexia). A guerra universal não é apenas física, mas psicológica porque inveja e ódio campeiam e cada pessoa julga-se mais esperta do que a outra. Paixões diversas e igualdade no poder mortífero levam à miséria. É impossível arrancar a força física dos homens, mas factível obrigá-los a abdicar da exteriorização de sua opinião privada. Todos devem renunciar ao “direito” de impor o juízo próprio aos demais. Visto que todos a partir da natureza possuem um direito igual, cada um pode entrar no pacto. E todos submetem-se ao juízo de um árbitro. Só o soberano guarda o direito natural e usa sem restrições a força física e o juízo próprio. ( [15])
O soberano concentra o poder de julgar em todas as matérias, nas leis, na administração, nos tribunais, guerra ou paz, controla a religião, decide o bom e o ruim. Este é o pressuposto para colocar limites nos desejos infinitos dos cidadãos. Como todos abrem mão do juízo privado, nada sobra para o direito de resistência que nele reside. Entre o real como o vemos e como ele existe ocorrem diferenças por construírmos um mundo pela imaginação que, por sua vez, é movida pelos nervos. O intelecto não possui perfeito conhecimento dos demais homens. Estratégico nos indivíduos “não é a verdade mas a imagem que faz a paixão. A tragédia afeta mesmo o assassino, quando bem desempenhada” (The Elements of Law). Paixão e imagem trazem rebeliões. O uso correto das palavras não consiste na verdade, mas serve para evitar ambigüidades nocivas. A distinção entre o nosso interior e o mundo externo acentua a ausência de medida comum de bem e mal. Os indivíduos discordam sobre o certo e o errado e são incompetentes para emitir tais juízos. “Os homens, veementemente amorosos de suas próprias novas opiniões (as mais absurdas) e decididos com obstinação a mantê-las, deram às opiniões o reverenciado nome de consciência, como se julgassem ilegal mudá-las ou falar contra elas”.
Os homens fundamentam seus atos em raciocínios, concebem “a consequência dos nomes de todas as partes para o nome da totalidade, ou dos nomes da totalidade e de uma parte para o nome da outra parte (…) E os juristas somam leis e fatos para descobrir o certo e o errado na ação dos homens privados”. Todo homem pode errar no cálculo, o que não quer dizer que inexista o bom juízo. “Ao surgirem controvérsias sobre um cálculo as partes precisam, por mútuo acordo (by their own accord) recorrer à razão certa de um árbitro ou juiz, a cuja sentença se submetem (…) Quando os que se julgam mais sábios do que todos os demais gritam e exigem uma razão certa para juiz, só procuram garantir que as coisas sejam asseguradas não pela razão dos outros homens, mas pela sua. É tão intolerável agir assim na sociedade dos homens como no jogo, escolhido o trunfo, usar como trunfo em todas as outras ocasiões a série de que se tem mais cartas na mão.” ( )
Hobbes afasta a fraude no “jogo” da sociedade civil, mas em proveito do soberano não preso a regras. Os particulares não têm mais direito (pois assumiram o pacto) de viver segundo a fraude. O soberano, cuja função é salvar o povo, não sofre esta limitação. O jogo opera com a inteligência e a imaginação dos indivíduos. Na sociedade civil, se todos jogarem sem regras, desaparece o jogo e nenhum jogador parte da igualdade das chances porque o truque se esconde e não se indica quem o usa (caso contrário, ele se transforma em guerra). O jogador sem regras usa o segredo, a simulação e a dissimulação. Ele finge seguir as regras, mas guarda para si mesmo o fato de que as desrespeita, simula aceitá-las, dissimula truques. O jogador comum opera com a imaginação e a discreção: ele deseja ganhar, imagina-se no instante em que vence (pode imaginar os frutos do ganho como riquezas, amores, etc) e ao mesmo tempo não pode revelar as cartas. O soberano não segue regras (não é jogador) e usa a discreção, a imaginação, a simulação e a dissimulação. Ele opera em pleno direito natural.
A imaginação indiscreta não é força. Quem usa o intelecto para o jogo exerce deliberada dissipação da mente (mind). Na ordem familiar são permitidos jogos com os sons e palavras equívocas pelos significados, com a desregrada sequência da imaginação (Fancy). Mas tal jogo é proibido no sermão ou diante de pessoas desconhecidas ou às quais deve-se reverência. A discreção traz as regras do trato que determinam a loucura (brilhante, pouco importa) de uns e a lucidez de outros. É possível ser discreto, mas perverso. “Caso à prudência se acrescente o uso de meios injustos ou desonestos, como os que os homens são levados a usar por medo e necessidade, temos a perversa sapiência (Crooked Wisdome) a que se chama astúcia (Craft) um sinal de pusilanimidade. A magnanimidade é o desprezo dos expedientes injustos ou desonestos, enquanto a Versutia —astúcia, sutileza— consiste em afastar um perigo ou incômodo presente mediante um maior ainda, como roubar uma pessoa para pagar a outra, esperteza de vistas curtas”.
Como fazer todos os jogadores seguirem as regras, sem truques? “As leis da natureza, justiça, equidade, modéstia, benevolência, fazer aos outros o que gostaríamos que eles nos fizessem sem o terror de algum poder (…), são contrárias às nossas paixões naturais, estas nos empurram para a parcialidade, orgulho, vingança e que tais. E pactos sem a espada, são apenas palavras (Covenants, without Sword, are but Words) e não possuem nenhuma força (strength) para assegurar um homem”.
O terror do poder dita as regras do jogo político e as impõe para todos e para cada um. A lei não é conselho, mas ordem do poder soberano, regra para uso e distinção do bem e do mal e do que é contrário ou não à regra (Rule). As leis são interpretadas pelo soberano e apenas por ele, ou pelos que ele designa para a tarefa de julgar. Elas não são julgadas pelos particulares. Quando o juízo privado pretende mudar as leis e o poder público, age tendo em vista a “consciência”. assume o papel de estraçalhador da Commonwealth. No De cive (capítulo 12) lemos que “muitos homens, que mesmo sendo bem apegados à sociedade civil, fazem por carência de saber (knowledge) inclinar a mente dos súditos à sedição, quando ensinam, aos jovens, a doutrina conforme às suas opiniões nas escolas, e ao povo todo nos seus púlpitos. Os que desejam levar aquela disposição aos atos, colocam todo o seu esforço nisso: primeiro, eles juntam todos os doentiamente afetados na facção e na conspiração; depois, eles mesmos buscam ter a maior força na facção. Eles os colocam na facção enquanto fazem de si mesmos os relatores e intérpretes dos conselhos e ações do homem individual, e nomeiam as pessoas e lugares para reunião e para deliberar sobre as coisas nas quais o governo atual deve ser reformado, segundo deve parecer melhor aos seus interesses. O alvo é fazer deles mesmos os que governam a facção e a facção deve ser tolhida por uma outra facção; ou seja, eles devem ter suas reuniões secretas em separado, apenas com poucas pessoas, reuniões nas quais eles podem ordenar o que devem a seguir propor numa Assembléia Geral, e por quem, e sobre quais assuntos e em que ordem cada um deverá falar, e como eles atrairão os mais poderosos e populares dentre os homens para a facção de seu lado. E quando eles conseguem grande o bastante, a qual podem dirigir (rule) pela sua eloquencia, eles a mobilizam para administrar os negócios. E assim, às vezes eles oprimem a sociedade (Commomwealth) quando não existe outra facção maior para se opor a eles; mas na maioria das vezes eles conseguem fazer aquilo e começam uma guerra civil. Porque a Loucura e a eloquência concorrem para a subversão do governo, de maneira igual à das filhas de Pélias, rei da Tessália, que conspiraram com Medéia contra seu pai. Elas iam restaurar o ancião decrépito em sua juventude, por conselho de Medéia cortaram-no em pedaços e o colocaram para ferver; em vão esperando o momento em que ele viveria novamente. Assim o povo comum em sua loucura, como as filhas de Pelias, desejando renovar o governo antigo, é conduzido pela eloquência de homens ambiciosos, como se tivessem enfeitiçados por Medéia; divididos em facções eles consomem em chamas em vez de reformar o governo”. ( )
“É preciso obedecer mais a Deus do que aos homens” ? ( ) A questão é impertinente porque as leis não governam consciências, mas regem palavras e atos. A Biblia ensina a obedecer o soberano “em todas as coisas”. O dilema (obedecer Deus ou obedecer o soberano) é desconhecido entre Judeus, Gregos, Romanos e gentios. Naqueles povos, as leis civis definiam o justo e o virtuoso e o culto externo a Deus. Os católicos têm essa dificuldade porque exigem para a autoridade religiosa poderes acima do civil. Quanto aos atos, a paz só é conseguida quando eles são regulados. Caso contrário, persiste a divisão no Estado devido à “liberdade” de consciência. Ser papista, luterano, calvinista, arminiano, como no passado paulistas, apolineanos, cefasianos não impede a obediência à ordem pública. “Paulo mostra que as questões trazidas pelos raciocínios humanos (human ratiocination) são perigosas para a vida cristã. No mundo civil quem resiste a um rei porque duvida de seu título ou porque é dominado pelas paixões, merece punição.Sendo a consciência apenas “opinião” ela não deve ela ser abolida, mas restrita no espaço público, que não pode ser uma soma heteróclita de opiniões, mas resultado de uma só “opinião” racional.
O debate sobre o destino post-mortem deve ser afastado das leis que regem o corpo social. Segundo Pierre Bayle “o sumário do Leviatã é que sem a paz não existe segurança no Estado e a paz não subsiste sem comando e o comando sem armas; as armas nada valem se não forem postas nas mãos de uma pessoa; o medo das armas não conduz à paz os impulsionados a combater por um mal ainda mais terrível do que a morte, isto é, pelas dissenções sobre as coisas necessárias à salvação eterna”. ( ) O Estado possui uma potência que chega ao nível espiritual, sempre que se trata da república. No pacto, o indivíduo aliena o direito de agredir os demais. O soberano, no entanto, choca-se com algumas barreiras para a sua soberania. Em termos lógicos: se todos abrem mãos de seu direito natural para afastar a morte, não tem sentido o Estado exigir contra eles o direito de vida e morte. A segurança é inalienável.
Ferdinand Tönnies ( ) editor e estudioso de Hobbes, contrário ao saber político e social mecânicos do Leviatã (Tönnies pertence à sociologia romântica) define dois modêlos contrários de ordem social, incluindo a pública. A sociedade é mecânica enquanto a comunidade é organismo vivo. “A distância que vai de uma ferramenta artificial ou a determinada máquina construída para certos fins, até um sistema orgânico ou a alguns orgãos concretos de um corpo animal, é a que vai de um conglomerado de vontade —vontade sobreposta— a um conglomerado de vontade vontade essencial”. Como indica Georg Lukács, “Tönnies pinta a sociedade com as cores da filosofia do direito de Hobbes, onde cada um é inimigo do outro e apenas a lei pode assegurar uma ordem externa.” ( )
A noção de poder, em Hobbes, não se desvincula da linguagem. Yves Charles Zarka chega a afirmar que a sua doutrina não se liga “tanto à física, mas à semiologia”. ( ) Fala, gestos, escrita sujeitam-se à ambigüidade e ao equívoco. A lógica fornece princípios do correto emprego das denominações. A pacificação requer uma lingua na qual os equívocos sejam atenuados. A lingua, antes embebida nas paixões, com o estado de natureza, no Estado é a única forma passível de uso científico com a proposição, porque afirma e nega, possibilita o juízo sobre o falso e o verdadeiro. “Quando um homem raciocina a partir de princípios indubitáveis por experiência, todos os engodos dos sentidos e equivocos de palavras evitados, a conclusão feita por ele concorda com a reta razão. Mas quando da conclusão ele pode, por bom raciocínio, derivar algo que contradiga qualquer verdade evidente, concluiu contra a razão e tal conclusão é absurda.” Dos absurdos nascem os fanatismos religiosos e políticos. No trato comum, são usados nomes extraídos da ignorância coletiva e na fala então importa, para que eles sejam lembrados, a coerência de uma concepção para outra. Mas se as palavras ajudam a memória, a comunicação e a vida em comum, elas podem transformar o convívio num inferno. Pelas palavras e raciocínios ultrapassamos as feras. Elas desconhecem o verdadeiro e o falso e não possuem juízo, não multiplicam uma não verdade por outra, como fazem os homens.
As paixões iniciam todos os movimentos voluntários e da fala. Querendo mostrar aos outros o saber, opiniões, concepções e desejos, e para isso inventado a linguagem, os homens transferem todo o discurso mental às palavras. E a ratio torna-se oratio “porque na maioria dos homens o costume tem um poder tão grande que se a mente sugere uma palavra inicial, o resto delas segue-se pelo habito e a mente não as acompanha. É o que ocorre entre os mendigos quando rezam seu paternoster. Eles unem tais palavras e de tal modo, como aprenderam com suas babás, companhias ou seus professores, e não têm imagens ou concepções na mente para responder às palavras que enunciam.” ( )
As palavras, quando se trata de uma lei, precisam ser entendidas por todos os que a devem acolher. Como seguir uma ordem quando ela foi emitida em lingua obscura, acessível apenas aos juristas ? Não basta o juiz entender as partes: é preciso que ele sempre se faça entender. ( ) Para que se obedeça é obrigatório que a lei seja promulgada em lingua conhecida por ele. Urge que a pessoa saiba as penalidades a que se submeterá e se defenda em lingua acessível ao juiz e aos concidadãos. Se os últimos o compreendem, mesmo o juiz parcial terá trabalho para impôr uma sentença errônea.
O juiz pode errar quando interpreta a lei. Logo, ele deve estudar a equidade. “Por exemplo, é contra a lei da natureza punir o inocente; e inocente é o absolvido judicialmente, reconhecido inocente pelo juiz. Coloque agora o seguinte caso: um homem é acusado de crime capital e face ao poder e a malícia de algum inimigo, a corrupção freqüente e parcialidade dos juízes, foge com medo, é pego e conduzido a um julgamento e como não tinha culpa, é absolvido mas condenado a perder seus bens; esta é uma condenação manifesta do inocente. Não há lugar do mundo em que isso poderia ser uma interpretação da lei da natureza, ou transformado em lei pelas sentenças dos juízes precedentes que fizeram o mesmo. Porque o primeiro que julgou, o fez injustamente; nenhuma injustiça pode ser modelo de juízo para os juizes subsequentes. Uma lei escrita pode proibir os homens inocentes de voar e eles podem ser punidos por voar; mas que voar por medo de injúria seja tomado por presunção de culpa, depois que alguém já foi absolvido judicialmente do crime, é contrário à natureza da presunção, que não tem lugar depois que o juízo foi dado”.
Hobbes distingue o cavilador e o intérprete. Um cavilador traz outros, ao infinito. Mas deve existir um intérprete, o juiz ordinário, que também interpreta as leis não escritas. As sentenças desse juiz não podem obrigar outros juizes “porque um juiz pode errar até na interpretação das leis escritas; mas nenhum erro de um juiz subordinado pode mudar a lei, a qual é a sentença geral do soberano”. Quais as condições para que o juiz seja intérprete das leis? Entendimento reto da principal lei da natureza, a equidade, que não depende das leituras de outros homens, mas da bondade da razão natural própria. Segundo: desprezo de bens desnecessário e promoções. Terceiro, ser capaz de num julgamento retirar de si todo medo, ira, ódio, amor e compaixão. E finalmente, paciência para ouvir, atenção diligente na escuta, memória para reter as peças, aplicação ao que ele tiver ouvido. A razão, que chega à equidade, deve afastar ou controlar as paixões mais notórias do trato entre as pessoas. Hobbes acentua a ambição como algo que não deve integrar a alma do juiz. Tanto, ou mais do que as outras paixões, a fome de bens ou cargos tolda o juízo, torna a mente fechada para as evidências e para a fala das testemunhas, do réu, da outra parte.
No Leviatã, a mente apaixonada curva-se à fantasmagoria que ela própria gera, tendo como objeto os demais seres humanos. É o reino da mentira. O Behemoth traz a seguinte afirmação : “Um Estado pode constranger à obediência, mas não convence ninguém de erro, nem altera as mentes dos que acreditam possuir a melhor razão. A supressão da doutrina não une mas exaspera, aumenta a malícia e o poder dos que nela acreditam” ( ) “Porque as palavras não são isentas de jurisdição?”. Hobbes une as falas sediciosas à atividade rebelde, particularmente na análise da autoridade espiritual que tenta controlar a soberania civil”. ( ) Tais falsos mestres são os agentes do “Reino das Trevas”, em contraste com a luz da verdadeira religião e do entendimento. “Em particular, os pregadores sediciosos do Evangelho interpretam a Escritura para provar, acima de tudo, que sua igreja é o reino de Deus. Consequentemente, as pessoas que eles enganam obedecem tais mestres mais do que aos soberanos civís.” ( )
Além dos mentirosos pregadores que desejam impor a soberania de seu grupo, seitas ou igrejas, sobre todos os demais cidadãos, Hobbes refere-se no Leviatã às Histórias ou Ficções das pessoas galantes. Este é um lugar comum da filosofia contra os historiadores e os poetas. A condenação da mentira é velha como a filosofia, ou ainda mais arcaica. ( ) Se é preciso impedir a fraude, o truque, para conseguir a estrita obediência às leis urge que o soberano impeça a difusão de mentiras, o refinamento na arte de escrever com duplicidade. O Estado deve banir, com os mentirosos habituais, os que trapaceiam no jogo político de maneira eficaz, pois eles modificam o sentido das palavras e das frases. Proibidas as armas físicas, é preciso cuidar das espirituais, começando com as exercidas na lingua.
A polissemia atropela a obediência, enquanto a mentira é truque insidioso que reintroduz a ferocidade recíproca. Nos Elements of law os termos Sleight and strength são usados para definir o estado de natureza no trato dos homens. A dupla de palavras apresenta grande interesse na análise hobbesiana da existência antes que a multidão se transformasse em Estado. ( ) Os humanos, mesmo depois do pacto, enganam-se mutuamente com truques hábeis de linguagem, no mesmo instante em que desobedecem a lei e tentam usar a força física. ( ) Como o pacto não é obedecido por todos os indivíduos, sendo motivo de queixa contra os atos ilegais dos que, na república, são importantes e ricos, o soberano é impelido a agir de acordo com a simulação, a dissimulação e a mentira. Ele é presditigitador e mágico, mestre na arte de enganar, sobretudo pelo raciocínio. Aproximemos a lente do panorama inaugural do Estado. Se na gênese do Estado à multidão fosse permitida a licença de enganar por meio de truques, jamais haveria segurança coletiva. E se fosse permitido aos indivíduos os truques sofísticos no espaço público, permaneceria a insegurança. Mas se fosse proibido ao soberano o uso das simulações e dissimulações, zonas inteiras de poder seriam conhecidas pelos inimigos externos e utilizadas pelos cidadãos ambiciosos de vantagem própria, o que anularia as regras do pacto.
Surge o problema por excelência do pensamento filosófico e político: o acesso à razão e a vitória sobre os engodos de outros Estados e dos particulares. Hobbes conhece os textos de Seneca. A fama conduz aos atos mais insensatos, pois exige a boca e os ouvidos da multidão que se deixa enganar pelos demagogos. ( ) No Leviatã e no De corpore, por ser restrita à experiência a prudente sabedoria não possibilita a generalização cognitiva, não produz a medida universalmente válida do justo e do injusto. ( ) Nos Elements of law a prudência dá lugar à força que inibe as paixões desagregadoras dos particulares, força usada pelo soberano autorizado no pacto. ( [33]) A disciplina se apresenta como o eixo político no De cive : ad societatem homo aptus non natura; sed disciplina (I,2). A prudência, ligada à razão de Estado, aparece aqui e ali no De cive. No mesmo livro Hobbes diz que os governantes conservam a astúcia e a força (sleight or force). Vimos que nos Element of law, sleight é palavra usada com o vocábulo strength, para definir o estado de natureza.
Quando afirma no De cive uma Reason of City (Civitas, no latim), Hobbes guarda o sentido renascentista dado à razão estatal, tendo como núcleo a prudência. Daí o apelo, notável no referido volume, ao segredo e aos espiões. Entre o segredo (a máxima obscuridade) e os espiões (encarregados de penetrar a obscuridade alheia) a prudência do soberano traz segurança para a Civitas. Os soberanos que usam sleight or force, permanecem no estado de natureza e podem usar a força, a fraude, a mentira, a espionagem, não precisam manter a palavra porque não existe nenhum pacto que una os Estados, nenhum soberano que imponha uma lei obrigatória para todos.
Se no âmbito mundial opera a razão de Estado em guerra permanente, no plano interno a transferência do poder mortal não pode deixar ambiguidade na lei, Nas relações de cidadão a cidadão a mentira ou engodo deve ser reprimida. No Leviatã quase desaparecem as antigas formas de pensamento prudencial, ou seja, da razão de Estado. Se esta última opera com force and fraud, o uso de semelhantes técnicas de dominação entre cidadãos conduziria à ruina da república. ( ) Contra o uso da força e da fraude, no interior da república, o soberano deve providenciar para que o povo não seja ignorante “ou pouco informado das bases, e razões dos seus direitos essenciais; porque assim os homens são seduzidos fácilmente, e levados a resistir-lhe, quando a República deve exigir seu uso e exercício”. ( ) Em qualquer Estado, generaliza Hobbes, sem a obediência o povo é dissolvido por “homens poderosos que digerem com muita dificuldade tudo o que estabeleça um poder para controlar suas afecções”. Os “eruditos também resistem ao poder que descubra seus erros, e diminua a sua autoridade (Authority)”. Enquanto os poderosos, estão cheios de ambição de poder e os letrados mergulham na ambição de autoridade, porque suas mentes estão abarrotadas de doutrinas mentirosas e fraudulentas, “as mentes do povo comum, enquanto não forem tingidas pela sua dependência diante dos poderosos, ou rabiscada pelas opiniões dos doutos, são como papel limpo, apropriadas para receber tudo o que a Autoridade Pública nelas imprimir”. ( [36])
E encontramos novamente a fábula de Medéia : o desobediente deseja reformar a República, mas a destrói “como as ensandecidas filhas de Peleu, na fábula, as quais desejando renovar a juventude do seu pai decrépito, por conselho de Medéia o cortaram em pedaços e o colocaram para ferver, sempre com suas estranhas ervas, mas não fizeram dele um homem novo. Este desejo de mudanças é como a desobediência do primeiro mandamento divino: porque Deus disse, Non habebis Deos alienos: Não terás deuses de outras nações´., e em outro lugar , em relação aos reis, que eles são deuses”. ( [37]) Quais “deuses” não podem coexistir com o “deus mortal”, o Leviatã ? Os poderosos, os letrados, as cidades que pretendem possuir independência na República. “Os que pretendem agir segundo a prudência política”, diz Hobbes, tendem a afirmar a “liberdade de disputar o poder absoluto”. Estes são os poderosos e populares. “A menos que a República (Commonwealth) tenha muito penhor de sua fidelidade, eles são uma doença muito perigosa; porque o povo, que poderia receber seu movimento da autoridade soberana, pela adulação (flattery) e pela reputação de um homem ambicioso, é arrancado de sua obediência às leis para seguir um homem cujas virtudes e designios eles não conhecem. E isso é mais comumente perigoso num governo popular do que na monarquia, porque um exército com possui maior força e número pode facilmente fazer acreditar que eles são o povo. É assim que Julio Cesar, que subiu ao poder pelo povo e contra o senado, tendo ele mesmo vencido as facções de seu exercito, controlou o senado e o povo. E este modo de agir de homens ambiciosos é rebelião clara, e pode ser comparada aos efeitos da feitiçaria (witchcraft). Outra doença da República é “a grandeza imoderada de uma cidade, quando ela pode fornecer para fora de seu próprio circuito o número e a despesa de um grande exército, como também doentio pode ser o número de corporações, que nos intestinos da república são como vermes nas entranhas de um homem natural. E devemos acrescentar a liberdade de disputa contra o poder absoluto conduzida pelos campeões da prudência política, os quais alimentados na maior parte na laia do povo, e animados por doutrinas falsas, sempre dão palpites sobre as leis fundamentais e molestam a república, como vermezinhos chamados ascarídeos pelos médicos”. ( [38])
Embora Hobbes acelere a secularização do poder, é preciso sublinhar que de James I até o Leviatã um ponto permanece intocado, exasperando-se mesmo após a Revolução Puritana : o soberano não deve satisfações aos parlamentos, aos juízes, aos súditos. Esta tese foi combatida desde longa data na Inglaterra, sendo que no tempo de Bacon e de Hobbes Edward Coke defendeu a independência dos juizes, contra a Igreja Anglicana e contra o rei James I. Ao replicar ao rei que defendia suas prerrogativas contra “os advogados” Coke chegou a afirmar que o soberano “não foi educado no conhecimento das leis da Inglaterra”. James I, mais do que ofendido, afirmou que se Coke tivesse razão, ele deveria estar sob a lei, “ traição evidente”. E o governante cita Bracton : “Rex non debet esse sub homine sed apud Deo et lege”. O autor do Basilicon Doron e do tratado The True Law of Free Monarchies or the Mutual Duty Betwist aa Free King and His Subjects, escrevera que “um bom rei enquadra todas as suas ações segundo a lei; mas ele prende-se a ela, só pela sua boa vontade e para dar exemplo aos súditos. Ele é o senhor sobre todas as pessoas, tem poder de vida e morte. Embora um principe justo não tire a vida de nenhum súdito sem uma lei clara, a mesma lei com a qual ele tira a vida é feita por ele mesmo or seus predecessores”. Além de pai do seu povo, o rei, segundo Jaime, seria o professor universal, pois os súditos são fracos e ignorantes. E assim, ele é em tudo independente do judiciário: “A ruindade de um rei nunca pode fazê-lo ser julgado pelos juízes que ele próprio ordenou”.
Na fala ao Parlamento de 1616, ele proclama que “os reis são justamente chamados deuses; pois eles exercem um modo de semelhança do Divino poder sobre a terra. Porque se forem considerados os atributos de Deus, ve-se o quanto eles concordam com a pessoa de um rei. Deus tem poder de criar ou destruir, fazer ou desfazer ao seu arbitrio, dar vida ou enviar a morte, a todos julgar e a ninguém prestar contas (to be accountable). O mesmo poder possuem os reis. Eles fazem e desfazem seus súditos; têm poder de erguer e abaixar; de vida e morte; julga acima de todos os súditos em todos os casos e só deve prestar contas a Deus (yet accountable to none but God). Eles têm o poder de exaltar as coisas pequenas e rebaixar as altas e fazer de seus súditos como fazem os jogadores com as peças de xadres”. Ainda em 1616 o monarca assim se dirigiu aos juízes da Star Chamber: “não usurpem a prerrogativa da Coroa. Se aparecer uma questão ligada à minha prerrogativa ou mistério do Estado, trato que não lhes diz respeito, consultem o rei ou o seu conselho, ou ambos; porque tais matérias são transcendentes. As prerrogativas absolutas da Coroa não é assunto para a lingua de um advogado, nem é legal disputar sobre elas”. Coke em companhia de outros juristas foi preso na Torre de Londres por nove meses, devido à resistência à referidas prerrogativas. Não é por acaso que James I evocou Bracton para afiançar o seu poder. Mas dele fez uma leitura unilateral ao acentuar o seu mando em trato com o ser divino. ( [39])
Bracton ( [40]), em vez de garantir um poder sobrenatural absoluto do rei, recolhe o debate sobre as bases pelas quais os dirigidos devem e podem obedecer aos reis e magistrados. Em seu tempo a adesão à ordem legal imposta pelo governante e aprovada pela Igreja, era exigi a imitação do Cristo. Essa foi a maneira pela qual Bracton resolveu o problema do governante acima e abaixo da lei. A solução evidentemente passou pela teologia, no processo analógico. A Virgem é ao mesmo tempo mãe e filha de Deus (Nata nati, mater patris). No De legibus et consuetudinibus Angliae Bracton então o ponto: “o poder do rei refere-se à geração da lei e não à injúria. Como ele é auctor iuris, uma oportunidade para a iniuria não pode nascer no mesmo lugar onde nascem as leis”. ( [41]) Gerador da Lei, o rei define-se como o seu intérprete maior. “O rei é filho da lei, mas torna-se pai da lei” e sua legitimidade requer a base teológica. “O rei”, afirma Bracton, “não tem outro poder, desde que ele é o vigário de Deus e seu ministro na terra, exceto isto apenas, que ele deriva da lei”.
E mais: “o próprio rei deve estar, não sob o homem, mas sob Deus e sob a lei, porque a lei faz o rei…Porque não existe rei onde domina a vontade arbitrária e não a lei. Ele deve estar sob a lei porque é vigário de Deus, o que fica evidente pela similitude com Jesus Cristo em cujo nome ele governa sobre a terra”. Cristo, embora Deus, pagou impostos a Cesar e colocou-se sob a lei enquanto homem. O rei, como Jesus, é servus legis e dominus regis. Mas ele só é vicarius Dei quando fiel intérprete da lei, a ela submetendo-se como o Cristo. Aí ele pode ser elevado acima da lei e se torna legislador (auctor iuris) mas de acordo com a lei. Se o círculo do rei como maior et minor se ipso se quebrar e se desaparecer a interpretação correta da lei, o governante tomba na situação de puro tirano. Em termos teológicos Bracton chega à solução : o rei é semelhante a Deus (sobre a lei) quando julga, legisla e interpreta a lei. Ele é sob a lei porque a ela se submete. O nexo entre rei e Deus prolonga o mandamento de que Nullum tempus currit contra regem (o tempo não corre contra o rei), o que implica no enunciado de que Longa possessio parit ius (a longa possessão gera o direito). Tudo o que se liga aos bona publica é integrado no registro a-temporal e são res quasi sacrae. Na teologia jurídica os Bona patrimonialia Christi et fisci comparantur (pode-se comparar os bens patrimoniais do Cristo e do fisco). Cristo e Fisco tornam-se comparáveis quanto à inalienabilidade e à prescrição. O sacratissimus fiscus torna-se alma do Estado. Como Cristo, Fiscus ubique praesens.
Vimos acima Jaime I afirmar o “mistério do Estado”. O segredo, no entanto, não pode ser atribuído apenas à instituição estatal. Antigo na história —Simmel diz que ele “é uma das maiores conquistas da humanidade” ( [42]) — o sigilo atingiu pleno sentido político na vida moderna. A sua prática passou das corporações aos setores administrativos, aperfeiçoando-se ao máximo. Os momentos decisivos do Estado moderno, a sua inauguração enquanto poder secular e sem a tutela religiosa, se inicia com a necessidade urgente de saber sobre o que e sobre quem reinava o principe.
No início do Estado moderno a legitimidade do governante ainda reside no divino. ( [43]) Mas a razão de Estado afasta os conceitos teológico-politicos e assume a linguagem do interesse de Estado. Neste processo, juristas e teólogos como Botero, em resposta ao desafios de Maquiavel, definem o uso legítimo dos poderes tendo como alvo manter e expandir os bens públicos. ( [44]) A nova razão de Estado incorpora o segredo para garantir o gabinete real, lugar onde não são admitidos os homens comuns. Aceito com reservas pela Igreja, o segredo é a marca dominante do Estado laico. Se o secretário (a origem do termo é marcada pela própria palavra do segredo) e o governante devem ocultar tudo o que for possível aos que não têm acesso aos gabinetes eles, no entanto, devem descobrir tudo o que estiver para além das fronteiras de seu Estado e na mente e no coração dos dirigidos.
Do gabinete onde se oculta, o príncipe nota o que para a maioria dos cidadãos passa desapercebido. Este ideal do governo que tudo enxerga, tudo ouve, tudo alcança, é a base histórica dos atuais serviços de informação. O governante acumula segredos e deseja os súditos sejam exposto a uma luz perene. Desse modo se estabelece a heterogeneidade entre governados e dirigentes. Na aurora dos tempos modernos “a verdade do Estado é mentira para o súdito. Não existe mais espaço político homogêneo da verdade; o adágio é invertido: não mais fiat veritas et pereat mundus, mas fiat mundus et pereat veritas. As artes de governar acompanham e ampliam um movimento político profundo, o da ruptura radical (…) que separa o soberano dos governados. O lugar do segredo como instituição política só é inteligível no horizonte desenhado por esta ruptura (…) à medida que se constitui o poder moderno. Segredo encontra sua origem no verbo latino secernere, que significa separar, apartar”. ( )
No mesmo período surgem as guerras de religião ocasionadas pela Reforma. As revoltas alemãs e francêsas (a barbárie da Noite de São Bartolomeu), atingem a Inglaterra. Para espanto do clero e da aristocracia, as massas populares aprenderam a desobedecer as ordens dos príncipes. A antiga imagem do povo se exaspera. É conhecido o texto de Etienne de La Boétie, O Discurso da Servidão Voluntária. ( ) Pouco se analisou o importante escrito do mesmo autor intitulado Mémoires de nos troubles sur l´Édit de janvier 1562. ( ) Devido às lutas religiosas na Guiana, a corte envia o magistrado aos locais para analisar e depois escrever um texto com sugestões políticas e jurídicas. É clara a cautela de La Boétie frente ao povo. Seria preciso impedir que o populacho tivesse ilusões de poder. Nas guerras religiosas que espalham “um ódio e maldade quase universais entre os súditos do rei” o pior é que “o povo se acostuma a uma irreverência para com o magistrado e com o tempo aprende a desobedecer voluntariamente deixando-se conduzir pelas iscas da liberdade, ou melhor, licença, que é o mais doce e agradável veneno do mundo. Isto ocorre porque o elemento popular, tendo sabido que não é obrigado a obedecer ao príncipe natural no relativo à religião, faz péssimo uso dessa regra, a qual, por si mesma, não é má, e dela tira uma falsa consequência, a de que só é preciso obedecer os superiores nas coisas boas por si mesmas, e se atribue o juízo sobre o que é bom ou ruim. Ele chega afinal à idéia de que não existe outra lei senão a sua consciência, ou seja, na maior parte, a persuasão de seu espirito e suas fantasias (…) nada é mais justo nem mais conforme às leis do que a consciência de um homem religioso temente a Deus, probo e prudente, nada é mais louco, mais tolo e mais monstruoso do que a consciência e a superstição da massa indiscreta”. ( ) E arremata: “O povo não tem meios de julgar, porque é desprovido do que fornece ou confirma um bom julgamento, as letras, os discursos e a experiência. Como não pode julgar, ele acredita em outrem. Ora, é comum que a multidão creia mais nas pessoas do que nas coisas, e que ela seja mais persuadida pela autoridade de quem fala do que pelas razões que se enuncia”.
Gabriel Naudé fala do segredo e da desconfiança universal que obrigam o governante a se preservar “dos engodos, ruindades, surprêsas desagradáveis” quando a massa está inquieta. Na crise de legitimidade é preciso cautela contra o animal de muitas cabeças, “vagabundo, errante, louco, embriagado, sem conduta, sem espírito nem julgamento….a turba e laia popular joguete dos agitadores: oradores, pregadores, falsos profetas, impostores, políticos astutos, sediciosos, rebeldes, despeitados, supersticiosos”. ( )
Assim, os teóricos da soberania popular não conseguiram audiência nas cortes e parlamentos aristocráticos. A universitas, communitas ou corpus, o povo reunido com majestade, toda essa constelação conceitual sofreu críticas desde os seus momentos iniciais. De outro lado, os que defenderam personalidade jurídica para o povo, tomaram cuidado para que a soberania popular não fosse absorvida pelos representantes. ( ) “Já no final do século 13 a doutrina filosófica do Estado definiu o axioma de que o fundamento jurídico de todo governo reside na submissão voluntária e contratual das comunidades governadas. E foi declarado que por um principio de direito natural ao povo e apenas a ele, cabia colocar-se como chefe (…) do poder estatal. Althusius afirma ser impossivel diminuir a soberania popular com base no contrato”. ( ). O povo seria o summus magistratus.
É contra a massa popular que os autores favoráveis à monarquia de direito divino se colocaram na Inglaterra do século 17. As convulsões sociais e políticas que reuniram todos os prismas da vida capitalista triunfante ergueram a força popular traduzida em facções, dos Levellers aos Diggers, mesclando religião e imperativos democráticos. Quando a cabeça de Carlos I foi cortada, rompe-se o laço entre o corpo do Rei e a divindade, toma novo sentido o princípio da accountability, exigência que segue a fé pública. John Milton expressa o princípio: “Se o rei ou magistrado provam ser infiéis aos seus compromissos, o povo é liberto de sua palavra”. Estas frases postas em The Tenure of Kings and Magistrates ( ) definem a nova legitimidade. O summus magistratus popular exige responsabilidade dos que agem em seu nome.
Milton retoma os democratas inglêses. Não por acaso tais enunciados foram recolhidos pelo inimigo da democracia no período, Thomas Edwards, num catálogo de “heresias” que tinham a pena de morte como castigo. O erro dos democratas, diz Edward, reside em afirmar que “ o poder supremo só pertence à Casa dos Comuns, porque só ela é escolhida pelo povo. O estado universal, o corpo do povo comum é o soberano terrestre, o senhor, rei e criador do rei, dos parlamentos, e todos os ministros da justiça. Majestade indeclinável e realidade residem de modo inerente no estado universal; e o rei, parlamentos, etc., são as suas meras criaturas que devem prestar contas a eles, os quais deles dispõem a seu arbitrio; o povo pode pedir de volta e reassumir seu poder, questioná-los, e colocar outros em seu lugar” (eu sublinho, RR) ( ) Thomas Edwards era um acadêmico de primeira plana e seus enunciados baseiam-se em fontes (sobretudo delações) e documentos. Se consultarmos historiadores da política inglêsa no período, confirma-se a veracidade dos enunciados atribuidos por Edwards aos democratas. ( )
As teses democráticas inglêsas repercutiram pela Europa inteira a partir do período. As Luzes francêsas foram uma imensa tradução para o continente do pensamento produzido na Inglaterra desde o século 16 ( ). “Não existe verdadeiro soberano a não ser a nação; não pode existir verdadeiro legislador, a não ser o povo; é raro que o povo se submeta sinceramente a leis impostas; ele as amará, as respeitará, obedecerá, as defenderá como sua obra própria se é delas o autor (…) A primeira linha de um código bem feito deve ligar o soberano; ele deve começar assim : `Nós, o povo (início da Constituição norte-americana : We the People…RR) ( ) e nós, soberano desse povo, juramos conjuntamente essas leis pelas quais seremos igualmente julgados; e se ocorrer a nós, soberano, a intenção de mudá-las ou infringi-las, como inimigo de nosso povo, é justo que que o povo seja desligado do juramento de fidelidade, que ele nos processe, nos deponha e mesmo nos condene à morte se o caso exige; esta é a primeira lei de nosso código. Desgraça ao soberano que despreza a lei, desgraça ao povo que suporta o desprezo em relação à lei”. ( )
Robert Derathé registra que essa tese, com fortes conseqüências na feitura das leis, não existe nos países que hoje se julgam democráticos. Neles, "é raro que uma lei possa ser votada sem o assentimento do governo". Como educar a cidadania para que ela exerça o poder soberano, sem cair nas mãos dos demagogos? Apenas depois de 1791, por exemplo, Robespierre assumiu a soberania popular. No discurso Sobre a Constituição (10/05/1793) ele toca a aporia ainda hoje irresolvida: "Dar ao governo a força necessária para que os cidadãos respeitem sempre os direitos dos cidadãos; e fazer isto de tal modo que o governo nunca possa violar os mesmos direitos". O governo, continua, "é instituído para fazer a vontade geral respeitada. Mas os governantes possuem uma vontade particular: e toda vontade particular tenta dominar a outra". Qualquer constituição deveria "defender a liberdade pública e individual contra o próprio governo". A solidez de uma Constituição se baseia "na bondade dos costumes, no conhecimento e no sentido profundo dos sagrados direitos do homem". Tangido pelas massas os jacobinos encaram o problema do governo comum e suas diferenças com o governo revolucionário. O governo revolucionário extrai legitimidade da "mais santa dentre as leis, a salvação do povo" e da necessidade. Governo revolucionário não significa "anarquia nem desordem. O seu fim é, pelo contrário, reprimir as duas coisas, para conduzir ao domínio das leis (...) quanto maior o seu poder, quanto mais sua ação é livre e rápida, tanto mais é necessária a boa fé para dirigí-lo". A mudança de "soberania popular" para "ditadura" é clara. A última salva o povo. ( )
E se os ditadores usufruírem o poder para si apenas? A resposta de Robespierre desalenta: o ditador deve ser virtuoso. Na Convenção jacobina o governo, para "instituir" a República torna-se "superior" à população. Mas os sans culotte, nas Assembléias Populares, insistiam na idéia e na prática da soberania do povo e na demissão sumária dos deputados ("mandatários"), juízes e demais servidores públicos. Em 1º de setembro de 1792, a seção "Poissonière" declara: "considerando que o povo soberano tem o direito de prescrever aos seus mandatários a via a ser seguida para agir conforme a sua vontade", os nomes dos deputados deveriam ser discutidos, aprovados ou reprovados pelas Assembléias primárias. A Assembleia Geral do "Marché-des-Innocents" decide em 25 de agosto de 1792" que os deputados serão demissíveis por vontade de seu Departamento, bem como "todos os funcionários públicos".
Os enciclopedistas e seus discípulos como Condorcet, tinham se preocupado com a formação intelectual das massas populares, conditio sine qua non da ordem democrática moderna. Democracia exige eleições. Mas estas podem deseducar o povo e os escrutínios trazem respostas incertas ou enganosas, perigo pressentido por Condorcet. Mesmo no Estado democrático “o poder se imiscui na operação eleitoral e a influencia: ele deseja demais uma ´representação´ favorável. E três “imagens” são misturadas nas eleições : a real, se a palavra tem sentido, a normativa ou potencial, porque se trata se conseguir uma direção no futuro, e a desejada e querida, porque os manipuladores tendem a se perpetuar nos cargos e tentam desregular os indicadores(…) os modos de escrutínio contam mais do que o resultado final, pois ele depende deles”. ( [59])
O rei, na instauração do Estado, foi conduzido ao segredo. O soberano popular segue o mesmo rumo quando sua prerrogativa se manifesta na hora do voto. Alí, supostamente, reina o segredo. Todos conhecem a passagem de Montesquieu no Espírito das Leis, mas a cito: “A lei que fixa a maneira de conceder os bilhetes dos sufrágios é ainda uma lei fundamental na democracia. É uma grande questão se os votos devem ser públicos ou secretos. Cicero escreve que as leis que os tornaram secretos nos últimos tempos da república foram uma das grandes causas de sua queda (…) Sem dúvida, quando o povo vota, o voto deve ser público e deve ser visto como lei fundamental da democracia. É preciso que o povinho (´petit peuple´) seja esclarecido pelos principais e contido pela gravidade de certos personagens”. ( ) Rousseau comenta o segredo deseducador do voto. Nas antigas repúblicas virtuosas “cada um tinha vergonha de dar publicamente seu sufrágio a uma opinião injusta ou assunto indigno, mas quando o povo se corrompeu e seu voto foi comprado, foi conveniente que o segredo fosse instituido para conter os compradores pela desconfiança e fornecer aos salafrários (´fripons´) o meio de não serem traidores”. ( ) Condorcet foi contrário ao voto secreto. Mas seus motivos diferem dos enunciados por Montesquieu e Rousseau. Ele é o autor de projetos de educação popular e conhece os problemas matemáticos suscitados nas eleições. Dos votos tudo pode sair, inclusive servidão. Ele mostra como o voto simples (sim e não) traz o arbitrário quando se trata de decidir entre diferentes programas ou pelo menos três candidatos. Este é o sentido do “paradoxo de Condorcet”, atualização do “paradoxo de Bordas”. Com este escrutinio tem-se a maior probabilidade de transformar a maioria em minoria, e vice versa. “É possível, se houver apenas três candidatos, que um entre eles tenha mais votos do que os dois outros e que, entretanto, um desses últimos, o que teve menor número de votos, seja olhado pela pluralidade como superior a cada um dos seus concorrentes”. Após demorada análise matemática, ele enuncia que numa eleição assim, o mais contestado pode ser eleito, enquanto o melhor, na hipótese de um escrutínio plunominal, eliminado. ( ) O paradoxo de Condorcet é estudado ainda em nossos dias. ( )
As multidões não foram ensinadas ao voto segundo o cálculo das probabilidades. No Termidor, a massa popular perdeu a soberania e foi substituida pelos proprietários, seguindo a receita de Boissy d´Anglas em discurso de 5 Messidor, ano 3: "Devemos ser governados pelos melhores (...) ora, com poucas exceções, só podemos encontrar semelhantes homens entre os que, possuindo uma propriedade, são apegados ao país que a contém, às leis que a protegem, à tranqüilidade que a conserva". Para o termidoriano, a lei não é máxima derivada do nexo entre princípios e situação. Somem as exigências do povo, a accountability e a destituição do governante. Com Napoleão e sua ditadura, imenso maquinismo operado pelo segredo, foram dadas as condições para o fim da doutrina sobre a soberania popular direta.
Chegamos ao período do pensamento conservador, no qual o Brasil passa a representar uma entidade estatal independe no planeta. Ele recebeu muito alimento dessa época e tendência política em sua forma jurídica. "A soberania de direito", afirma Donoso Cortés, "é una e indivisível. Se ela é própria do homem, ela não pertence a Deus. Se localizada na sociedade, não existe no céu. A soberania popular é ateísmo e se o ateísmo pode introduzir-se na filosofia sem transformar o mundo, ele não pode introduzir-se na sociedade sem feri-la com a paralisação e a morte. O soberano possui a onipotência social. Todos os direitos são seus, porque se houvesse um só direito que não estivesse nele, não seria onipotente e, não o sendo, não seria soberano. Pela mesma razão, todas as obrigações estão fora dele, porque, se ele tivesse alguma obrigação a cumprir, seria súdito. Soberano é o que manda [eu sublinho, RR], súdito o que obedece. O soberano tem direitos e o súdito, obrigações. O princípio da soberania popular é ateu e tirânico, porque onde há um súdito que não possui direitos e um soberano que não tem obrigações há tirania". ( ) Donoso aponta o Leviatã como a muralha contra a soberania popular. A soberania de direito divino conhecia limites, "mas a definida por Hobbes nega toda limitação para si mesma. Segundo ele, Deus não existe e o povo, desde o instante em que abre mão de seus direitos, faz-se escravo. Inflexivelmente lógico, Hobbes nega ao povo o direito de resistência à opressão, mesmo a mais delirante e absurda" ( )
As massas "carecem de unidade, de previsão, de concerto, só a iminência do perigo pode obrigá-las a se reagrupar ao redor de uma bandeira. Quando passa o perigo, decai o entusiasmo, a unidade conjuntural formada pelo entusiasmo se atenua e se fraciona [...] Quando se extingue o entusiasmo, o povo deixa de ser uma realidade para ser apenas um nome sonoro. Na sociedade, então, só existem interesses que se combatem, princípios que lutam entre si, ambições que se excluem e individualidades que se chocam". ( ) O povo é fugaz e não garante a soberania. Sem esta última não existe poder, desaparecem os vínculos sociais. Para o pensamento conservador, a soberania popular é o perigo do liberalismo e das Luzes. "Em geral os povos recusam o poder que lhes é pedido e confirmam o poder que lhes é tomado. Todo poder ditatorial ou real que só busque apoio nas classes acomodadas é um poder perdido". Quem deseja pautar o poder através da Constituição é fraco. "O governo das classes vencidas é o constitucional, o das vencedoras foi, é, será perpetuamente a monarquia civil ou a ditadura militar. Nunca os povos obedeceram gostosamente alguém que não fosse um ditador ou rei absoluto".
A soberania popular é afastada também por De Bonald : "O direito do povo a governar a si próprio é um desafio contra toda verdade. A verdade é que o povo tem o direito de ser governado" ( [67]). Edmund Burke enuncia o princípio segundo o qual o povo não é soberano porque o governo difere de um problema aritmético. "Foi dito que 24 milhões devem prevalecer sobre 200 mil. Verdade, se a Constituição de um reino fosse um problema aritmético. [...] A vontade de muitos, e seu interesse, devem diferir com freqüência, e uma grande vontade será a diferença quando eles, os muitos, fazem uma escolha ruim" ( )
"Sendo o homem necessariamente associado e necessariamente governado, sua vontade não conta para nada no estabelecimento do governo [eu sublinho, RR]; pois, uma vez que os povos não têm escolha e que a soberania não resulta diretamente da natureza humana, os soberanos não existem pela graça dos povos, a soberania não sendo a resultante de sua vontade, tanto quanto a própria sociedade". Não existe soberano sem povo, assevera De Maistre, nem povo sem soberano. Mas o povo tem dívidas para com o soberano, "deve-lhe a existência social e todos os bens que dela resultam. O príncipe só deve ao povo um brilho ilusório que nada possui em comum com a felicidade e que dela o exclui mesmo quase para sempre". Não existe soberania limitada, ou do povo. Existe soberania legítima ou não. "Dirão alguns: a soberania na `Inglaterra é limitada', Nada é mais falso. Apenas a realeza é limitada naquela ilha célebre. Ora, a realeza não é toda a soberania, pelo menos teoricamente. Quando os três poderes que, na Inglaterra, constituem a soberania, concordam, o que podem eles? É preciso responder, com Blackstone: TUDO. E o que se pode contra eles? NADA" ( ).
"Desde 1848 a doutrina do direito público tornou-se positiva escondendo nesta palavra o seu embaraço: ou funda todo poder, mediante as mais diversas reconstruções, sobre o `poder constituinte' do povo: isto é, no lugar da idéia monárquica de legitimidade entra a democrática. Neste ponto é incalculável na sua relevância o fato de que um dos maiores representantes do pensamento decisionista e filósofo do Estado católico, consciente de modo extremamente radical da essência metafísica de toda política, Donoso Cortés, diante da revolução de 1848, pudesse compreender que a época do realismo tive chegado ao fim. Não existe mais realismo, porque o rei não existe mais. Sequer existe uma legitimidade em sentido tradicional. Logo, só resta um resultado: a ditadura. É o mesmo resultado a que Hobbes chegou, procedendo na base da mesma conseqüência do pensamento decisionista, embora misturado com uma espécie de relativismo matemático. `Auctoritas, non veritas facit legem'". ( )
Schmitt capta com lógica extrema a passagem da soberania no Estado, os princípios teológicos com origem em Bracton, o seu esvaziamento nas doutrinas modernas e o contra-ataque do pensamento conservador. Mas é preciso introduzir o Brasil nessa longa história. Importa sublinhar o estraçalhamento da soberania do povo e mesmo o regime da representação daquela soberania. Nos momentos de nossa Independência as teses dominantes eram contrárias à soberania popular e, se esta não fosse apresentada pelos “demagogos”, a sua versão atenuada, a representativa. Surgimos no universo internacional enquanto pais livre, batizados nas águas do conservadorismo contra-revolucionário.
A historiografia conservadora notou no Brasil uma invenção eficaz para afastar o perigo da soberania popular e mesmo da representação política. A Revolução Francêsa tendo sido um episódio sangrento de anarquia e ditadura, o poder que a sucedeu após o Termidor e que acabou nas mãos do imperialismo napoleônico, seguiu de um ponto ao outro dos setores estatais. Se a Assembleia foi tão exclusiva no processo revolucionário que acabou instaurando uma ditadura “virtuosa”, o poder Executivo tornou-se um centro ditatorial com o regime instaurado pelo Corso ordenando tudo burocraticamente em escala hierárquica do alto à base do Estado. Entre os dois poderes, o judiciário não consegue manter a sua independência. Urge resolver o problema da harmonia entre os três poderes, antes enfeixados nas mãos do rei ou do parlamento. Na gênese do Estado brasileiro imaginou-se resolver o conflito e, ao mesmo tempo, as ameaças do que ocorreu nas revoluções inglêsa, norte-americana, francêsa: a instituição do poder moderador cumpre esse papel.
Escutemos o conservador Guizot: ( ) “o mais simples bom senso reconhece que a soberania de direito, completa e permanente, não pode pertencer a ninguém; que toda atribuição de soberania de direito à uma força humana qualquer, é radicalmente falsa e perigosa. Donde a necessidade da limitação de todos os poderes, quaisquer que sejam seus nomes e formas; daí a radical ilegitimidade de todo poder absoluto qualquer que seja a sua origem, conquista, herança ou eleição. Pode-se discutir os melhores meios de procurar o soberano de direito; eles variam segundo os tempos e os lugares; mas em nenhum lugar, em nenhum tempo, nenhum poder poderia ser o possuidor independente dessa soberania. Posto esse princípio, não é menos certo que a realeza, em todos os sistemas que ela é considerada, apresenta-se como a personificação do soberano de direito. Escutai o sistema teocrático: ele vos dirá que os reis são a imagem de Deus na terra, o que não quer dizer nada mais do eles personificam a justiça soberana, verdade, bondade. Perguntai aos jurisconsultos: eles responderão que o rei é a lei viva; o que significa ainda que o rei personifica o direito soberano, a lei justa, que ele tem o direito de governar a sociedade. Interrogai a própria realeza no sistema de monarquia pura: ela dirá que personifica o Estado, o interesse geral. Em toda aliança ou situação considerada, ela sempre tem a pretensão de representar, reproduzir o direito soberano, o único capaz de governar a sociedade legitimamente. Nada nisso espanta. Quais são as marcas do soberano de direito, as marcas de sua natureza própria? Para começar, ele é único; porque só existe uma verdade, uma justiça, só existe um soberano de direito. Ele é o mais permanente, sempre o mesmo: a verdade não muda. Posto numa situação superior, estranha a todas as vicissitudes, a todas as possibilidades desse mundo; eles está no mundo, de certo modo, apenas como espectador e como juiz : este é o seu papel. Pois bem! Senhores, estas marcas racionais, naturais no soberano de direito, a realiza as reproduz exteriormente na forma mais sensível, que dela parece a mais fiel imagem. Abri o livro em que o Sr. Benjamin Constante tão enegenhosamente representou a realeza como um poder neutro, um poder moderador, elevado acima dos acidentes, das lutas sociais, e que só intervem nas grandes crises. Esta não seria por assim dizer, a atitude do soberano de direito no governo das coisas humanas ? É preciso que haja nesta idéia algo muito próprio a mover os espíritos, pois ela passou com uma rapidez singular dos livros para os fatos. Um soberano dela fez, na constituição do Brasil, a base de seu trono; a realeza é representada como poder moderador elevado acima dos poderes ativos, com espectador e juiz”.
A formulação liberal do próprio Benjamin Constant procurava impor limites à soberania popular, mas trazia também a preocupação de estabelecer os limites dos poderes e garantir a sua harmoniosa relação. Neutro, o poder moderador seria o apanágio da realeza ( ), os ministros seriam responsáveis pelo governo e os legisladores não seriam pagos. O julgamento pelo juri seria a norma e haveria liberdade de imprensa. Qual a base para a recusa da soberania popular? Ela é encontrada, em Constant, no texto sobre a diferença da liberdade entre os povos antigos e modernos. A primeira encontra-se na democracia direta assumida em Atenas, cujos males eram a guerra perene e a escravidão como seu resultado. Nada que já não esteja em Tucídides. A segunda, encontra-se no comércio, “que inspira nos homens o amor pela independência individual: atende as suas necessidades, satisfaz os seus desejos, sem intervenção da autoridade”. Assim, o Estado deve ser contido em limites quando se trata da vida econômica, pois “sempre que o governo tomar conta dos nossos negócios, o fazem de modo pior e de maneira mais cara”. Não devemos nos colocar nos assuntos de Estado, enquanto este último não deve se intrometer em nossos assuntos particulares. A liberdade moderna reside “no gozo tranqüilo da independência individual”. ( )
Erra todo aquele que desconhece limites para o exercício de qualquer poder. “Quando se estabelece que a soberania popular é ilimitada, cria-se e se deixa ao acaso na sociedade um gráu de poder muito amplo e que se torna um mal, não importa em quais mãos esteja. Entregue-o a um, vários, todos, e o mal será o mesmo (…) a soberania só existe num modo limitado. Onde começa a independência e a existência individual começa, termina a jurisdição da soberania”. O mercado liberta e a vida privada deve ser o refúgio do indivíduo. Pela via oposta encontra-se em Constant o elogio hobbesiano do indivíduo limitado ao particular, sem exteriozações de suas certezas no plano público. A soberania popular entra no erro democrático: “A sociedade não pode exceder a sua competência sem tornar-se usurpadora, a maioria não pode fazer o mesmo sem tornar-se facciosa”. O Contrado Social representa “o mais terrível instrumento auxiliar de todo tipo de despotismo”. Crime é crime, pouco importa a fonte de poder alegada por quem o comete: indivíduo, partido, nação. ( )
Toda a crítica de Constant a Hobbes, no tocante à soberania, vem do termo “absoluto” : “ve-se claramente que o caráter absoluto dado por Hobbes à soberania do povo, é a base de todo seu sistema (…) a palavra ´absoluto´ desnatura toda a questão e nos arrasta para uma nova série de consequências; é o ponto onde o escritor deixa o caminho da verdade para seguir rumo ao sofisma ao fim que ele havia proposto a si mesmo. (…) Com a palavra ´absoluto´ nem a liberdade (…) nem o repouso nem a felicidade são possíveis em nenhuma instituição. O governo popular é apenas uma tirania convulsiva, o governo monárquico apenas um despotismo concentrado”.
Face à tese da soberania absoluta, pensa Constant, Rousseau foi tomado de terror diante daquele “poder monstruoso, e não encontrou preservativo contra o perigo inseparável de uma semelhante soberania, a não ser um expediente que tornava impossível o seu exercício. Ele declarou que a soberania não pode ser alienada, delegada, representada. Era declarar em outros termos que ela não pode ser exercida; era anular de fato o princípio proclamado”. E criticando a idéia de “absoluto” na soberania, mesmo popular, diz Constant : “O povo, segundo Rousseau, é soberano num aspecto, súdito noutro. Mas na prática os dois aspectos se confundem. É fácil para a autoridade oprimir o povo como súdito, para forçá-lo a manifestar como soberano a vontade que ela lhe prescreve”. ( )
Encontra-se nesse exato ponto a justificativa do Poder Moderador no pensamento de Benjamin Constant. Trata-se de idear os limites dos três poderes, impedindo a hipertrofia de um deles como ocorreu na ditadura napoleônica, em nome do Executivo, e da ditadura jacobina, em nome do Legislativo. Ambos seguiram a tendência ao absolutismo, o que, segundo Constant, é idêntido a despotismo sem barreiras.
Voltemos ao momento anterior ao de Constant, a gênese da Revolução Francêsa. Ela derrubou um sistema de privilégios na condução do Estado, sistema que abarcava do rei à noblesse de robe. Destruir todo esse edifício e substituí-lo por um poder público distinto da situação social foi tarefa gigantesca. Pergunta: qual a natureza do regime novo? No antigo, a administração dependia do rei. Só com o tempo, mesmo curto, a legitimidade dos poderes passaram do rei aos representantes eleitos. A burocracia do antigo regime, produzida em séculos de controle do Estado pelo rei e seus funcionários, perdeu a hegemonia estratégica em função do Legislativo eleito e, antes da república, do Conselho Real. De fato, ocorria uma forte tensão entre as duas fontes de legitimidade estatal. A monarquia não pode mais definir-se como o depósito da soberania estatal, combinando o legislativo, o executivo, o judiciário. A nação, pelo Legislativo, faria as leis, a serem executadas pelo governo. Logo foi preciso estabelecer a separação dos poderes, na Constituição. A Assembléia Nacional desejou manter a monarquia, mas sem as prerrogativas antigas e sem que o clero e a nobreza mantivessem os velhos privilégios (venalidade dos cargos, privilegios dos nobres, justiça arbitrária, administração idem). Todos esses pontos são sintetizados na separação dos poderes. Na verdade, a Assembléia Nacional atenuou ao máximo os poderes que lhe faziam sombra, na guerra, nas finanças, na justiça, etc. Os meios para esse controle dependia da correta intelecção dos papéis e cargos. O de rei, pelo menos até a proclamação da república, era claro. O de ministro, nem tanto. Daí a restrição dos seus poderes e a instauração da responsabilidade perante o Legislativo. Eles poderiam ser impedidos por iniciativa da Assembléia e processados na Alta Corte especial. A mediação dessa Corte atrapalhou bastante o controle dos ministros pelos deputados. A separação de poderes assim feita, deixou os ministros sem legitimidade, porque eles não respondiam perante a Assembléia. Como não podiam controlar com eficácia os ministros, os deputados passaram a desconfiar de todo o ministério, produzindo um vazio na administração. Surge uma burocracia nova, distinta da que operava no Executivo e dependente do Legislativo. Com a ditadura, essas falhas pioraram e o Estado não conseguiu manter o ritmo das mudanças na ordem política de legitimação. O golpe de Estado que produziu a diatdura comissária não resolveu a luta entre os poderes, com resultados desastrosos. ( )
“Nunca deveis esquecer, em toda posição que vos coloquem minha política e o interesse de meu império, que vossos primeiros deveres são para comigo, os segundos para com a França; todos os outros deveres, mesmo para com os povos que poderei vos confiar, vêm depois”. ( ) Ao dirigir-se desse modo ao sobrinho, filho de seu irmão Louis Bonaparte destinado a ser o Grão Duque de Berg, o imperador retomou a tradição absolutista cujo símbolo maior na França foi Luis XIV, com o dito “L´État c´est moi”. Vimos a relevância do pensamento absolutista para a questão da soberania e para a aplicação e leitura das leis. Sabemos que após Napoleão surgiram Egocratas no Estado, especialmente no século XX, com o culto da personalidade nos regimes nazista, stalinista, fascista. ( ) Uma testemunha arguta do período napoleônico e do governo Imperial é Madame de Sataël, pessoa próxima ao Antigo Regime, por seu pai, e ao liberalismo de Benjamin Constant. No capítulo sobre as leis e a administração napoleônicas ela pergunta : “ é possível falar de legislação num país onde a vontade de um só homem decidia tudo; onde este homem, rápido e agitado com as ondas do mar durante a tempestade, não podia sequer suportar a barreira de sua própria vontade, se lhe opusessem a de ontem, quando ele desejava mudar o amanhã ?”. O arbitrio do “grande homem” definia o plano político, econômico, jurídico e bélico da França. Uma anedota contada pela autora é interessante. Um conselheiro disse a Napoleão que não autoriza determinado ato, que beneficiava o ditador. “Ora bem!” responde o Corso, “O Código Napoleão foi feito para a salvação do povo, e se tal salvação exige outras medidas , é preciso tomá-las”.
Dois instrumentos juridicos foram usados pelo poder imperial: leis e decretos. Leis eram emanadas de um simulacro de legislativo, mas eram os decretos ditados pelo governante, discutidos no seu Conselho, a ação efetiva da autoridade. Quanto aos tribunais, o Código manteve o juri, definido pela Assembléia Constituinte. Mas os avanços nos procedimentos eram compensados, em favor do regime, por cortes especiais, comissões militares que julgavam delitos políticos, que resultavam em execuções sumárias. E aqueles tribunais condenavam pessoas por acusações anônimas, não raro sem relação direta com assuntos políticos. “Bonaparte não permitiu uma só vez que um acusado recorresse de condenação por delito político à decisão do juri”. Os poderes eram unidos, sob o comando do imperador : “era difícil distinguir a legislação da administração (…) pois ambas dependiam da autoridade suprema”.
O centralismo garantiu o mando despótico : “Todas as autoridades locais, nas províncias, foram gradativamente suprimidas ou anuladas”. O trabalho da polícia, com delações e torturas, produziu um monstro que, finalmente, voltou-se contra os partidários do imperador destronado. A ideologia do imperador, em relação aos cidadãos particulares, era clara e distinta: eles deveriam, como exige Hobbes, que eles fiquem no plano privado e “adquiram sempre mais dinheiro”. Enquanto isto, os que mandam no Estado devem adquirir “sempre mais poder”. A ditadura militar e burocrática imposta pela “alma do mundo”( ) resume-se no dito do próprio imperador: Les Français sont des machines nerveuses. Máquinas: servem como instrumentos ou partes de instrumentos para ampliar o poder do Estado e de seus mestre. Nervosas: vivas como as forças naturais, numa simbiose sempre desejada pelos que desconhecem limites entre técnica e natureza. Napoleão toma como positivo o que, logo após, no romantismo, é indicado como um pesadelo terrível, a partir de Mary Shelley e o Frankenstein.
Após essa passagem pelo poder napolêonico fica bem clara a intenção de Benjamin Constant ao sugerir o Poder Moderador como preventivo de tiranias. De um lado, ele limitaria as formas soberanas ligadas ao povo, sobretudo o despotismo do Legislativo. De outro, ele limitaria as pretensões do Executivo, garantindo o Judiciário. ( ) Evidentemente, as críticas aos abusos de poder descem nas noites dos tempos. No período absolutista, as denúncias contra tais abusos surgiram entre os puritanos e seus herdeiros, na América ou na França. No caso de Benjamin Constant, no entando, existem antecedentes no instante em que a Revolução Francêsa e a ditadura do Legislativo chega à sua crise de morte. Como é o caso de Sieyès, para quem “ os poderes ilimitados são um monstro em política (…) a soberania do povo não é ilimitada”. ( ) O termodoriano por excelência, Boissy d´Anglas, retoma a norma hobbesiana, levando o cidadão particular ao plano estritamente produtivo, econômico, dele afastando as tarefas de governo. Assim, não se pode arrancar à atividade econômica “homens que melhor serviriam seu país pela atividade assídua em vez de vãs declamações e debates superficiais”. ( ) D´Anglas, na verdade, com o Termidor, seleciona “os melhores” para dirigir o Estado, os “possuindo uma propriedade são apegados ao país que a contem, às leis que a protegem, à tranqüilidade que a conserva”. ( )
Benjamin não foi termidoriano nem aceitaria in totum as teses enunciadas por Boissy d´Anglas. Mas soube notar os excessos de poder de um setor do Estado e procurou definir o controle dos três poderes por intermédio do Poder Moderador, indicado como tarefa do rei. "Para que não se abuse do poder, é preciso que pela disposição das coisas o poder detenha o poder”. O sistema das balanças, no seu pensamento, opera na estrutura do Estado. O Legislativo seria bicameral, incluindo uma Casa dos Pares. Posteriormente ele divide o poder entre Legislativo e Judiciário, composto de juízes inamovíveis de ofício. Ideou, para corrigir a concentração do poder, o sistema de poderes e direitos departamentais e dos municípios. O rei como "poder neutro” segue nessa orientação geral.
No Brasil, a concepção de Constant seguiu para um rumo inesperado. Vimos o elogio do uso da idéia de Poder Moderador em nosso país por Guizot. Há um evidente desvio do conceito na pena de Guizot no relativo ao conceito. Constant define aquele poder como neutro, o que significa que ele serve para coordenar os três poderes, sem neles interferir “do alto”. A mesma operação de hierarquizar os quatro poderes foi seguida no Brasil com a Constituição de 1824. A tendência centralizadora do poder real já fora iniciada em Portugal no século 18, com as reformas pombalinas. “As concepções de poder político, sociedade e Estado são assim formuladas em torno da noção de império civil, com fins de legitimar a monarquia portuguesa e consubstanciar projetos de atuação política”. ( )
Com as invasões napoleônicas de 1808 e a vinda da Casa Real para o Brasil, compõe-se uma Corte no Rio onde se integram a nobreza, burocratas de alto escalão, serviçais e negociantes. No projeto idealizado, continua a noção de império português, com sede no Brasil. A cidadania foi entendida nos parâmetros da antiga metrópole: o “povo” era a aristocracia, os “homens bons” (ricos proprietários) sem sangue judeu. A representação “popular” faz-se por petições, dando-se o direito de voto sem que os cidadãos tivessem presença ativa na esfera pública. Outro projeto é mais radical, pois admite a presença cidadã na vida pública, define autonomia para o Brasil. Nos dois projetos, cidadão é título que não cabe aos escravos, evidentemente, nem aos homens livres e pobres (“gente ordinária de veste”).
O debate sobre a cidadania surge em 1821 na Assembléia do Rio de Janeiro, na eleição de representantes provinciais para a Assembléia de Lisboa, para redigir a Constituição portuguesa. O debate conduziu ao inesperado questionamento da autoridade de João VI. Proposto um projeto de governo representativo, visto pelos governantes como ligado “à força incontrolável da multidão”, sobretudo num reino onde a enorma quantidade de escravos era perene ameaça (a revolta do Haiti em 1810 era um presságio).
A imensa dimensão do território brasileiro, as revoltas que se esboçavam, o exemplo dos países visinhos que se tornaram republicas de tamanho inferior ao do Brasil, a memória da Revolução Francêsa, as doutrinas de Benjamin Constant, todo esse amalgama de idéias, medos, repressão, definiu o momento inaugural do Estado independente que assumiu a forma de Império. Os que desejam um poder representativo e constitucional conseguem em 1822 a convocação da Assembléia. Mas no país surge dois projetos não sintonizados e conflitantes : o da monarquia soberana, de São Paulo sob liderança de José Bonifácio e o de um governo constitucional (Rio de Janeiro, liderado por José Clemente da Cunha). Quando Pedro I é aclamado, José Clemente afirma o princípio da soberania popular enquanto Bonifácio enfatiza a supremacia do Imperador.
Vence provisoriamente o primeiro projeto, sendo o império civil instituido por direito divino. Os defensores do segundo plano são perseguidos mas não deixam de conseguir a consideração, nos trabalhos da Constituinte, de suas idéias. Desse modo, o novo governo admitiria a liberdade política, mas sob a égide do poder supremo, definido pela pessoa do imperador. Em 1823, José J. Carneiro de Camposao discutir a sanção do soberano apresenta a idéia do Poder Moderador. Exclusivo, aquele poder permite ao imperador controlar os demais poderes. A Constituição de 1824 incorpora o quarto poder e o amplia, pois ele pode dissolver a Câmara de Deputados, afastar juízes suspeitos, etc. Tal poder foi alegado sempre que se tratava, no parecer dos governantes, da Salvação do Estado. No mesmo plano, é restrita a autonomia do judiciário. Desse modo, o Poder Moderador torna-se supremo no Estado, acima dos três outros poderes.
A predominância do poder moderador sobre os demais manteve-se durante o império, incluindo o tempo de regência, quando o país passou por rebeliões sufocadas manu militari de Norte a Sul. Somadas as suspensões dos direitos e a permanente supremacia do imperador, tem-se como resultado uma difícil e quase improvável democratização do Estado. O permanente estado de rebelião e as necessidades do poder central, definem o império como excessivamente preso ao modelo de concentração de poderes, o que molesta ainda em nossos dias o país, com o tipo de federação na qual os Estados possuem realmente pouca autonomia, sobretudo em matéria fiscal. ( [86]) Com o fim do império, os positivistas tentaram acabar de vez com as forças liberais, com o conceito de ditadura, que acentua e mantem a preponderância do executivo sobre o Legislativo, concentrando o poder diretor numa única pessoa. Falar em Legislativo, nesta doutrina, é impreciso e mesmo errôneo, visto que a Assembléia teria função fiscal : aprovar o orçamento do Estado. ( ) Em toda a república as prerrogativas do Poder Moderador foram incorporadas, silenciosamente, à Presidência do país. Com elas, a permanente pretensão dos ocupantes daquele cargo a assumir, como imperadores temporários, a preeminência e a intervenção nos demais poderes. Esse ponto permite indicar que o Estado é regido por força de pressupostos autoritários que, inclusive, produziram em plano mundial algumas lições de moderno despotismo.
Não por acaso, Carl Schmitt refere-se ao Poder Moderador brasileiro em O protetor da Constituição. Alí, o jurista defende, como em outros trabalhos, que apenas o Reichspräsident pode defender a Constituição em tempo de crise. O tema gira ao redor do Artigo 48 da Constituição de Weimar. ( ) Ao fazer seu apelo aos poderes do Protetor da Constituição, Schmitt nega que o judiciário pode exercer aquele papel, porque judiciário é idêntico a normas e age post factum, sempre atrasado na correção dos desvios e fraturas institucionais. Para remediar aquelas situações, apenas o Reichpräsident poderia ser movido, legal e constitucionalmente. Como é habitual, Schmitt afasta o judiciário e, ao mesmo tempo, o próprio Legislativo naqueles transes. Como diz Hans Kelsen, Schmitt reduz toda a Constituição de Weimar ao artigo 48. ( ) Se, como diz Schmitt, “a independência é a necessidade primeira para um protetor da Constituição” e se os juizes ou deputados não podem cumprir aquele mister, segue-se que eles não são independentes, ou independentes o bastante para garantir o Estado. Desse modo, ele retira dos demais poderes a possibilidade de controlar e limitar o Protetor em seu poder excepcional. O estudo desse caso, importante na história dos poderes soberanos e a conexão teórica entre o que se passou na Alemanha e no Estado brasileiro pode resultar em esclarecimentos sobre o nosso centralismo excessivo, a nossa quase inexistente federação, os excessivos poderes da presidência do Brasil. ( )
O Poder Moderador antes da República era vitalicio e hereditário. Uma presidência imperial limitada por quatro anos, sofre necessariamente a tentação de pressionar o Legislativo para que este último faça ou aprove leis favoráveis ao programa e pretensões presidenciais. De modo idêntico, as pressões sobre o judiciário para que reconheça a legitimidade das mesmas leis.
Dificilmente o nosso Estado e a sociedade entrariam na qualificação de formas democráticas. É preciso apurar, hoje, as noções de democracia, federalismo, sociedade civil etc., se quisermos pensar o mundo brasileiro. O nosso modo de unir os Estados tem pouco de “federalismo” e muito de Império. Tomemos a indicação da jurista Anna Gamper que analisa as formas federativas para apontar as fraturas no projeto da União Européia : “Por unanimidade, as definições de federalismo reconhecem o fundamento da palavra latina foedus que significa “pacto”. Todas as teorias concordam que federalismo é um princípio que se aplica ao sistema que consiste em pelo menos duas partes constituintes, não totalmente independetes que, juntas, formam o sistema como um todo. O federalismo, pois, combina o princípio da unidade e da diversidade (concordantia discors). As partes constituintes devem ter poderes próprios e devem ser admitidas a participar do nível federal.”.( [91]) Da definição escolhida pela autora, tomemos a parte onde ela afirma a exigência sine qua non que declara o seguinte : “as unidades constituintes devem ter poderes próprios”. Desde a Independência, o Poder Central brasileiro monopoliza todas as prerrogativas do Estado e não as partilha com os demais entes, supostamente unidos hoje por laços de federação. Se em nosso caso foedus significasse “pacto”, teríamos gráus crescentes de autonomia, dos municípios ao Poder Central.
Como o Império herdou as terras coloniais portuguêsas, para ele o mais urgente era garantir as fronteiras do enorme país e impedir a secessão das províncias. Nesse fito, a repressão militar foi a tônica, o que se tornou dramático durante a Regência, quando várias unidades levantaram-se em busca não de autonomia, mas de plena soberania. A história do Brasil, desde aquela época até 1932 (Revolução Constitucionalista de São Paulo), tem sido a cronica de um controle férreo das Províncias, depois Estados, pelo Poder Central. É como se cada Estado, sobretudo os que se levantaram em armas (Rio Grande do Sul, Pernambuco, Pará, Bahia, São Paulo, para recordar apenas alguns deles) fosse submetido à invasão permanente dos que dirigem o todo nacional. Resulta que a nossa “Federação” concede pouquíssima autonomia aos Estados e Municípios, em todos os planos da vida política, econômica, etc.
A partir de Brasilia, regras uniformes determinam até os detalhes da ordem nacional, desconhecem deliberadamente as diferenças regionais, culturais, geográficas, etc. Do Oiapoque ao Chui, há uma uniformização gigantesca que obriga cada uma das regiões a se pautar pelo tempo longo da enorme burocracia federal, perdendo tempo precioso para o experimento e modificações das políticas públicas em plano particularizado. Enquanto em outras Federações, como o norte-americana (e apesar do grande centralismo daquele país) vigoram leis diversas em termos penais, educacionais, tecnológicos, etc., no Brasil a mão de ferro do Estado central controla, dirige, pune e premia os Estados, segundo sustentem os interesses dos ocupantes temporários da Presidência. Nesse controle, as oligarquias regionais surgem como operadores de face dupla : servem para trazer os planos do Poder Central aos Estados e para levar ao mesmo Poder as aspirações de Estados e Municipios. O lugar onde as negociações entre os dois níveis (Central e Estadual) ocorrem, normalmente é o Congresso. Alí, Presidência e Ministérios buscam apoio aos seus planos, inclusive e sobretudo, de leis. É impossível conseguir recursos orçamentários, por exemplo, sem as “negociações” e nelas o modus operandi identifica-se ao conhecido “é dando que se recebe”. Assim, os planos federais de inclusão social e democratização societária patinam na enorme generalidade do “grande Brasil”, enquanto as unidades aguardam as “providências” de uma burocracia pesada, incapaz de entender os vários ritmos e formas de vida e pensamento regionais.
Nos impostos, a concentração irracional de poderes deixa Estados e municípios sempre à mingua de recursos. Verbas provenientes de impostos ou a eles ligadas, como no caso das exportações, não são repassadas às unidades ou não são repassadas em tempo certo, permanecendo nas mãos dos Ministérios Economicos. Governadores e prefeitos são reduzidos à quase mendicância junto ao Poder Central. Não ignoro as dificuldades gigantescas, se quisermos modificar esta forma de relacionamento federativo em nosso país. Valho-me novamente da jurista Anna Gomper : “A economia política do federalismo e o federalismo fiscal tornaram-se um dos mais extensos e difíceis campos interdisciplinares da pesquisa dobre o federalismo, onde os conceitos de asimetria, competição e co-operação desempenham papel importante. Também é o campo em que os níveis inferiores que não participam do sistema, como os municípios, são admitidos excepcionalmente a entrar na arena como ´partes terceiras’. As relações financeiras entre a unidade central e as partes mais baixas e as terceiras partes são de suma importância para o sistema como um todo. A estabilidade financeira e a igualização, bem como a cooperação entre as partes da base são obrigatórias para um efetivo sistema federal. A distribuição das competências não é completa se não existem regras que dividem os poderes financeiros entre o poder central e as unidades constituintes. Se as partes constituintes que precisam de recursos para financiar suas responsabilidades as recebem sobretudo de subsídios que são a elas alocados pela unidade central (e devem ser acompanhados por certas condições que restringem seu poder de gasto) o arranjo fiscal parecerá um sistema de Estado não federal e não tanto um Estado federal que pressupões teóricamente gráus de autonomia financeira das partes constituintes, isto é, o poder de arrecadar taxas e gastar orçamentos próprios”. É praticamente impossível chegar à democratização da sociedade sem a efetiva federalização do Brasil. Um dia antes da escolha de Aldo Rebelo para a presidência da Câmara dos Deputados, assistimos a enésima caminhada de prefeitos do país inteiro rumo ao Congresso para reclamar recursos, autonomia, modificações em leis eleitorais e de estruturas municipais. Naquela tarde, como em muitas outras ocasiões, os prefeitos foram tratado como estranhos no Parlamento Federal, o que gerou um conflito só resolvido com o emprego da força física pela segurança da Casa das Leis. Enquanto tal situação permanecer assim, a fábrica das manobras corruptas (nas duas pontas, nos municípios e na capital da República) estará em pleno funcionamento.
Termino essa parte de minhas considerações citando o longo mas relevante texto de um jurista que muito se preocupa com a forma democrática e republicana do nosso país.
“A Constituição dos Estados Unidos criou o regime presidencial; nós engendramos o presidencialismo, que é a sua perversão máxima. Lá, o equilíbrio dos Poderes republicanos funciona harmoniosamente, num engenhoso mecanismo de checks and balances que faz inveja aos mais competentes relojoeiros. Aqui, a hipertrofia dos poderes presidenciais gerou um monstro macrocefálico, cujos membros são todos absorvidos pela cabeça. Para sermos justos, porém, é preciso reconhecer que essa aberração institucional não surgiu com a república, pois ela já estava presente e atuante durante todo o período imperial. O que se fez tão só, com a derrubada da monarquia, foi uma adaptação semântica: passamos do império autêntico ao presidencialismo imperial. Na obra clássica em que fez o panegírico do pai, Joaquim Nabuco apenas uma vez permitiu-se censurá-lo. Foi a propósito de uma Circular de 7 de fevereiro de 1856, pela qual o velho Senador, em sua qualidade de Ministro da Justiça, entendeu de ditar regras de julgamento aos magistrados. "É o traço saliente do nosso sistema político", escreveu Joaquim Nabuco, "essa onipotência do Executivo, de fato o Poder único do regime". "Apesar de todo o antogonismo de muitas de suas idéias com esse sistema, principalmente em matéria de garantias individuais e apesar da guerra que moveu à invasão francesa do contencioso administrativo, (Nabuco pai) foi um dos fundadores da onipotência do governo, convertido em última instância dos poderes públicos".
A República acentuou a onipotência do Chefe do Poder Executivo, “ao cobri-la com o manto da irresponsabilidade, que a Constituição de 1824 reservava ao Imperador. (…) Atualmente, o Presidente da República não se limita a exercer um poder absoluto no ramo executivo do Estado: ele é também legislador, e dos mais prolíficos. O volume de medidas provisórias editadas e reeditadas, a maior parte delas sem a menor relevância ou urgência, já ultrapassa largamente o número de leis votadas pelo Congresso Nacional, desde a promulgação da Constituição. Para a convalidação espúria desse abuso, concorreu decisivamente a mais alta Corte de Justiça do País. Neste período crespuscular do Estado de Direito, o Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é ´a guarda da Constituição´ (art. 102), tem transigido com todos os desvios, relevado todas as arbitrariedades, admitido todas as prevaricações. A pá de cal na indispensável independência do Supremo Tribunal Federal para custodiar a inviolabilidade da Constituição foi lançada com a Emenda Constitucional nº 3, de 1993, instituindo a "ação declaratória de constitucionalidade" (art. 102 - I, a). O judicial control, sem sombra de dúvida a maior criação constitucional dos norte-americanos, surgiu como instrumento de defesa dos direitos individuais contra o mais nocivo dos abusos políticos, aquele que associa Legislativo e Executivo na comum infringência da Constituição. No sistema presidencial de governo, com efeito, a lei não é apenas o ato do Poder Legislativo: ela conta também, necessariamente, com a aprovação do Executivo, que tem o poder de vetá-la. Quando o Presidente da República sanciona uma lei inconstitucional, ele se acumplicia com o legislador na violação da Carta Magna. Ora, a ação declaratória de constitucionalidade´ veio subverter inteiramente os termos dessa equação política. Ela não é uma defesa da cidadania contra o abuso governamental, mas, bem ao contrário, uma proteção antecipada do Governo contra as demandas que os cidadãos possam ajuizar para defesa de seus direitos. É uma espécie de bill de indenidade que o Judiciário outorga aos demais Poderes, um nihil obstat legitimador da ação governamental, antes que os cidadãos tenham tempo de reclamar contra ela. Por isso mesmo, o processo dessa aberrante demanda é sui generis: não há contraditório, porque não há lide. Em se tratando de argüição de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, o Procurador-Geral da República deve ser previamente ouvido, e o Advogado-Geral da União defende o ato ou o texto impugnado (art. 103, §§ 1º e 3º). Mas no processo da ação declaratória de constitucionalidade, os autores agem sem contraditório: o Governo tem as mãos livres para demandar, sem que ninguém defenda os interesses dos governados. Por força desse vicioso mecanismo, a nossa Corte Suprema deixa de ser um tribunal, para se tornar um órgão oficial de consulta. Troca a posição de guarda da Constituição pela de colaborador do Governo”. ( )
Termino aqui. Para refletir sobre a independência dos juízes, iniciei o trabalho acentuando o começo do Estado moderno com as teorias absolutistas, tanto religiosas quanto laicas, tanto as de James I quanto as de Hobbes e assemelhados. Alí, o juiz único é o soberano e os juízes são por ele controlados. Legislador, Executor e Juiz, o soberano não pode aceitar nenhuma independência dos tribunais inferiores. Esta diretiva foi questionada nas revoluções do século 17 da Inglaterra e do século 18 na América do Norte e na França. Mas sobretudo no último país a Revolução, ao desembocar na ditadura e no Terror, permitiu o retorno do absolutismo com o poder imperial napoleônico. Não é preciso recordar que nesses regimes o juiz não é independente, pelo contrário. No Brasil, com a tentativa de impedir aqui os “excessos” do liberalismo e, mesmo, da soberania popular, foi produzido um Estado dirigido no cimo por um soberano que detinha o poder de intervir nos demais poderes, o que impedia a autonomia do judiciário. Com a república, o centralismo e o papel eminente do Chefe de Estado o conduz a exercer poderes imperiais, o que não raro atenua a autonomia dos demais poderes, incluindo o judiciário. Como um juiz individual, como a categoria dos juízes pode julgar de modo independente, se o Estado brasileiro não pratica de fato a autonomia dos poderes e se o “imperador” que sobrevive no cargo presidencial consegue, nos tribunais supremos, decisões que atentam contra o magistrado comum? Sei bem que medidas como o Conselho Nacional de Justiça é festejado entre os juizes. Sei bem que a sumula vinculante possui forte apoio entre eles. Mas pergunto como cidadão que estuda a burocracia no mundo e no Brasil : tais medidas constituem avanços sem óbices do Estado rumo à democracia e ao direito, ou também traduzem aspirações da Presidência da República na perene tentativa aplainar a sua via e se garantir, sempre mais, como poder superior aos demais? O Conselho de Justiça não implica em nenhuma ordem de negociação política passível de ser orientada pelos Executivos estaduais (ligados a oligarquias e segmentos poderosos do mercado e da política) e pelo Executivo nacional, cujos vínculos com o Parlamento ainda se encontram no tristemente famoso “é dando que se recebe”? Não seria necessário vigiar com constante cautela os processos de escolha dos que têm assento no Conselho referido? Um tal Conselho pode ser de fato eficaz na democratização do Judiciário se o Executiva continua a possuir hegemonia no Estado, com pretensões sem limites? E afinal, o princípio da accountability, mesmo que imposto ao judiciário, quem garante que ele será assumido pelo governo central? Em país onde o segredo passa, muito facilmente, pela espionagem dos cidadãos e das instituições e no qual as práticas do SNI ainda existem no cotidiano, como praticar em um poder apenas a máxima transparência? E note-se que sou um crítico do segredo em todos os setores da vida estatal. Se um poder se abre à inspeção da cidadania, excelente. Mas e se o mais forte dos poderes, o que detêm a chave dos cofres e as armas, a propaganda e a espionagem oficial, o que enceta convênios com orgãos repressivos de todos os países, mantem uma política de sigilo (inclusive em documentação histórica de épocas ditatorias, de tal modo que é mais fácil ler os textos de nosso pretérito hediondo em Londres, Paris ou nos EUA do que em nossos arquivos), é prudente abrir os procedimentos do judiciário, sem cautelas? Lembremos que mesmo no absolutismo de Bacon os juízes, embora sob o trono do rei, eram leões. A democratização sem maiores cautelas não significaria arrancar as garras dos leões, encerrando a sua domesticação iniciada no Império e na república, em especial nas ditaduras que tomaram boa parte do século XX brasileiro? São questões que não julgo ociosas, porque da resposta sobre a isonomia dos poderes reside a outra, sobre a independência dos juízes.
Enquanto existirem no Executivo as pretensões de manter a Constituição sob sua tutela, não teremos Estado de direito garantido entre nós. “O Estado de direito é bem traduzido pela réplica celebre do moleiro de Potsdam (…) Es gibt noch Richter in Berlin”. Nem Frederico II conseguiu se opor ao direito de propriedade do moleiro, mesmo que o seu moinho fosse barulhento e incomodasse o soberano no castelo de Sans souci. Isto é o Estado de direito. E nada mais.” Creio que o Estado de direito é algo mais, que me perdoe a parlamentar belga que emitiu as considerações citadas.Mas deixemos a Belgica e olhemos nossa pátria. Apesar de todas as pressões, os tribunais de base permitiram e permitem que os cidadãos afirmem aos presidentes, a todos os presidentes da república, “existem juízes no Brasil”. Esperemos que essa realidade se expanda para o alto, de modo que possamos dizer, com o mesmo júbilo do cidadão germânico : “Existem juízes em Brasilia”. Esta, por enquanto, é a única esperança de que os presidentes não continuarão a usurpar a alma de nossa Carta Magna.
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Sobre o conceito de Ditadura.
Roberto Romano
A ditadura é invenção romana, como também o município. A palavra “município” teve duas acepções diferentes em Roma. De modo geral o vocábulo foi usado para designar uma cidade de constituição romana na Itália e nas províncias, em oposição a Roma. Mas ele também foi usado para designar um direito público, categoria especial das cidades itálicas e provinciais. Município deriva de municeps, como principium deriva de princeps. No início, municipes não eram eleitores nem elegíveis. Municipium na Lei Julia designa exclusivamente as cidades itálicas. No império, o termo é empregado para designar as cidades itálicas e as provinciais. Nos inícios do Estado romano municipium já se emprega não no sentido comum de cidade, mas para designar uma condição de direito público. Municipes são os habitantes itálicos que, sem serem romanos, têm direitos de gestão própria e são assimilados aos romanos nas munera publica, sem o direito de votar e ser votados para os cargos mais importantes de Roma. Eles teriam uma espécie de “naturalização incompleta”: serviam nas legiões romanas e não como os socii, foederati nos corpos auxiliares armados. E pagavam impostos nas mesmas condições dos romanos.
Considerada a desconfiança diante dos estrangeiro, o estatuto de municipe era uma deferência romana para com os habitantes sem cidadania. Dessa condição, muitos municipes seguiam para adquirir a cidؐadania plena. Quanto à administração, a condição de cada municipio era regulamentada pelo Senado ou pelo povo romano, sendo que a autonomia poderia ser concedida ou retirada, conforme o jogo político e militar. Municipios leais mantiveram sua condição. Quando sem autonomia, as cidades eram privadas de assembléia popular, de senado, de magistrados, sendo administradas pelos praefecti, delegados do povo romano, ou pelo pretor. Assim, elas tinham o nome de praefecturae. Os habitantes das praefecturae não perdiam sua qualidade de cidadãos de Roma, mas a coletividade deixava de ser, administrativamente, independentes e com vida própria. Ela era sujeita ao Senado e ao povo de Roma. Em geral os poderes públicos municipais se compunham de 1) dos comícios 2) senado 3) Magistrados. À diferença das coloniae, que de fato ou por ficção derivavam da própria Roma, os municipes tinham ainda suas raizes em seu próprio passado longinqüo. Esta dimensão dupla (pertencer a Roma e pertencer a si mesmo, ao seu próprio pretérito) é única no mundo antigo. Só Roma a conheceu. Na Grécia ela foi ignorada. Roma antecipou a noção de um Estado não confundido com uma cidade, mas congregando multiplas cidades controladas pelo poder romano. A hegemonia de Roma administra um agregado de comunidades urbanas subordinadas, mas com vida própria e valores idem. Assim, existiram municipios em toda a Europa romana até a queda do Império.
Roma usava dois métodos para com as cidades italianas. O primeiro é a sua extinção pura e simples como entidades autônomas, sua anexação. O segundo era a federalização. O foedus que liga as urbes a Roma se diferencia em várias categorias. As mais favorecidas eram as cidades que eram tratadas em pé de igualdade e com Roma concluiram um foedus aequum (Nápoles, entre outras) e na Grécia Heracleia da qual Cicero menciona o foedus aequissimum, ou singulare. Aquelas coletividades guardam seus direitos, incluindo a cunhagem de moeda, as instituições, magistraturas, tribunais, etc. Quando instalados em Roma, os seus cidadãos podem pedir cidadania. Depois dessas, vem as que tiveram um foedus non aequuum. As cidades não guardam autonomia devido ao artigo da lei romana segundo o qual o povo romano conserva a majestade. (Cicero, Pro Balbo). E depois dessas, as cidades nas quais o pacto federativo era mais de clientela, protetorado, a maioria das coletividades entram nesse caso. Em todos os casos, no entanto, a federação é bastante falha, visto que se impunha a superioridade militar de Roma nos quesitos de ordem externa ou interna. (1) Essa marca do Estado romano está presente na ditadura e no império, e perdura até a queda, tanto no Ocidente quanto no Oriente.
A mesma ausência de “município”, na Grécia, ocorre para a ditadura. A palavra é ignorada em grego, salvo como tradução literal do termo romano. É preciso notar que desde a época mais recuada são bem conhecidas as formas de poder pessoal, uma das notas da ditadura. O termo “tirano”, não presente na Ilíada, enuncia um poder com as marcas de pessoalidade. “Ter muitos chefes nada vale; que um só seja o chefe, que um só seja o rei”. Como os gregos são conhecidos pelo paradoxo, na mesma Ilíada é dito que em situações críticas vale mais que sejam dois e não um só a assumir o comando. (2) Na Grécia arcaica (até o final do século VI AC) existiram chefes nomeados vitaliciamente ou por tempo limitado, tendo em vista resolver crises. Tais líderes eram chamado aisymnetas (comandantes) que dispunham de poderes excepcionais, espécies de tiranos eleitos e acusados de agir com arbítrio e injustiça. O nome de basileus era dado ao rei, o qual detinha maior ou menor força, de acordo com as cidades.
O tirano de início é um basileus, o que possui amplos poderes, mas nem por isso visto como usurpador ou bandido. A evolução deste sentido ao de péssimo governante é feita em pouco tempo. Os primeiros usos do título de tirano com conotação negativa (algo debatido até hoje, se mesmo negativa ou não) vem de Arquíloco, datado hoje como do século VII em vez do século VIII, num poema mal conservado (Fragmento 15, da edição de Lasserre-Bonnard, Ed. Les Belles Lettres). (3) Os séculos VI e VII são férteis em governos tirânicos e populares, contrários ao poder nobre. Por volta de 430, na peça Édipo Tirano, Sófocles não emprega ainda o termo no sentido totalmente pejorativo. Em Heródoto, na segunda metade do século V, temos a questão da tirania. O historiador relata um debate sobre o poder efetivado na corte persa. Com a morte de Cambyses, sete nobres discutem o regime a estabelecer. Com a vitória da monarquia, ela é entregue a Darius. Mas são discutidas a monarquia, a aristocracia e o regime popular, com seus pró e seus contra. (Heródoto, III, 80ss). () O adversário da monarquia diz que a pessoa nela investida não precisa prestar contas a ninguém e se torna próspera e orgulhosa, abusa do poder e ordena execuções sem julgamento, usa as propriedades dos governados segundo seu capricho, viola as leis e a moral. O poder absoluto leva à tirania, máxima injustiça. O regime adequado seria a democracia, na qual os integrantes política recebem tratamento isonômico. (4) Contra semelhante requisitório, o defensor do poder absoluto diz que se o titular é bom, tal governo é o mais adequado. Ele é mais eficaz porque nele o segredo de Estado tem mais garantias (o seu titular é um só). Solon recusa a tirania que lhe foi ofertada, a considera ausência da lei, injustiça. A tirania, no seu entender, é como uma praça forte que protege, mas aprisiona quem a comanda. Solon aceitou ser árbitro por tempo limitado. (5)
Em Esquilo a tirania se identifica parcialmente à barbárie dos persas vencidos em Salamina (Os Persas, 480) ou dos egipcios (As Suplicantes, 472). Prometeu encadeado é o campeão da humanidade por lutar contra Zeus, tirano que impõe sua vontade arbitrária. Em Sete contra Tebas, o rei é legítimo, mas ele, Eteócles, deseja guardar o poder por tempo maior do que o legal e não pretende ceder o comando ao seu irmão, conforme a alternância prevista em termos jurídicos. A imaginação teatral, ligada ao fato tirânico, se radicaliza com Eurípides (As Fenícias) o qual coloca na boca de Eteócles a confissão do ardor pelo poder exclusivo : “Subiria aos astros, o lugar onde eles se elevam ao céu, desceria à terra, se fosse capaz, para manter em minhas mãos o poder soberano, a maior divindade”. E adiante: “Se é preciso ser criminoso, que seja pelo poder soberano, o mais belo motivo dos crimes”. (As Fenícias, 504, 524). (6)
Se não existe ditadura na Grécia, é possível enunciar que a noção e a prática da tirania se aproxima daquele conceito. A questão do tempo de mandato, a substituição da realeza pela magistratura que não presta contas, como o rei, é imposta por um golpe de força ou astúcia, diminui a sua legitimidade. Um exemplo modelar da tirania ilegítima, desenhado por Platão na República, se tornou o grande paradigma da tirania até os nossos dias. Trata-se do anel de Giges, o pastor lídio. É bom recordar que a primeira notação sobre tirania, como foi enunciado acima, é de Arquíloco. E tal notação é referida a Giges. “Um dia, durante violenta tempestade acompanhada de abalo sísmico o solo fendeu-se e formou-se um precipício perto do local onde apascentava o seu rebanho. Cheio de assombro Giges desceu ao fundo do abismo e, entre outras maravilhas que a fábula enumera, surgiu um cavalo de bronze, oco, perfurado com pequenas aberturas; tendo-se debruçado sobre uma, percebeu dentro um cadáver de estatura maior, parece, que a de um homem, e que trazia na mão um anel de ouro, do qual ele se apoderou (…). Ora à reunião habitual dos pastores que se realizava cada mês para informar o rei do estado de seus rebanhos, ele compareceu com o anel no dedo. Tendo tomado assento no meio dos outros, voltou por acaso o engaste do anel para o interior da mão; imediatamente tornou-se invisível ) aos seus vizinhos, que começaram a falar dele como se tivesse partido. Espantado (7), ele manejou de novo o anel com hesitação, voltou o engaste para fora e, assim fazendo, tornou a ficar visível. Dando-se conta do fato, repetiu a experiência para verificar se o anel possuía realmente semelhante poder, o mesmo prodígio reproduziu-se: virando o engaste para dentro, ficava invisível; para fora, visível. Desde que se certificou disso, agiu de modo a figurar entre os mensageiros que se dirigiam para junto do rei. Chegando ao palácio, seduziu a rainha, tramou com ela a morte do rei, matou-o e obteve assim o poder.”. (8)
A história narrada no interior da República marca os lados da visibilidade e da invisibilidade do poder e da justiça. Na divisão dos campos opostos ocorre a maravilha, o espanto. Todos os elementos narrados pelo escritor Platão no personagem Giges, encontram-se na história dos golpes de Estado e das ditaduras, após o final da república romana e o nascimento do império. Até os nossos dias, os mais importantes pensadores políticos se aplicam a captar os sentidos da história de Giges, entre eles, o republicano Jean-Jacques Rousseau. (9) Entre a modernidade e os tempos antigos, o cristianismo apurou a noção de tirania. (10)
Na experiência grega, além da história de Giges, o tirano é chamado lobo sanguinário por Platão (11) que prevê a sua morte nas mãos dos adversários. Aristóteles define o tirano como pernicioso ao coletivo. (12) Cicero discute a tirania, e afirma que o tirano gera ódio e sempre acaba morto de maneira violenta. (13) O escritor discute o peso do tiranicídio, em relação aos valores éticos : “Com frequência as circunstâncias tornam o que se costuma considerar torpe, como não torpe. Existe crime maior do que matar um homem, ou um amigo? No entanto, seria mesmo um criminoso quem matou um tirano, mesmo sendo ele amigo? Tal não é a opinião do povo romano. Entre as belas ações, ele considera aquele ato como o mais belo” (14) Pode ser encontrada em Seneca uma atitude próxima. “Se a cura (do tirano) é desesperada, com um só gesto farei um ato benemérito para todos e de restituição, para ele. Para naturezas como a sua, deixar a vida é o único remédio, a melhor escolha é ir embora, quando não é mais possível voltar a si mesmo”. (15)
O Novo Testamento, por sua vez, segue a linha do Velho, proíbe o assassinato. E São Paulo é explícito no que se refere aos governantes. “Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores(ἐξουσίαις, potestatibus): porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade, resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação. Porque os magistrados não são para temor (φόβος) quando se faz o bem, e, sim, quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem, e terás louvor dela; visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal. É necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa do temor da punição, mas também por dever de consciência. Por esse motivo também pagais tributos: porque são ministros de Deus, atendendo constantemente a este serviço. Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra” (Romanos, 13: 1-7).
O termo ἐξουσίαις, cuja tradução para o latim é potestatibus, tem o significado do sublime (Omnis anima potestatibus sublimioribus subdita sit) o que gera medo (φόβος) pela sua própria magnitude e transcendência, ultrapassa os limites dos homens finitos : poder, no sentido exato, só o divino (οὐ γὰρ ἔστιν ἐξουσία εἰ μὴ ὑπὸ θεοῦ; non est enim potestas nisi a Deo). Temos a reiteração da temática, já trazida no livro de Jó (16) da incomensurabilidade entre poder divino e humano, de onde nasce o símile do Leviatã. Tomás de Aquino fala, a propósito, do Leviatã como “excesso de grandeza”, o que vai além de todo poderio ou astúcia humanos. (17)
Lutero, para falar do medo trazido pela justiça divina, usa o termo Furcht (terror, pavor). A versão inglêsa do Rei Tiago traz claramente o vocábulo terror. A palavra latina é aparentemente mais branda: timor. Cicero afirma que o medo é política ruim, pois instaura a tirania. No caso de Paulo, o sublime divino é fonte do medo e as autoridades trazem o medo aos homens que optam pelo mal, nada podem contra os que agem bem.
Padres da Igreja, como Tertuliano e Lactâncio escrevem que embora o tirano seja detestável a sua punição é reservada a Deus, e apenas a Ele. O cristão deve morrer pela sua causa e não matar (Vincimus, cum occidimur, Apologeticum). Finalmente : Orate (…) pro regibus et pro principibus et potestatibus, ut omnia tranquilla sint vobis! (18) Mesma atitude na Cidade de Deus. Mas Agostinho introduz algumas concessões no tocante ao tiranicídio. Uma autoridade pública, face à maldade do culpado, pode matar. Não convêm aos particulares exercer tal decisão e ato. Se não é conveniente, não significa no entanto não ser possível ou justificável. Se Deus manda uma pessoa privada matar o péssimo dirigente, ela deve obedecer.
O grande nome das doutrinas eclesiásticas, quando se trata do tiranicídio, é João de Salisbury. O seu monumento sobre o problema é o Policraticus (1159). No livro 3, capítulo 15 daquele tratado, o autor se ocupa com o tirano por usurpação que tomou o poder por astúcia e violência. “Devemos viver de um modo com o amigo, de outro com o tirano. De qualquer modo, não convêm adular o amigo, mas é lícito acariciar (mulcere) (19) as orelhas do tirano. Pois é permitido lisonjear a quem é permitido matar. Não apenas é lícito matar o tirano como é eqüitativo e justo. Quem toma o gládio é digno de matar pelo gládio. Mas por ´tomar´ se entenda : quem o usurpa por sua própria temeridade ou recebe de seu senhor o poder de o utilizar. Quem recebe de Deus o poder conserva as leis, é servidor da justiça e do direito. Quem o usurpa rebaixa os direitos, submete as leis à sua vontade”. Não só o tirano usurpador pode ser morto, mas também o legítimo cujo exercício vai contra a lei e a justiça. O tirano “oprime o povo de modo violento (…) a lei é dom divino, forma de equidade e justiça, imagem da vontade divina, guardiã da salvação, fortaleza dos povos, regra das magistraturas, exclusão e termo dos vícios, pena contra a violência e toda injustiça (…) O príncipe combate pelas leis e pela liberdade do povo, o tirano acha que nada se faz se não se rejeita as leis e não se leva o povo à servidão. O principe é imagem da divindade mas o tirano figura a força contrária, a perversidade diabólica”. No capítulo 20 do Policraticus, Salisbury narra os tiranicídios bíblicos. Integram sua lista os reis legítimos como Joram e Ocosias, bem como César e demais imperadores romanos. O governante é tirânico? Deve ser morto. Ao violar as leis divinas ele se torna culpado de lesa majestade divina. “Dos crimes de lesa majestade nenhum é mais grave do que o cometido contra o próprio corpo da justiça”. Retornamos ao início dessas considerações, com o preceito paulíneo da obediência à autoridade. A mais sublime dentre todas as autoridades é Deus. Ferir a lei de morte é tentar assassinar o divino. Não existe crime pior. (20)
Em Tomás de Aquino nota-se forte hesitação no tratamento do tiranicídio. No Segundo livro dos Comentários sobre as Sentenças de Pedro Lombardo (entre 1254 e 1256), os tiranos de usurpação podem ser mortos. O mesmo não é dito sobre os de exercício. Ninguém é obrigado a obedecê-los, e mesmo é preciso não acatar suas ordens em algumas ocasiões. Em geral, no entanto, deve-se obedecer o governante. O referido dever é “causado pela ordem de comissão, que tem uma virtude obrigatória, não apenas no plano temporal mas também no espiritual, em consciência como diz o Apóstolo (Romanos, 13), segundo o qual a comissão desce de Deus (…) logo segundo o que é de Deus, obedecer a tais prepostos é dever do cristão, mesmo que a comissão, ela mesma, não seja de Deus”.
Se o rei é um comissário divino, deve ser obedecido. (21) A idéia do comissariato será substituída na modernidade por símiles como o empregado por Blaise Pascal na Carta sobre a Condição dos Grandes. Os príncipes e dirigentes são como o náufrago que aparece nas praias de uma ilha distante. Ele se parece com o príncipe efetivo, mas não é ele. Assim, precisa agir como se fosse legítimo, mas sabe que a qualquer instante o soberano real pode surgir. (22) Segundo Aquino, o comissário pode abusar de sua missão de duas maneiras: fazer o contrário do que ela autoriza (exemplo, um pecado) ou obrigar os dirigidos à prática de algo alheio à sua comissão (exemplo, querer impostos indevidos). O governado pode obedecer, ou não. Se o tirano insiste os cristãos devem sofrer o martírio, mas nada é dito sobre matar o governante injusto.
Já no Regime dos Príncipes, escrito entre 1265 e 1266 (do qual com alguma certeza os livros primeiro e segundo são do filósofo, incluindo o capítulo quarto) a doutrina do tiranicídio é mais clara (ela é exposta no primeiro). Alí desaparece a distinção entre as tiranias (usurpação e exercício) e Aquino retoma Aristóteles : “Como o regime do rei é o melhor, o regime do tirano é o pior”. E logo após : “Um regime torna-se injusto se, ao desprezar o bem comum da multidão, busca o bem privado do governante. Por tal motivo, quanto mais um regime se afasta do bem comum, mais ele é injusto (…) Na tirania, se afasta mais do bem comum, pois nela se procura o bem de um só, logo o regime do tirano é o mais injusto”. (Capítulo 3). Com base em Aristóteles, mas também por recolher alguma lembrança do injusto platônico, Aquino diz que o tirano é como o lobo que não garante a segurança dos governados e persegue os bons cidadãos, favorece as quadrilhas reunidas para delinqüir, impede a amizade, propicia a discórdia. Ele em nada difere de uma fera. Si (…) regimen iniustum per unum tantum fiat qui sua commoda ex regimine quaerat, non autem bonum multitudinis sibi subiectae, talis rector tyrannus vocatur, nomine a fortitudine derivato, quia scilicet per potentiam opprimit, non per iustitiam regit: unde et apud antiquos potentes quique tyranni vocabantur .“ Se (…) o regime é exercido injustamente por um homem só e ao governar ele busca ganho para si mesmo e não o bem da comunidade a ele sujeita, tal dirigente é chamado tirano que significa ‘força’ porque ele oprime com poder, e não governa com justiça”. (23) Aquino, neste passo, cita Isidoro de Sevilha (Etymologiae 9:3, PL 82:344), cuja etimologia não é correta.
Tomás de Aquino possui dois pilares, em sua discussão teórica sobre a ordem pública. O primeiro é Dionísio, o Pseudo-Areopagita, o segundo é Isidoro de Sevilha. Aquino expõe a noção do universo como imensa hierarquia verticalizada que desce do Senhor, atravessa os arcanjos e anjos, chega aos sacerdotes e passa aos leigos poderosos para atingir os ínfimos da natura, define a doutrina cósmica e cívica, espinha dorsal do catolicismo religioso e político.(24) Essa doutrina tem origem neo-platônica, em Dionisio o pseudo-areopagita. Deus encontra- se além de todos os nossos sentidos e apenas pelos intermediários entre Ele e nós recebemos as suas bençãos. A hierarquia encontra-se na mais funda determinação do ser. É o que diz o teólogo e filósofo Paul Tillich, ao citar em Dionísio o “sistema sagrado onde os graus referem-se ao saber e à eficácia”. E arremata o pensador : “Isto caracteriza todo o pensamento católico em grande extensão; ele não é apenas ontológico, mas também epistemológico; existem graus não apenas no ser, mas também no conhecimento”.(25) Há, neste sentido, uma via para cima e uma via para baixo da escala e cada ente encontra-se num lugar certo e determinado desde sempre. Deus está além de todos os nomes que a teologia lhe atribui, além do espírito, além do Bem, numa “indizível obscuridade”. Dada esta transcendência absoluta, a hierarquia celeste é a emanação de sua luz. Quanto mais próxima d´Ele, mais a entidade se ilumina, quanto mais distante, mais escura. Os homens não podem perceber a luz divina, porque ela é tão intensa que os cega. Assim, os intermediários angélicos são o caminho para o fulgor Eterno. A Igreja Católica exibe na sua forma de governo e de pensamento social este imaginário metafísico.() É impossível quebrar a escala hierárquica dos anjos aos homens. Trata-se de responder à pergunta central de todo pensamento político sobre a teodicéia: “Porque, se Deus fez todas as coisas, ele não as fez todas iguais?”. Agostinho apresentou a sua fórmula: non essent omnia, si essent aequalia (se todas as coisas fossem iguais, nada seriam). Cada coisa ocupa um lugar na escada dos seres, da mais humilde à excelsa. () A queda do arcanjo luminoso apenas destrói na aparência, jamais na essência, a ordem universal. Lúcifer engana-se e procura enganar os homens sobre o poder divino.
Há um heliotropismo essencial no pensamento católico onde a hierarquia insere-se com perfeição. Embora cada ser tenha o seu lugar natural, os homens possuem o livre arbítrio (algo que trouxe lutas penosas para a Igreja, desde Agostinho até Jansenius e Pascal). Assim, retoma-se na Igreja a tese de Platão de que “o divino não é culpado” pelos nossos males. O mal não pode ser atribuído ao Absoluto. “Deus”, afirma Tomás de Aquino, “não quer que se faça o mal, nem quer que não se faça; o que Ele quer é permitir que se faça, e isto é bom” (Summa Theologia, 1 q. 19 a 9). O espelho terrestre foi embaçado pelo hálito pestilento do mal, mas pode ser limpo e resplandecer novamente. A criaturas atingem a perfeição no campo iluminado pelo brilho divino. No capítulo sobre a luz e a visão dos homens, Aquino refuta o símile entre os últimos e o morcego “que não pode ver o mais visível, o Sol, por causa precisamente do excesso de luz”. Os homens não nasceram para a lamentável escuridão e seu alvo é a perfeita alegria da vista: “como a suprema felicidade do homem consiste na mais elevada de suas operações, a do intelecto, se este nunca pudesse ver a essência divina, segue-se que o homem nunca alcançaria a felicidade, ou que esta é algo distinto de Deus, o que se opõe à fé (…) uma coisa é tanto mais perfeita, quanto mais se une ao princípio”. Assim, “os bem aventurados vêem a essência divina” (Summa 1 q. 12 a 1).
Mas como pode o homem unir-se ao divino? Os anjos e a sua hierarquia, espelhada na hierarquia eclesiástica, dão a primeira resposta. A segunda (a que trouxe maiores violências no debate cristão, sobretudo entre os jansenistas e calvinistas) é explicitada por Tomás de Aquino: “é indispensável que, em virtude da Graça, seja-lhe concedido o poder intelectual e este acréscimo de poder é o que chamamos iluminação do intelecto, bem como chamamos luz ao objeto inteligível. Esta é a luz de que fala o Apocalipse referindo-se à sociedade dos bem aventurados que vêem a Deus, que a claridade de Deus a ilumina e graças a esta luz se fazem deiformes, isto é, semelhantes a Deus (idest Deo similes)” (Summa, 1 q. 12 a 5). Os entes humanos, pela Graça, tornam-se iguais a Deus na contemplação beatífica, na transcendência eterna.() A igualdade entre eles não é possível, visto que em cada um dos indivíduos humanos há uma relação especial com Deus mediata pela cooperação de cada um deles com a Graça divina, o que indica uma proximidade maior ou menor entre a consciência e Deus. () Para que possa existir visão divina, a luz deve ser percebida segundo graus, não de imediato. A doutrina sobre o poder político exige a tese dos graus de visibilidade contemplativa, o que prepara o óbice maior que se instala entre o pensamento católico e as modernas idéias democráticas sobre a igualdade, onde o divino transcendente é posto fora do trato político ou, como dizia Laplace a Napoleão Bonaparte quando este ao folhear o texto sobre a Mecânica Celeste, perguntou ao cientista sobre Deus: “Je n’ ai pas eu besoin de cette hypothèse”.
O segundo pilar do pensamento político de Aquino, se deixarmos de lado os seus maiores apoios, Aristóteles e Platão, é Isidoro de Sevilha, sobretudo quando se trata da análise da lei e da tirania. O debate sobre a lei é feito a partir das Etimologias (2:10; 5:3, PL 82: 130 e 5:21, PL 82:203). () A lei é fundamentada na razão e composta não tendo em vista a vantagem privada mas o bem comum dos cidadãos. O alvo final da vida humana é a felicidade, ou beatitude, a lei deve satisfazer o bem dos indivíduos tendo em vista o bem comum, no Estado. A passagem fundamenta-se também em Aristóteles (Ética, V, 7: 8, 1151a 16) () e (Física 2: 9, 200a 22). ()
Qual deve ser o legislador ? O povo ou homens superiores? Para o debate, Aquino cita Isodoro, ainda nas Etimologias (5:10, PL 82:200) : “lei é um ordenamento do povo pelo qual algo é sancionado pelos de alto nascimento em conjunção com os comuns”. Todos possuem a lei em si mesmos e todos têm interesse na lei. Mas as pessoas privadas não podem compelir as demais à virtude, tal poder está presente na comunidade ou na pessoa cujo dever é aplicar punições e, portanto, a lei pertence a ela apenas. Ademais, a promulgação da lei é essencial na ordem pública? Sim, responde Aquino, porque os não presentes no ato da instauração legal têm obrigação de saber a lei. Quando a lei é promulgada por escrito, é como se ela tivesse sua promulgação refeita no passado, no presente e no futuro, de modo contínuo. É por tal motivo que Isidoro diz que “a lei deriva de ‘ler’(legendo) porque ela é escrita” (Etimologias 2: 10, PL 82:130). Se alguns homens são inclinados para este ou aquele modo de ser e desejam honras, riquezas, prazeres, como definir a lei da natureza, visto que Isidoro indica que “o direito natural (ius naturale) é comum a todas as nacões” ? (Etimologias 5:4, PL 82:199). Assim como a verdade é a mesma em todos os homens mas não é igualmente conhecida por todos, também a lei da natureza é idêntica para todos, mas é recebida e praticada de modos diversos.
Qual o alvo das leis? Segundo Isidoro, citado por Aquino, “as leis foram feitas para que a audácia humana pudesse ser colocada em limites pelo medo delas, para que a inocência fosse protegida no meio dos desordeiros, e que o pavor da punição restringisse os perversos de produzir danos” (Etimologias 5:20, PL: 82:202). Neste passo, Aquino cita com maior vigor Aristóteles, quando se trata do papel punitivo das leis. “Como o Filósofo diz na Retórica 1 ( 1:1, 1354a31), ‘é melhor que todas as coisas sejam reguladas por lei do que deixadas à decisão dos juízes’e isto por três razões. Primeira, porque é mais fácil encontrar poucos homens sábios capazes de encontrar leis sábias do que os muitos para julgar cada caso individual corretamente. Segundo porque os que estabelecem leis devotam muito tempo ao que faz a lei enquanto o juizo de cada caso singular deve ser dado logo que o caso ocorre; mas é mais fácil para o homem ver o que é direito tomando em consideração muitos exemplos, em vez de um só caso. Terceiro, porque os legisladores julgam termos em geral, com o futuro em mente, mas os juízes o fazem em relação ao presente, tratam com o que pode afetá-los pelo amor ou ódio ou ambição de algum tipo, e assim seu julgamento pode ser distorcido. Dado que a ‘lei animada’ dos juizes não se encontra em muitos homens, e porque ela pode ser distorcida, foi preciso, sempre que possível, que a lei determinasse como deveria ser o julgamento, e para muito poucas matérias se confiasse na decisão dos homens”. O direito positivo deve ser contrastado com o natural, como diz Isidoro (Etimologias, 5:4, PL 82:199).
Aquino se dirige ao próprio conceito de lei, enunciado por Isidoro, se perguntando se é apropriada descrição da lei inscrita nas Etimologias. Citação de Isidoro : “a lei deve ser franca, justa, possível, seguir a natureza e o costume da terra, capaz de ser aplicada em tempo e espaço determinados, necessária, útil, expressa com clareza, que ela não contenha alguma provisão temível pela sua obscuridade; seja composta não para vantagem privada, mas para o benefício dos cidadãos”(Etimologias, 5: 21, PL 82: 203). Aquino explica cada um dos termos expressos por Isidoro, inclusive a idéia de que o homem é útil para o homem, base da política. ()
O autor da Summa se dirige, então ao problema da tirania e dos outros regimes. A lei humana pode ser dividida segundo as formas de governo. Aquino cita Aristóteles na Política (3: 5, 1279a26) e divide os regimes em monarquia, aristocracia, oligarquia, democracia, e “também existe a tirania, inteiramente corrompida e à qual nenhum tipo de lei corresponde”. Tudo o que existe por força de um fim deve necessáriamente ser adaptado ao citado fim. Sendo o fim da lei o bem comum, “porque, como diz Isidoro, ‘a lei não deve ser composta para vantagem privada mas para o benefício comum dos cidadãos’( Etimologias, 2:10, 5: 21, PL 82: 131, 203), ela deve se adaptar ao bem comum. Se a lei é injusta, no entanto, “a ordem divinamente ordenada dos poderes não se aplica, e portanto um homem não é obrigado a obedecer a lei em tais casos, se pode resistir (resistere) , assim o fazendo sem escândalo ou alarma pior”.
Se possível, no entanto, é melhor tolerar o tirano. Caso os revoltados fracassem, ele pode se tornar ainda mais feroz. Mesmo se a tirania é insuportável não vale a pena o tiranicídio. O remédio aceito pelo doutor da Igreja é a revolta regulada por representantes legítimos do povo. “Parece que se deva proceder contra a selvageria dos tiranos, não pela presunção privada de alguns, mas por autoridade pública” como uma assembléia do povo ou como o Senado romano, que destituirá o tirano. Segundo a Suma Teológica é preciso obedecer as autoridades, quando ocorrem abusos que trazem rebeliões. Ao retomar Aristóteles e dizer que a “tirania é ordenada para o bem próprio do governante, com prejuízo da multidão” (IIa II ae, q. 42) ele condena a sedição como oposta à justiça e ao bem comum. Ora, o regime tirânico não é justo, pois não se ordena ao bem comum, mas ao proveito do dirigente. Logo, “a derrubada desse regime não tem o caráter de sedição”. () A sedição pode não ser pecado. E matar o tirano? Na questão 64, artigo 2 da Suma ao discutir se é lícito matar bandidos, ele afirma com apoio em Êxodo, 22 que “não suportarás que os bandidos vivam”. Assim, “se algum homem é perigoso para a comunidade e seu corruptor por causa de algum pecado, que seja morto elogiadamente e com vantagem, para que o bem comum seja conservado. Com efeito, pequena porção de fermento corrompe toda a massa”.
Uma pessoa privada pode matar o bandido? Responde o santo: “é licito matar um malfeitor, na medida em que o ato é ordenado para a salvação da comunidade; como pertence ao médico arrancar o membro apodrecido, quando foi-lhe confiada a saúde do corpo inteiro. O cuidado do bem comum e confiado aos notáveis com autoridade pública. E apenas a eles é confiado matar os malfeitores, não às pessoas privadas”. No final, chega-se à sugestão, não dita explicitamente pelo autor, de que as pessoas privadas podem matar o malfeitor e o tirano, desde que receba uma ordem divina, a missão, tal como ela se apresenta à sua consciência.
Bartolo da Sassoferrato (1314-1357?) professor de direito em Pisa (entre 1339-1350) se ocupa dos tiranos que assolam as cidades italianas, cujos regimes republicanos deslizam para o despotismo oligarquico ou individual. Hodie Italia est tota plena tyrannis, diz ele no De regiminis civitatis. () Bartolo foi dos primeiros a sistematizar o campo do direito público nas cidades, o que lhe permitiu uma vista sinoptica da ordem jurídica e política. Ao mesmo tempo, teve conhecimento direto dos problemas mais amplos da Europa, por ter sido embaixador de Perugia junto a Carlos 4º.
Bartolo, como Aquino, distingue duas formas de tirania. A primeira, por defectu tituli, por problemas de origem na legitimidade. A segunda, tem a indicação de Ex parte exercitii, o desempenho no cargo. O pensador usa os sinais fornecidos por Plutarco para o reconhecimento do tirano. Este último assassina os melhores homens da cidade e chega a matar seus parentes mais próximos, impede os estudos e os sábios, proíbe reuniões particulares, semeia espiões entre a cidadania, empobrece os contribuintes para que eles fiquem ocupados com dívidas, guerreia o países estrangeiros, é mantido por um grupo de mercenários, adere a um partido político e inviabiliza os demais. (De Tyrannia, capitulo 8º).
Segundo Bartolo, o tirano pode ser responsabilizado pelos ordenamentos legais do Império, passível de ser punido com penas previstas no direito romano. Quem divide a cidade, por exemplo, pode ser castigado com a Lex Julia Majestatis () e assim por diante. Se o imperador não pune o tirano, os magistrados da cidade podem processá-lo e chegar à sua condenação por exílio ou morte. Mas o escritor não autoriza as pessoas privadas a cometer o tiranicídio.
No século 14 o Concílio de Constança foi encarregado de várias tarefas espinhosas, entre elas, a de resolver o cisma papal e o problema da sede pontifícia em Avinhão, analisar as doutrinas de João Wyclif, Jan Hus e sectários. O Concilio condenou o assassinato do tirano devido ao caso do Duque de Orleans (23/11/1407). O confesso mandante do crime, João Sem Medo, queria se desembaraçar do concorrente no Conselho de Estado. Defendido pelo causídico João Pequeno em 08/03/1408, seu pleito se baseia nos seguintes pontos : é lícito matar o tirano, e louvável. O Duque de Orleans era um tirano, amigo do diabo e de feiticeiros, a diaba Venus o presenteou com um talismã para se fazer amar por ele, etc. () Além de tudo o defunto era desleal, traidor, inimigo do povo. Assim, foi lícito matar o tirano. O assassino foi absolvido, os honorários de João Pequeno dobrados.
Quando o novo duque de Orleans entra em Paris e João Sem Medo precisa fugir, o chanceler Gerson de Notre Dame denuncia as teses de João Pequeno. Em 30/11/ 1413 uma espécie de concilio jurídico e teológico extraiu da defesa feita por João Pequeno nove proposições erradas. Finalmente, o tribunal condenou a sua apologia do tiranicídio, em nome do arcebispo de Paris e do Inquisidor da Fé. João Pequeno apela ao papa João 23º. Este submeteu o apelo ao Concilio de Constança. Assim, o processo sobre o tiranicídio adquire estatuto próximo ao da heresia de Hus. O Concilio condena as primeiras teses de Pequeno, selecionadas por Gerson, em especial a que enunciava ser lícito matar o tirano sem esperar sentença ou mandato judicial.
Roland Mousnier resume do seguinte modo as teses jurídicas e religiosas sobre o tiranicídio : () “Nenhum particular pode, por seu movimento próprio e sem juízo prévio por magistrado competente matar o tirano de exercício ou o de usurpação. Mas Deus sempre pode, ao seu arbítrio, confiar a um homem privado a missão de executar o tirano e por tal mandato o escolhido por Deus tem o dever de cumprir sem que exista julgamento e sem por isso se transformar em assassino. Contra os tiranos de usurpação a revolta é permitida sem que se possa qualificar os atos como sedição. Mas quanto ao tirano de exercício apenas os magistrados ou depositários legítimos da autoridade pública, príncipes, senhores, governos, representantes dos povos consultados, podem se rebelar, recusar obediência, pegar em armas, deter o governante, o julgar e depor, exilar, condenar à morte quando necessário. Contra o usurpador, que gera a guerra civil, todo cidadão pode se levantar numa guerra justa”. ()
Na Renascença os tiranicidas têm melhor imprensa. () Maquiavel (), Erasmo, com seu lamento : O Brutorum genus jam olim extinctum.() As advertências contra a tirania encontram-se espalhadas pelos textos erasmianos. Por exemplo, no tratado sobre a Educação do Príncipe Cristão. Após descrever a pintura do bom governante o autor se refere à “terrível fera, repulsiva besta, formada por um dragão, lobo, leão, serpente, urso, e monstros semelhantes; com seiscentos olhos espalhados sobre seu corpo, dentes por toda parte, temível em todos os seus ângulos, com anzóis em todas as suas unhas; nunca satisfeita a sua fome, nutrido por entranhas de seres humanos e pelo sangue dos homens; nunca adormecida, sempre ameaçadora para a vida e os bens dos cidadãos; perigosa para todos, especialmente para os bons; um tipo de maldição fatal para o mundo inteiro, sobre ela, todos os interessados pelo bem estar político tem sentimentos de execração e de ódio. Tal fera não pode ser limitada devido à sua monstruosidade e não pode ser derrubada devido ao desastre que tal ato traria para a cidade, porque sua malícia se fortalece com armas e riqueza. Esta é a pintura do tirano, nada pior pode ser descrito. Monstros desse genero foram Cláudio e Calígula. Os mitos nos poetas também mostram Busiris, Penteu, Midas, cujos nomes hoje são objeto de ódio para toda a raça humana”. ()
Lutero, adversário do tomismo em todos os assuntos, () interdita o tiranicídio, sobretudo se praticado por um particular. Calvino, na Instituição Cristã (tanto na de 1541 quanto em 1560) () define: como todo poder vem de Deus é preciso obedecer a autoridade civil, mesmo tirânica. O pensador não distingue entre tirania por usurpação e por exercício. “Conhecemos por suas palavras a grande obediência exigida por Nosso Senhor para que este tirano perverso e cruel (Nabucodonosor) fosse honrado, não por outra razão, mas porque ele possuía o reino. Aquela posse apenas mostrava que ele tinha sido posto no trono por ordem de Deus e por tal ordem, elevado à majestade real, que não é lícito violar”. Calvino cita o livro de Jó (28) e relembra Davi que recusa atentar contra Saul, tirano mas ungido pelo Senhor. O cristão, diante de um tirano, deve examinar sua própria consciência, para ver os pecados pelos quais Deus assim o castiga. Se o príncipe deseja impor algo contrário à lei divina, no entanto, é preciso resistir até o martírio. “São Pedro nos ensina que é ´preciso mais obedecer a Deus do que aos homens´, mesmo com o risco de morte”. As pessoas privadas não podem se levantar, salvo se recebem missão especial de Deus, contra o tirano. “Algumas vezes Ele suscita manifestamente alguns de seus servidores e os arma com o seu mandamento, para punir uma dominação injusta e livrar da calamidade o povo iniquamente afligido.” O assassino, mesmo que não tenha consciência de alguma tarefa religiosa e possua outros alvos pessoais, pode servir de instrumento divino.
Chegamos ao calvinismo político que afasta todas as dúvidas quando se trata do reino francês, dividido entre papistas e huguenotes, nomes insultuosos que sempre aparecem nas guerras civis ou religiosas. Em 1573 na luta religiosa que estraçalhou a França surge o libelo O direito dos magistrados sobre seus súditos. () Pouco antes, em 1572, ocorrera a noite de São Bartolomeu. Em 1584 sobe ao trono um protestante, o Bourbon Henrique de Navarra, com o título de Henrique 4º. O Direito dos magistrados, apresenta a situação da desobediência quando esta passa de passiva a ativa, quando o poder contradiz os mandamentos divinos. O metron da ordem política só pode ser o divino, jamais humano, porque “nenhuma vontade a não ser a divina é perpétua e imutável, regra de toda justiça”. O tom platônico desse enunciado mostra que ele pode ser incluído na linha de Agostinho e não na vertente tomista.
Mas o escrito dá um passo a mais e sanciona as doutrinas sobre o tiranicídio. Ele autoriza o particular à execução do governante tirânico e inimigo das ordens divinas, caso os magistrados deixem de cumprir seu dever. Há um contrato entre povo e soberano. Como o Estado está acima do soberano a soberania não lhe cabe totalmente. Ele depende dos magistrados comuns que não “dependem propriamente do soberano, mas da soberania” a quem o rei presta um juramento de fidelidade. “É evidente que existe uma obrigação mútua entre o rei e os funcionários (officiers) de um reino, segundo a qual o seu governo não é posto nas mãos reais, mas apenas o soberano grau deste governo, como também os funcionários (officiers) tem, cada um, parte segundo o seu grau”.() O rei é um magistrado, como os demais, apenas o seu posto está acima dos outros. Os magistrados inferiores, quando o superior tomba em tirania, têm o dever de salvaguardar as leis. “Eles são obrigados (mesmo com uso de armas, se possível) de se levantar contra uma tirania manifesta, para a salvação dos que são postos sob sua guarda, até uma comum deliberação dos Estados”. Como afirma Roland Mousnier, isto vai muito além de Calvino.
Se há contrato, este se baseia no direito natural e divino, e não pode ser quebrado pelas partes. O tirano rompe o contrato, o que lhe retira a garantia no governo. O povo, portador da soberania, merece sempre a resposta certa ao quesito da responsabilidade do governante face ao contrato fundamental. Se rompe o contrato, o príncipe torna-se tirano e pode ser destituído ou morto.
Outro documento relevante dos monarcômacos franceses é o livro Vindiciae contra tyrannos, surgido em 1581 de maneira anônima. Ele foi atribuído a Teodoro de Beza, François Hotman, Buchanan, Hubert Languet. Sua importância foi enorme, tanto na França quanto na Europa. Mas não vai muito além do que aparece no Direito dos Magistrados. Ele avança, no entanto, no campo do contrato. Da Biblia é extraída a noção de um duplo contrato. Em primeiro, o contrato entre povo e rei, Deus garante este acordo, pois o povo é o propriedade divina. Depois, um segundo contrato entre rei e povo, para que o último obedeça bem se for bem dirigido. Daí nascem os direitos populares para exigir prestação de contas do rei, lhe resistir, depor. Depois, o livro inova no que se relaciona ao direito de resistência. Se o povo aprova o tirano que ignora a lei e a desrespeita, uma cidade apenas, um só magistrado, um só par do reino tem o direito de se levantar contra a tirania. A verdade não é quantitativa, um só pode ter razão contra muitos, estar no legítimo direito contra muitos, estar com a verdade contra muitos, e ser o único a defender a liberdade e a fé, contra muitos. Em plano ordinário, no entanto, não cabe ao particular exercer a vingança, a menos que Deus ordene sua missão.
João Althusius, em 1603, na Politica methodice digesta segue o plano geral da Vindiciae contra tyrannos. Temos nesse ponto um elemento estratégico de ordem jurídica, a suposta ou efetiva personalidade soberana do povo, com a idéia do contrato pelo qual o mesmo povo entrega o seu poder originário ao governante. Para a famosa transferência de poder, no entanto, o povo deveria possuir uma “subjetividade” comum. Se tal asserção for verdadeira, o povo jamais transfere totalmente seu direito ao dirigente, ele guarda para si a maiestas. Mesmo os defensores do absolutismo guardam a noção de que existe um contrato a ser cumprido pelo povo. Se o povo é cobrado pelo contrato, é porque ele teria alguma personalidade original. A personalidade do povo só poderia ser coletiva, o que traz problemas para a própria noção de persona capaz de decisões e de responsabilidade. O costume, trazido do direito romano, de chamar o povo de universitas, communitas, corpus, para explicar a personalidade popular como uma unidade incorporada, foi assumida pelos monarcômacos, como na Vindiciae contra tyrannos e nos textos de Althusius.
Althusius não pode aceitar as teses dos escritores católicos, como aliás nenhum de seus pares protestantes, de uma personalidade coletiva superior e anterior, ontológica e lógicamente, aos indivíduos. Tal é o ponto grave dos monarcômacos. Como vimos, embora neguem às pessoas privadas o direito de executar o tirano, quase sempre chegam ao indivíduo ou grupo que, por ordem expressa de Deus, podem justiçar o péssimo governante. Além disso, como também vimos, o indivíduo, em casos excepcionais, tem maior acesso ao verdadeiro do que a massa. Se a lógica aqui presente for levada ao máximo (e nas guerras ou revoluções do tempo ocorreu tal fato) os direitos coletivos são os direitos dos indivíduos somados. Althusius pensa numa conexão social, numa “parceria” dos indivíduos, que gera o Estado. Temos a noção de uma consociatio, corpus symbioticum. De modo artificioso retorna o peso do coletivo sobre os átomos sociais, a autoridade da comunhão política sobre os seus integrantes.
Importa insistir sobre a visão da soberania popular em autores protestantes como Althusius, que no mesmo ato se liga ao campo do federalismo. Dos indivíduos aos Estado e deste às federações, existem graus de autonomia e dignidade, sempre com o instrumento da consociatio. A sua política pode ser dita uma teoria rigorosa de muitas associações. Todas as instâncias sociais, no entender do escritor, surgem de associações. Dentre elas, são indicadas cinco species consociationis : a família, a de camaradagem (Genossenschaft), a comunidade local (Gemeinde), a província e o Estado. Cada uma das superiores resulta das inferiores e são elas, não os indivíduos diretamente, que entram no contrato que gera as mais elevadas. Elas possuem um direito que vai além dos indivíduos, direitos que não podem ser violados tanto pelas associações superiores, quanto pelos próprios grupos inferiores ou individualidades. Se tal é o ponto, é possível aceitar que um grupo ou indivíduo, sem licença das respectivas associações (inferiores ou superiores) decrete que tal instância é tirânica e mate os seus titulares? () Se uma instância associada, ou grupo ou indivíduo no seu interior, abusa de suas prerrogativas, nota-se que a qualificação de “tirania” lhe cabe. Mas o indivíduo privado ou grupo que se arroga a executar uma justiça não escrita, e matar quem imagina (ou de fato é) tirânico, não é também algo contra o direito e tirânico?
No capítulo 38 da Politica Althusius analisa os abusos do poder estatal, a tirania e os meios para afastar semelhantes males. Como defensor das associações, ele sublinha a soberania popular como algo inalienável e reforça o veto contra toda e qualquer tentativa de subtraí-la aos seus legítimo proprietários. Tirano, para ele, em sentido rigoroso, o governante legítimo que viola o direito e trai seu dever. Assim, retoma a distinção já mencionada entre tyrannus absque titulo e tyrannus quoad exercitium. Só que para ele o pretenso tyrannus quoad exercitium é apenas e simplesmente o inimigo público. E aí temos a concessão de Althusius às doutrinas anteriores, protestantes e católicas, sobre o tiranicídio: qualquer particular tem o direito de executar a sentença contra o tirano. (Cf. Politica, § 27).
Quem é o verdadeiro tirano? O que “violando tanto a palavra quanto o juramento, começa a abalar as bases e afrouxar os laços do corpo associado da comunidade. O tirano pode ser um monarca ou poliarca que, em decorrência da avareza, soberba ou perfídia, extingue ou destrói os bens máximos da comunidade, quais sejam, sua paz, virtude, ordem, lei e nobreza”. () Com tais critério, Althusius fixa o jus resistentiae et exauctorationis, contra o tirano. Tal direito resulta de doze princípios, extraídos da essência do contrato, do ofício e do mandato, do conceito de soberania popular, do direito natural e da palavra divina (§§ 28-43), da história civil e religiosa (§§44-45). O referido direito é atribuído ao povo apenas, coletivamente, e em seu nome, aos Eforos. Os privados cidadãos têm direito apenas à resistência passiva e, caso exista ameaça direta contra suas vidas, bens, liberdades, o direito de legítima defesa concedido pelo direito natural (§§ 65.68). () Os Eforos, coletivamente, têm a prerrogativa (caso verifiquem um comportamento tirânico) de advertir o governante pacificamente. Caso ele não se emende, eles podem cassar o seu mandato com violência ou mesmo condenar a morte. (§§ 53-64). Em caso de evidente tirania, as associações podem romper o contrato e se retirar das entidades federadas (§§ 42-52). ()
O ponto crucial do problema inteiro gira ao redor do estatuto da indivíduo no campo coletivo. Quais os limites do primeiro e do segundo? Quem é fonte dos direitos e da ação política? Quando a tirania do Todo suscita a resistência legítima ? Todas essas questões, suscitadas pelos monarcômacos protestantes, são refletidas de maneira inversa nos monarcômacos do catolicismo. O ponto mais grave, no meu entender, reside na tese de que não raro os átomos sociais e políticos, os indivíduos, podem estar na posse do direito efetivo, quando a maioria se deixa controlar por tiranias mentirosas e anti- jurídicas. Basta recordar os totalitarismos do século 20 : quem tinha razão e estava na verdade, as massas animalizadas pela propaganda nazista, estalinista, fascista, ou os poucos cidadãos que aceitaram ir para a morte, sem disto precisar por eram “arianos” ou porque simplesmente poderiam calar e cooperar com o Estado?
Para os monarcômacos católicos tirano é todo governante que não aceita os ditames da Igreja no campo da soberania, da ética, da ordem pública. Se abrirmos os textos dos monarcômacos do catolicismo, veremos que a grande maioria fazem epikéia do 5 mandamento, “não matarás”. Se é legítimo matar o invasor de sua pátria, um bandido que penetra sua casa, é permitido matar o tirano de usurpação , pois o que ele faz contra a república é uma guerra injusta e fora da lei. Assim, todo cidadão, parte da autoridade coletiva, pode executar o governante tirânico.
Manuel de Sá, jesuíta, nos Aphorismi confessiorum (1593) aprovado pela Faculdade de Teologia de Paris em 1609, diz que o governante tirânico de “uma senhoria justamente adquirida não pode ser dela despojado, a não ser por um julgamento público, sentença pronunciada. Daí, cada um pode ser o executor. Ele também pode ser deposto pelo povo, mesmo se este último jurou obediência perpétua caso, advertido, ele não se corrija. Mas todo membro do povo pode matar quem ocupa tiranicamente o poder, se não há outro remédio, pois ele é o inimigo público (publicus hostis)”. João Mariana, no De rege et regis institutione (1598) pergunta se é lícito matar o tirano. Sua resposta é uma longa discussão escolástica pelo sim e pelo não, ressaltando o sim em caso de atentado à religião.
Outro monarcômaco relevante é Georg Buchanan (1506-1582). Em 1549 o autor foi preso pela Inquisição de Portugal, pelo seu ensino considerado herético na Universidade de Coimbra. Após abjurar sua pretensa heresia, ele é solto e retorna para a França. O De Iure Regni apud Scotos Dialogus (1579), põe os fundamento da responsabilização (accountability) dos governantes face aos governados e da lei e desenvolve a doutrina da soberania popular, o que exige a tese da resistência legal aos tirano. Ele foi peça central na queda de Maria, rainha da Escócia (1567) e se tornou tutor de Tiago 6º da Escócia, futuro Tiago 1º da Inglaterra). Buchanan, pode-se dizer, foi dos primeiros a usar a retórica na tarefa pouco nobre de aniquilar os inimigos políticos. Foi o que ele fez com Maria, a quem acusou de assassina, adúltera, tirana prostituta. no libelo intitulado Detectio Mariae Reginae Scotorum (1571) () e desenvolvido mais amplamente na história da Escócia por ele publicada : Rerum Scoticarum Historia (1582).
No De Jure Regni apud Scotos, aparece o elemento causador do tiranicídio : a opressão do povo e sua revolta. () As fontes de Buchanan encontram-se em Erasmo, Aristóteles, Cícero. O núcleo do diálogo é a diferença entre monarquia e tirania, com a tese da superioridade do povo face aos dois tipos de poder. Para tal tarefa, o autor assume a famosa narrativa das origens, encontrada em Platão, nos estoicos e usada em grande quantidade no século 18, em especial por Rousseau. Ninguém pode dizer que tal narrativa pretende ser efetivamente histórica. Ela é uma idéia diretora para explicar, com algum fundamento racional, o sentido da vida humana em coletividade. Os homens, diz o autor, viviam de modo selvagem e bruto, isolados em cavernas. O sentimento da utilidade e o instinto social os aproximou. O instinto social, como em Cícero, é dado por Deus e com ele torna-se possível construir a civitas segundo as normas do bom e do justo. Quem mais perto chega do justo e do bom é imagem divina entre os seus iguais (Plane Deo similimum). Ele será o chefe, o guia, o médico que conserva a integridade física e a saúde da reunião humana. Justiça, portanto, é guardar a saúde do corpo social, assegurar a prosperidade das suas partes e a coesão voluntária do todo. O rei aparece com tal múnus. Mas a simples eleição do rei nada garante em termos de justiça. Ela é um sinal de excelência, não a própria excelência : natura, non suffragiis regem esse . A eleição não gera um rei, nem um médico competentes. Mas como o diploma confere ao médico o seu direito, a eleição confere ao líder a licença para governar. Diploma ou eleição constituem formas de reconhecimento, não o saber ou o poder reais. Para evitar abusos, mesmo dos que são prudentes ao serem eleitos (ou diplomados), existe a lei, freio dos desejos de quem governa (Legem ei velut collegam aut potius moderatricem libidinum adjiciemus). As leis, diz o autor, “foram criadas com tal fim pelos povos e os reis são constrangidos a governar não segundo seu arbítrio mas segundo o direito que o povo tinha estabelecido para eles”. Mesmo um rei bom não pode dispensar a lei. Buchanan pensa numa colaboração dos poderes, do povo, magistrados e rei, não os procedimentos cortesãos e nem o tumulto dos comícios. No seu entender, os deputados deliberam o texto de uma lei com os conselheiros do governo, depois submetem sua decisão preliminar (προβουλευµα) à aprovação do povo. A lei é mais poderosa do que o rei, o povo é mais poderoso do que a lei (Est enim velut parens, certe auctor legis ut qui eam, ubi visum est, concedere aut abrogere potest). O contrato entre povo e governante não retira do primeiro sua majestade, pelo contrário.
Nesse ponto surge a distinção entre rei e tirano. O tirano segundo o título pode até ser suportado, se o governo segue a lei e a justiça. Mas o de exercício, que viola a lei, devem ser “declarados inimigos públicos e considerados como sátiros, macacos e ursos, fúrias ou Kakodemônios”. Quando o governante viola a legalidade, rompe o contrato que estabeleceu com o povo. Assim, “o povo, de quem nossos reis ganham os seus direitos, é superior aos reis, e o conjunto dos cidadãos tem sobre eles o mesmo poder que eles têm sobre um de seus membros”. Nada vai contra a deposição de um tirano, mesmo que ele seja disfarçado. Buchanan analisa a Carta aos Romanos de maneira inusitada : São Paula falaria de um soberano legítimo e não de um tirano a ser obedecido. A carta a Tito fala em obedecer o que é bom e à Timóteo pede que se reze pelos reis e magistrados. Mas o que impede matar os reis péssimos e ao mesmo tempo por eles orar? O apóstolo falava de reis pagãos, que não tinha conhecimento da lei divina. Os reis cristãos ficam sem desculpa quando agem como tiranos. ()
O retrato acima, do povo e do rei, no entanto, precisa ser melhor precisado nos textos de Buchanan. Nem sempre o rei é o tirano por ele execrado (falando-se em termos históricos, na Escócia da qual ele faz a teoria) e pouco tem de “popular” o “povo” por ele evocado. Trata-se na verdade da nobreza sediciosa e que exigia privilégios, auto-nomeada “povo”. No entanto, sob tais nomes e com tal lógica, as idéias de Buchanan se espalharam pela Europa e abriram vias para a defesa da soberania popular, contra o arbítrio dos reis. o De Iure Regni apud Scotos Dialogus (1579) () no qual defende a responsabilização dos governantes e a soberania popular. O texto mostra que o assassinato pode ser justificado como ato virtuoso. A radicalidade com a qual Tiago 1º defende o direito divino dos reis, com muita probabilidade é devida à virulência das teses de Buchanan. Aluno de Buchanan, Tiago apreciou as lições de grego, de latim, de humanidades adquiridas com o mestre. Mas renegou o quanto pode a tese da soberania popular e do tiranicídio, especialmente nos livrinhos The True Law of Free Monarchies (1598) e Basilikon Doron. () Os textos de Buchanan foram importantes para toda a história política da Inglaterra, sobretudo na revolução do século 17 e do período dominado por Cromwell.
O texto mais célebre da modernidade, ao se tratar dos monarcômacos, intitula-se Killing no Murder. () Ele se dirige contra Oliver Cromwell, o Lord Protector da Inglaterra ou mero ditador no entendimento de muitos. O regime do protetorado aparentemente se instalou em 1653 sem comoções graves. Mas as duas supressões do Parlamento anteriores (a de abril e dezembro de 1653) mostram grave crise política. A Constituição imposta (The Instrument of Government) mostrava tudo, menos reverência para o princípio da representação do poder. O regime instalado era mais presidencial do que parlamentar. Sob a rubrica de “uma só pessoa e um só parlamento”, o autoritarismo aparecia sem muitos cosméticos. A prática de Cromwell face ao Parlamento se reduzia a visitas esporádicas, nas quais o governante falava longamente, sempre no costume dos ditadores que adoram alugar orelhas de parlamentares imaginados impotentes. Os Levellers tinham perdido sua força e seus projetos de mando constitucional tinham se atenuado ao máximo. Como sempre ocorre em regimes autoritários de lavra cristã, Cromwell também acreditou num contrato (Covenant) entre Deus e o povo inglês, no qual ele, o governante, seria o intermediário sacrossanto. Entre as proclamações demagógicas e o próprio Cromwell, no entanto, a modéstia carateriza os seus atos e falas. Para o povo, ele seria um quase Moisés. Para si mesmo, não passaria de um guarda de propriedade (Constable), para um povo rude e indisciplinado. Ditadores costumem parecer modestos…
Modestos, mas a sua tarefa consiste “apenas” em negar ou trair os ideais da revolução que os levam ao poder. No caso de Cromwell, tratava-se de recusar as “bravatas” da luta contra a censura, do exército politizado e sem hierarquias nobres, do nivelamento político democrático, reforma agrária, respeito ao misticismo religioso (Quakers), justiça contra o rei e magistrados não responsáveis (accountability). Em suma: a ditadura foi efetuada para acabar com as exigências de mudanças na ordem pública.
Entre os antigos Levellers (os niveladores...) vários se indignam com o “realismo” do ditador e de seus amigos. Um deles era o jurista Wildman, preso em 1654 e solto no ano seguinte. Seu amigo Edward Sexby, soldado revolucionário e agitador, servira como espião e organizador de rebeliões na França, a serviço da Inglaterra. Na mesma operação, ele apresenta aos rebeldes franceses um “agreement” que seria cópia do programa dos niveladores. O que suscita a cólera de Cromwell, naturalmente. A partir daí, com Wildman, passa liderar planos contra o ditador. Do estrangeiro, ele começa a campanha para abater “o usurpador”. As tratativas com o rei destronado, no exílio francês, não foram adiante, porque Sexby insiste nos preceitos democráticos. O rei, como previsível, nada aceita que possa lessening the power of the crown and devolving an absurd power to the people. Cromwell, no Parlamento em 1656 denuncia Sexby num de seus longos discursos como a wretched creature, an apostate from religion and all honesty.
Os ocupantes das cadeiras parlamentares, beneficiados materialmente pela Revolução, não aceitaram pregações como as de Sexby. Eles na verdade queriam uma legitimidade nova para Cromwell, o que garantiria suas propriedades e a situação política de “segurança”. Não apenas de satisfeitos se compunha o clima político. Muitos setores não aceitavam o controle do ditador. Assim, Sexby imagina mover os defensores da realeza contra o governante e assim captar todas as insatisfações levantadas em seu protetorado. E surge o Killing no Murder em 1657. Preso, Sexby com muita probabilidade foi torturado e confessou, mas sem deixar suas convicções.
O primeiro arrazoado do texto gira ao redor da questão clássica: Cromwell é tirano ? Como sempre, Aristóteles e Cícero são fonte analítica. Mas a fonte maior, no passo, encontra-se em Maquiavel : “Tiranos efetivam seus fins muito mais por fraude do que pela força. Nem virtude nem a força (diz Maquiavel no Príncipe, cap. 9) são necessárias para aquele alvo, tanto quanto una Astutia fortunata, uma astúcia com sorte: a qual, diz ele (Principe, 2 capitulo 13) sem a força foi sempre considerada suficiente, mas nunca a força sem ela. E num outro lugar (Capítulo 18) ele diz que o caminho é Aggirare li cervelli de gli huomini con Astutia, etc.” Daí, a indicação de que Sua Alteza, o protetor, usa os artifícios maquiavélicos para conseguir seus alvos. ()
Além disso, é marca dos tiranos rebaixar os bons. Eles, como diz Aristóteles, “purgam” as assembléias em sentido negativo (a fonte mais antiga disso é Platão, na fenomenologia do tirano feita na República, livro 8), e nelas só deixam quem não possua inteligência (Wit) interesse ou coragem para se opor aos seus desígnios (Aristóteles, Política, 5, cap. 11). Eles não suportam assembléias e colocam em toda parte espias e delatores e não saem do palácio sem guarda de corpo. Eles declaram guerras para divertir o povo e mante-lo ocupado. Eles mantêm aduladores. E coisas detestáveis, eles exigem que seus subordinados as cometam. Eles fingem cuidar do povo. Mas vendem as coisas santas, na religião e em outros domínios. Eles fingem receber inspiração divina. Eles pretendem, assim, amar a Deus e fingem que oráculos divinos conduzem sua ação. Todas essas marcas são encontráveis, diz Sexby, em Cromwell. ()
A segunda série de razões gira ao redor de outra questão clássica: é legal matar um tirano? Os juízos variam, afirma Sexby. Alguns acham que os tiranos são abortos, para a cura dos quais apenas a nossa paciência é eficaz. Outros acham que eles devem ser questionados pela suprema lei da salvação popular. Eles são responsáveis (answerable) diante dos povos, por quebrarem a fé pública. Ninguém, no entanto, “em boas condições de pensamento”, torna a pessoa privada juízes nos casos de tirania. Mas o próprio tirano é um caso de vida particular, não pública. Se o governante não assegura a felicidade e a segurança públicas, ele não é mais diretor da ordem pública, mas age nela como privado. Para ser legítimo, o governante deve ser parte da Civitatis, porque toda parte se subordina ao todo ao mandar ou obedecer. O tirano nunca se subordina. Só existe civitas quando o coletivo é como se fosse só homem. Sexby cita Sófocles em latim : Non est civitas quae unius est viri. Como o tirano não é parte da Comonwealth “mas se coloca acima da lei, não existe razão para que ele seja protegido pelas leis, pois não as reconhece. Deve ser considerado uma fera, nada mais. E seguem-se exegeses bíblicas e fontes antigas para validar a tese da tirania de Cromwell.
Terceira série de arrazoados: após mostrar o que é um tirano e indicar suas marcas, vem a questão de saber se é vantajoso para o coletivo a sua destituição. E Buchanan cita muitas autoridades sobre o assunto. Dos trechos recolhidos, o mais cortante é o de Maquiavel : quem apoia a tirania, deve matar Brutus. Um tirano, diz Platão, deve afastar toda pessoa virtuosa. E se com o tirano não é possível viver em paz, felicidade, segurança, etc., é saudável e vantajoso acabar com ele.
Os monarcômacos, dos quais dei apenas alguns exemplos, colocam o direito de resistência no centro de todo o seu sistema político. () Mas devido à substituição da soberania principesca ao povo, o seu problema passou para o campo mais amplo, da transgressão dos limites do Estado. Todos os direitos que eles atribuem ao povo contra e acima do tirano seriam consequências, não limites da soberania. O que se deve pensar de um poder sem limites, inclusive e sobretudo se tratamos de um soberano coletivo? Não irei analisar aqui as teses de Hobbes e da modernidade. Importa dizer que o impulso para definir limites aos soberanos principescos ajudou e muito na edificação das democracias ocidentais, como a inglêsa, a norte-americana e a francesa. Com a Revolução de 1917 na Rússia, encerra-se a eficácia da doutrina com o Estado totalitário. Doravante, no mundo, os satélites da URSS agiram como se assumissem o principio da resistência à tirania, mas logo que atingiram o poder, impuseram tiranias ainda piores do que as derrubadas por eles. O nazi-fascismo levantou contra seu programa de horrores a resistência de alemães, franceses, italianos, gregos. Mas logo que a Segunda Guerra foi vencida, o único foco de resistência encontrou-se na luta contra os países colonialistas. E logo após muitos movimentos de libertação, no poder, instauraram tiranias sangrentas que até hoje matam milhares e milhares de pessoas humanas. Nas consciências terroristas de hoje, há uma tintura das doutrinas sobre a resistência à tirania. Mas na verdade trata-se de tiranos que usurpam o título de resistentes, e também exercem a tirania de modo exacerbado.
1 Léon Homo: L’ Italie primitive et les débuts de l ‘imperialisme romain (Paris, Albin Michel, 1925), 272 ss.
2 Ilíada, II, 204- 205 e X, 224 : (II, 204-205);; “Dois que marcham juntos, um provê ao outro como seja melhor… (Iliade di Homero, Torino, Einaudi, 1950). Para toda a análise que segue, cf. Raymond Weil, ”De la tyrannie dans la pensée grecque”, in Duverger. M. : Dictatures et Légitimités (Paris, PUF, 1982), pp. 29 ss.
3 “Die älteste erhaltene Verwendungen des Tyrannis-Begriffes findet in den literarischen Zeugnisse der archaischen Zeit bei Archilocos von Paros , der die Mitte des 7. Jarhunderstes v.Chr. gelebt haben dürfte . Der Iambograph lässt in einem Vielzeiler einem Handwerker namens Charon sagen (…) [eu traduzo os versos,RR] “Não desejo a riqueza de Gyges, nem emulei ou me arrependi diante dos decretos divinos, nem desejei seguir os grandes tiranos, diante dos quais os meus olhos permanecem fechados” in Loretana de Libero, Die archaische Tyrannis (Stuttgart, Franz Steiner Verlag, 1995) p. 24. Cf. também Pedro Barceló: Basileia, Monarchia, Tyrannis, Untersuchungen zu Entwiclung und Beurteilungen von Alleinherrschaft im vorhellenistischen Griechenland (Stuttgart, Franz Steiner Verlag, 1993). Também: Parker V.. : “Tyrannos. The semantics of a political concept from Archilochus to Aristotle” Hermes ( Steiner Verlag, Stuttgart,) 1998, vol. 126, no 2, pp. 145-172.
4 ‘After the tumult quieted down, and five days passed, the rebels against the Magi held a council on the whole state of affairs, at which sentiments were uttered which to some Greeks seem incredible, but there is no doubt that they were spoken. Otanes was for turning the government over to the Persian people: “It seems to me,” he said, “that there can no longer be a single sovereign over us, for that is not pleasant or good. You saw the insolence of Cambyses, how far it went, and you had your share of the insolence of the Magus. How can monarchy be a fit thing, when the ruler can do what he wants with impunity? Give this power to the best man on earth, and it would stir him to unaccustomed thoughts. Insolence is created in him by the good things to hand, while from birth envy is rooted in man. Acquiring the two he possesses complete evil; for being satiated he does many reckless things, some from insolence, some from envy. And yet an absolute ruler ought to be free of envy, having all good things; but he becomes the opposite of this towards his citizens; he envies the best who thrive and live, and is pleased by the worst of his fellows; and he is the best confidant of slander. Of all men he is the most inconsistent; for if you admire him modestly he is angry that you do not give him excessive attention, but if one gives him excessive attention he is angry because one is a flatter. But I have yet worse to say of him than that; he upsets the ancestral ways and rapes women and kills indiscriminately. But the rule of the multitude has in the first place the loveliest name of all, equality, and does in the second place none of the things that a monarch does. It determines offices by lot, and holds power accountable, and conducts all deliberating publicly. Therefore I give my opinion that we make an end of monarchy and exalt the multitude, for all things are possible for the majority. Such was the judgment of Otanes: but Megabyzus urged that they resort to an oligarchy. “I agree,” said he, “with all that Otanes says against the rule of one; but when he tells you to give the power to the multitude, his judgment strays from the best. Nothing is more foolish and violent than a useless mob; for men fleeing the insolence of a tyrant to fall victim to the insolence of the unguided populace is by no means to be tolerated. Whatever the one does, he does with knowledge, but for the other knowledge is impossible; how can they have knowledge who have not learned or seen for themselves what is best, but always rush headlong and drive blindly onward, like a river in flood? Let those like democracy who wish ill to Persia; but let us choose a group of the best men and invest these with the power. For we ourselves shall be among them, and among the best men it is likely that there will be the best counsels. Such was the judgment of Megabyzus. Darius was the third to express his opinion. “It seems to me,” he said, “that Megabyzus speaks well concerning democracy but not concerning oligarchy. For if the three are proposed and all are at their best for the sake of argument, the best democracy and oligarchy and monarchy, I hold that monarchy is by far the most excellent. One could describe nothing better than the rule of the one best man; using the best judgment, he will govern the multitude with perfect wisdom, and best conceal plans made for the defeat of enemies. But in an oligarchy, the desire of many to do the state good service often produces bitter hate among them; for because each one wishes to be first and to make his opinions prevail, violent hate is the outcome, from which comes faction and from faction killing, and from killing it reverts to monarchy, and by this is shown how much better monarchy is. Then again, when the people rule it is impossible that wickedness will not occur; and when wickedness towards the state occurs, hatred does not result among the wicked, but strong alliances; for those that want to do the state harm conspire to do it together. This goes on until one of the people rises to stop such men. He therefore becomes the people’s idol, and being their idol is made their monarch; and thus he also proves that monarchy is best. But (to conclude the whole matter in one word) tell me, where did freedom come from for us and who gave it, from the people or an oligarchy or a single ruler? I believe, therefore, that we who were liberated through one man should maintain such a government, and, besides this, that we should not alter our ancestral ways that are good; that would not be better.” Having to choose between these three options, four of the seven men preferred the last. Then Otanes, whose proposal to give the Persians equality was defeated, spoke thus among them all: “Fellow partisans, it is plain that one of us must be made king (whether by lot, or entrusted with the office by the choice of the Persians, or in some other way), but I shall not compete with you; I desire neither to rule nor to be ruled; but if I waive my claim to be king, I make this condition, that neither I nor any of my descendants shall be subject to any one of you.” [3] To these terms the six others agreed; Otanes took no part in the contest but stood aside; and to this day his house (and no other in Persia) remains free, and is ruled only so far as it is willing to be, so long as it does not transgress Persian law” (Herodotus, Perseus Project).
5 “But the rule of the multitude has in the first place the loveliest name of all, equality, and does in the second place none of the things that a monarch does. It determines offices by lot, and holds power accountable, and conducts all deliberating publicly. Therefore I give my opinion that we make an end of monarchy and exalt the multitude, for all things are possible for the majority. Cf. Loeb Classical Library, Herodotus, II, Books III-IV, translated by A.D. Godley, pp.107 ss.
6 Para uma análise antiga, mas cheia de informações sobre a tirania, cf. P. N. Ure : The Origin of Tyranny (Cambridge University Press, 1922).
7 Sigo as análises de Raymond Weil, citadas. “If we could all agree on what is “fair” and what is “wise” There would be nothing for men to argue and debate about. “Fairness” or “equality” are not things, they are simply words . Because we have a word for it, that does not prove a thing exists. I shall speak frankly, mother, and hold nothing back. I would climb the star-studded vault of heaven,Or descend to the black pit of hell, if I could do just this:Possess total power. Power to me’ s a goddess, tall, and beautiful and out of reach. She’s what I want, mother, and I can’t bear To think of handing her on to someone else. I want to keep her for myself. I would not be a man, if I threw away The greater share to take the lesser. I should look a fool if this man got what he wanted By marching in with his army and laying waste my land.It would be a disgrace to Thebes to surrender to fear,And hand the sceptre that is mine to a terrorist to wield.He must not be allowed to influence Our conference by threats of violence:Words kill quarrels, not swords and blood.If he just wants to live here in Thebes – that’s fine. But if he wants my power, there is no way I’ll let my mistress go without a fight. When I can be master, why should I be his slave?Let’s have the flames, let’s have the clash of steel, Yoke up the horses, let chariots crowd the plain: I shall not give my royal power to him! Most men have many vices: I have one -I worship Power. Wrong in her defence I don’t call wrong at all. Outra tradução inglesa: “If all were at one in their ideas of honor and wisdom, there would be no strife to make men disagree; but, as it is, fairness and equality have no existence in this world beyond the name; there is really no such thing. I will tell you this, mother, without any concealment: I would go to the rising of the stars and the sun, or beneath the earth, if I were able so to do, to win Tyranny, the greatest of the gods. Therefore, mother, I will not yield this blessing to another rather than keep it for myself; for it is cowardly to lose the greater and to win the less. Besides, I am ashamed to think that he should gain his object by coming with arms and ravaging the land; for this would be a disgrace to Thebes, if I should yield my scepter up to him for fear of Mycenaean might. He ought not to have attempted reconcilement by armed force, mother, for words accomplish everything that even the sword of an enemy might effect. Still, if on any other terms he cares to dwell here, he may; but that I shall never willingly let go. Shall I become his slave, when I can rule? Therefore come fire, come sword! Harness your horses, fill the plains with chariots, for I will not give up my tyranny to him. For if we must do wrong, to do so for tyranny is the fairest cause, but in all else piety should be our aim.”
8 Trata-se de um espanto diante da maravilha diametralmente oposto ao da natureza filosófica, tal como pensada por Platão no Teeteto: “Theodorus seems to be a pretty good guesser about your nature. For this feeling of wonder shows that you are a philosopher, since wonder is the only beginning of philosophy, and he who said that Iris was the child of Thaumas1 made a good genealogy. Hes. Theog. 750. Iris is the messenger of heaven, and Plato interprets the name of her father as “Wonder” e na República 5, 475c.
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10 Jean-Jacques Rousseau, Revêries du promeneur solitaire, VIème Revêrie : Gallica, coleção Bibliopolis http://www.bibliopolis.fr
11 Em toda a sequência, até aviso em contrário, as considerações redigidas aqui vêm do clássico livro de Roland Mousnier: L´ assassinat d´ Henry IV. Le problème du tyrannicide et l ´affermissement de la monarchie absolue (Paris, Gallimard, 1964). As fontes históricas são tratadas naquele escrito com mão de mestre, bem como a sua leitura no mundo europeu, em especial no século 17 francês. Ampliei a citação de fontes, não incluídas por Mousnier, para deixar mais evidente o problema do tiranicídio nos exercícios filosóficos.
12 “Não tem o povo o hábito invariável de pôr à sua testa um homem cujo poder ele nutre e torna maior? É de seu hábito, concordou. É portanto evidente que, onde quer que o tirano medre, é na raiz deste protetor e não alhures que ele se entronca. É absolutamente evidente. Mas onde começa a transformação do protetor em tirano ? Não é, evidentemente, quando se põe a fazer o que é relatado na fábula do templo de Zeus Liceu, na Arcádia? O que diz a fábula? indagou. Que aquele que provou entranhas humanas, cortadas em postas junto com as de outra vitimas, é inevitavelmente transmudado em lobo. Não ouviste contá-la ? Sim. Do mesmo modo, quando o chefe do povo, seguro da obediência absoluta da multidão, não sabe abster-se do sangue dos homens de sua própria tribo, mas, acusando-os injustamente, conforme o processo favorito dos de sua igualha, e arrastando-os perante os tribunais, se mancha de crimes mandando tirar-lhes a vida, quando, com lingua e boca ímpias, prova o sangue de sua raça, exila e mata acenando com a supressão das dívidas e uma nova partilha das terras, então, não deverá um tal homem necessariamente, e como que por uma lei do destino, perecer pela mão de seus inimigos, ou tornar-se tirano, e de homem transformar-se em lobo?” (A República, 8, 565 c – 566 a). Cito na tradução de J. Guinsburg (São Paulo, Perspectiva, 2006), pp. 332-333.
13 “A corrupção da realeza é a tirania. Ambas são governos monárquicos, mas diferem profundamente. O tirano visa apenas seu interesse pessoal e o rei se preocupa com o de seus dirigidos …o tirano só busca o seu próprio bem. Sem dúvida, a tirania é o pior dentre os governos. Da monarquia se desliza para tirania, corrupção da monarquia, e um rei péssimo se transforma em tirano” (Etica a Nicômaco, 8, 10). A realeza se fundamenta no consentimento dos governados e na lei. A tirania é um desvio dessa prática. “A tirania é monarquia absoluta que, sem responsabilidade e só no interesse do tirano, governa homens que valem tanto ou mais do que ele, esta monarquia nunca se ocupa com os interesses particulares dos governados. Assim, ela existe apesar deles, pois não existe um só homem livre que suporte voluntariamente tal poder”. (Política, 6, 3 e 6, 2). Cf. Aristotle Politics Loeb Classical Library, Volume XXI, trad- Rackham, H. (Cambridge, Harvard University Press, 1990) pp. 324 e ss.
14 “Omnium autem rerum nec aptius est quicquam ad opes tuendas ac tenendas quam diligi nec alienius quam timeri. Praeclare enim Ennius ‘Quem metuunt oderunt; quem quisque odit, perisse expetit’. Multorum autem odiis nullas opes posse obsistere, si antea fuit ignotum, nuper est cognitum. Nec vero huius tyranni solum, quem armis oppressa pertulit civitas ac paret cum maxime mortuo interitus declarat, quantum odium hominum valeat ad pestem, sed reliquorum similes exitus tyrannorum, quorum haud fere quisquam talem interitum effugit. Malus enim est custos diuturnitatis metus contraque benivolentia fidelis vel ad perpetuitatem. Sed iis, qui vi oppressos imperio coercent, sit sane adhibenda saevitia, ut eris in famulos, si aliter teneri non possunt; qui vero in libera civitate ita se instruunt, ut metuantur, iis nihil potest esse dementius. .” De officiis, II, 7, 23-26. Segue a tradução mais ampla do trecho, feita por Walter Miller : “Whom they fear they hate. And whom one hates, one hopes to see him dead.” And we recently discovered, if it was not known before, that no amount of power can withstand the hatred of the many. The death of this tyrant whose yoke the state endured under the constraint of armed force and whom it still obeys more humbly than ever, though he is dead, illustrates the deadly effects of popular hatred; and the same lesson is taught by the similar fate of all other despots, of whom practically no one has ever escaped such a death. For fear is but a poor safeguard of lasting power; while affection, on the other hand, may be trusted to keep it safe for ever. But those who keep subjects in cheek by force would of course have to employ severity — masters, for example, toward their servants, when these cannot be held in control in any other way. But those who in a free state deliberately put themselves in a position to be feared are the maddest of the mad. For let the laws be never so much overborne by some one individual’s power, let the spirit of freedom be never so intimidated, still sooner or later they assert themselves either through unvoiced public sentiment, or through secret ballots disposing of some high office of state. Freedom suppressed and again regained bites with keener fangs than freedom never endangered. Let us, then, embrace this policy, which appeals to every heart and is the strongest support not only of security but also of influence and power — namely, to banish fear and cleave to love. And thus we shall most easily secure success both in private and in public life. Furthermore, those who wish to be feared must inevitably be afraid of those whom they intimidate. What, for instance, shall we think of the elder Dionysius? With what tormenting fears he used to be racked! For through fear of the barber’s razor he used to have his hair singed off with a glowing coal. In what state of mind do we fancy Alexander of Pherae lived? We read in history that he dearly loved his wife Thebe; and yet, whenever he went from the banquet hall to her in her chamber, he used to order a barbarian — one, too, tattooed like a Thracian, as the records state — to go before him with a drawn sword; and he used to send ahead some of his bodyguard to pry into the lady’s caskets and to search and see whether some weapon were not concealed in her wardrobe. Unhappy man! To think a barbarian, a branded slave, more faithful than his own wife! Nor was he mistaken. For he was murdered by her own hand, because she suspected him of infidelity. And indeed no power is strong enough to be last ing, if it labours under the weight of fear. Witness Phalaris, whose cruelty is notorious beyond that of all others. He was slain, not treacherously (like that Alexander whom I named but now), not by a few conspirators (like that tyrant of ours), but the whole population of Agrigentum rose against him with one accord. Again, did not the Macedonians abandon Demetrius and march over as one man to Pyrrhus? And again, when the Spartans exercised their supremacy tyrannically, did not practically all the allies desert them and view their disaster at Leuctra, as idle spectators? I prefer in this connection to draw my illustrations from foreign history rather than from our own. Let me add, however, that as long as the empire of the Roman People maintained itself by acts of service, not of oppression, wars were waged in the interest of our allies or to safeguard our supremacy; the end of our wars was marked by acts of clemency or by only a necessary degree of severity; the senate was a haven of refuge for kings, tribes, 27 and nations; and the highest ambition of our magistrates and generals was to defend our provinces and (27) allies with justice and honour. And so our government could be called more accurately a protectorate of the world than a dominion” Cicero De officiis, trad, Walter Miller (New York, The Macmillan Co. 1948), pp. 168 e ss.
15 “Saepe enim tempore fit, ut quod turpe plerumque haberi soleat, inveniatur non esse turpe. Exempli causa ponatur aliquid, quod pateat latius. Quod potest maius scelus quam non modo hominem, sed etiam familiarem hominem occidere? Num igitur se adstrinxit scelere, si qui tyrannum occidit quamvis familiarem? Populo quidem Romano non videtur, qui ex omnibus praeclaris factis illud pulcherrimum existimat.” De officiis, III, 4, 19.
16 De beneficiis, 7, 19. Cautela, no entanto, com tais linhas. Elas não correspondem ao pensamento do estoico Seneca. Leia-se a meditação seguinte: “Esta é uma questão usual levantada sobre Marcos Brutus : deveria ele aceitar ter sua vida poupada pelo divino Júlio quando Brutus desejou matar César ? (…) Considero que se em outras ocasiões Brutus agiu como grande homem, errou neste caso particular e não agiu segundo os princípios estoicos”. De beneficiis, ed. C. Hosius (Lipsiae: Ed. Teubner, 1900). Para uma análise do trecho, cf. M. Piccolomini (South Illinois University Press, 1991), pp. 27 e ss. Para outro comentário do problema, cf. M. T. Griffin : Seneca, a philosopher in Politics (Oxford, Clarendon Press, 1992), pp. 189 e ss.
17 A apresentação de Jó, no livro, já traz a sua marca de temente a Deus. Ele é dito θεοσεβής, reverente e temente a Deus (a versão do rei Tiago traz o termo Fear, para medo), alguém que foge do mal. A encruzilhada diante do divino e do mal é a mesma apresentada por Paulo em Romanos.
18 “O diabo na Figura do Leviatã” capítulo do livro de Tomás de Aquino sobre o livro de Jó. Cf. Job, um homme pour notre temps. De Saint Thomas d´ Aquin, exposition littérale sur le livre de Job (Paris, Tequi, 1980).
19 Apologeticum, 31, 1. Acessado em Ad Fontes Academy [http://www.thelatinlibrary.com] no dia 30/03/2008, as 11h05 AM.
20 De mulceo, verbo transitivo que significa apalpar, afagar com as mãos, acariciar, ameigar.
21 Uso a excelente tradução de M. A. Ladero, M. Garcia, T. Zamarriego : Policraticus (Madrid, Editora Nacional, 1984). Para o pensamento de Salisbury, cf. Roberto Romano:“´Lembra-te de que és homem´. Governantes e Juízes no Policraticus de Jean Salisbury”. Revista Justiça e Democracia. Número 1, Primeiro Semestre de 1996. Páginas 153-161.
22 Não há espaço, aqui, para analisar os nexos entre a idéia de comissão, ou poder comissário, nas doutrinas jurídicas medievais, tanto laicas quanto religiosas. Mas é correto pensar que a idéia de Tomás de Aquino, neste passo, está inserida no plano mais amplo do direito ligado aos poderes. Uma tarefa fascinante e arriscada, dados os problemas óbvios trazidos pelo autor, é comparar a noção de autoridade delegada, comissária, em Tomás de Aquino da exposta por Carl Schmitt no cinzento livro A ditadura. Se possível, voltarei ao ponto.
23 Cf. Trois Discours sur la condition des grands, Premier Discours.
24 De regno ad regem Cypri, in Corpus Thomisticum : http://www.corpusthomisticum.org; Cf. também Scripta super libros sententiarum II, Dist. 44, quaest. 2 43 articulus 2: “ Utrum Christiani teneantur obedire potestatibus saecularibus, et maxime tyrannis”.
25 O que segue é citação de meu artigo “A Igualdade, considerações críticas”, publicado no Foglio Spinoziano (Itália). http://www.fogliospinoziano.it/ARTICOLI.htm Na mesma home page, cf. outro texto meu, “Democracia e Direito Natural”. Os dois escritos têm como alvo discutir o pensamento de Spinoza.
26 Tal certeza foi enunciada por Jacques Maritain em Distinguer pour unir, les degrés du savoir. Cf. Roberto Romano, “Maritain filósofo dos matizes” in Corpo e Cristal, Marx romântico (RJ, Ed. Guanabara, 1987), pp. 141 e ss.
27 Estudo há bom tempo esta doutrina hierárquica. Considero os seus detalhes desde a minha tese de doutoramento sobre a Igreja e a política (Cf. R. Romano, Brasil: Igreja contra Estado, SP, Kayrós, 1979). Desde Lorenzo Valla, o estudo de Dionisio foi modificado, a partir do seu próprio nome. Com as análises filológicas de Valla, some a lenda que envolve a suposta presença de Dionisio no areópago, quando Paulo pregou aos gregos. Uso a edição dirigida por Maurice de Gandillac, Oeuvres complètes du Pseudo-Denys, l´ Aréopagite (Paris, Aubier, 1943), e também a edição magistral da Hierarquia Celeste (Cf. Roques, René, Heil, Günter, et Maurice Gandillac : Denys l ´Aréopagite, L´ Hierarchie céleste, Paris, Cerf, 1958). Para uma síntese do problema, cf. P. Tillich : A History of Christian Thought. From its Judaic and Hellenistic Origins to Existentialism (NY, Touchstone Book, 1967).
28 Ainda hoje um livro sugestivo é o escrito por Arthur O. Levejoy: The Great Chain of Being (Cambridge, Harvard University Press, 1936 e 1964). Para o assunto tratado neste ponto de minha exposição, cf. o capítulo III, “The chain of being and some internal conflicts in medieval thought”, pp. 67 e ss.
29 Um dos comentários mais belos sobre o assunto foi realizado por Erich Auerbach sobre a Divina Comédia. A unidade daquele poema que sintetiza o pensamento ético cristão, “descansa sobre o tema geral, sobre o status animarum post mortem; este deve ser, como sentença divina final, uma unidade perfeitamente ordenada, tanto como sistema teórico, quanto como realidade prática e, portanto, também como criação estética; deve representar a unidade da ordem divina de uma forma ainda mais pura e atual do que o mundo terreno, ou algo que nele acontece, pois que o Além, ainda que inacabado até o Juízo Final, não apresenta, na medida em que o faz o mundo terreno, desenvolvimento, potencialidade e provisoriedade, mas é o ato completo do plano divino. A ordem unitária do Além, assim como Dante no-la apresenta, é tangível da maneira mais imediata como sistema moral, na repartição das almas nos três reinos e suas subdivisões: o sistema segue em tudo a ética aristotélico-tomista”. Cf. “Farinata e Cavalcante” in Mimesis. A representação da Realidade na Literatura Ocidental. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971, pp. 161-162.
30 Uma análise mais ampla desta problemática é feita por mim em trabalho já antigo : Cf. “Lux in Tenebris. Franciscanos e Dominicanos, utopia democrática”, in Lux in Tenebris. Meditações sobre Filosofia e Cultura. São Paulo, Unicamp Ed., 1987, pp. 31 e ss.
31 Scriptum super Sententiis II, Distinctio 44, questio 2, articulus 2 in Corpus thomisticum : http://www.corpusthomisticum.org/snp2044.html e também Summa theologiae IIa IIae 104: De obedientia.
32 Cf. Etica a Nicômaco V, vi. 9– vii. 3 e ss in Aristotle Loeb Classical Library, volume XIX, translated by H. Rackham p. 295 ss. “But we must not forget that the subject of our investigation is at once Justice in the absolute sense and Political Justice. Political Justice means justice as between free and (actually or proportionately) equal persons, living a common life for the purpose of satisfying their needs. Hence between people not free and equal political justice cannot exist, but only a sort of justice in a metaphorical sense. For justice can only exist between those whose mutual relations are regulated by law, and law exists among those between whom there is a possibility of injustice, for the administration of the law means the discrimination of what is just and what is unjust. Persons therefore between whom injustice can exist can act unjustly towards each other (although unjust action does not necessarily involve injustice): to act unjustly meaning to assign oneself too large a share of things generally good and too small a share of things generally evil. This is why we do not permit a man to rule, but the law, because a man rules in his own interest,and becomes a tyrant; but the function of a ruler is to be the guardian of justice, and if of justice, then of equality. A just ruler seems to make nothing out of his office; for he does not allot to himself a larger share of things generally good, unless it be proportionate to his merits; so that he labors for others, which accounts for the saying mentioned above,1 that ‘Justice is the good of others.’ Consequently some recompense has to be given him, in the shape of honor and dignity. It is those whom such rewards do not satisfy who make themselves tyrants.Cf. texto diverso no Site Perseus.
33 Física in Opere 3, trad. Antonio Russo (Bari, Laterza, 1973), p. 49.
34 Cf. B. Nicholas, An Introduction to Roman Law (Oxford, 1992) e sobretudo R. W. Dyson : Thomas Aquinas (Cambridge University Press, 2002) . Questia.
35 …regimen tyrannicum non est justum: quia non ordinatur ad bonum commune, sed ad bonum privatum regentis, ut patet per Philosophum, in tertia Polit. et in VIII Ethic. et ideo perturbatio hujus regiminis non habet rationem seditionis.
36 Cf. R. W. Carlyle and A. J. Carlyle : A History of Medieval Political Theory in the West (William Blackwood & Sons Ltd, Edinburgh and London, 1936). “For to Bartolus tyranny is not only a corrupt form of government, but it is the worst of all corrupt governments. The government of a few, or of the multitude, is corrupt when they pursue their own advantage, but it is not so far removed from a government for the common good as that of the one man. 1 We may put it in concrete terms, the Italian oligarchy or democracy was not so really corrupt and evil a thing as the Italian tyranny. Bartolus adds that the corrupt oligarchy or democracy tends to develop into a tyranny, as they had seen in their own day, for ” Italy is full of tyrants.” 2 This treatment of tyranny by Bartolus is of importance, and we must consider it not only in the ‘ De Begimine Civitatis,’ but also in another treatise, entitled ‘ De Tyranno.’ We have just seen that Bartolus derives from Egidius Colonna and Aristotle the conception of the tyrant as one who governs for his own profit and not for the good of the community. In the treatise, ‘ De Tyranno,’ he derives from S. Isidore, directly or indirectly, the description of the tyrant as that wicked king who exercises a cruel rule over his subjects ; [" Sicut enim rex, seu boni, quia ex eo quod plures sunt, ali- imperator Romanorum est Justus et quid sapit de natura communis boni. verus et universalis : ita si quis ilium Sed si unus est tyrannus otiam recedit locum vult injuste obtinere, appellatur a commuui bono. Praeterea, sicut proprie tyrannus."] from S. Gregory the Great he takes his description of the tyrant as one who governs the commonwealth but not lawfully (non jure), 4 and he applies this to the case of the King or Emperor of the Romans ; if any man seeks to obtain that place unjustly he is properly called a tyrant. 5 In another place Bartolus says : ” The tyrant may be either manifest ‘ or ‘ veiled,’ ” but, what is more important, he may be a tyrant, ” ex defectu tituli ” or ” ex parte exercitus.” The distinction is important, though it was not new ; Aquinas had pointed it out in his commentary on the ” Sentences.” . When he comes to the question of tyranny ” ex parte exercitus,” he first says in general terms that the tyrant is he who does tyrannical things that is, things directed to his own advantage and not that of the community, and then cites from a work, which he attributes to Plutarch, ‘ De Regimine Principum,’ an enumeration of such actions. What is the remedy against the tyrant. If he has a superior, it is for the superior to depose him ; but Bartolus interpolates the observation that there may be occasions when the emperor or Pope may maintain such tyrants in their position for some grave and sufficient reason. 4 In another work he seems clearly to indicate that the tyrant may rightfully be deposed, and he cites a passage from Aquinas, to which we have often referred, that it is not sedition to resist the tyrant.”
37Ad Legem Juliam Majestatis no Digesto, 48 tit. 4 s1 : “crimen illud quod adversus Populum Romanum vel adversus securitatem ejus committitur”. Cf. William Smith e outros : Dictionnary of Greek and Roman Antiquities, verbete “Majestas”( New York, Harper & Brothers, 1847), pp. 609 ss : “A frase majestas publica no Digesto equivale à majestas populi Romani. No período republicano o termo majestas laesa ou minuta era mais comumente aplicado a casos como traição geral ou render o exército ao inimigo, excitar sedições, e geralmente pela péssima conduta administrativa, que lesava a majestas do Estado.” Cf. Lauterpacht, H.(Ed.) : International Law Reports, 8 in Annual Digest and Reports of Public International Laws Cases, 1935-1937, (Cambridge University Press, 1937), pp. 88 ss : “Os Pandecta que tratam com a Lex Julia Majestatis (Dig. 48, 4), na lei I deste título, que Ulpiano define como Majestatis crimen como segue: quod adversus populum Romanum vel adversus securitatem ejus committitur. Por securitatem, diz Godofredo, seguindo os primeiros comentadores, devemos entender a segurança e tranqüilidade do Estado (…) perduellio era um ramo do crimen majestatis que cobria toda ofensa contra a dignidade, autoridade ou poder do estado. E este elemento se liga a tal ponto, porque não pode existir crimen majestatis onde a autoridade em questão não tem majestas. Perduellio só pode ser cometido contra um dirigente que possui majestas”. Perduellio é o mau guerreiro, inimigo do país em geral. Quando a palavra hostis perdeu seu sentido primitivo de “estrangeiro” ele se tornou sinônimo de perduellio, mas esta última palavra designa o inimigo interior, hostis o externo. Sob o império, o crime de lesa majestade abarcou o de perduellio. (Dic. Saglio e Daremberg, verbete Perduellio). Uma correta tradução de texto essencial de Bartolo encontra-se na página da internet dedicada aos escritos medievais cujo título é Medieval Sourcebook. Alí, pode-se ler o livro de Bartolo designado, em inglês, Treatise on City Government, c. 1330. Com esta fonte é possível deduzir o que pensa Bartolo da tirania e da maneira mais eficaz de eliminá-la. Endereço da página : http://www.fordham.edu/halsall/sbook.html
38 As acusações de feitiçaria dirigidas aos adversários políticos são comuns na época. Ainda no Ricardo 3º de Shakespeare, o tirano acusa seus oponentes reais ou imaginários de feitiçaria contra ele. Em Macbeth o jogo cênico e do destino é regido por bruxas. A bibliografia sobre bruxas é imensa. Basta citar alguns textos e nomes significativos da pesquisa acadêmica, independentemente de suas posições teóricas ou ideológicas: MARWICK, M. (org.). Witchcraft and sorcery (Middlesex, Penguin Books, 1982) e também Trevor-Roper , H.R. : The european witch – craze of the sixteenth and seventeenth centuries (Hamondsworth, Penguin, 1990).
39 Reitero que as enunciações até este passo são extraídas de Mousnier. Apenas ampliei o tema com alguns comentários ou indicação de fontes.
40 Mousnier, op. cit. pp. 70-71.
41 A. Douarche : De tyrannicidio apud scriptores XVI saeculi (Tese de Letras, Paris, 1888).
42 Discorsi, 3, 6. “Delle congiure”. Texto ambiguo no qual ao mesmo tempo o autor descreve os motivos e as formas, nas tentativas de tiranicídio, mas alerta contra o seu perigoso para os sediciosos. “ Un’altra cagione ci è, e grandissima, che fa gli uomini congiurare contro al principe; la quale è il desiderio di liberare la patria, stata da quello occupata. Questa cagione mosse Bruto e Cassio contro a Cesare; questa ha mosso molti altri contro a’ Falari, Dionisii, ed altri occupatori della patria loro. Né può, da questo omore, alcuno tiranno guardarsi, se non con diporre la tirannide. E perché non si truova alcuno che faccia questo, si truova pochi che non capitino male; donde nacque quel verso di Iuvenale :Ad generum cereris sine caede et vulnere pauci descendunt reges, et sicca morte tiranni (Satirae, 10, 112-113: ”A morada de Ceres (Plutão) são poucos os reis que descem sem feridas mortais, ou os tiranos por morte incruenta”. Cf. Niccolò Machiavelli Discorsi sopra la prima decada di Tito Livio, in Il Principe e Discorsi (Milano, Feltrinelli, 1973), pp. 390 ss.
43 Adagia, chiliadis primae, centuria secunda.
44 Uso a tradução de Lester K. Born : The Education of a Christian Prince (New York, Columbia University Press, 1936), pp. 162 ss. Erasmo encontra boa parte de sua inspiração no pequeno escrito de Plutarco, Ad principem ineruditum (Para um principe sem erudição).in Loeb Classical Library, Plutarch´ s Moralia, X, trad. H.N. Fowler, pp. 52 ss.
45 Ver Contra Henricum regem Angliae. trad. E. S. Buchanan (New York, Charles A. Swift, 1928).
46 Institution de la religion chrétienne, livro IV, cap. 20, “Du gouvernement civil”. Jean Daniel Benoît ed., (Paris, Vrin, 1957).
47 Du droit des magistrats sur leurs subiets. Traité tres necessaire en ce temps pour aduertir de leur deuoir, tant les Magistrats que les Subiets : publié par ceux de Magdebourg l ´an M.D.L & maintenant reueu & augmenté de plusieurs raisons & exemples. 1575. (Paris, Editions D´ Histoire Sociale, 1977). Fac similar.
48 O termo é dos mais difíceis de serem traduzidos para a nossa lingua. É possível encontrar em traduções de filmes, reportagens e mesmo em livros acadêmicos a palavra “oficial” para explicar a palavra inglêsa e francesa. A palavra “funcionário” seria a mais adequada, mas ela obnubila os matizes hierárquicos do termo, no Estado e na Igreja. No caso, o texto fala com clareza de funcionários de alta situação, não de subordinados. A magistratura maior é a do rei, mas ele pode ser pensado como “primeiro entre os iguais”. Max Weber é uma rica fonte teórica e histórica para o exame desse passo.
49 Cf. Gierke, Otto : Natural law and the theory of society 1500 to 1800 (Boston, Beacon Hill, Beacon Press, 1960), pp. 70 ss.
50 Uso aqui a tradução brasileira, infelizmente não integral :Joahnnes Althusius, Política (Rio, Topbooks, 2003), pp. 349 ss.
51 “…quando a força manifesta é utilizada pelo magistrado contra pessoas privadas, é permitido que elas defendam suas vidas pela resistência, pois, nesse caso, as leis que constituem os reis e o direito natural (jus naturale) armam essas pessoas contra o magistrado que usa a força contra a vida”. Ed. brasileira citada, p. 356.
52 Sigo literalmente o ainda hoje instigante exame de Althusius, feito por Otto Gierke, no clássico Johannes Althusius und die Entwicklung der naturrechtlichen Staatstheorien. Uso a tradução italiana : Giovanni Althusius e lo sviluppo storico delle teorie politiche giusnaturalistiche, contributo alla storia della sistematica del diritto (Torino, Einaudi, 1974). O livro inteiro é útil para o estudo dos monarcômacos.
53 George Buchanan, De Maria Scotorum regina, totaque eius contra regem coniuratione, foedo cum Bothuelio adulterio, nefaria in maritum crudelitate & rabie, horrendo insuper & deterrimo eiusdem parricidio: plena, & tragica planè historia. [By George Buchanan] (Actio contra Mariam Scotorum reginam … [By Thomas Wilson] – Literae reginae Scot. ad comitem Bothuelium scriptae). [London] : [publicado por John Day], [1571] e George Buchanan, Ane detectioun of the du*inges of Marie Quene of Scottes, touchand the murder of hir husband, and hir conspiracie, adulterie, and pretended mariage with the Erle of Bothwell. And ane defence of the trew lordis, mainteineris of the Kingis graces ctioun [sic] and authaoritie [sic]. Translated out of the latine quhilke was written by G.B. [i.e. George Buchanan]. [London] : [John Day], [1571].
54 As notas seguintes são extraídas do excelente trabalho, já antigo mas importante em nossos dias, de Paul Mesnard : L´ Essor de la Philosophie Politique au XVIe Siècle (Paris, Vrin, 1977), pp. 355 ss.
55 A tese de que o catolicismo político e jurídico ajudou poderosamente a formação moderna da ordem democrática é algo que merece reflexões. Como diz um comentador do assunto, “The first great influence of the church for democracy, which in general was spread over the three centuries after Christ, had been the teachings of the early Christians in the face of persecution. How antagonistic these teachings were to the Roman Empire may be gathered from a review of the systematic persecution of those who placed obedience to God before the law of Rome. Such persecution had resulted only in the quickened absorption of Christian principles throughout the Roman world, and it would be difficult to overvalue such spread of Christianity as the seed from which future democratic government was to grow. But even after the identification of the Church with the Empire, and the acquisition of temporal power by the Church itself, whereby it became in part responsible for the obedience of its members to the state, the Catholic Church made its second great contribution to the growth of democratic ideas, i.e., the political pholosophy of individual teachers who remained within the fold of the Church. The support which Iraeneus, Tertullian, Ambrose, Gratian, Chrysostom, Lactantius, and Isidore of Seville gave to the Stoic conception of natural law, the vigor with which Thomas Aquinas, Suarez, and Bellarmine defended the power of the people to depose a king, and the influence of Ivo of Chartres and his successors in rationalizing English civil law,–all these forces did service to the cause of democratic development which can hardly be calculated. Milton frequently refers to the church fathers as authorities for his republican principles. If, as Gooch and Borgeaud say, democracy is the child of the Reformation, not of the comparatively conservative reformers, she is the great grandchild of primitive Christianity, and the grandchild of the great Catholic political thinkers.” Don M. Wolfe : Milton in the Puritan Revolution (Thomas Nelson and Sons, 1941), p. 9.
56 George Buchanan, De iure regni apud Scotos, dialogus, authore Georgio Buchanano Scoto. [Edinburgh] : [Publicado por John Ross], 1579.
57 O Rei, segundo Tiago 1º é “ a manner or resemblance of Diuine power vpon earth,” ele pode, à similitude divina “make and vnmake their subiects: they haue power of raising, and casting downe: of life, and of death …. They haue power to exalt low things, and abase high things, and make of their subiects like men at the Chesse: a pawne to take a Bishop or a Knight, and to cry vp, or downe any of their subiects, as they do their money. . . . For to Emperors, or Kings that are Monarches, their Subiects bodies & goods are due for their defence and maintenance. . . . Now a Father may dispose of his Inheritance to his children, at his pleasure: yea, euen disinherite the eldest vpon iust occasions, and preferre the youngest, according to his liking; make them beggars, or rich at his pleasure; restraine, or banish out of his presence, as h *ee findes them giue cause of offence, or restore them in fauour againe with the penitent sinner: So may the King deale with his Subiects.” Speech in Parliament, 1609-10. Charles Howard McIlwain cita a passagem na sua Introdução às Obras de Tiago 1º, editadas eletrônicamente no Perseus Project. Cf. também The workes of the most high and mightie prince, Iames by the grace of God, King of Great Britaine, France and Ireland, Defender of the Faith, &c. Published by Iames [Montagu], Bishop of Winton, and Deane of His Maiesties Chappel Royall (London, Robert Barker and John Bill, 1616).
58 Cf. Wootton, D. (Ed.) : Divine right and Democracy, (Penguin, 1986) (com o texto do Killing No Murder); Coward, B. . Oliver Cromwell (Longman, 2000); Brailsford, H.N. : The Levellers and the English Revolution (Spokesman Books, 1976).
59 Theodore Calvin Pease: “Debate in the Council of the Army on the Agreement of the people” in The Leveller Movement: A Study in the History and Political Theory of the English Great Civil War (American Historical Association, 1916). p. 227 ss. Também W. Schenk : The Concern for Social Justice in the Puritan Revolution (Longmans, Green and Co., 1948), p. 72 ss.
60 Uso o texto original inglês publicado no livro de Olivier Lutaud: Des Révolutions d´ Angleterre à la Révolution Française. Le tyrannicide & Killing no Murder (Cromwell, Athalie, Bonaparte), (Haia, Martinus Nijhoff, 1973), pp. 374 ss. Há no mesmo volume, uma tradução francesa da época.
61 Otto Gierke : Giovanni Althusius…ed. cit. p. 234 ss.
62 Vem de praeire e significa o chefe que marcha à frente do exército. Primitivamente a palavra designa o consul e mesmo o ditador (praetor maximus). Cf. Dicionário Saglio, verbete Praetor, p. 628,
63 Cf. para a continuidade de choques semelhantes até os dias de hoje, no Estado democrático, o belo texto de Norberto Bobbio, “A Praça e o Palácio” in L’ Utopia capovolta.
64 Nome retomado por um autor de famoso manifesto contra a tirania, o livro Vindiciae contra tyrannos (1660) “The Vindiciae deals directly with the four great questions of the time. Are subjects bound to obey princes if they command that which is contrary to the law of God? Is it lawful to resist a prince who infringes the law of God, and ruins the Church, and, if so, who ought to resist him, by what means, and how far should resistance extend? Is it lawful to resist a prince who ruins the state, and, if so, to whom should the organisation of resistance, its means and limits, be confided? Are neighbouring princes bound by law to help the subjects of princes who afflict them either for the cause of religion or in the practice of tyranny? To the first question, the Vindiciae responds in the negative. It is clear from the authority of Scripture and the example of the martyrs that the commands of God merit obedience before any orders from an earthly prince. Nor is this situation altered by the fact that princes claim to rule by divine right. The earth is the possession of the Lord, and Kings reign only by his will; one must then obey them only to the degree that they obey the commands of their master. The King is a vassal like any other vassal; he is, therefore, bound by a contract. Should he break its terms, diffidatio ensues, as it would in any other case. The establishment of Kingship, in fact, clearly involves a double contract. There is a contract between God, on the one hand, and the King upon the other; there is a contract also between the King and the people. Clearly again, therefore, whatever binds the King binds the people also; and should the King fail in his duty, the people must not -forget its obligations. To obey its earthly master in preference to obedience from God is to invoke the punishment of heaven. For when men fail to obey the laws of God they are expelling him from his Kingdom. The King is instituted only to secure the better observance of those laws, and, when he fails, his sin ought not to involve popular acquiescence. That, indeed, is the true rebellion. It is as though men obeyed an officer rather than the express ordinance of the King himself. When subjects refuse to give their conscience into evil keeping, they obey the true source of right. For there are, as Cicero said, degrees of duty, of which the highest belongs to God, and the second only to one’s country; just as in the civil law treason, though it be a heinous crime, is inferior in wickedness to wrongdoing. Nor do the Apostles write otherwise. It is one thing to refuse obedience to a command which infringes the will of God. Whether one ought to organise resistance to a prince who seeks to infringe it and attack the Church seems, at first sight, a more difficult and complex question. Harold J. Laski:Vindiciae contra Tyrannos,Historical Introduction, in http://www.constitution.org/vct/vind_laski.htm
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OS MONARCÔMACOS.
Roberto Romano
Aula pronunciada na Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo
Abril de 2008.
No mundo atual existe muito pouco espaço para as doutrinas da resistência aos poderes tirânicos. Cresce o confisco da cidadania em todos os países, impostos atingem patamares desumanos, guerras são declaradas sem consulta aos povos, aumenta o segredo e some a transparência democrática. Após as experiências totalitárias e ditatoriais do século 20, sombras espessas se elevam sobre o planeta. Este, longe de ser um cosmos, como desejaram várias filosofias anteriores, manifesta a si mesmo como explosivo. Não existe direito garantido sequer nas democracias mais consolidadas. E tal fato evidencia a corrosão inédita do caráter, sofrida por muitos povos e seus dirigentes. A ética chegou ao ponto mais baixo quando se trata de pensar os direitos humanos coletivos e individuais. As doutrinas do monarcômacos renasce, esfacelada, nos movimentos terroristas que sucederam as revoluções falidas dos séculos 19 e 20. Proponho examinar as bases daquela forma de pensamento. Deixarei, como sempre, a conclusão para os senhores.
As duas fontes éticas do Ocidente —judaica e grega— trazem aos nossos tempos o problema do tiranicídio. No Antigo Testamento Moisés mata um egípcio e começa a libertação do povo hebreu. Aod aniquila o usurpador Eglon, rei de Moab, que domina os israelitas (Juízes, 3, 14-23). Joab destrói Absalão, que destrona Davi (Samuel, 2, 18, 14). Joab é morto por Salomão, em virtude do testamento de Davi (Reis, 1, 2). O tirano Joram, rei de Israel, foi morto por uma flecha de Jehu. Este último fez executar Ocosias, rei de Judá, com a rainha Jezebel, mãe de Joram (Reis, 2, 9). O Sumo Sacerdote Iaoiada ordena a morte de Atália, mãe de Ocosias (Reis, 2, 11). Judite mata Holofernes, general de Nabucodonosor, rei dos Assírios, para salvar o povo. (Judite, 12). (1)
Na experiência grega, o tirano é chamado lobo sanguinário por Platão (2) que prevê a sua morte nas mãos dos adversários. Aristóteles define o tirano como pernicioso ao coletivo. (3) Cicero discute a tirania, e afirma que o tirano gera ódio e sempre acaba morto de maneira violenta. (4) O escritor discute o peso do tiranicídio, em relação aos valores éticos : “Com frequência as circunstâncias tornam o que se costuma considerar torpe, como não torpe. Crime maior existe do que matar um homem, ou um amigo? No entanto, seria mesmo um criminoso quem matou um tirano, mesmo sendo ele amigo? Tal não é a opinião do povo romano. Entre as belas ações, ele considera aquele ato como o mais belo” (5) Pode ser encontrada em Seneca uma atitude próxima. “Se a cura (do tirano) é desesperada, com um só gesto farei um ato benemérito para todos e de restituição, para ele. Para naturezas como a sua, deixar a vida é o único remédio, a melhor escolha é ir embora, quando não é mais possível voltar a si mesmo”. (6)
O Novo Testamento, por sua vez, segue a linha do Velho, proíbe o assassinato. E São Paulo é explícito no que se refere aos governantes.
“Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores(ἐξουσίαις, potestatibus): porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade, resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação. Porque os magistrados não são para temor (φόβος) quando se faz o bem, e, sim, quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem, e terás louvor dela; visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal. É necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa do temor da punição, mas também por dever de consciência. Por esse motivo também pagais tributos: porque são ministros de Deus, atendendo constantemente a este serviço. Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra” (Romanos, 13: 1-7).
O termo ἐξουσίαις, cuja tradução para o latim é potestatibus, tem o significado do sublime (Omnis anima potestatibus sublimioribus subdita sit) o que gera medo (φόβος) pela sua própria magnitude e transcendência, que ultrapassam os limites dos homens finitos : poder, no sentido exato, só o divino (οὐ γὰρ ἔστιν ἐξουσία εἰ μὴ ὑπὸ θεοῦ; non est enim potestas nisi a Deo). Temos a reiteração da temática, já trazida no livro de Jó (7) da incomensurabilidade entre poder divino e humano, de onde nasce o símile do Leviatã. Tomás de Aquino fala, a propósito, do Leviatã como “excesso de grandeza”, o que vai além de todo poderio ou astúcia humanos. (8)
Lutero, para falar do medo trazido pela justiça divina, usa o termo Furcht (terror, pavor). A versão inglêsa do Rei Tiago traz claramente o vocábulo terror. A palavra latina é aparentemente mais branda: timor. Cicero afirma que o medo é política ruim, pois instaura a tirania. No caso de Paulo, o sublime divino é fonte do medo e as autoridades trazem o medo aos homens que optam pelo mal, nada podem contra os que agem bem.
Padres da Igreja, como Tertuliano e Lactâncio escrevem que embora o tirano seja detestável a sua punição é reservada a Deus, e apenas a Ele. O cristão deve morrer pela sua causa e não matar (Vincimus, cum occidimur, Apologeticum). Finalmente : “Orate (…) pro regibus et pro principibus et potestatibus, ut omnia tranquilla sint vobis!” (9) Mesma atitude na Cidade de Deus. Mas Agostinho introduz algumas concessões no tocante ao tiranicídio. Uma autoridade pública, face à maldade do culpado, pode matar. Não convêm aos particulares exercer tal decisão e ato. Se não é conveniente, não significa no entanto não ser possível ou justificável. Se Deus manda uma pessoa privada matar o péssimo dirigente, ela deve obedecer.
O grande nome das doutrinas eclesiásticas, quando se trata do tiranicídio, é João de Salisbury. O seu monumento sobre o problema é o Policraticus (1159). No livro 3, capítulo 15 daquele tratado, o autor se ocupa com o tirano por usurpação que tomou o poder por astúcia e violência. “Devemos viver de um modo com o amigo, de outro com o tirano. De qualquer modo, não convêm adular o amigo, mas é lícito acariciar (mulcere) (10) as orelhas do tirano. Pois é permitido lisonjear a quem é permitido matar. Não apenas é lícito matar o tirano como é eqüitativo e justo. Quem toma o gládio é digno de matar pelo gládio. Mas por ´tomar´ se entenda : quem o usurpa por sua própria temeridade ou recebe de seu senhor o poder de o utilizar. Quem recebe de Deus o poder conserva as leis, é servidor da justiça e do direito. Quem o usurpa rebaixa os direitos, submete as leis à sua vontade”. Não só o tirano usurpador pode ser morto, mas também o legítimo cujo exercício vai contra a lei e a justiça. O tirano “oprime o povo de modo violento (…) a lei é dom divino, forma de equidade e justiça, imagem da vontade divina, guardiã da salvação, fortaleza dos povos, regra das magistraturas, exclusão e termo dos vícios, pena contra a violência e toda injustiça (…) O príncipe combate pelas leis e pela liberdade do povo, o tirano acha que nada se faz se não se rejeita as leis e não se leva o povo à servidão. O principe é imagem da divindade mas o tirano figura a força contrária, a perversidade diabólica”.
No capítulo 20 do Policraticus, Salisbury narra os tiranicídios bíblicos. Integram sua lista os reis legítimos como Joram e Ocosias, bem como César e demais imperadores romanos. O governante é tirânico? Deve ser morto. Ao violar as leis divinas ele se torna culpado de lesa majestade divina. “Dos crimes de lesa majestade nenhum é mais grave do que o cometido contra o próprio corpo da justiça”. Retornamos ao início dessas considerações, com o preceito paulíneo da obediência à autoridade. A mais sublime dentre todas as autoridades é Deus. Ferir a lei de morte é tentar assassinar o divino. Não existe crime pior. (11)
Em Tomás de Aquino nota-se forte hesitação no tratamento do tiranicídio. No Segundo livro dos Comentários sobre as Sentenças de Pedro Lombardo (entre 1254 e 1256), os tiranos de usurpação podem ser mortos. O mesmo não é dito sobre os de exercício. Ninguém é obrigado a obedecê-los, e mesmo é preciso não acatar suas ordens em algumas ocasiões. Em geral, no entanto, deve-se obedecer o governante. O referido dever é “causado pela ordem de comissão, que tem uma virtude obrigatória, não apenas no plano temporal mas também no espiritual, em consciência como diz o Apóstolo (Romanos, 13), segundo o qual a comissão desce de Deus (…) logo segundo o que é de Deus, obedecer a tais prepostos é dever do cristão, mesmo que a comissão, ela mesma, não seja de Deus”.
Se o rei é um comissário divino, deve ser obedecido. (12) A idéia do comissariato será substituída na modernidade por símiles como o empregado por Blaise Pascal na Carta sobre a Condição dos Grandes. Os príncipes e dirigentes são como o náufrago que aparece nas praias de uma ilha distante. Ele se parece com o príncipe efetivo, mas não é ele. Assim, precisa agir como se fosse legítimo, mas sabe que a qualquer instante o soberano real pode surgir. (13) Segundo Aquino, o comissário pode abusar de sua missão de duas maneiras: fazer o contrário do que ela autoriza (exemplo, um pecado) ou obrigar os dirigidos à prática de algo alheio à sua comissão (exemplo, querer impostos indevidos). O governado pode obedecer, ou não. Se o tirano insiste os cristãos devem sofrer o martírio, mas nada é dito sobre matar o governante injusto.
Já no Regime dos Príncipes, escrito entre 1265 e 1266 (do qual com alguma certeza os livros primeiro e segundo são do filósofo, incluindo o capítulo quarto) a doutrina do tiranicídio é mais clara (ela é exposta no primeiro). Alí desaparece a distinção entre as tiranias (usurpação e exercício) e Aquino retoma Aristóteles : “Como o regime do rei é o melhor, o regime do tirano é o pior”. E logo após : “Um regime torna-se injusto se, ao desprezar o bem comum da multidão, busca o bem privado do governante. Por tal motivo, quanto mais um regime se afasta do bem comum, mais ele é injusto (…) Na tirania, se afasta mais do bem comum, pois nela se procura o bem de um só, logo o regime do tirano é o mais injusto”. (Capítulo 3). Com base em Aristóteles, mas também por recolher alguma lembrança do injusto platônico, Aquino diz que o tirano é como o lobo que não garante a segurança dos governados e persegue os bons cidadãos, favorece as quadrilhas reunidas para delinqüir, impede a amizade, propicia a discórdia. Ele em nada difere de uma fera.
Se possível, no entanto, é melhor tolerar o tirano. Caso os revoltados fracassem, ele pode se tornar ainda mais feroz. Mesmo se a tirania é insuportável não vale a pena o tiranicídio. O remédio aceito pelo doutor da Igreja é a revolta regulada por representantes legítimos do povo. “Parece que se deva proceder contra a selvageria dos tiranos, não pela presunção privada de alguns, mas por autoridade pública” como uma assembléia do povo ou como o Senado romano, que destituirá o tirano. Segundo a Suma Teológica é preciso obedecer as autoridades, quando ocorrem abusos que trazem rebeliões. Ao retomar Aristóteles e dizer que a “tirania é ordenada para o bem próprio do governante, com prejuízo da multidão” (IIa II ae, q. 42) ele condena a sedição como oposta à justiça e ao bem comum. Ora, o regime tirânico não é justo, pois não se ordena ao bem comum, mas ao proveito do dirigente. Logo, “a derrubada desse regime não tem o caráter de sedição”. (14) A sedição pode não ser pecado. E matar o tirano? Na questão 64, artigo 2 da Suma ao discutir se é lícito matar bandidos, ele afirma com apoio em Êxodo, 22 que “não suportarás que os bandidos vivam”. Assim, “se algum homem é perigoso para a comunidade e seu corruptor por causa de algum pecado, que seja morto elogiadamente e com vantagem, para que o bem comum seja conservado. Com efeito, pequena porção de fermento corrompe toda a massa”.
Uma pessoa privada pode matar o bandido? Responde o santo: “é licito matar um malfeitor, na medida em que o ato é ordenado para a salvação da comunidade; como pertence ao médico arrancar o membro apodrecido, quando foi-lhe confiada a saúde do corpo inteiro. O cuidado do bem comum e confiado aos notáveis com autoridade pública. E apenas a eles é confiado matar os malfeitores, não às pessoas privadas”. No final, chega-se à sugestão, não dita explicitamente pelo autor, de que as pessoas privadas podem matar o malfeitor e o tirano, desde que receba uma ordem divina, a missão, tal como ela se apresenta à sua consciência.
Bartolo da Sassoferrato (1314-1357?) professor de direito em Pisa (entre 1339-1350) se ocupa dos tiranos que assolam as cidades italianas, cujos regimes republicanos deslizam para o despotismo oligarquico ou individual. Hodie Italia est tota plena tyrannis, diz ele no De regiminis civitatis. Bartolo foi dos primeiros a sistematizar o campo do direito público nas cidades, o que lhe permitiu uma vista sinoptica da ordem jurídica e política. Ao mesmo tempo, teve conhecimento direto dos problemas mais amplos da Europa, por ter sido embaixador de Perugia junto a Carlos 4º.
Bartolo, como Aquino, distingue duas formas de tirania. A primeira, por defectu tituli, por problemas de origem na legitimidade. A segunda, tem a indicação de Ex parte exercitii, o desempenho no cargo. O pensador usa os sinais fornecidos por Plutarco para o reconhecimento do tirano. Este último assassina os melhores homens da cidade e chega a matar seus parentes mais próximos, impede os estudos e os sábios, proíbe reuniões particulares, semeia espiões entre a cidadania, empobrece os contribuintes para que eles fiquem ocupados com dívidas, guerreia o países estrangeiros, é mantido por um grupo de mercenários, adere a um partido político e inviabiliza os demais. (De Tyrannia, capitulo 8º). Segundo Bartolo, o tirano pode ser responsabilizado pelos ordenamentos legais do Império, passível de ser punido com penas previstas no direito romano. Quem divide a cidade, por exemplo, pode ser castigado com a lex julia majestatis e assim por diante. Se o imperador não pune o tirano, os magistrados da cidade podem processá-lo e chegar à sua condenação por exílio ou morte. Mas o escritor não autoriza as pessoas privadas a cometer o tiranicídio. (15)
No século 14 o Concílio de Constança foi encarregado de várias tarefas espinhosas, entre elas, a de resolver o cisma papal e o problema da sede pontifícia em Avinhão, analisar as doutrinas de João Wyclif, Jan Hus e sectários. O Concilio condenou o assassinato do tirano devido ao caso do Duque de Orleans (23/11/1407). O confesso mandante do crime, João Sem Medo, queria se desembaraçar do concorrente no Conselho de Estado. Defendido pelo causídico João Pequeno em 08/03/1408, seu pleito se baseia nos seguintes pontos : é lícito matar o tirano, e louvável. O Duque de Orleans era um tirano, amigo do diabo e de feiticeiros, a diaba Venus o presenteou com um talismã para se fazer amar por ele, etc. (16) Além de tudo o defunto era desleal, traidor, inimigo do povo. Assim, foi lícito matar o tirano. O assassino foi absolvido, os honorários de João Pequeno dobrados.
Quando o novo duque de Orleans entra em Paris e João Sem Medo precisa fugir, o chanceler Gerson de Notre Dame denuncia as teses de João Pequeno. Em 30/11/ 1413 uma espécie de concilio jurídico e teológico extraiu da defesa feita por João Pequeno nove proposições erradas. Finalmente, o tribunal condenou a sua apologia do tiranicídio, em nome do arcebispo de Paris e do Inquisidor da Fé. João Pequeno apela ao papa João 23º. Este submeteu o apelo ao Concilio de Constança. Assim, o processo sobre o tiranicídio adquire estatuto próximo ao da heresia de Hus. O Concilio condena as primeiras teses de Pequeno, selecionadas por Gerson, em especial a que enunciava ser lícito matar o tirano sem esperar sentença ou mandato judicial.
Roland Mousnier resume do seguinte modo as teses jurídicas e religiosas sobre o tiranicídio : (17) “Nenhum particular pode, por seu movimento próprio e sem juízo prévio por magistrado competente matar o tirano de exercício ou o de usurpação. Mas Deus sempre pode, ao seu arbítrio, confiar a um homem privado a missão de executar o tirano e por tal mandato o escolhido por Deus tem o dever de cumprir sem que exista julgamento e sem por isso se transformar em assassino. Contra os tiranos de usurpação a revolta é permitida sem que se possa qualificar os atos como sedição. Mas quanto ao tirano de exercício apenas os magistrados ou depositários legítimos da autoridade pública, príncipes, senhores, governos, representantes dos povos consultados, podem se rebelar, recusar obediência, pegar em armas, deter o governante, o julgar e depor, exilar, condenar à morte quando necessário. Contra o usurpador, que gera a guerra civil, todo cidadão pode se levantar numa guerra justa”. (18)
Na Renascença os tiranicidas têm melhor imprensa. (19) Maquiavel (20), Erasmo, com seu lamento : O Brutorum genus jam olim extinctum.(21) As advertências contra a tirania encontram-se espalhadas pelos textos erasmianos. Por exemplo, no tratado sobre a Educação do Príncipe Cristão. Após descrever a pintura do bom governante o autor se refere à “terrível fera, repulsiva besta, formada por um dragão, lobo, leão, serpente, urso, e monstros semelhantes; com seiscentos olhos espalhados sobre seu corpo, dentes por toda parte, temível em todos os seus ângulos, com anzóis em todas as suas unhas; nunca satisfeita a sua fome, nutrido por entranhas de seres humanos e pelo sangue dos homens; nunca adormecida, sempre ameaçadora para a vida e os bens dos cidadãos; perigosa para todos, especialmente para os bons; um tipo de maldição fatal para o mundo inteiro, sobre ela, todos os interessados pelo bem estar político tem sentimentos de execração e de ódio. Tal fera não pode ser limitada devido à sua monstruosidade e não pode ser derrubada devido ao desastre que tal ato traria para a cidade, porque sua malícia se fortalece com armas e riqueza. Esta é a pintura do tirano, nada pior pode ser descrito. Monstros desse genero foram Cláudio e Calígula. Os mitos nos poetas também mostram Busiris, Penteu, Midas, cujos nomes hoje são objeto de ódio para toda a raça humana”. (22)
Lutero, adversário do tomismo em todos os assuntos, (23) interdita o tiranicídio, sobretudo se praticado por um particular. Calvino, na Instituição Cristã (tanto na de 1541 quanto em 1560) (24) define: como todo poder vem de Deus é preciso obedecer a autoridade civil, mesmo tirânica. O pensador não distingue entre tirania por usurpação e por exercício. “Conhecemos por suas palavras a grande obediência exigida por Nosso Senhor para que este tirano perverso e cruel (Nabucodonosor) fosse honrado, não por outra razão, mas porque ele possuía o reino. Aquela posse apenas mostrava que ele tinha sido posto no trono por ordem de Deus e por tal ordem, elevado à majestade real, que não é lícito violar”. Calvino cita o livro de Jó (28) e relembra Davi que recusa atentar contra Saul, tirano mas ungido pelo Senhor. O cristão, diante de um tirano, deve examinar sua própria consciência, para ver os pecados pelos quais Deus assim o castiga. Se o principe deseja impor algo contrário à lei divina, no entanto, é preciso resistir até o martírio. “São Pedro nos ensina que é ´preciso mais obedecer a Deus do que aos homens´, mesmo com o risco de morte”. As pessoas privadas não podem se levantar, salvo se recebem missão especial de Deus, contra o tirano. “Algumas vezes Ele suscita manifestamente alguns de seus servidores e os arma com o seu mandamento, para punir uma dominação injusta e livrar da calamidade o povo iniquamente afligido.” O assassino, mesmo que não tenha consciência de alguma tarefa religiosa e possua outros alvos pessoais, pode servir de instrumento divino.
Chegamos ao calvinismo político que afasta todas as dúvidas quando se trata do reino francês, dividido entre papistas e huguenotes, nomes insultuosos que sempre aparecem nas guerras civis ou religiosas. Em 1573 na luta religiosa que estraçalhou a França surge o libelo O direito dos magistrados sobre seus súditos. (25) Pouco antes, em 1572, ocorrera a noite de São Bartolomeu. Em 1584 sobe ao trono um protestante, o Bourbon Henrique de Navarra, com o título de Henrique 4º. O Direito dos magistrados, apresenta a situação da desobediência quando esta passa de passiva a ativa, quando o poder contradiz os mandamentos divinos. O metron da ordem política só pode ser o divino, jamais humano, porque “nenhuma vontade a não ser a divina é perpétua e imutável, regra de toda justiça”. O tom platônico desse enunciado mostra que ele pode ser incluído na linha de Agostinho e não na vertente tomista.
Mas o escrito dá um passo a mais e sanciona as doutrinas sobre o tiranicídio. Ele autoriza o particular à execução do governante tirânico e inimigo das ordens divinas, caso os magistrados deixem de cumprir seu dever. Há um contrato entre povo e soberano. Como o Estado está acima do soberano a soberania não lhe cabe totalmente. Ele depende dos magistrados comuns que não “dependem propriamente do soberano, mas da soberania” a quem o rei presta um juramento de fidelidade. “É evidente que existe uma obrigação mútua entre o rei e os funcionários (officiers) de um reino, segundo a qual o seu governo não é posto nas mãos reais, mas apenas o soberano grau deste governo, como também os funcionários (officiers) tem, cada um, parte segundo o seu grau”.(26) O rei é um magistrado, como os demais, apenas o seu posto está acima dos outros. Os magistrados inferiores, quando o superior tomba em tirania, têm o dever de salvaguardar as leis. “Eles são obrigados (mesmo com uso de armas, se possível) de se levantar contra uma tirania manifesta, para a salvação dos que são postos sob sua guarda, até uma comum deliberação dos Estados”. Como afirma Roland Mousnier, isto vai muito além de Calvino. Se há contrato, este se baseia no direito natural e divino, e não pode ser quebrado pelas partes. O tirano rompe o contrato, o que lhe retira a garantia no governo. O povo, portador da soberania, merece sempre a resposta certa ao quesito da responsabilidade do governante face ao contrato fundamental. Se rompe o contrato, o príncipe torna-se tirano e pode ser destituído ou morto.
Outro documento relevante dos monarcômacos franceses é o livro Vindiciae contra tyrannos, surgido em 1581 de maneira anônima. Ele foi atribuído a Teodoro de Beza, François Hotman, Buchanan, Hubert Languet. Sua importância foi enorme, tanto na França quanto na Europa. Mas não vai muito além do que aparece no Direito dos Magistrados. Ele avança, no entanto, no campo do contrato. Da Biblia é extraída a noção de um duplo contrato. Em primeiro, o contrato entre povo e rei, Deus garante este acordo, pois o povo é o propriedade divina. Depois, um segundo contrato entre rei e povo, para que o último obedeça bem se for bem dirigido. Daí nascem os direitos populares para exigir prestação de contas do rei, lhe resistir, depor. Depois, o livro inova no que se relaciona ao direito de resistência. Se o povo aprova o tirano que ignora a lei e a desrespeita, uma cidade apenas, um só magistrado, um só par do reino tem o direito de se levantar contra a tirania. A verdade não é quantitativa, um só pode ter razão contra muitos, estar no legítimo direito contra muitos, estar com a verdade contra muitos, e ser o único a defender a liberdade e a fé, contra muitos. Em plano ordinário, no entanto, não cabe ao particular exercer a vingança, a menos que Deus ordene sua missão.
João Althusius, em 1603, na Politica methodice digesta segue o plano geral da Vindiciae contra tyrannos. Temos nesse ponto um elemento estratégico de ordem jurídica, a suposta ou efetiva personalidade soberana do povo, com a idéia do contrato pelo qual o mesmo povo entrega o seu poder originário ao governante. Para a famosa transferência de poder, no entanto, o povo deveria possuir uma “subjetividade” comum. Se tal asserção for verdadeira, o povo jamais transfere totalmente seu direito ao dirigente, ele guarda para si a maiestas. Mesmo os defensores do absolutismo guardam a noção de que existe um contrato a ser cumprido pelo povo. Se o povo é cobrado pelo contrato, é porque ele teria alguma personalidade original. A personalidade do povo só poderia ser coletiva, o que traz problemas para a própria noção de persona capaz de decisões e de responsabilidade. O costume, trazido do direito romano, de chamar o povo de universitas, communitas, corpus, para explicar a personalidade popular como uma unidade incorporada, foi assumida pelos monarcômacos, como na Vindiciae contra tyrannos e nos textos de Althusius.
Althusius não pode aceitar as teses dos escritores católicos, como aliás nenhum de seus pares protestantes, de uma personalidade coletiva superior e anterior, ontológica e lógicamente, aos indivíduos. Tal é o ponto grave dos monarcômacos. Como vimos, embora neguem às pessoas privadas o direito de executar o tirano, quase sempre chegam ao indivíduo ou grupo que, por ordem expressa de Deus, podem justiçar o péssimo governante. Além disso, como também vimos, o indivíduo, em casos excepcionais, tem maior acesso ao verdadeiro do que a massa. Se a lógica aqui presente for levada ao máximo (e nas guerras ou revoluções do tempo ocorreu tal fato) os direitos coletivos são os direitos dos indivíduos somados. Althusius pensa numa conexão social, numa “parceria” dos indivíduos, que gera o Estado. Temos a noção de uma consociatio, corpus symbioticum. De modo artificioso retorna o peso do coletivo sobre os átomos sociais, a autoridade da comunhão política sobre os seus integrantes.
Importa insistir sobre a visão da soberania popular em autores protestantes como Althusius, que no mesmo ato se liga ao campo do federalismo. Dos indivíduos aos Estado e deste às federações, existem graus de autonomia e dignidade, sempre com o instrumento da consociatio. A sua política pode ser dita uma teoria rigorosa de muitas associações. Todas as instâncias sociais, no entender do escritor, surgem de associações. Dentre elas, são indicadas cinco species consociationis : a família, a de camaradagem (Genossenschaft), a comunidade local (Gemeinde), a província e o Estado. Cada uma das superiores resulta das inferiores e são elas, não os indivíduos diretamente, que entram no contrato que gera as mais elevadas. Elas possuem um direito que vai além dos indivíduos, direitos que não podem ser violados tanto pelas associações superiores, quanto pelos próprios grupos inferiores ou individualidades. Se tal é o ponto, é possível aceitar que um grupo ou indivíduo, sem licença das respectivas associações (inferiores ou superiores) decrete que tal instância é tirânica e mate os seus titulares? (27 ) Se uma instância associada, ou grupo ou indivíduo no seu interior, abusa de suas prerrogativas, nota-se que a qualificação de “tirania” lhe cabe. Mas o indivíduo privado ou grupo que se arroga a executar uma justiça não escrita, e matar quem imagina (ou de fato é) tirânico, não é também algo contra o direito e tirânico?
No capítulo 38 da Politica Althusius analisa os abusos do poder estatal, a tirania e os meios para afastar semelhantes males. Como defensor das associações, ele sublinha a soberania popular como algo inalienável e reforça o veto contra toda e qualquer tentativa de subtraí-la aos seus legítimo proprietários. Tirano, para ele, em sentido rigoroso, o governante legítimo que viola o direito e trai seu dever. Assim, retoma a distinção já mencionada entre tyrannus absque titulo e tyrannus quoad exercitium. Só que para ele o pretenso tyrannus quoad exercitium é apenas e simplesmente o inimigo público. E aí temos a concessão de Althusius às doutrinas anteriores, protestantes e católicas, sobre o tiranicídio: qualquer particular tem o direito de executar a sentença contra o tirano. (Cf. Politica, § 27).
Quem é o verdadeiro tirano? O que “violando tanto a palavra quanto o juramento, começa a abalar as bases e afrouxar os laços do corpo associado da comunidade. O tirano pode ser um monarca ou poliarca que, em decorrência da avareza, soberba ou perfídia, extingue ou destrói os bens máximos da comunidade, quais sejam, sua paz, virtude, ordem, lei e nobreza”. (28) Com tais critério, Althusius fixa o jus resistentiae et exauctorationis, contra o tirano. Tal direito resulta de doze princípios, extraídos da essência do contrato, do ofício e do mandato, do conceito de soberania popular, do direito natural e da palavra divina (§§ 28-43), da história civil e religiosa (§§44-45). O referido direito é atribuído ao povo apenas, coletivamente, e em seu nome, aos Eforos. Os privados cidadãos têm direito apenas à resistência passiva e, caso exista ameaça direta contra suas vidas, bens, liberdades, o direito de legítima defesa concedido pelo direito natural (§§ 65.68). (29) Os Eforos, coletivamente, têm a prerrogativa (caso verifiquem um comportamento tirânico) de advertir o governante pacificamente. Caso ele não se emende, eles podem cassar o seu mandato com violência ou mesmo condenar a morte. (§§ 53-64). Em caso de evidente tirania, as associações podem romper o contrato e se retirar das entidades federadas (§§ 42-52). (30)
O ponto crucial do problema inteiro gira ao redor do estatuto da indivíduo no campo coletivo. Quais os limites do primeiro e do segundo? Quem é fonte dos direitos e da ação política? Quando a tirania do Todo suscita a resistência legítima ? Todas essas questões, suscitadas pelos monarcômacos protestantes, são refletidas de maneira inversa nos monarcômacos do catolicismo. O ponto mais grave, no meu entender, reside na tese de que não raro os átomos sociais e políticos, os indivíduos, podem estar na posse do direito efetivo, quando a maioria se deixa controlar por tiranias mentirosas e anti- jurídicas. Basta recordar os totalitarismos do século 20 : quem tinha razão e estava na verdade, as massas animalizadas pela propaganda nazista, estalinista, fascista, ou os poucos cidadãos que aceitaram ir para a morte, sem disto precisar por eram “arianos” ou porque simplesmente poderiam calar e cooperar com o Estado?
Insisto na análise dos monarcômacos católicos. Para eles, tirano é todo governante que não aceita os ditames da Igreja no campo da soberania, da ética, da ordem pública. Se abrirmos os textos dos monarcômacos do catolicismo, veremos que a grande maioria fazem epikéia do 5 mandamento, “não matarás”. Se é legítimo matar o invasor de sua pátria, um bandido que penetra sua casa, é permitido matar o tirano de usurpação , pois o que ele faz contra a república é uma guerra injusta e fora da lei. Assim, todo cidadão, parte da autoridade coletiva, pode executar o governante tirânico.
Manuel de Sá, jesuíta, nos Aphorismi confessiorum (1593) aprovado pela Faculdade de Teologia de Paris em 1609, diz que o governante tirânico de “uma senhoria justamente adquirida não pode ser dela despojado, a não ser por um julgamento público, sentença pronunciada. Daí, cada um pode ser o executor. Ele também pode ser deposto pelo povo, mesmo se este último jurou obediência perpétua caso, advertido, ele não se corrija. Mas todo membro do povo pode matar quem ocupa tiranicamente o poder, se não há outro remédio, pois ele é o inimigo público (publicus hostis)”. João Mariana, no De rege et regis institutione (1598) pergunta se é lícito matar o tirano. Sua resposta é uma longa discussão escolástica pelo sim e pelo não, ressaltando o sim em caso de atentado à religião.
Outro monarcômaco relevante é Georg Buchanan (1506-1582). Em 1549 o autor foi preso pela Inquisição de Portugal, pelo seu ensino considerado herético na Universidade de Coimbra. Após abjurar sua pretensa heresia, ele é solto e retorna para a França. O De Iure Regni apud Scotos Dialogus (1579), põe os fundamento da responsabilização (accountability) dos governantes face aos governados e da lei e desenvolve a doutrina da soberania popular, o que exige a tese da resistência legal aos tirano. Ele foi peça central na queda de Maria, rainha da Escócia (1567) e se tornou tutor de Tiago 6º da Escócia, futuro Tiago 1º da Inglaterra). Buchanan, pode-se dizer, foi dos primeiros a usar a retórica na tarefa pouco nobre de aniquilar os inimigos políticos. Foi o que ele fez com Maria, a quem acusou de assassina, adúltera, tirana prostituta. no libelo intitulado Detectio Mariae Reginae Scotorum (1571) (31) e desenvolvido mais amplamente na história da Escócia por ele publicada : Rerum Scoticarum Historia (1582).
No De Jure Regni apud Scotos, aparece o elemento causador do tiranicídio : a opressão do povo e sua revolta. (32) As fontes de Buchanan encontram-se em Erasmo, Aristóteles, Cícero. O núcleo do diálogo é a diferença entre monarquia e tirania, com a tese da superioridade do povo face aos dois tipos de poder. Para tal tarefa, o autor assume a famosa narrativa das origens, encontrada em Platão, nos estoicos e usada em grande quantidade no século 18, em especial por Rousseau. Ninguém pode dizer que tal narrativa pretende ser efetivamente histórica. Ela é uma idéia diretora para explicar, com algum fundamento racional, o sentido da vida humana em coletividade.
Os homens, diz o autor, viviam de modo selvagem e bruto, isolados em cavernas. O sentimento da utilidade e o instinto social os aproximou. O instinto social, como em Cícero, é dado por Deus e com ele torna-se possível construir a civitas segundo as normas do bom e do justo. Quem mais perto chega do justo e do bom é imagem divina entre os seus iguais (Plane Deo similimum). Ele será o chefe, o guia, o médico que conserva a integridade física e a saúde da reunião humana. Justiça, portanto, é guardar a saúde do corpo social, assegurar a prosperidade das suas partes e a coesão voluntária do todo. O rei aparece com tal múnus.
Mas a simples eleição do rei nada garante em termos de justiça. Ela é um sinal de excelência, não a própria excelência : “natura, non suffragiis regem esse” . A eleição não gera um rei, nem um médico competentes. Mas como o diploma confere ao médico o seu direito, a eleição confere ao líder a licença para governar. Diploma ou eleição constituem formas de reconhecimento, não o saber ou o poder reais. Para evitar abusos, mesmo dos que são prudentes ao serem eleitos (ou diplomados), existe a lei, freio dos desejos de quem governa (Legem ei velut collegam aut potius moderatricem libidinum adjiciemus). As leis, diz o autor, “foram criadas com tal fim pelos povos e os reis são constrangidos a governar não segundo seu arbítrio mas segundo o direito que o povo tinha estabelecido para eles”. Mesmo um rei bom não pode dispensar a lei. Buchanan pensa numa colaboração dos poderes, do povo, magistrados e rei, não os procedimentos cortesãos e nem o tumulto dos comícios. No seu entender, os deputados deliberam o texto de uma lei com os conselheiros do governo, depois submetem sua decisão preliminar (προβουλευµα) à aprovação do povo. A lei é mais poderosa do que o rei, o povo é mais poderoso do que a lei (Est enim velut parens, certe auctor legis ut qui eam, ubi visum est, concedere aut abrogere potest). O contrato entre povo e governante não retira do primeiro sua majestade, pelo contrário.
Nesse ponto surge a distinção entre rei e tirano. O tirano segundo o título pode até ser suportado, se o governo segue a lei e a justiça. Mas o de exercício, que viola a lei, devem ser “declarados inimigos públicos e considerados como sátiros, macacos e ursos, fúrias ou Kakodemônios”. Quando o governante viola a legalidade, rompe o contrato que estabeleceu com o povo. Assim, “o povo, de quem nossos reis ganham os seus direitos, é superior aos reis, e o conjunto dos cidadãos tem sobre eles o mesmo poder que eles têm sobre um de seus membros”. Nada vai contra a deposição de um tirano, mesmo que ele seja disfarçado. Buchanan analisa a Carta aos Romanos de maneira inusitada : São Paula falaria de um soberano legítimo e não de um tirano a ser obedecido. A carta a Tito fala em obedecer o que é bom e à Timóteo pede que se reze pelos reis e magistrados. Mas o que impede matar os reis péssimos e ao mesmo tempo por eles orar? O apóstolo falava de reis pagãos, que não tinha conhecimento da lei divina. Os reis cristãos ficam sem desculpa quando agem como tiranos.
O retrato acima, do povo e do rei, no entanto, precisa ser melhor precisado nos textos de Buchanan. Nem sempre o rei é o tirano por ele execrado (falando-se em termos históricos, na Escócia da qual ele faz a teoria) e pouco tem de “popular” o “povo” por ele evocado. Trata-se na verdade da nobreza sediciosa e que exigia privilégios, auto-nomeada “povo”. No entanto, sob tais nomes e com tal lógica, as idéias de Buchanan se espalharam pela Europa e abriram vias para a defesa da soberania popular, contra o arbítrio dos reis. o De Iure Regni apud Scotos Dialogus (1579) (33) no qual defende a responsabilização dos governantes e a soberania popular. O texto mostra que o assassinato pode ser justificado como ato virtuoso. A radicalidade com a qual Tiago 1º defende o direito divino dos reis, com muita probabilidade é devida à virulência das teses de Buchanan. Aluno de Buchanan, Tiago apreciou as lições de grego, de latim, de humanidades adquiridas com o mestre. Mas renegou o quanto pode a tese da soberania popular e do tiranicídio, especialmente nos livrinhos The True Law of Free Monarchies (1598) e Basilikon Doron. (34) Os textos de Buchanan foram importantes para toda a história política da Inglaterra, sobretudo na revolução do século 17 e do período dominado por Cromwell.
O texto mais célebre da modernidade, ao se tratar dos monarcômacos, intitula-se Killing no Murder. (35) Ele se dirige contra Oliver Cromwell, o Lord Protector da Inglaterra ou mero ditador no entendimento de muitos. O regime do protetorado aparentemente se instalou em 1653 sem comoções graves. Mas as duas supressões do Parlamento anteriores (a de abril e dezembro de 1653) mostram grave crise política. A Constituição imposta (The Instrument of Government) mostrava tudo, menos reverência para o princípio da representação do poder. O regime instalado era mais presidencial do que parlamentar. Sob a rubrica de “uma só pessoa e um só parlamento”, o autoritarismo aparecia sem muitos cosméticos. A prática de Cromwell face ao Parlamento se reduzia a visitas esporádicas, nas quais o governante falava longamente, sempre no costume dos ditadores que adoram alugar orelhas de parlamentares imaginados impotentes. Os Levellers tinham perdido sua força e seus projetos de mando constitucional tinham se atenuado ao máximo. Como sempre ocorre em regimes autoritários de lavra cristã, Cromwell também acreditou num contrato (Covenant) entre Deus e o povo inglês, no qual ele, o governante, seria o intermediário sacrossanto. Entre as proclamações demagógicas e o próprio Cromwell, no entanto, a modéstia carateriza os seus atos e falas. Para o povo, ele seria um quase Moisés. Para si mesmo, não passaria de um guarda de propriedade (Constable), para um povo rude e indisciplinado. Ditadores costumem parecer modestos…
Modestos, mas a sua tarefa consiste “apenas” em negar ou trair os ideais da revolução que os levam ao poder. No caso de Cromwell, tratava-se de recusar as “bravatas” da luta contra a censura, do exército politizado e sem hierarquias nobres, do nivelamento político democrático, reforma agrária, respeito ao misticismo religioso (Quakers), justiça contra o rei e magistrados não responsáveis (accountability). Em suma: a ditadura foi efetuada para acabar com as exigências de mudanças na ordem pública.
Entre os antigos Levellers (os niveladores) vários se indignam com o “realismo” do ditador e de seus amigos. Um deles era o jurista Wildman, preso em 1654 e solto no ano seguinte. Seu amigo Edward Sexby, soldado revolucionário e agitador, servira como espião e organizador de rebeliões na França, a serviço da Inglaterra. Na mesma operação, ele apresenta aos rebeldes franceses um “agreement” que seria cópia do programa dos niveladores. O que suscita a cólera de Cromwell, naturalmente. A partir daí, com Wildman, passa liderar planos contra o ditador. Do estrangeiro, ele começa a campanha para abater “o usurpador”. As tratativas com o rei destronado, no exílio francês, não foram adiante, porque Sexby insiste nos preceitos democráticos. O rei, como previsível, nada aceita que possa lessening the power of the crown and devolving an absurd power to the people. Cromwell, no Parlamento em 1656 denuncia Sexby num de seus longos discursos como a wretched creature, an apostate from religion and all honesty.
Os ocupantes das cadeiras parlamentares, beneficiados materialmente pela Revolução, não aceitaram pregações como as de Sexby. Eles na verdade queriam uma legitimidade nova para Cromwell, o que garantiria suas propriedades e a situação política de “segurança”. Não apenas de satisfeitos se compunha o clima político. Muitos setores não aceitavam o controle do ditador. Assim, Sexby imagina mover os defensores da realeza contra o governante e assim captar todas as insatisfações levantadas em seu protetorado. E surge o Killing no Murder em 1657. Preso, Sexby com muita probabilidade foi torturado e confessou, mas sem deixar suas convicções.
O primeiro arrazoado do texto gira ao redor da questão clássica: Cromwell é tirano ? Como sempre, Aristóteles e Cícero são fonte analítica. Mas a fonte maior, no passo, encontra-se em Maquiavel : “Tiranos efetivam seus fins muito mais por fraude do que pela força. Nem virtude nem a força (diz Maquiavel no Príncipe, cap. 9) são necessárias para aquele alvo, tanto quanto una Astutia fortunata, uma astúcia com sorte: a qual, diz ele (Principe, 2 capitulo 13) sem a força foi sempre considerada suficiente, mas nunca a força sem ela. E num outro lugar (Capítulo 18) ele diz que o caminho é Aggirare li cervelli de gli huomini con Astutia, etc.” Daí, a indicação que Sua Alteza, o protetor, usa os artifícios maquiavélicos para conseguir seus alvos.
Além disso, é marca dos tiranos abaixar os bons. Eles, como diz Aristóteles, “purgam” as assembléias em sentido negativo (a fonte mais antiga disso é Platão, na fenomenologia do tirano feita na República, livro 8), e nelas só deixam quem não possua inteligência (Wit) interesse ou coragem para se opor aos seus desígnios (Aristóteles, Política, 5, cap. 11). Eles não suportam assembléias e colocam em toda parte espias e delatores e não saem do palácio sem guarda de corpo. Eles declaram guerras para divertir o povo e mante-lo ocupado. Eles mantêm aduladores. E coisas detestáveis, eles exigem que seus subordinados as cometam. Eles fingem cuidar do povo. Mas vendem as coisas santas, na religião e em outros domínios. Eles fingem receber inspiração divina. Eles pretendem, assim, amar a Deus e fingem que oráculos divinos conduzem sua ação. Todas essas marcas são encontráveis, diz Sexby, em Cromwell. (36)
A segunda série de razões gira ao redor de outra questão clássica: é legal matar um tirano? Os juízos variam, afirma Sexby. Alguns acham que os tiranos são abortos, para a cura dos quais apenas a nossa paciência é eficaz. Outros acham que eles devem ser questionados pela suprema lei da salvação popular. Eles são responsáveis (answerable) diante dos povos, por quebrarem a fé pública. Ninguém, no entanto, “em boas condições de pensamento”, torna a pessoa privada juízes nos casos de tirania. Mas o próprio tirano é um caso de vida particular, não pública. Se o governante não assegura a felicidade e a segurança públicas, ele não é mais diretor da ordem pública, mas age nela como privado. Para ser legítimo, o governante deve ser parte da Civitatis, porque toda parte se subordina ao todo ao mandar ou obedecer. O tirano nunca se subordina. Só existe civitas quando o coletivo é como se fosse só homem. Sexby cita Sófocles em latim : Non est civitas quae unius est viri. Como o tirano não é parte da Comonwealth “mas se coloca acima da lei, não existe razão para que ele seja protegido pelas leis, pois não as reconhece. Deve ser considerado uma fera, nada mais. E seguem-se exegeses bíblicas e fontes antigas para validar a tese da tirania de Cromwell.
Terceira série de arrazoados: após mostrar o que é um tirano e indicar suas marcas, vem a questão de saber se é vantajoso para o coletivo a sua destituição. E Buchanan cita muitas autoridades sobre o assunto. Dos trechos recolhidos, o mais cortante é o de Maquiavel : quem apoia a tirania, deve matar Brutus. Um tirano, diz Platão, deve afastar toda pessoa virtuosa. E se com o tirano não é possível viver em paz, felicidade, segurança, etc., é saudável e vantajoso acabar com ele.
Para encerrar provisoriamente o nosso ponto, podemos dizer que os monarcômacos, dos quais dei apenas alguns exemplos, colocam o direito de resistência no centro de todo o seu sistema político. (37) Mas devido à substituição da soberania principesca ao povo, o seu problema passou para o campo mais amplo, da transgressão dos limites do Estado. Todos os direitos que eles atribuem ao povo contra e acima do tirano seriam consequências, não limites da soberania. O que se deve pensar de um poder sem limites, inclusive e sobretudo se tratamos de um soberano coletivo? Não irei analisar aqui as teses de Hobbes e da modernidade. Importa dizer que o impulso para definir limites aos soberanos principescos ajudou e muito na edificação das democracias ocidentais, como a inglêsa, a norte-americana e a francesa. Com a Revolução de 1917 na Rússia, encerra-se a eficácia da doutrina com o Estado totalitário. Doravante, no mundo, os satélites da URSS agiram como se assumissem o principio da resistência à tirania, mas logo que atingiram o poder, impuseram tiranias ainda piores do que as derrubadas por eles. O nazi-fascismo levantou contra seu programa de horrores a resistência de alemães, franceses, italianos, gregos. Mas logo que a Segunda Guerra foi vencida, o único foco de resistência encontrou-se na luta contra os países colonialistas. E logo após muitos movimentos de libertação, no poder, instauraram tiranias sangrentas que até hoje matam milhares e milhares de pessoas humanas. Nas consciências terroristas de hoje, há uma tintura das doutrinas sobre a resistência à tirania. Mas na verdade trata-se de tiranos que usurpam o título de resistentes, e também exercem a tirania de modo exacerbado.
Vale a pena, no entanto, meditar sobre a idéia do povo soberano e sobre as implicações da tese. Em país como o Brasil, no qual o século 19 foi o palco de várias revoltas contra os poderes tirânicos (todas afastadas com a ponta dos canhões, as torturas e as baionetas, além da censura) o século 20 foi palco de duas tiranias sangrentas que conseguiram moldar de modo lamentável o caráter do “povo soberano”. Os defensores da liberdade e da democracia não adormecem tranqüilos porque em nossa terra “O dom de avivar no passado a chama da esperança só cabe ao historiador convencido com perfeição sobre o seguinte fato : se o inimigo vence, até mortos perderão a segurança. E aquele inimigo sempre tem vencido” (Walter Benjamin).
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1 Em toda a sequência, até aviso em contrário, as considerações redigidas aqui vêm do clássico livro de Roland Mousnier: L´ assassinat d´ Henry IV. Le problème du tyrannicide et l ´affermissement de la monarchie absolue (Paris, Gallimard, 1964). As fontes históricas são tratadas naquele escrito com mão de mestre, bem como a sua leitura no mundo europeu, em especial no século 17 francês. Ampliei a citação de fontes, não incluídas por Mousnier, para deixar mais evidente o problema do tiranicídio nos exercícios filosóficos.
2 “Não tem o povo o hábito invariável de pôr à sua testa um homem cujo poder ele nutre e torna maior? É de seu hábito, concordou. É portanto evidente que, onde quer que o tirano medre, é na raiz deste protetor e não alhures que ele se entronca. É absolutamente evidente. Mas onde começa a transformação do protetor em tirano ? Não é, evidentemente, quando se põe a fazer o que é relatado na fábula do templo de Zeus Liceu, na Arcádia? O que diz a fábula? indagou. Que aquele que provou entranhas humanas, cortadas em postas junto com as de outra vitimas, é inevitavelmente transmudado em lobo. Não ouviste contá-la ? Sim. Do mesmo modo, quando o chefe do povo, seguro da obediência absoluta da multidão, não sabe abster-se do sangue dos homens de sua própria tribo, mas, acusando-os injustamente, conforme o processo favorito dos de sua igualha, e arrastando-os perante os tribunais, se mancha de crimes mandando tirar-lhes a vida, quando, com lingua e boca ímpias, prova o sangue de sua raça, exila e mata acenando com a supressão das dívidas e uma nova partilha das terras, então, não deverá um tal homem necessariamente, e como que por uma lei do destino, perecer pela mão de seus inimigos, ou tornar-se tirano, e de homem transformar-se em lobo?” (A República, 8, 565 c – 566 a). Cito na tradução de J. Guinsburg (São Paulo, Perspectiva, 2006), pp. 332-333.
3 “A corrupção da realeza é a tirania. Ambas são governos monárquicos, mas diferem profundamente. O tirano visa apenas seu interesse pessoal e o rei se preocupa com o de seus dirigidos …o tirano só busca o seu próprio bem. Sem dúvida, a tirania é o pior dentre os governos. Da monarquia se desliza para tirania, corrupção da monarquia, e um rei péssimo se transforma em tirano” (Etica a Nicômaco, 8, 10). A realeza se fundamenta no consentimento dos governados e na lei. A tirania é um desvio dessa prática. “A tirania é monarquia absoluta que, sem responsabilidade e só no interesse do tirano, governa homens que valem tanto ou mais do que ele, esta monarquia nunca se ocupa com os interesses particulares dos governados. Assim, ela existe apesar deles, pois não existe um só homem livre que suporte voluntariamente tal poder”. (Política, 6, 3 e 6, 2). Cf. Aristotle Politics Loeb Classical Library, Volume XXI, trad- Rackham, H. (Cambridge, Harvard University Press, 1990) pp. 324 e ss.
4 “Omnium autem rerum nec aptius est quicquam ad opes tuendas ac tenendas quam diligi nec alienius quam timeri. Praeclare enim Ennius ‘Quem metuunt oderunt; quem quisque odit, perisse expetit’. Multorum autem odiis nullas opes posse obsistere, si antea fuit ignotum, nuper est cognitum. Nec vero huius tyranni solum, quem armis oppressa pertulit civitas ac paret cum maxime mortuo interitus declarat, quantum odium hominum valeat ad pestem, sed reliquorum similes exitus tyrannorum, quorum haud fere quisquam talem interitum effugit. Malus enim est custos diuturnitatis metus contraque benivolentia fidelis vel ad perpetuitatem. Sed iis, qui vi oppressos imperio coercent, sit sane adhibenda saevitia, ut eris in famulos, si aliter teneri non possunt; qui vero in libera civitate ita se instruunt, ut metuantur, iis nihil potest esse dementius. .” De officiis, II, 7, 23-26. Segue a tradução mais ampla do trecho, feita por Walter Miller : “Whom they fear they hate. And whom one hates, one hopes to see him dead.” And we recently discovered, if it was not known before, that no amount of power can withstand the hatred of the many. The death of this tyrant whose yoke the state endured under the constraint of armed force and whom it still obeys more humbly than ever, though he is dead, illustrates the deadly effects of popular hatred; and the same lesson is taught by the similar fate of all other despots, of whom practically no one has ever escaped such a death. For fear is but a poor safeguard of lasting power; while affection, on the other hand, may be trusted to keep it safe for ever. But those who keep subjects in cheek by force would of course have to employ severity — masters, for example, toward their servants, when these cannot be held in control in any other way. But those who in a free state deliberately put themselves in a position to be feared are the maddest of the mad. For let the laws be never so much overborne by some one individual’s power, let the spirit of freedom be never so intimidated, still sooner or later they assert themselves either through unvoiced public sentiment, or through secret ballots disposing of some high office of state. Freedom suppressed and again regained bites with keener fangs than freedom never endangered. Let us, then, embrace this policy, which appeals to every heart and is the strongest support not only of security but also of influence and power — namely, to banish fear and cleave to love. And thus we shall most easily secure success both in private and in public life. Furthermore, those who wish to be feared must inevitably be afraid of those whom they intimidate. What, for instance, shall we think of the elder Dionysius? With what tormenting fears he used to be racked! For through fear of the barber’s razor he used to have his hair singed off with a glowing coal. In what state of mind do we fancy Alexander of Pherae lived? We read in history that he dearly loved his wife Thebe; and yet, whenever he went from the banquet hall to her in her chamber, he used to order a barbarian — one, too, tattooed like a Thracian, as the records state — to go before him with a drawn sword; and he used to send ahead some of his bodyguard to pry into the lady’s caskets and to search and see whether some weapon were not concealed in her wardrobe. Unhappy man! To think a barbarian, a branded slave, more faithful than his own wife! Nor was he mistaken. For he was murdered by her own hand, because she suspected him of infidelity. And indeed no power is strong enough to be last ing, if it labours under the weight of fear. Witness Phalaris, whose cruelty is notorious beyond that of all others. He was slain, not treacherously (like that Alexander whom I named but now), not by a few conspirators (like that tyrant of ours), but the whole population of Agrigentum rose against him with one accord. Again, did not the Macedonians abandon Demetrius and march over as one man to Pyrrhus? And again, when the Spartans exercised their supremacy tyrannically, did not practically all the allies desert them and view their disaster at Leuctra, as idle spectators? I prefer in this connection to draw my illustrations from foreign history rather than from our own. Let me add, however, that as long as the empire of the Roman People maintained itself by acts of service, not of oppression, wars were waged in the interest of our allies or to safeguard our supremacy; the end of our wars was marked by acts of clemency or by only a necessary degree of severity; the senate was a haven of refuge for kings, tribes, 27 and nations; and the highest ambition of our magistrates and generals was to defend our provinces and (27) allies with justice and honour. And so our government could be called more accurately a protectorate of the world than a dominion” Cicero De officiis, trad, Walter Miller (New York, The Macmillan Co. 1948), pp. 168 e ss.
5 “Saepe enim tempore fit, ut quod turpe plerumque haberi soleat, inveniatur non esse turpe. Exempli causa ponatur aliquid, quod pateat latius. Quod potest maius scelus quam non modo hominem, sed etiam familiarem hominem occidere? Num igitur se adstrinxit scelere, si qui tyrannum occidit quamvis familiarem? Populo quidem Romano non videtur, qui ex omnibus praeclaris factis illud pulcherrimum existimat.” De officiis, III, 4, 19.
6 De beneficiis, 7, 19. Cautela, no entanto, com tais linhas. Elas não correspondem ao pensamento do estoico Seneca. Leia-se a meditação seguinte: “Esta é uma questão usual levantada sobre Marcos Brutus : deveria ele aceitar ter sua vida poupada pelo divino Júlio quando Brutus desejou matar César ? (…) Considero que se em outras ocasiões Brutus agiu como grande homem, errou neste caso particular e não agiu segundo os princípios estoicos”. De beneficiis, ed. C. Hosius (Lipsiae: Ed. Teubner, 1900). Para uma análise do trecho, cf. M. Piccolomini (South Illinois University Press, 1991), pp. 27 e ss. Para outro comentário do problema, cf. M. T. Griffin : Seneca, a philosopher in Politics (Oxford, Clarendon Press, 1992), pp. 189 e ss.
7 A apresentação de Jó, no livro, já traz a sua marca de temente a Deus. Ele é dito θεοσεβής, reverente e temente a Deus (a versão do rei Tiago traz o termo Fear, para medo), alguém que foge do mal. A encruzilhada diante do divino e do mal é a mesma apresentada por Paulo em Romanos.
8 “O diabo na Figura do Leviatã” capítulo do livro de Tomás de Aquino sobre o livro de Jó. Cf. Job, um homme pour notre temps. De Saint Thomas d´ Aquin, exposition littérale sur le livre de Job (Paris, Tequi, 1980).
9 Apologeticum, 31, 1. Acessado em Ad Fontes Academy [http://www.thelatinlibrary.com] no dia 30/03/2008, as 11h05 AM.
10 De mulceo, verbo transitivo que significa apalpar, afagar com as mãos, acariciar, ameigar.
11 Uso a excelente tradução de M. A. Ladero, M. Garcia, T. Zamarriego : Policraticus (Madrid, Editora Nacional, 1984). Para o pensamento de Salisbury, cf. Roberto Romano:“´Lembra-te de que és homem´. Governantes e Juízes no Policraticus de Jean Salisbury”. Revista Justiça e Democracia. Número 1, Primeiro Semestre de 1996. Páginas 153-161.
12 Não há espaço, aqui, para analisar os nexos entre a idéia de comissão, ou poder comissário, nas doutrinas jurídicas medievais, tanto laicas quanto religiosas. Mas é correto pensar que a idéia de Tomás de Aquino, neste passo, está inserida no plano mais amplo do direito ligado aos poderes. Uma tarefa fascinante e arriscada, dados os problemas óbvios trazidos pelo autor, é comparar a noção de autoridade delegada, comissária, em Tomás de Aquino da exposta por Carl Schmitt no cinzento livro A ditadura. Se possível, voltarei ao ponto.
13 “Pour entrer dans la véritable connaissance de votre condition, considérez- la dans cette image. Un homme est jeté par la tempête dans une île inconnue, dont les habitants étaient en peine de trouver leur roi, qui s’était perdu; et, ayant beaucoup de ressemblance de corps et de visage avec ce roi, il est pris pour lui, et reconnu en cette qualité par tout ce peuple. D’abord il ne savait quel parti prendre; mais il se résolut enfin de se prêter à sa bonne fortune. Il reçut tous les respects qu’on lui voulut rendre, et il se laissa traiter de roi. Mais comme il ne pouvait oublier sa condition naturelle, il songeait, en même temps qu’il recevait ces respects, qu’il n’était pas ce roi que ce peuple cherchait, et que ce royaume ne lui appartenait pas. Ainsi il avait une double pensée: l¹une par laquelle il agissait en roi, l’autre par laquelle il reconnaissait son état véritable, et que ce n’était que le hasard qui l’avait mis en place où il était. Il cachait cette dernière pensée et il découvrait l’autre. C’était par la première qu’il traitait avec le peuple, et par la dernière qu’il traitait avec soi-même. Trois Discours sur la condition des grands, Premier Discours.
14 …regimen tyrannicum non est justum: quia non ordinatur ad bonum commune, sed ad bonum privatum regentis, ut patet per Philosophum, in tertia Polit. et in VIII Ethic. et ideo perturbatio hujus regiminis non habet rationem seditionis.
15 Uma correta tradução de texto essencial de Bartolo encontra-se na página da internet dedicada aos escritos medievais cujo título é Medieval Sourcebook. Alí, pode-se ler o livro de Bartolo designado, em inglês, Treatise on City Government, c. 1330. Com esta fonte é possível deduzir o que pensa Bartolo da tirania e da maneira mais eficaz de eliminá-la. Endereço da página : http://www.fordham.edu/halsall/sbook.html
16 As acusações de feitiçaria dirigidas aos adversários políticos são comuns na época. Ainda no Ricardo 3º de Shakespeare, o tirano acusa seus oponentes reais ou imaginários de feitiçaria contra ele. Em Macbeth o jogo cênico e do destino é regido por bruxas. A bibliografia sobre bruxas é imensa. Basta citar alguns textos e nomes significativos da pesquisa acadêmica, independentemente de suas posições teóricas ou ideológicas: MARWICK, M. (org.). Witchcraft and sorcery (Middlesex, Penguin Books, 1982) e também TREVOR-ROPER, H.R. : The
european witch – craze of the sixteenth and seventeenth centuries (Hamondsworth, Penguin, 1990).
17 Reitero que as enunciações até este passo são extraídas de Mousnier. Apenas ampliei o tema com alguns comentários ou indicação de fontes.
18 Mousnier, op. cit. pp. 70-71.
19 A. Douarche : De tyrannicidio apud scriptores XVI saeculi (Tese de Letras, Paris, 1888); Lossen, Die Lehre vom Tyrannenmord.
20 Discorsi, 3, 6. “Delle congiure”. Texto ambiguo no qual ao mesmo tempo o autor descreve os motivos e as formas, nas tentativas de tiranicídio, mas alerta contra o seu perigoso para os sediciosos. “ Un’altra cagione ci è, e grandissima, che fa gli uomini congiurare contro al principe; la quale è il desiderio di liberare la patria, stata da quello occupata. Questa cagione mosse Bruto e Cassio contro a Cesare; questa ha mosso molti altri contro a’ Falari, Dionisii, ed altri occupatori della patria loro. Né può, da questo omore, alcuno tiranno guardarsi, se non con diporre la tirannide. E perché non si truova alcuno che faccia questo, si truova pochi che non capitino male; donde nacque quel verso di Iuvenale :Ad generum cereris sine caede et vulnere pauci descendunt reges, et sicca morte tiranni (Satirae, 10, 112-113: ”A morada de Ceres (Plutão) são poucos os reis que descem sem feridas mortais, ou os tiranos por morte incruenta”. Cf. Niccolò Machiavelli Discorsi sopra la prima decada di Tito Livio, in Il Principe e Discorsi (Milano, Feltrinelli, 1973), pp. 390 ss.
21 Adagia, chiliadis primae, centuria secunda.
22 Uso a tradução de Lester K. Born : The Education of a Christian Prince (New York, Columbia University Press, 1936), pp. 162 ss. Erasmo encontra boa parte de sua inspiração no pequeno escrito de Plutarco, Ad principem ineruditum (Para um principe sem erudição).in Loeb Classical Library, Plutarch´ s Moralia, X, trad. H.N. Fowler, pp. 52 ss.
23 Ver Contra Henricum regem Angliae. trad. E. S. Buchanan (New York, Charles A. Swift, 1928).
24 Institution de la religion chrétienne, livro IV, cap. 20, “Du gouvernement civil”. Jean Daniel Benoît ed., (Paris, Vrin, 1957).
25 Du droit des magistrats sur leurs subiets. Traité tres necessaire en ce temps pour aduertir de leur deuoir, tant les Magistrats que les Subiets : publié par ceux de Magdebourg l ´an M.D.L & maintenant reueu & augmenté de plusieurs raisons & exemples. 1575. (Paris, Editions D´ Histoire Sociale, 1977). Fac similar.
26 O termo é dos mais difíceis de serem traduzidos para a nossa lingua. É possível encontrar em traduções de filmes, reportagens e mesmo em livros acadêmicos a palavra “oficial” para explicar a palavra inglêsa e francesa. A palavra “funcionário” seria a mais adequada, mas ela obnubila os matizes hierárquicos do termo, no Estado e na Igreja. No caso, o texto fala com clareza de funcionários de alta situação, não de subordinados. A magistratura maior é a do rei, mas ele pode ser pensado como “primeiro entre os iguais”. Max Weber é uma rica fonte teórica e histórica para o exame desse passo.
27 Cf. Gierke, Otto : Natural law and the theory of society 1500 to 1800 (Boston, Beacon Hill, Beacon Press, 1960), pp. 70 ss.
28 Uso aqui a tradução brasileira, infelizmente não integral :Joahnnes Althusius, Política (Rio, Topbooks, 2003), pp. 349 ss.
29 “…quando a força manifesta é utilizada pelo magistrado contra pessoas privadas, é permitido que elas defendam suas vidas pela resistência, pois, nesse caso, as leis que constituem os reis e o direito natural (jus naturale) armam essas pessoas contra o magistrado que usa a força contra a vida”. Ed. brasileira citada, p. 356.
30 Sigo literalmente o ainda hoje instigante exame de Althusius, feito por Otto Gierke, no clássico Johannes Althusius und die Entwicklung der naturrechtlichen Staatstheorien. Uso a tradução italiana : Giovanni Althusius e lo sviluppo storico delle teorie politiche giusnaturalistiche, contributo alla storia della sistematica del diritto (Torino, Einaudi, 1974). O livro inteiro é útil para o estudo dos monarcômacos.
31 George Buchanan, De Maria Scotorum regina, totaque eius contra regem coniuratione, foedo cum Bothuelio adulterio, nefaria in maritum crudelitate & rabie, horrendo insuper & deterrimo eiusdem parricidio: plena, & tragica planè historia. [By George Buchanan] (Actio contra Mariam Scotorum reginam … [By Thomas Wilson] – Literae reginae Scot. ad comitem Bothuelium scriptae). [London] : [publicado por John Day], [1571] e George Buchanan, Ane detectioun of the duinges of Marie Quene of Scottes, touchand the murder of hir husband, and hir conspiracie, adulterie, and pretended mariage with the Erle of Bothwell. And ane defence of the trew lordis, mainteineris of the Kingis graces ctioun [sic] and authaoritie [sic]. Translated out of the latine quhilke was written by G.B. [i.e. George Buchanan]. [London] : [John Day], [1571].
32 As notas seguintes são extraídas do excelente trabalho, já antigo mas importante em nossos dias, de Paul Mesnard : L´ Essor de la Philosophie Politique au XVIe Siècle (Paris, Vrin, 1977), pp. 355 ss.
33 George Buchanan, De iure regni apud Scotos, dialogus, authore Georgio Buchanano Scoto. [Edinburgh] : [Publicado por John Ross], 1579.
34 O Rei, segundo Tiago 1º é “ a manner or resemblance of Diuine power vpon earth,” ele pode, à similitude divina “make and vnmake their subiects: they haue power of raising, and casting downe: of life, and of death …. They haue power to exalt low things, and abase high things, and make of their subiects like men at the Chesse: a pawne to take a Bishop or a Knight, and to cry vp, or downe any of their subiects, as they do their money. . . . For to Emperors, or Kings that are Monarches, their Subiects bodies & goods are due for their defence and maintenance. . . . Now a Father may dispose of his Inheritance to his children, at his pleasure: yea, euen disinherite the eldest vpon iust occasions, and preferre the youngest, according to his liking; make them beggars, or rich at his pleasure; restraine, or banish out of his presence, as h *ee findes them giue cause of offence, or restore them in fauour againe with the penitent sinner: So may the King deale with his Subiects.” Speech in Parliament, 1609-10. Charles Howard McIlwain cita a passagem na sua Introdução às Obras de Tiago 1º, editadas eletrônicamente no Perseus Project. Cf. também The workes of the most high and mightie prince, Iames by the grace of God, King of Great Britaine, France and Ireland, Defender of the Faith, &c. Published by Iames [Montagu], Bishop of Winton, and Deane of His Maiesties Chappel Royall (London, Robert Barker and John Bill, 1616).
35 Cf. Wootton, D. (Ed.) : Divine right and Democracy, (Penguin, 1986) (com o texto do Killing No Murder); Coward, B. . Oliver Cromwell (Longman, 2000); Brailsford, H.N. : The Levellers and the English Revolution (Spokesman Books, 1976).
36 Uso o texto original inglês publicado no livro de Olivier Lutaud: Des Révolutions d´ Angleterre à la Révolution Française. Le tyrannicide & Killing no Murder (Cromwell, Athalie, Bonaparte), (Haia, Martinus Nijhoff, 1973), pp. 374 ss. Há no mesmo volume, uma tradução francesa da época.
37 Otto Gierke : Giovanni Althusius…ed. cit. p. 234 ss.
PROGRAMAÇÃO DA IV SEMANA JURÍDICA DA FTC
“ZETÉTICA E DOGMÁTICA: UMA CONCILIAÇÃO POSSÍVEL”
18 a 20 de maio de 2011
Salvador
Prof. Dr. Roberto Romano da Silva Unicamp
Zetética. Um olhar filosófico.
La tolleranza non comporta affatto la rinuncia alle proprie ferme convinzioni, ma nasce dall ‘idea che la verità abbia tutto fa guadagnare a sopportare l ‘errore altrui (Norberto Bobbio, Lode della Toleranza).
O tema é a zetética e a dogmática. E uma sugestão a mais, relativa à sua possível conciliação. Devemos assumir grande prudência em problemas básicos da cultura. E ainda mais quando os desafios brotam no terreno da filosofia e do direito. Contentar-me-ei em expor alguns prismas pouco debatidos quando a zetética é discutida pelos especialistas desta ou daquela área do saber. Quanto à dogmática no campo jurídico, não faltam excelentes analistas para examinar o problema. Quanto à possível reconciliação de ambas as formas de pensamento, direi minha opinião no final.
A zetética foi posta em forma atualizada, na reflexão sobre o direito, por Theodor Viehweg. ( ) Como se espera de um labor erudito e alerta, a idéia de busca proposta por ele, tem fundamento nas formas céticas da filosofia que, elas mesmas, em suas origens supõem a leitura dos textos platônicos. Há, na intelecção retórica a que se liga a zetética, a marca indelével do ceticismo. ( ) A atitude básica na análise jurídica é a de não aceitar argumentos abstratos como base última da lei como se fossem princípios imutáveis da moralidade, afastando também a tese de que o discurso da lei pode ser dito racional pelo consenso. Ela recusa, ademais, a prova da certeza estrita da lei baseada em técnicas como a da lógica simbólica. Como adianta o comentador de Viehweg, JamesHerget, o ceticismo daquela proposta não é completo. Ela nega o sistema perfeito a acabado do direito, mas reconhece que a lei existe na sociedade, que o ensino da lei exige habilidades teóricas, as quais, por sua vez, podem ajudar os operadores do direito e a cidadania.
O ponto inicial, no entanto, gira ao redor da dúvida e do desacordo na interpretação do elemento jurídico. A interpretação, adianta Viehweg, parte do que é problemático. É tarefa árdua conciliar, na maior parte das vezes, os grandes princípios sistêmicos e as decisões legais. A lei, como em todo pensamento cético, é matéria de opinião, mesmo que esta opinião seja a assumida pela comunidade dos operadores do direito. “O estatuto dos livros (a ‘lei’ segundo os leigos) não impõe a si mesmo, nem comunica um significado sem ambigüidade e sem variações para cada contexto. O significado é fornecido pelas pessoas que devem usar a lei; logo, a opinião dos advogados e juízes sobre o que deve ser a lei tem prioridade sobre as fontes formais”. ( ) Em suma, para dizer com o próprio Viehweg, “o debate, manifestamente, permanece como a única instância de controle” ( ) O professor alemão, com certeza, sabia o vespeiro em que punha os dedos. Deixo de entrar nos árduos campos da tópica e da retórica por ele propostos. Meu intento é mais modesto, mas o creio de alguma relevância, porque em análises sobre a zetética noto que, não raro, atribui-se à filosofia coisas distantes do efetivamente enunciado por seus cultivadores, de Platão aos nossos tempos. Claro que ainda existem acadêmicos para os quais o labor filosófico é apenas acessório, perfumaria nos cursos de direito. Talvez seja saudável nos estender um pouco mais do que o habitual na origem e significados dos conceitos. O problema, os equívocos entre filósofos e juristas, é antigo e nos séculos passados causou batalhas. Há um saboroso escrito de Jean-Louis Gardies cujo título denuncia a tensão entre filósofos e pensadores do direito: “Sobre alguns malentendidos entre Hegel e os Juristas”. Ali, o autor se esmera em recolher farpas de ambos os lados, o que poderia explicar a causa da ordem filosófica ser assumida, nas Faculdades de Direito, como “perfumaria”. Creio existir naquele artigo uma trilha para que as desavenças de lado a lado sejam, pelo menos, clarificadas. Como tal alvo está muito distante, fico no terreno filosófico, nas formulações técnicas sobre a zetética.
Começo o exame semântico ao redor de Platão. O apóstolo Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios, chama os judeus de povo semiótico. Os gregos são ditos, por ele, “povo zetético” ( ) E dos gregos, Platão foi o zetético por excelência. Inicio, portanto, mencionando o trecho da República sobre a justiça e o ato da busca, essencial na zetética. Estamos na altura do livro 4, linhas 432 b-d. A justiça é afirmada como a essência do Estado excelente. Sócrates convida Glauco a imitar na sua busca "alguns caçadores (κυνηγέτας) que formam um círculo ao redor da moita (θάμνον). Precisamos de toda nossa atenção para evitar que a Justiça (δικαιοσύνη) não ache uma saída por onde escapar e, travestida, escape de nossos olhos". Tendo recebido a anuência de Glauco, Sócrates recomenda : "abra, pois, os teus olhos, fazendo todo o possível para percebê-la no caso de, talvez, tu a vejas antes de mim, assinalando-a". ( )
Ao longo dos textos platônicos surge a metáfora da caça quando se trata de buscar o verdadeiro, o justo, o bom, o belo, o político. ( ) Nas Leis, ele diz que o ensino dos jovens deve prevenir contra a caça aos animais e aos homens. A primeira deve ser regulamentada, a segunda será vista como indesejável. Caçar homens é dar-lhes o estatuto de feras. Os jovens não podem considerar que outros seres humanos são feras, monstros. No diálogo Eutidemo (290b 7 – c6), Sócrates sugere que a arte do general é a mais apta a fazer os homens felizes. Clinias, o interlocutor, não cai na esparrela armada pelo filósofo: o trabalho do general entra mais na arte da matança dos homens. A caçada tem um nome específico no argumento de Clinias : “ nenhuma das artes dos pesquisadores (tès thèreutikès) ( ) propriamente ditos, não são ligadas em algo além de pesquisar e colocar a mão sobre o bicho. Desde que o agarraram, não são capazes de usá-los e os caçadores e pescadores o passam ao cozinheiro. Do seu lado, os geômetras e calculadores –pois eles também são pesquisadores pois não criam figuras mas descobrem as que existem- ignoram o seu uso, mas apenas as pesquisam. Eles passam os seus produtos aos dialéticos que podem aproveitar suas descobertas”. O caçador da verdade e da justiça, portanto, precisa ter seu trabalho completado pelo dialético, mas o caminho do saber é uma caça, uma pesquisa, uma zetétike.
Se o modelo da caça impera nas relações entre indivíduos e grupos, na polis ou no mundo grego mais amplo, temos a barbárie. Agindo assim, não surge nenhuma amizade entre eles e o coletivo está quebrado a partir de seu interior. A caça não tem um fim em si mesma, bem como os saberes amealhados nas pesquisas matemáticas ou éticas. O fim da primeira é dado pelo cozinheiro, o das segundas se encontra no dialético que as sintetiza num sistema lógico coerente e universal. Mas a pesquisa e a sabedoria última se conciliam, como devem ser conciliados os indivíduos e o coletivo. Platão diz no mesmo livro que a cidade só pode ser forte se nela as dores e alegrias do indivíduo constituírem as dores e alegrias de todos. E dores e alegrias de todos inclui a dos indivíduos. Se na cidade muitos riem e alguns choram, é marca de injustiça. Saber sem pesquisa não existe, pesquisa sem a síntese universal é tarefa infinda e inútil.
Francis Bacon, inspirador da moderna forma científica, indicou a distinção entre pesquisa e saber sistemático ao figurar animais com os defeitos da pura zetética ou do vazio dogmatismo. Existem, diz ele, intelectuais que acumulam dados e dados sem pensá-los numa síntese. Como as formigas, acumulam e cortam os elementos empíricos ou doutrinários, mas nada brota de seu labor. Existem os intelectuais que tecem verdades lógicas em conceitos finíssimos, os sistemas doutrinários e dogmáticos, os cérebros aranha. Mas como as teias, aqueles sistemas se rasgam diante dos fatos e documentos que os desmentem. Existem, finalmente, os intelectuais que praticam a zetesis, nela recolhem os dados, mas os pensam e produzem conceitos informados pela ordem lógica, com auxílio dos elementos empíricos. As formigas zetéticas não produzem sínteses que orientem a reflexão dos saberes, as aranhas sistemáticas fazem sínteses, sem preocupação com os dados da experiência. As abelhas sintetizam e recolhem o diverso das informações que vêm da ordem empírica. Seus enunciados estão repletos de fatos e pensamentos unidos, com sentido. ( )
A figura da caça mostra uma atitude epistemológica e axiológica fundamental: no mundo empírico, todos os partícipes da vida coletiva devem caçar os conceitos, sendo que o resultado de tal exercício não é garantido a priori. ( ) É preciso “agarrar” (lambano) ( ) os conceitos, como se prende nas mãos uma caça. Somente quem vai além das limitações espaço-temporais e subjetivas (devemos recordar que "empírico" significa "dentro de limites"), adquire um saber sólido sobre os valores e os entes. Ninguém, em estado lúcido, pode acreditar em textos filosóficos ou legais, como se eles trouxessem o verdadeiro, o belo, o justo.
A lingua, tanto a dos gestos quanto a oral, segundo Platão, é impotente (ἀσθενές) para expressar e colher conceitos e realidade. Por tal motivo, na Carta Sétima (343a) ele afirma : "quem reflete (e é provido de razão) nunca terá a ousadia de depositar na escrita os seus pensamentos (...) deles fazendo algo imutável, escrito." ( ) A crítica aos textos se espalha nos Diálogos, sendo notável a passagem do Fedro (274b) onde é narrada a recusa do rei Thamus, pela invenção da escrita. ( ) O tema da impotente escrita muito discutido no século IV, em Atenas. Platão nada inova no problema. Alcidamas (Peri ton Sophiston) afirma que “escrever, de fato, não é mais que uma imagem semelhante à que fabrica o pintor. Só o discurso falado é vivo e capaz de adaptar-se à ‘situação’”. ( )
Contra o fetichismo da escrita no saber e na lei, Platão enuncia que "nenhum homem ponderado (σπουδαῖος), preso às coisas sérias (τῶν ὄντων σπουδαίων) se arriscará a deixar, escrevendo, cair no domínio público aporias, expondo-as às maldade e às dúvidas. Quando observamos obras escritas, em forma de leis por algum legislador, ou em outro assunto, notemos o seu caráter (...) Se ele considera tais coisas sérias, assim dispostas em escritos (…) os mortais arruinaram totalmente a sua razão". (Carta 7, 344c). ( ) Dessa descrença no texto da lei, surgem no diálogo Político o elogio da pessoa animada, racional, que exerce o governo. "A arte de legislar, evidentemente", diz o Estrangeiro ao jovem Sócrates, "pertence à arte real" (δῆλον ὅτι τῆς βασιλικῆς ἐστιν ἡ νομοθετική). Mas de outro lado, o melhor está que a força pertença, não às leis, mas ao homem prudente, real (ἄνδρα τὸν μετὰ φρονήσεως βασιλικόν)". Diante do espanto mostrado pelo jovem Sócrates, arremata o Estrangeiro: "Nunca uma lei seria capaz de perceber com acribia o que, para todos ao mesmo tempo, é o melhor e o mais justo e prescrever para todos o que mais vale. Entre os homens, com efeito, como entre os atos, existem dissemelhanças, sem contar que nunca, por assim dizer, nenhuma das coisas humanas permanece em repouso, íntegra, o que não permite à arte, a nenhuma arte, formular nenhum princípio cuja simplicidade valha em toda matéria, em todos os pontos sem exceção e durante o tempo".
A lei, termina o Estrangeiro, “parece um homem presunçoso e ignaro, que não deixa ninguém fazer algo fora do que ele regulou, e também não deixa que ninguém o questione, mesmo que uma idéia nova, exterior aos arranjos normativos por ele impostos, deva ter para o caso individual um resultado melhor”. (294a-c). Não entrarei aqui na vexata questio milenar e no dilema: governam a lei ou os homens? ( ) Sou bem alerta para os usos modernos e anacrônicos da opção pelo indivíduo soberano, do absolutismo assumido por Tiago Primeiro na Inglaterra do século 17 até Carl Schmitt e a proposta de que o "Füher decide o direito". ( )
O que interessa, dada o nosso alvo, é indicar que intelectos, como o de Platão, afirmam a necessária coragem anímica de não aceitar textos, sejam eles de filósofos ou legisladores, sem exame crítico. Caso contrário, surge o pedantismo da letra e o injusto em decisões legais, tanto para atingir sanções positivas ou aplicar sanções negativas aos cidadãos. A imagem da justiça enquanto caça, a recusa da pseudo-estabilidade da escrita, a busca das situações vivas com pessoas vivas, tal é o campo inaugurado por Platão e, sobretudo, pela sua descendência, no ceticismo. Aliás, para os que assumem a metodologia cética, mesmo Platão deve ser visto como dogmático. ( )
A primeira pergunta a fazer é porque enunciações dogmáticas adquirem tal estatuto. Segundo um filósofo alemão de nossos dias, quando interpretamos um “algoritmo matemático, um formalismo lógico, uma fórmula física ou química, dados estatísticos, sintomas médicos de uma doença, não somos incitados à procura do sentido daqueles simbolismos (…) Trata-se de atribuir um sentido conhecido anteriormente às fórmulas ditas ‘vazias’”. Tal procedimento, que não se interroga sobre o sentido de fórmulas e técnicas, aparecem nas ciências naturais e axiomatizadas mas também nas ciências humanas e culturais. Ele designa o campo dogmático. O horizonte de tais procedimentos técnicos é o da teologia, da jurisprudência, da filologia, da pedagogia. Aqui os textos e documentos são institucionalizados e servem de base para as próprias instituições vigentes. Assim, temos os Padres da Igreja (na teologia), os códigos legais dos juristas, os dicionários prestigiosos dos filólogos, os manuais dos professores. “Evidentemente, o bom teólogo, o jurisconsulto ou juiz, o filólogo e o professor erudito não buscam o sentido das palavras ou dos dicta dogmáticos, mas por seus estudos na disciplina eles conhecem o sentido daqueles enunciados de antemão. Eles ficam bem assegurados com a visita aos textos e os usam para solucionar problemas de consciência, a decisão de um processo jurídico, a escolha de uma palavra ou frase equivalente numa tradução, e a apresentação em regra de um tema pelo professor”.
Quanto à zetética, diz o mesmo autor, podemos compará-la à dogmática para perceber sua diferença. A dogmática é estritamente disciplinar e jamais interdisciplinar : ela nada tem a ver com a busca da verdade ou da falsidade, mas se qualifica como boa ou má, elegante ou tola, admitida ou vetada. “Ela assegura a eficácia quando se trata de estabelecer em todo caso um sentido. Por tal motivo, aqui nunca existe um ‘non liquet’, a impossibilidade de estabelecer um sentido, sem o que o texto dogmático cairá em desuso. As regras e os cânones dogmáticos são específicos segundo a disciplina da qual dependem. Mas em conjunto eles aspiram garantir o estabelecimento de um sentido capaz de solucionar ao problema dado. Para tal fim, oferecem comumente alternativas ou uma grande quantidade de possibilidades para a construção do sentido. Na teologia é famosa a doutrina dos quatro sentidos da Biblia ( ); em jurisprudência, a alternativa do sentido histórico (vontade do legislador) ou sistemática (razão da lei), e além disso a interpretação literal, restritiva ou extensiva. A filologia oferece multiplas sendas para as traduções: literais, metafóricas, poéticas, arcaizantes, modernistas, etc. No ensino (…) se adapta o sentido dos manuais à capacidade dos estudantes para uma interpretação fácil e simples (pode ser superficial) ou então densa e complexa (pode ser profunda). Evidentemente as palavras “dogma”e “dogmática” perderam seu prestigio de outrora e por causa da batalha das Luzes contra a fé, a teologia, as autoridades”. ( )
Vejamos a zetética na história do pensamento. Para exercer a razão crítica é preciso suspender o juízo, uma técnica radical ou moderada, mas indispensável. O primeiro uso intencional da zetética, com fins críticos, encontra-se em Pirro e Timão no terceiro século AC. O que ambos visavam com o termo? Recusar qualquer tese que não fosse examinada pela balança do pensamento. Os pirrônicos se intitulam skeptoi, ( ) cuja tradução latina encontra-se em quaesitores (os que buscam) e consideratores. Vimos na Carta Sétima que, diante de aporias graves do pensamento, como é o caso da verdade e da lei, só pessoas não ponderadas ousam escrever sobre elas, perdendo a essência da questão dificultosa. Quem, por não ter agarrado o conceito, não possui certezas fundamentadas (epistême), ao lavrar o verbo em letras visíveis trai a razão. Quem dispõe de bases sólidas para pensar as aporias, não as "resolve" de imediato, busca prudentemente, sem interrupção, as suas razões.
O que é uma aporia ? O termo significa dificuldade de ir além, ultrapassar uma porta (poros), ( ) não resolver de imediato dificuldades epistêmicas ou éticas. Em termos simples: trata-se de um assunto para o qual as saídas foram fechadas. O que faz o cético, seguindo o veto platônico de confiar nas palavras, sobretudo as escritas? Ele suspende o juízo para investigar a coisa. Ele procura, sendo assim um zetetes, integrando o número dos quaesitores. Os céticos seguram a pena e a lingua antes de enunciar razões sobre as coisas e as pessoas. E se limitam a dizer "que a verdade ainda não foi achada, não dizem que ela é inacessível. E não desesperam de achá-la um dia e a buscam. Eles são zetéticos". ( ) E temos a impossibilidade filosófica de aproximação entre zetética e dogmática. A primeira, em filosofia, parte da constatação seguinte: os dogmáticos precipitam as idéias no papel e na lingua, não se demoram no exame de todos os lados, no fato a ser discutido, afirmam como absoluto o relativo, incompleto. E transformam terminam afirmando a sua verdade como única. Recordo uma análise de Erich Auerbach sobre o tema. Auerbach inventa a figura do holofote : o mundo é palco de infinitas cenas. O apressado joga a luz sobre uma ou outra delas. Ele persuade a platéia de que fala o único verdadeiro. Mas, argumenta Auerbach, da verdade faz parte toda a verdade. As cenas ocultas também devem ser iluminadas, o que demanda tempo. “O público sempre volta a cair nestes truques, sobretudo em tempos de inquietação, e todos conhecemos bastantes exemplos disto, do nosso passado recente (Auerbach se refere aos totalitarismos do século 20, RR). Contudo, o truque é, na maioria dos casos, fácil de ser descoberto ; mas falta ao povo ou ao público, em tempos de tensão, a vontade séria de fazê-lo; quando uma forma de vida ou um grupo humano cumpriram o seu tempo ou perderam prestígio e tolerância, tôda injustiça que a propaganda comete contra eles é recebida, apesar de se ter uma semiconsciência do seu caráter de injustiça, com alegria sádica”. ( )
A pressa ideológica espalhou doutrinas genocidas no século 20 e definiu judeus, ciganos, eslavos, homossexuais e outros integrantes das cenas coletivas como alvos a serem destruídos com alegria sádica. O truque da propaganda dogmática teve acolhida devido ao tempo rápido na circulação das palavras. Se carrega ódio e intolerância, o verbo mata em cronologia ensandecida. Contra a rapidez doutrinária se estabelece a cautela prudencial da zetética. Um obstáculo na pesquisa filosófica, adiantam os céticos, encontra-se na pressa em chegar ao verdadeiro. Sexto Empírico buscou, entre outros, combater “a procipitação (propéteia) dos dogmáticos” ( ) Quem é o dogmático, segundo os zetéticos? É quem ousa dizer que encontrou o verdadeiro e o justo, desconsiderando as outras mentes humanas. Na sua pressa em se afirmar e impor aos demais as suas teses, eles são presunçosos, demonstram amor exagerado de si mesmos, autoestima tombada no excesso denominado hybris, orgulho excessivo que leva à perdição do vaidoso e da sociedade. ( )
Há na República platônica um ponto essencial quando se trata de garantir a polis : o controle da filáucia. O que produz a tirania? O amor de si mesmo. A filáucia é o contrário da amizade. Nas Leis (Livro 5, 731 d) é sintomático que o sujeito acometido de idiotismo seja comparado ao “amante, cego no relativo ao ser amado, sendo péssimo juiz das coisas justas, boas, nobres”. A paixão impede o saber e a prática do bem. “Há um grande mal (…) que o maior número de homens tem, e que lhes é congenital. Com ele, cada um é cheio de auto-indulgência e ninguém dele escapa. Este mal chama-se amor próprio. A ternura do homem para consigo mesmo pertence à sua natureza, ela causa nossos erros pelo afeto que temos para conosco (…) O grande homem não acaricia nem a si mesmo, nem as coisas de sua propriedade, mas o justo.” O tirano exerce o auto-erotismo e suprime os inimigos “mas também os que, por terem sido seus iguais ou cúmplices, a ele se dirigem com franqueza”.(República,8,567b)”.( ) O amor que os indivíduos têm para consigo mesmos desatrela a luta pelo domínio, onde todos são inimigos de todos.
A arrogância une-se à propéteia, pressa em falar ou escrever verdades e leis. Ao orgulho os zetéticos chamam, na trilha platônica, filautia, amor exagerado de si mesmo : os dogmáticos, para os zetéticos, são “phílautoi que, explícita ou implicitamente ‘dizem ter de a si mesmos preferir-se com relação aos outros homens no julgamento das coisas, mas sabemos que sua pretensão é absurda (átopos)’: sendo parte na discussão filosófica sobre o julgamento de aparências conflitantes, eles incorrem em inegável petição de princípio ao assumir aquela preferência, antes mesmo de o julgamento começar. E, de fato, no que respeita à verdade, os dogmáticos são homens que, por seu amor de si (philaútos) ‘dizem tê-la, eles próprios, sozinhos descoberto”. ( )
De onde vem o termo "ceticismo" ? Provavelmente de Homero que, na Odisséia (Canto 12, versos 244-249), usa spekptomai no sentido de "olhar para todos os lados afim de observar. A palavra significa olhar atentamente rumo a duas ou mais direções possíveis. Em Sófocles (Édipo Rei, 584) o termo tem o sentido de olhar e refletir. ( ) Em Platão, voltemos a ele, no contexto da polêmica com Trasímaco (a justiça é atributo do mais forte), após uma investida do sofista, Sócrates lhe diz, com a ironia habitual: "Trasímaco, não sejas duro conosco. Se eu e meus amigos cometemos erros na consideração do problema, fiques seguro que erramos invontáriamente. Porque não podes supor, seguramente, que se a nossa busca (σκέψει ) jamais enganaríamos uns aos outros, fazendo concessões na busca (ζητήσει), desperdiçando nossa chance de encontrá-lo. Estamos à busca da justiça (δικαιοσύνην δὲ ζητοῦντας), uma coisa mais preciosa do que o mais fino ouro, e seríamos loucos (ἀνοήτως ) por dar passagem um ao outro e não dedicar o mais sério (σπουδάζειν) de nós para descobrí-la". (República I, 336e)
A pesquisa (zetesis) do excelente e do justo exige o que é mais sério. Já vimos: para o filósofo, redigir leis e verdades não se encontra entre as tarefas mais sérias da existência. Pelo contrário, designam atividades ensandecidas porque procuram encarcerar a mente, como na mumia, em bandagens rígidas, dogmáticas. Chegamos ao ponto mais delicado do ceticismo. Tudo pode ser motivo de busca, zetesis, mas sempre num mar revolto que, ele, campo do fenômeno, não pode ser procurado porque se oferece de imediato para todos os que pensam. Não podemos dizer como as coisas são "realmente" por detrás de sua aparência, o ser em si das coisas é algo "azetetos". De outro lado, nossas impressões também são postas como algo"azetetos", não podemos perguntar sobre elas: as coisas aparecem, mas saber o como e o porque elas surgem é impossível. ( ) Em todos os lados do ato de conhecer e fazer é preciso a suspensão do juízo para não cair na ilusão dogmática que, no fim das contas, é delírio e loucura.
Quando se evoca em filosofia a atitude zetética, as ressonâncias não trazem apenas a idéia de busca, de pesquisa, mas de juízo crítico, pesagem das teses e antíteses, decisão de jamais "resolver" aporias da mente e da ética. Note-se, pois, que aparece algum ruído quando, ao comparar a dogmática à zetética, se indica que nesta última temos as ciências (exatas ou humanas) e na primeira as ordens legais indiscutíveis. Nullius addictus jurare in verba magistri. A exigência de Horácio (Epistolas I, 14) serve aos que, nos tempos modernos, recolhem as lições de Platão. A recusa do princípio de autoridade invadiu as ciências e artes, destas à política. Dizer que um enunciado é verdadeiro porque dito ou escrito por Aristóteles ou um mestre do direito, significa renunciar ao uso da própria razão.
Como diz Montaigne, pioneiro da liberdade anímica, "o juízo tem, em mim, uma sede magistral". A metáfora do tribunal da mente passa a ser determinante no mundo noético. Atitude crítica exige a pesagem das palavras. Não por acaso o símbolo assumido pelos zetéticos da modernidade, a balança, é o mesmo da justiça. O cuidado para não aceitar verdades impostas exige que os termos sejam ensaiados antes de sua circulação no mercado político e social. Os Ensaios receberam o nome de "conatus", esforço na ação física ou intelectual. Em Montaigne e na ordem moderna o "eu liberta-se, pensando, e pensa, marchando"( ) A filosofia está sempre em movimento, nunca parada, dogmática. ( ) A liberdade, diz um comentador do filósofo, "não é um estado, repouso, mas um ato ou função, um aspirar, um esforçar-se".
Temos outro elemento na filosofia cética ao redor do ensaio. Tal palavra deriva do latim exagium. Ela era usada na avaliação das moedas em seu toque, título, quilate. Ensaiar é examinar : monetam inspicere. Na Casa da Moeda um ensaiador as examina com a balança, também símbolo dos céticos. É preciso, confidencia Montaigne, ensaiar (exagiare) as idéias, pesá-las, descobrir o metal precioso nelas posto ou a escória tida pela maioria como preciosidade. Na pesagem das palavras está suposta outra noção. O vocábulo "pensar" liga-se ao ato de pesar. Pensar vem de pensare, ponderare, pondus. Um pensador pesa juízos, como o ensaiador, as moedas. "Eu não conto meus empréstimos, eu os peso".
No mercado comercial, político, religioso, diz Montaigne, "não se olha mais o que as moedas pesam e valem, mas cada um as recebe segundo o preço que a aprovação comum e a cotação lhe dá". A propriedade das idéias é de todos os homens. Mas nem todos são alertas para pesar o seu valor e se elas servem para as operações para quais são movidas. Não raro idéias pouco valiosas compram decisões governamentais, magistrais, religiosas. Montaigne evoca o envenenamento noético. Doutrinas falsas mostram-se letíferas e perigosas. Contra o dogmatismo sectário que tende a encarar as suas próprias teses como absolutas, é preciso a relativização, a crítica. Todo o ideário de Montaigne se resume na figura da balança: "Que sei eu? Como eu coloco numa balança". Veneno. Palavra para designar fanatismos fantasiados de ciência moderna, sobretudo no século vinte.
Tais aporias nos levam à uma terceira senda entre a zetética e a dogmática. Imanuel Kant tentou evidenciar, já no primeiro prefácio à Crítica da Razão Pura, que as duas devem ser ligadas ao controle da razão para o bem coletivo. A primeira, no seu entender, é despótica. A segunda causaria desordem. ( ) Nem cética e nem dogmática, a crítica examinaria os fundamentos e as pretensões dos conceitos que pretendem ostentar o título de ciências, em todo e qualquer campo intelectual e volitivo. Os profissionais do Estado aludidos, que esposaram as teses da eugenia, médicos, juízes, engenheiros, usaram a razão. Mas não pesquisaram os limites daquela força intelectual. Por outro lado, não examinaram a própria consciência na busca de imperativos éticos que os impedissem de cair na animalidade. Como diz Goethe no Fausto, uma pessoa assim usa a razão, mas de maneira a se tornar mais feroz do que todas as feras : “Er nennt‘s Vernunft und braucht’s allein, Nur tierischer als jedes Tier zu sein
É contra a pretensão das escolas ditas superiores pelos governos (medicina, direito, teologia) que se voltam as três críticas kantianas. Os profissionais da medicina, do direito, da teologia (não raro, da filosofia) usam os enunciados racionais na ausência da crítica. O dogmatismo, diz Kant, é uma “confiança cega no poder que tem a razão de se ampliar a priori sem crítica, por meio de conceitos puros, preocupada apenas com o seu aparente sucesso”. E confessa o mesmo Kant: “eu encontrava pouco a pouco muitas proposições que consideramos objetivas mas que, de fato, são subjetivas, isto é, contêm as condições sob as quais somos nós mesmos que entendemos e concebemos o objeto”. Dois caminhos: tombar no ceticismo que suspende sempre o juízo ou se afastar da trilha dogmática, desesperando da ciência e da ética, ou examinar o poder da razão, os seus limites. Este foi o caminho de Kant : nem zetética pura nem dogmática, mas a crítica da razão pura, antes dos enunciados científicos, morais ou artísticos. Mas para I. Kant “o ceticismo, com fundamento no juízo circunspecto, advertido pela experiência, é a passagem necessária do dogmatismo para a filosofia crítica” ( ) Kant nada disse a mais do que outros pensadores adiantaram. Pierre Bayle, ao falar a propósito de Pirro e dos céticos adianta que eles foram chamados de “céticos, zetéticos, eféticos, aporéticos, ou seja, examinadores, inquisidores, suspendentes, dubitantes. O que mostra que eles supunham ser a verdade possível de ser encontrada, e que eles não decidiam que ela era incompreensível” ( )
Contra os dogmáticos de todas as escolas, pensa Kant, o procedimento cético é um antídoto eficaz. Como Platão, no entanto, ele não absolutiza a dúvida. Em Platão, no mesmo Eutidemo que citei acima, o argumento cético traz sempre admiração (ἀεὶ θαυμάζω) a Sócrates : os céticos não apenas arruinam (ἀνατρέπων) os pensamentos alheios, como os seus próprios. ( ) A corrosão das perguntas incessantes, a zetesis infinda, termina por não chegar a nenhum ponto sólido no saber e na ação. Kant acolhe o repto platônico ao ceticismo mas, como Platão, usa as técnicas que abalam as certezas como instrumento para arrancar do intelecto escórias doutrinárias. O ceticismo absoluto, segundo Kant, “ao renunciar a afirmar todo conhecimento, anula todos nossos esforços para assegurar a posse de um conhecimento do que é certo”( ) Na guerra contra o dogmatismo, o procedimento cético não chega à vitória completa : “seu sistema é posto, por ele mesmo, em dúvida, visto que suas objeções só repousam em fatos, e fatos contingentes, e não em princípios capazes de nos obrigar à renúncia ao direito das afirmações dogmáticas” ( ) Mas o método que consiste em suspender o juízo presta relevantes serviços à crítica. Se o ceticismo absoluto prejudica o conhecimento e a moral ele “é útil e oportuno enquanto método, se o entendermos como o modo de tratar uma coisa como incerta e conduzi-la ao mais alto grau de incerteza na esperança de encontrar no caminho o traço da verdade. Este método filosófico consiste em descer às fontes das afirmações e objeções e aos fundamentos sobre os quais elas repousam, método que permite esperar atingir a certeza”. ( ) A zetética é o modo pelo qual se encaminha a resolução de um problema antigo, o do ensino filosófico. Não é possível ensinar a filosofia, mas a filosofar. “Ninguém pode se dizer filósofo no sentido estrito, ou mestre da sabedoria, de modo que não é possível ensinar filosofia como doutrina constituida no sentido dos saberes positivos, as apenas a filosofar segundo um encaminhamento zetético, todos e cada um podem ser tornar filósofos na acepção do conceito cósmico da filosofia que visa os fins últimos da razão humana”. ( )
Para o conhecimento certo é necessário arrancar as camadas doutrinárias que se acumularam na mente humana. A imagem mais própria para esta situação vem dos textos platônicos e foi usada por Rousseau: a estátua do deus Glauco. ( ) A ferocidade dogmática não é vencida pelo método cético. Mas este último afasta certezas dos que operam com a razão sem críticas e limites. O procedimento kantiano não discrepa, assim, do uso feito por Descartes na dúvida metódica e, mesmo, hiperbólica. ( ) Mesmo Pascal usa a dúvida cética, na medida em que ela serve para distinguir os vários tipos de seres humanos. Existem os que encontraram Deus, os que o procuram sem o encontrar e, finalmente, “os outros que vivem sem procurá-Lo. É preciso reconhecer que a expressão de Pascal é muito apropriada, na medida em que ela dá conta também da natureza ‘zetética’ da dúvida pirrônica, sempre aberta à pesquisa, o que é o caso do segundo tipo descrito pelo apologista, enquanto o terceiro, se não alude simplesmente ao gênero mais comum dos ‘belos espíritos’, rebeldes, irreligiosos e libertinos nos costumes, pode bem se aplicar à forma de dúvida que permite economizar a crença, rebatendo o espírito ao nível dos fenômenos e neutralizando todo apelo aos ‘dogmata, pela simples constatação do equilíbrio instaurado entre as diferentes opiniões e os diversos fenômenos, uns opostos aos outros”. ( )
O lado corrosivo da dúvida cética, presente na filosofia moderna em autores como Descartes e Pascal ( ) (embora, finalmente, ela tenha sido abandonada) levantou suspeitas gerais contra a filosofia crítica, demasiado próxima aos movimentos das Luzes e da Revolução Francêsa. ( ) Não por acaso as escolas arrogantes e os governos idem ergueram barreiras, entre elas a da censura, contra os textos kantianos. Já no intróito da Crítica da Razão Pura, Kant proclama que nosso tempo é o da crítica, à qual tudo deve ser submetido, pois não mais nos contentamos com a aparência do saber. A razão não pode, por nenhuma defesa, atacar a liberdade da crítica sem arruinar a si mesma e sem atrair suspeitas que a prejudicam. Contra o dogmatismo e o ceticismo, a crítica permite provar sua ignorância relativamente a todas as questões possíveis de uma certa espécie. Quem não submete a sua razão à crítica, termina sempre com saberes inquestionados, mas no mínimo derrisórios. ( )
Faltou aos operadores do Estado e aos acadêmicos, a crítica de sua própria razão, o reconhecimento de seu próprio caráter, a distância de seus atos em relação a toda beleza. A pessoa que praticou um ato ilegítimo e tenta se desculpar “percebe sempre que o advogado que fala em seu favor não pode reduzir ao silêncio a voz interna que a acusa, se ela tem consciência, de estar em seu bom senso quando cometeu o ato injusto em plena liberdade”. A consciência moral é a faculdade judiciária que julga a si mesma. Quando se diz, adianta Kant, “este homem não tem consciência”, o que se afirma é que ele não obedece o veredicto do seu juiz interno. E tal sentença, no tribunal da consciência, é infalível. É impossível o engano, o que foi feito, traz a chancela da vontade que não se dobrou ao imperativo moral da própria consciência. Tal é a essência do antissemitismo, do racismo e de outras expressões que encontraram nos dogmas da ciência eugênica as suas razões. ( )
Assim, todos os que praticam atrocidades em nome da ciência ou da razão de Estado, não merecem desculpas. Sabemos o quanto, em Nuremberg e depois, aqueles servidores do poder tentaram salvar a própria pele descarregando todo o mal sobre indivíduos poderosos, como Hitler, ou em organizações burocráticas (foi o que Carl Schmitt alegou no seu julgamento), ( ) ou no “espírito do tempo”. Eric Voegelin mostra o quanto tais desculpas são esfarrapadas, não poupando em sua análise do elo entre Hitler e os alemães as igrejas, as universidades, os tribunais, a inteira sociedade alemã. ( ) Não é segredo para ninguém que o programa para a denazificação da Alemanha foi um fiasco, quando não pura absolvição silenciosa de notórios nazistas, aproveitados na ordem democrática por seus conhecimentos burocráticos, financeiros, etc. Voegelin també não poupa este crime que significa uma anistia silente dos carrascos. ( )
Zetética e dogmática, uma conciliação possível? ( ) Talvez, desde que ambas passem pela crítica da razão, científica, moral, artística. E para a tarefa, pensadores da filosofia, das ciências naturais e humanas, do direito e da teologia têm dedicado os seus melhores esforços, pelo menos desde o distante século XVIII a era das Luzes. ( ) Em sua conclusão do livro relevante sobre os embates da zetética contra o pensamento dogmático, Marcello Gigante recorda a importância atual da filosofia que duvida. Mas indica que ela não pode ser proposta a quem deseja viver e sobreviver, sobretudo quando ela afasta as opiniões firmes. “Já David Hume escrevera que ‘um pirrônico deve reconhecer algo, que toda a vida humana deve perecer se os seus princípios devessem ser universalmente e prontamente prevalecer. Todo discurso, toda ação acabaria imediatamente e os homens ficarão numa letargia total, até que a necessidade da natureza, insatisfeita, ponha fim à sua existência miserável’”. O cético enxerga a diversidade, alí onde o dogmático visualiza a igualdade dos entes. Gigante narra uma visita sua a Nova York : “no World Trade Center, a última maravilha do mundo, os dois prédios exibem mais de cem planos, e me apareceram em julho diversos e iguais, iidem et alii, segundo a distância e o ponto de observação. Durante o passeio pelo Hudson, um parecia menos alto do que o outro; em terra firme, na distância mínima, os dois colossos, ousado e elegante êxito das estupenda técnica dos nossos dias, surgiam como eram, iguais. Após a dúvida, tive a certeza, depois da aporia, o dogma: os edifícios têm a mesma posição, a mesma estrutura, a mesma altura mesmo que, às vezes, observados à distância, forneçam a sensação de serem diversos; a diversidade se revela um aparecer, a igualdade um ser (…) Vejo, erro, conheço, distinguo, julgo: o processo gnoseológico conduz à uma certeza que está no limite, única e não dúplice, verificada e não contradita pela experiência”. ( )
O exemplo é terrível. Após o 11 de setembro, a certeza sobre os prédios gêmeos, tão acarinhada por Gigante, sumiu na poeira das bombas e dos aviões. E agora, mesmo o idealizador dos ataques que os destruíram desapareu na sombra da morte. Seu nome e figura estarão de volta em novos atentados ? Não sabemos. David Hume tem razão: viver sempre na dúvida conduz à letargia e à morte. Mas viver sob o sono dogmático violenta fenômenos e consciências. Kant, desperto por Hume do sono metafísico, tentou uma terceira via entre a zetética e a dogmática. Vale a pena, antes de exibir saberes infalíveis na ordem médica, política, econômica, jurídica e outras, meditar sobre as três críticas kantianas. E recordar a lição preciosa da zetética: a tolerância. Esta, como diz Noberto Bobbio, é o caminho para se atingir a verdade. Ao comentar as teses polêmicas de Alistair MacIntyre ( ) que defendia o retorno da reflexão sobre a virtude no pensamento ético, Bobbio, no mesmo átimo em que discute a doutrina kantiana da moral e do direito confessa, do seu modo polido: “sempre hesitei em aceitar drásticos contrastes, porque eles favorecem unilateralmente atitudes relativas a intangíveis assuntos, como os ligados à filosofia, onde a verdade nunca é peremptória, definitiva e indiscutivelmente posta em um lado e também por respeito à interpretação histórica, este imenso depósito disposto aleatoriamente com mil coisas, sendo perigoso acima de tudo, e inconclusivo, isolar um entre muitos” ( )
A crítica kantiana alicerça o seu programa na liberdade e na autonomia de todos os entes humanos. Ela não se dirige apenas aos especialistas, as elites sábias que manipulam massas domesticáveis. ( ) Nela, o alvo é a maioridade universal do gênero humano. E tal fim se atinge com a procura, a caça da verdade. Sem mais.
Ética e Decoro Parlamentar
Primeiro Seminário Sobre Ética e Decoro Parlamentar, Câmara dos Deputados, Brasilia.
Dr. Roberto Romano/Unicamp.
No capítulo quarto do Tratado Político, Spinoza —o autor da mais importante ética moderna— discute os erros dos governos e dos que legislam em nome do povo soberano. Em primeiro lugar, ele analisa o problema que preocupou os pensadores gregos, os profetas de Israel, os juristas medievais e da Renascença e hoje é um item espinhoso dos regimes democráticos.( ) Seria o poder supremo (summa potestas) controlado pela ordem legal e poderia ele errar ? A resposta de Spinoza gerou as teses que produziram a Revolução Francêsa e a Revolução Americana : “erros” e “leis”, afirma o filósofo, são palavras que designam, além dos direitos do Estado (civitatis iura), as leis comuns de toda a natureza. Consideradas as regras da razão, pode-se afirmar que o poder supremo estatal erra e se um Estado não tivesse leis nem regras, seria preciso enxergar nele uma quimera.
O Estado erra quando age ou permite comportamentos que o arruinem. Ele erra quando age contra a razão. Apenas se obedece os ditames da razão (ex dictamine rationis), o Estado é senhor de si mesmo (sui iuris).
Quando um Estado age contra a razão e na medida em que o faz, ele destrói a si mesmo. Toda pessoa decide um negócio de seu interesse e age como lhe aprouver , mas tal poder deve ser medido tanto pela força do agente como pelas facilidades oferecidas pelo paciente. Se digo que posso fazer desta mesa o que eu desejar, não entendo por isto que posso obrigá-la a comer capim.
De modo igual, quando dizemos que os homens não regem a si mesmos, mas seguem o direito estatal (homines non sui, sed civitati iuris esse) não queremos dizer que eles perdem a sua natureza humana e revestem uma outra. O Estado tem a força, e portanto o direito, de fazer com que os homens tenham asas para voar, ou, o que é tão impossível quanto, que eles considerem com respeito o que excita o riso ou o desgosto.
Em determinadas condições o poder estatal inspira aos cidadãos medo e respeito (reverentia et metus). Mas se tais condições forem perdidas, desaparecem respeito e medo “e o proprio Estado deixa de existir. Logo, o Estado, para permanecer senhor de si mesmo (sui iuris) é obrigado a manter as causas de medo e de respeito, sem o que ele não é mais um Estado. Os detentores do poder público (imperium) não podem, igualmente, apresentar-se em estado de embriaguez ou despidos na companhia de prostitutas, agir como palhaços, violar e desprezar abertamente as leis estabelecidas por eles mesmos, e assim agindo conservar a sua majestade. Isto é tão impossível para eles quanto ser e não ser ao mesmo tempo. Trucidar os cidadãos, despojá-los de seus bens espoliando-os, violar mulheres e outras coisas semelhantes, é mudar o medo em indignação e como resultado, o estado civil em estado de guerra (statum civilem in statum hostilitatis vertunt)”. ( )
Impossível lição mais contundente sobre a ética dos que legislam e administram o Estado. Spinoza não aceita a tese hobbesiana, que enuncia um pacto no qual os indivíduos perdem a liberdade política em favor do soberano. Este, no pensamento de Hobbes, assume a função de árbitro inquestionável das questões civís e jurídicas. Para que seja atenuada a guerra de todos contra todos, Hobbes não define o soberano como juiz, pois este deveria seguir leis prévias. Ele pensa o governante desligado (ab-soluto) das leis. Assim, ele não erra, porque nada tem diante de si para comandar a sua decisão. Os indivíduos, lobos uns dos outros, escolhem não continuar a matança e seguem a razão, o cálculo da sobrevivência, e obedecem a decisão de um árbitro contra o qual não lhes é mais lícito apelar. O arbítrio do soberano é a essência do Estado.
Spinoza recusa esse arbítrio e indica o Estado apenas como o instrumento para aumentar a potência dos cidadãos. Eles não perdem o estatuto de soberanos em prol de um rei ou de uma Assembléia, como ocorria em Hobbes. Reunidos no Estado, eles não o perdem, na exata medida em que, ao entrar em acordo entre sí, não deixam de ser indivíduos
livres. Eles não podem abandonar a sua condição natural. Deus, para Spinoza, é a substância infinita que possui atributos infinitos dos quais nós, os homens, expressamos dois apenas : o pensamento e a extensão. Não renunciamos, no Estado, à liberdade do pensamento, visto que somos apenas a individuação daquele atributo divino infinito. Não podemos alienar o divino que está em nós. Não renunciamos ao nosso corpo, visto também que somos a individuação do atributo infinito e divino que o contem. Deste modo, contra Hobbes, não negamos a nossa capacidade de pensamento ou força corporal quando a vida pública é instaurada.
Quem administra o Estado e para ele legisla deve levar em conta aquelas duas forças, a do pensamento e a dos corpos. Se as ignora e desrespeita, luta contra a natureza. Daí o exemplo, à primeira vista estranho, da mesa. Como, se digo que tenho poder absoluto sobre a mesa eu não posso entretanto obrigá-la a comer, visto que sua essência é puramente espacial, nenhum governante ou legislador pode editar mandamentos que desrespeitem a natureza dos homens, seres que pensam, desejam, têm paixões. Os homens pensam e possuem uma força lógica comum, a qual não suporta a contradição. Quando os legisladores ordenam não roubar e roubam, ordenam respeitar a pátria e não respeitam, ordenam procedimentos honestos e agem de modo desonesto, eles são percebidos pela inteligência dos cidadãos. Como a cidadania pensa, fala, escreve, os governantes indecorosos tornam-se cedo ou tarde conhecidos como tal e perdem respeito e reverência. O Estado que deseja ordenar a si mesmo, segue a razão. E a razão recusa contradições. Uma lei é universal ou não é lei. Ela vale para todos e qualquer um dos indivíduos do coletivo, sejam eles cidadãos ou legisladores, ou perde seu caráter. E um Estado onde as leis não valem universalmente, segundo a razão, não é Estado, mas quimera.
Spinoza é absolutista ao modo democrático. O povo soberano, a base do Estado, não aceita que ao mesmo tempo sua majestade seja obedecida e não o seja. Isto é contraditório. Sempre que os governantes ou legisladores mentem, desobedecem as leis, agem de modo a negar a dignidade do cargo, insultam a inteligência e os sentimentos, os corpos dos cidadãos.
Na vida coletiva, cada indivíduo possui uma força adequada ao seu corpo e ao seu pensamento. Isolados, os homens possuem uma força pequena. Unidos, a sua potência comum é práticamente ilimitada. E todo indivíduo ou Estado tende a perseverar em seu poder, sem levar em conta nada que seja exterior. Deixado ao seu desenvolvimento natural, os corpos dos indivíduos tendem a se expandir e a se prolongar no tempo. A luta pela sobrevivência é a regra. Esta luta, segundo Spinoza, não é abolida no Estado. Este apenas reúne forças e as administra racionalmente, em proveito de todos e de cada um dos cidadãos. Para viver em segurança e do melhor modo possível, os indivíduos devem se entender e passar a seguir a razão, encarnada nas leis universais. ( )
Logo, “nenhum pacto poderia ser válido, a não ser por causa do interesse que apresenta ao que o conclui. Desaparece o interesse? O pacto, ferido de nulidade, desaparece. Toda pessoa que pede à uma outra uma palavra perpétua é louca”. Os cidadãos obedecem enquanto isto lhes é útil e apenas quando notam que os demais cidadãos e os dirigentes e legisladores obedecem as regras comuns, as leis.
Todo homem tem um corpo com necessidades e desejos. “A mente humana” diz Spinoza, “é dominada pelo gosto do lucro, da vaidade, da inveja, da cólera, ao ponto em que a razão é emudecida”. Nos homens comuns, as promessas “de manter a palavra e os empenhos solenes, não trazem nenhuma segurança total, a menos que uma garantia positiva a ela se acrescente”. Esta garantia é a lei a ser mantida pelas autoridades e pelos legisladores, para exemplo e norma dos cidadãos. É deste modo que, enuncia Spinoza, os dirigentes não podem dar ordens contrárias aos interesses coletivos, mas devem agir de modo correto “e fundar seu governo em critérios racionais. (…) Num regime democrático, particularmente, as decisões absurdas não são muito temíveis, pois é quase impossível que a maioria dos homens, no interior de um coletivo considerável, coloquem-se de acordo com uma absurdidade”. Se o alvo do Estado é fazer com que os indivíduos deixem os desejos pessoais e sigam a razão comum, vivam em paz, as autoridades não têm o direito de entravar esta via.
A regra obrigatória para os governantes que dão ordens —e legisladores— não deve a sua própria salvação, “mas a do povo inteiro”. Na democracia, “nenhum indivíduo transfere seu direito natural a um outro (em proveito do qual aceitaria não mais ser consultado). Ele o transfere para a totalidade do coletivo que integram; os indivíduos permanecem assim todos iguais, como no estado de natureza”. ( )
No capítulo 17 do Tratado Teológico-Político, Spinoza adverte contra o abuso, pelos governantes, da força física e do poder de constrangimento: “guardemo-nos de medir a potência de uma autoridade pelo medo que ela inspira, pois neste caso nenhuma seria mais considerável do que a exibida por um tirano”. Ao mesmo tempo, “a fidelidade dos cidadãos, seu valor moral e sua constância na obediência das ordens recebidas são os fatores essenciais da conservação do Estado”. Sim, mas os cidadãos integram ao mesmo tempo o Estado como sujeitos racionais de direito e vivem enquanto massa “regida, não pela racionalidade mas pelos sentimentos e seus impulsos, o que os expõe, enquanto massa, às corrupções da cupidez e do desregramento. Os indivíduos que compõem a massa acreditam, cada um deles, tudo saber e cada um deles quer tudo decidir ao seu modo, e os eventos lhes parecem justos ou iníquos, desejáveis ou funestos, segundo eles lhes trouxerem uma vantagem ou desvantagem. Por vaidade, eles desprezam seus semelhantes, dos quais não aceitam nenhum conselho; invejam a reputação ou a sorte dos que —eles os encontrarão sempre— são mais favorecidos; desejam a infelicidade alheia e se deliciam com isto. Detenhamos aqui esta enumeração, pois ninguém ignora a quantos crimes a insatisfação e o gosto da novidade, a violência sem freio e o horror da pobreza empurram frequentemente os homens”. Com este panorama da massa onde lutam em guerra perene os indivíduos, diz Spinoza, “a organização do Estado, para remediar aqueles males, representa uma obra laboriosa, das mais árduas; trata-se de impedir todo jogo da desonestidade e criar as instituições que conduzirão os homens —qualquer que seja a sua disposição pessoal— a colocar sempre o direito do coletivo acima de sua vantagem particular”.
Todos os indivíduos imersos na massa mantêm os seus interesses e precisam ser conduzidos ao interesse comum. Se enxergam autoridades e legisladores que agem de modo a perseguir os seus alvos particulares e usam o Estado para isto, perdem a confiança na própria união estatal. “A menos que sejam completamente barbaros, os homens não suportam ser abertamente enganados e perder sua condição de cidadania para submeter-se à de escravos impotentes para realizar o seu interesse próprio”. Entre a massa e a cidadania ordenada racionalmente em Estado, há um salto proporcionado exatamente pela política. Ao contrário dos que defendem a repressão da massa, Spinoza enxerga na atividade política o meio de instituir o Estado democrático. A política, nele, é arte de transformar o vulgus em populo e o alvo “não é transformar os homens racionais em feras ou autômatos! O que se deseja dar-lhes é, pelo contrário, a plena latitude de viver em segurança as funções de seu corpo e de sua mente. Depois disto eles estarão em condições de raciocinar com maior liberdade, eles não mais se enfrentarão com as armas do ódio, da cólera, da astúcia e se tratarão mútuamente sem injustiça. Em resumo, o fim da organização no coletivo é a liberdade!”.
A exposição de Spinoza é pouco idílica. Se os homens não percebem nos dirigentes e legisladores a disposição de seguir e dar exemplos de cuidado supremo com as causas públicas, e se os governantes agem nos cargos como simples particulares que buscam seu interesse pessoal, o resultado é a perda gradual, no início e absoluta, depois, da confiança no coletivo estatal. E isto joga toda a massa na sua condição de massa, de vulgus, ou seja, no estado de guerra de todos contra todos. A ética e o decoro das autoridades e legisladores são a mola mestra do Estado. Um atentado contra eles, no caso dos administradores e dos que legislam, são mais graves do que o crime comum, porque arrancam dos cidadãos a fé na república, na liberdade, na democracia. E os jogam no morticínio sem esperanças de sobrevivência.
Deixo o maior pensador democrático do século 17 e chego ao nosso tempo. Importante monumento político sobre a sociedade contemporânea e a violência societária, é o livro de Elias Canetti, Massa e Poder. Expositor frio dos fenômenos que levaram aos desastres nazistas e fascistas e a todas as formas totalitárias e genocidas do século 20, Canetti mostra até que ponto a voragem das massas pode ser conduzida nos genocídios dos campos de concentração onde milhões foram abatidos.
O capítulo de Massa e Poder mais grave para a questão da ética e do decoro parlamentares é o intitulado “A essência do sistema parlamentar”. Nele, Canetti mostra que a política no Parlamento continua a guerra geral por outros meios. Os senhores sabem que esta tese vem de Clausewitz e define até hoje o pensamento estratégico das potências imperiais. A continuação da política na guerra, como a continuação da guerra na política são lados complementares, teorizados por Hobbes, por Maquiavel, por Platão e por Tucídides. Mas Clausewitz deu aos dois enunciados a sua abrangência máxima.
Em Massa e Poder, o parlamento é um campo de guerra prolongado. Os partidos constituem a extensão da estrutura psicológica dos exércitos combatentes. A essência parlamentar encontra-se nesse elemento bélico. A diferença encontra-se no fato de que a guerra no Parlamento é feita para avitar a guerra civil. Enquanto nesta última todos podem ser mortos, no Parlamento são escolhidos indivíduos que lutam em nome dos interesses de seus eleitores, mas não podem ser mortos. Este é o pleno sentido da imunidade parlamentar. Em vez das balas e das baionetas, os votos no plenário. Esta garantia repercute na vida civil, que vive sempre na guerra, dando-lhe condições de prolongar a vida.
“Numa votação parlamentar não há nada a ser feito senão verificar a força de ambos os grupos num mesmo lugar. Não basta que se conheça isto desde o princípio. Um partido pode contar com 360 delegados e o outro com 240; a votação continua sendo decisiva em todos os instantes em que existe uma verdadeira medição. Ela é o resquício do choque sangrento que se expressa de múltiplas maneiras com ameaças, insultos e agressão física, que pode levar a golpes ou a lutas. Mas a contagem dos votos representa o final da batalha. Supõe-se que os 360 tenham triunfado sobre os 240. A massa dos mortos fica fora do jogo. Dentro do Parlamento não deve haver mais mortos. Esta intenção é expressa da maneira mais clara na imunidade parlamentar, que tem um aspecto duplo: fora, em relação ao governo e aos seus órgãos; dentro, entre os seus pares (este segundo ponto geralmente não recebe a devida atenção).
Ninguém jamais acreditou realmente que a opinião da maioria numa votação seja, devido ao seu maior peso, também a mais sensata. Vontade confronta-se com vontade, como numa guerra; cada uma destas vontades tem a convicção do maior direito próprio e da própria razão(…) O sentido de um partido consiste justamente em manter vivas esta vontade e esta convicção. O adversário que fica em minoria não se submete porque de repente tenha deixado de acreditar em seu direito, mas apenas porque se dá por vencido. É fácil para ele dar-se por vencido, pois nada lhe sucede. Ele não é castigado por sua atitude hostil anterior. Caso se tratasse de colocar sua vida em jogo, ele reagiria de forma complemente diferente Ele conta porém com batalhas futuras. E o número destas batalhas não tem limite fixado e ele não morre em batalha alguma”.
Esta imunidade contra a morte é a essência de todas as demais imunidades parlamentares e a fonte de todas as garantias dadas aos cidadãos que seguem a lei redigida pelo Parlamento, sancionada e imposta pelo Executivo, julgada pelo Judiciário. O sistema representativo só funciona se ela existir. “Ele desmorona”, diz Canetti, “assim que algum posto seja ocupado por alguém que se permita contar com a morte de qualquer um dos membros da corporação” parlamentar. “Nada é mais perigoso do que ver mortos entre vivos. Uma guerra é uma guerra porque inclui mortos em seu resultado. Um parlamento só é um parlamento enquanto excluir os mortos”. Com a imunidade parlamentar vive e morre o parlamento de qualquer país.
Na eleição geral, a imunidade estratégica ainda não é a dos eleitores, mas a das cédulas de votação. “É permitido influenciar os eleitores de quase todas as maneiras, até o momento em que eles se comprometem definitivamente com o nome de sua preferência, que o escrevem ou que o assinalam. O candidato oposto é ironizado e entregue ao ódio generalizado de todas as maneiras possíveis. O eleitor pode parecer que não se decide em muitas batalhas eleitorais; se ele tiver orientação política, seus destinos variáveis têm para ele o maior dos encantos”.
A sacralidade do voto nas cédulas e a votação sem mortes, a imunidade parlamentar, afastam a matança que se mantem na vida civil. Todos os votos, o dos cidadãos e dos parlamentares, são anotados em números. “Quem joga com estes números, quem os adultera, quem os falsifica, volta a dar lugar à morte e nem sequer se apercebe disto. Os entusiasmados amantes da guerra, que gostam de fazer pouco das cédulas de votação, confessam desta forma suas próprias sangrentas intenções. As cédulas de votação, da mesma forma como os tratados, não passam de simples pedaços de papel para eles. Como estes papéis não estão manchados de sangue, não têm valor para eles; para eles valem apenas as decisões pelo sangue. O deputado é um eleitor concentrado; os momentos muito isolados em que o eleitor existe como tal acumulam-se muito mais para o deputado. Ele existe justamente para votar com frequência. Mas também é muito menor o número de pessoas entre as quais o delegado vota. Sua intensidade e o seu exercício devem substituir em excitação o que os eleitores extraem de seus grandes números”. ( )
Tanto o pensador político do século 17, quanto o premio Nobel no vinte, mostram a importância da ética e do decoro parlamentar para a vida em segurança mínima dos homens reunidos em sociedade. Segundo ambos, a guerra de todos contra todos não é abolida com o advento do Estado. Ela continua na vida civil, com toda a violência. O meio para atenuá-la é justamente a tarefa dos legisladores e dos governantes, os quais têm imunidade como se fossem portadores de bandeiras brancas no debate que suspende, no âmbito dos parlamentos, a matança, a cobiça, a rapacidade, os truques que os indivíduos e grupos usam uns contra os outros. Se existe fraude na bandeira, se existem pessoas que se julgam acima dos regimentos e das leis porque investidas da função parlamentar, se existe atentado à ética e ao decoro, desaparece o Estado, instaura-se a morte e a guerra como fruto daqueles atentados. Os senhores conhecem como ninguém a violência tradicional da sociedade brasileira, que se prolonga e agrava em nossos dias. Em nossa vida civil, a morte ronda as relações de vizinhança, de parentesco, comerciais, políticas, ideológicas. A capangagem, a prática do escravismo, o uso de mão de obra barata e jovem no tráfico de drogas, a barbaridade do trânsito urbano e nas estradas, as fraudes, o assassinato de mulheres pelos maridos em nome da pretensa honra, o estupro de crianças em pleno lar, os abortos clandestinos que jogam o nada sobre embriões e corpos de jovens mulheres aos milhares, as lutas ao redor da terra, o desprezo pelos pobres postos em mãos médicas canhestras ou de má fé, o descontrole das polícias cuja opção preferencial é pelos negros e demais negativamente privilegiados, os plágios universitários, a espionagem industrial, e temos uma lista infindável de crimes e práticas letais saídas da caixa de Pandora chamada sociedade civil brasileira.
Nesse universo de tristeza infinita, a confiança na palavra dos governantes e dos legisladores é o único meio de fazer com que os cidadãos abandonem as suas armas ou deixem de serem cúmplices ou vítimas dos que estão fora da lei. Quem frauda um painel de votação ou mente da tribuna, quem se apodera de bens públicos no orçamento nacional, quem desvia recursos para sua conta privada, comete crime de lesa fé pública e de golpe contra o Estado. Quem promete algo nos palanques e pratica o seu oposto nos palácios, dá um passo tremendo rumo à redução do povo soberano ao estatuto de vulgo sem dignidade. Ensina que a palavra dada não tem substância. E sem palavra confiável não existe Parlamento, porque o próprio nome, Parlamento, é o lugar que sucedeu a prática racional grega do Logos, do discurso racional que tranquiliza e protege os cidadãos. É isto que diz Canetti ao criticar os que adulteram votos. Eles, na verdade, desejam regimes sem votos, regimes onde o único voto permitido é a morte na guerra de cada um contra todos.
Citei o ensinamento dos maiores mestres do Estado para introduzir o nosso problema, justamente numa Casa abalada nas últimas décadas por gravíssimos atentados à ética e ao decoro. Em termos pessoais, como professor de ética na universidade pública, não me furtei à crítica e à análise pública daqueles problemas. Fui inclusive processado por um de seus pares porque não me calei diante de atentados às exigências éticas. Absolvido pela Justiça, continuo acreditando que o Parlamento é a via para atenuarmos a guerra de todos contra todos, gravíssima no Brasil. Se o Estado perde sua força e a fé pública, ganham terreno as potências da morte genérica, vencem os bandidos. É sintomático que as quadrilhas organizadas dominem parte do território de nossas grandes cidades, definam espaços de quase soberania (inclusive arregimentando colaboradores nos três poderes oficiais) na mesma proporção em que a cidadania perde a confiança no regime democrático e na política. Se fracassar no Brasil a vida dos parlamentos, a voragem da morte levará nossa esperança de vida, em primeiro lugar, e de vida livre e digna.
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Trapaças, vícios e virtudes. Uma leitura da razão de Estado.
Roberto Romano/Unicamp
Carl Schmitt se notabilizou por apresentar, no auge da tirania fascista, um texto no qual expõe a hermenêutica autoritária do Leviatã. (1) Partindo do Antigo Testamento ele indica, no monstro que encarna o poder, um símbolo que não pode ser visto de modo intelectual ou científico. Nas próximos instantes pretendo, sem esmiuçar em demasia os textos, dizer o exato contrário do controvertido jurista alemão. (2) Hobbes intimida qualquer leitor prudente. Mas sua argumentação racional é das mais poderosas na história da filosofia.
No Discurso Preliminar da Enciclopédia, uma passagem sugere a cautela do autor sobre a filosofia de Hobbes. À pergunta habitual relativa à formação da sociedade, o texto afirma que o vínculo entre os indivíduos aumenta a extensão das idéias existentes e gera outras, bem mais complexas das que eles teriam por si mesmos, sem os laços sociais. Cabe aos filósofos, afirma ainda o Discurso, a tarefa de julgar se a comunicação recíproca, unida à semelhança que percebemos entre as nossas sensações e as dos nossos semelhantes, contribui para fortalecer o nosso pendor invencível de supor a existência dos objetos que nos tocam. O prazer e a vantagem que encontramos no trato social, seja ao expor nossas idéias aos demais, seja ao unir as suas idéias às nossas, devem nos levar ao reforço dos laços coletivos já iniciados e torná-los, tanto quanto possível, mais úteis. O lado positivo da vida urbana, louvado no De cive, tem um aspecto sombrio segundo o Discurso. Cada habitante, diz o autor, “busca aumentar para si mesmo a utilidade que dela retira, precisando combater em cada um dos outros uma ânsia igual à sua, todos não conseguem ter a mesma parte das vantagens, embora todos tenham o mesmo direito. Um direito tão legítimo, pois, logo é desrespeitado pelo bárbaro direito da desigualdade, a lei do mais forte cujo uso parece nos confundir com os animais. Mas de semelhante direito, no entanto, difícil é não abusar. Deste modo a força, concedida pela natureza a alguns homens, força que eles deveriam empregar
apenas para sustento e proteção dos fracos, torna-se pelo contrário a origem da sua opressão. No entanto, quanto mais violenta é a opressão, mais eles a sofrem com impaciência porque sentem que nela nada razoável deve sujeitá-los. Daí a idéia do injusto e por conseguinte do bem e do mal moral, cujo princípio é buscado pelos filósofos. O grito da natureza, o qual ressoa em todo homem, ecoa mesmo nos povos mais selvagens. Daí também esta lei da natural que encontramos em nosso interior, fonte das primeiras leis que os homens formaram : sem o recurso dessas leis ela, algumas vezes ela é forte o bastante para aniquilar a opressão ou pelo menos contê-la em certos limites. O mal que sofremos, pelos vícios de nossos semelhantes, produz em nós o conhecimento refletido das virtudes, opostas aos mencionados vícios; conhecimento precioso do qual seríamos privados se ocorresse a união e igualdade perfeitas”. (3)
Em 1740, o rei Frederico II da Prússia sobe ao trono e redige a réplica virulenta do escrito publicado por d´ Holbach, o Ensaio sobre os Preconceitos. Trata-se do mesmo soberano que ainda em 1778 fez a seguinte pergunta para concurso da Academia, em Berlim : “Seria útil enganar o povo?”. O mesmo Frederico escrevera um libelo contra Maquiavel, com afirmações moralistas que, supostamente, desvendariam a virulência tirânica do Florentino. Diderot assume a defesa de d´ Holbach, o qual solicitara aos soberanos que renunciassem aos “preconceitos” de nobreza e glória militar. Além disso, seu ensaio pedia que se falasse a verdade ao povo. Diderot analisa a leitura de Frederico contra o Ensaio numa carta, o que fornece à sua crítica um tom enganosamente velado. (4)
Diderot indica que d´ Holbach, no Ensaio sobre os Preconceitos, expõe o mundo cheio de mentirosos, salafrários, opressores de todo tipo, esta a realidade : reis despóticos e cruéis, ministros violentos e ávidos, padres astuciosos, fanáticos, pessoas cegas pelas paixões, pais duros e negligentes, filhos ingratos, esposos pérfidos. Dessa maneira, o filósofo mostra que d´ Holbach segue Spinoza que, no Tratado Político (5) compara o moralista e o político. Sendo moralista, o Ensaio deveria manter-se no plano utópico e “ideal” enquanto Frederico, um rei, deveria ser mais preso ao real. Há uma diferença efetiva, mas que joga em favor de d´ Holbach. Embora acentue o lado baixo da existência humana, ele afirma que os homens procuram a verdade. Frederico, de seu canto, critica o pessimismo do Ensaio, mas se refestela com o segredo, a mentira e a razão de Estado. D´ Holbach mostra que os homens não poderiam se enganar sem ferir a si mesmos, pois a felicidade efetiva encontra-se no verdadeiro. Assim, não se deve julgar os seres humanos pela sua ação, mas pelo que buscam. Todos os homens podem afirmar após Medéia : “Vejo o bem e o aprovo, mas é o mal que me arrasta”. (6)
A sociedade não pode existir sem a verdade. Esta tese recolhe a noção republicana da fé pública (o termo inglês, que vem do século 17 e da Revolução Puritana é accountability), mas exige que o segredo e a dissimulação sejam atenuados ao máximo. A mentira e seus assemelhados ameaçam o coletivo, pois corrompem o juízo e as condutas. A simples busca da verdade diminui o fanatismo e, diz Diderot, o rei da França pode permitir que os padres falem ao povo nos domingos entre 10 e 11 horas, e também tem condições de murmurar : “Agora mesmo, cinqüenta mil salafrários falam o que melhor lhes parece a dezoito milhões de imbecis; mas graças a meu punhadinho de filósofos, a maioria desses imbecis ou não
acreditarão no que ouvirem, ou se acreditarem não significarão o menor perigo para mim”.
A verdade reside na busca, nunca na posse absoluta do verdadeiro por indivíduos ou coletividades. O intolerante sendo odioso, é preciso separar as idéias de probidade e de existência divina. Seja qual for o culto sagrado, ele é compatível com a virtude. “Que os homens pensem do ser divino o que desejarem, desde que deixem em paz os que pensam de maneira diferente”. Esta frase na qual ressoam as lições de Pierre Bayle, (7) também recorda toda a forma e conteúdo do ensino hobbesiano. Mas agora surge uma afirmação que dificilmente seria admitida por Hobbes. Diderot critica Frederico porque o rei, ao analisar o texto de d´ Holbach, afirma ser necessário respeitar a forma do governo sob a qual se vive. Caso o soberano queira dizer que é preciso respeitar as leis da sociedade, da qual todos são membros, não existiria dificuldade em seu enunciado. Mas se tais leis forem ruins, seria necessário silenciar? A resposta hobbesiana seria positiva, porque o juízo sobre as leis não é de competência dos juízos privados. Não é o caminho assumido por Diderot, que pergunta como o legislador teria consciência dos erros em suas leis, se ninguém falasse ? E se uma dessas leis determinasse a pena de morte para quem atacasse a legislação funesta, seria preciso curvar-se diante dela? Com esse passo, Diderot afasta o enunciado hobbesiano de que a verdade não tem conexões com a vida pública.
É essencial recordar que a soberania, em Hobbes, exige o banimento na ordem pública dos juízos com origem privada, pois eles geram a polêmica. Não existe, segundo o filósofo, padrão ou medida comum para o juízo moral. Indivíduos diferentes percebem as coisas de modo diferente, pois desenvolvem diferentes paixões. Ninguém concorda sobre o que é benéfico ou maléfico, certo ou errado, justo ou injusto. E o juízo de cada um tende a se
ampliar ao infinito, na medida mesma do desejo nele presente, desejo que desconhece limites (pleonexia). A guerra de todos contra todos não é apenas física, mas também psicológica, pois inveja e ódio campeiam, cada indivíduo julga-se mais esperto do que o outro. Paixões diversas e igualdade no poder mortífero, levam à morte. É impossível arrancar a força física dos homens, mas é factível fazê-los abdicar de seu juízo privado. No pacto todos renunciam ao seu juízo particular em proveito de um homem ou assembléia. Em termos jurídicos, visto que todos possuem um direito mesmo direito natural, cada um pode aderir ao pacto. Assim, todos renunciam ao seu direito sobre tudo e submetem-se ao juízo de um árbitro, seja ele individual ou coletivo, aceitando-o como seu. Só o soberano guarda o seu direito natural, com o pleno uso da força física e do juízo próprio. (8)
O soberano concentra o poder de julgar em todas as matérias, nas leis, na administração, nos tribunais, na guerra ou paz, controla a religião, decide o bom e o ruim. Este é o pressuposto para colocar limites sólidos contra os desejos infinitos dos indivíduos. Como todos abrem mão do juízo privado, pouco sobra ao direito de resistência que nele reside. É preciso aceitar que as coisas são diferentes do modo pelo qual a concebemos. Entre o mundo como o vemos em nós e o mundo tal como existe, ocorrem diferenças, pois construímos um mundo pela imaginação que, por sua vez, é movida pelos nervos. O intelecto humano não possui um perfeito conhecimento do mundo externo ou interno aos demais homens. O estratégico para os indivíduos “não é a verdade, mas a imagem que faz a paixão. E a tragédia afeta mesmo um
assassino, se ela for bem desempenhada” (The Elements of Law). A paixão causada pela imagem traz rebeliões e guerras. O uso correto dos nomes e palavras não consiste na verdade, mas apenas serve para evitar ambigüidades nocivas. A distinção entre o interior e o mundo externo, a imaginação e o efetivo, fundamenta a tese da ausência um padrão, ou medida comum de bem e mal. (9) Os indivíduos não atingem a concórdia sobre o certo e o errado, portanto são incompetentes para emitir tais juízos. “Os homens, veementemente amorosos de suas próprias novas opiniões (mesmo as mais absurdas) e decididos com obstinação a mantê-las, também deram às opiniões o reverenciado nome de consciência, como se julgassem fora da lei mudá-las ou falar contra elas”.
Logo, “é evidente que, seja o que for que acreditemos tendo como única razão para tal a que deriva da autoridade dos homens e de seus escritos, quer eles tenham ou não sido enviados por Deus, nossa fé será apenas fé nos homens”. (10) Diderot volta às sendas hobbesianas logo a seguir, mas inova na crítica ao “reino das trevas” denunciado no Leviatã. Ele critica a tese de Frederico sobre os nexos entre o clero e o trono. Acreditando-se racionalista e desprovido de preconceitos, o soberano alemão concorda com a tese de que é o povo supersticioso que prende o monarca em seu cargo. E se é o clero que alimenta a superstição, conclui Frederico, é preciso apoiar o clero. (11) “Este raciocinador seguramente não é soberano ou filósofo” (12)
Diderot, nessa frase, ataca Frederico, em duas frentes. Na escrita diderotiana, raisonneur pode assumir o significado de “sonhador” ou “tolo”. É o que se passa no Entretien d’ un Philosophe avec la Maréchale de ***: Um jovem mexicano, cansado de seu trabalho, passeava um dia à beira-mar. Deu com uma tábua cuja ponta estava imersa na água. E passou a raisonner sobre as lendas de seu povo, dormindo. Enquanto dormia, ele terminou navegando na tábua, em pleno mar. “J’ai raisonné comme un étourdi, soit ; mais j’ai été sincère avec moi-même ; et c’ est tout ce qu’ on peut exiger de moi. Si ce n’ est pas une vertu que d’ avoir de l’ esprit, ce n’ est pas un crime que d’ en manquer”. (13) Assim, o raisonneur é uma espécie de sonhador que joga seus arrazoados contra as crenças comuns do povo, mas o que ele tem para trocar por aquelas crenças é apenas a sua febre de argumentos. Trata-se de uma forma de douta tolice. (14)
No Sobrinho de Rameau, a crítica do raisonneur é mais complexa, visto que o diálogo trata desse problema exatamente quando se discute tendo no pano de fundo a crítica ao pensamento de Leibniz, a doutrina do otimismo. O fio condutor é a natureza que produz bons frutos, segundo personagem “Eu”. E logo replica “Ele” : “mas se a natureza fosse tão poderosa quanto sábia; porque ela não faria os frutos tão bons quanto grandes?”. E observa “Eu” : “Mas você não enxerga que, ao usar semelhante raciocínio, subverte a ordem geral, e que se tudo aqui embaixo fosse excelente, nada seria excelente?”. “Ele” assume o questionamento agostiniano sobre a teodicéia, retomado em Leibniz : “Porque, se Deus fez todas as coisas, ele não as fez todas iguais?”. (15)
Agostinho apresentou a sua fórmula: non essent omnia, si essent aequalia (se todas as coisas fossem iguais, nada seria). “Ele” deixa a “igualdade” momentaneamente e passa à “excelência”. E o sobrinho concorda: “Você tem razão. O ponto importante é que você e eu sejamos, e que sejamos eu e você. Que tudo vá como é possível. A melhor ordem das coisas, na minha opinião, é aquela onde eu deveria estar; e dane-se (na verdade, o termo usado por Diderot —foin— é bem mais chulo) o mais perfeito dos mundos, se nele não estou. Prefiro ser, e mesmo impertinente raciocinador (raisonneur) do que não ser. Eu.- Ninguém que pensa como você deixa de fazer o processo da ordem que é; sem perceber que renuncia à sua própria existência. Ele.- É verdade. Eu.- Aceitemos pois as coisas como elas são. Vejamos o que elas nos custam e o que nos rendem; deixemos de lado o Todo que não conhecemos o bastante para louvá-lo ou criticá-lo; e que talvez não nem bem nem mal; se ele é necessário, como muitas pessoas honradas imaginam”. No trato coletivo o “melhor” (como, por exemplo, os intermináveis debates sobre o melhor governo, se a monarquia, a aristocracia, a democracia) só pode ser dito pelos que possuem a visão da totalidade. Estes são deuses. Cabe aos seres finitos o cálculo e o raciocínio (raisonnement). Se um indivíduo é fraco raciocinador, mesmo assim o seu cálculo é mais efetivo do que afirmações dogmáticas sobre “o melhor”. Assim, raisonneur apesar de se inscrever no interior do texto mais satírico e ácido dentre os escritos por Diderot, não pertence à sátira como no primeiro caso, o do jovem mexicano.
O terceiro significado da palavra raisonneur na pena de Diderot encontra-se no artigo “Direito Natural” da Enciclopédia. Aqui o termo adquire sentido polêmico contra Hobbes. Tomemos o Capítulo 5 do Leviatã. “Quando um homem raciocina (Reasoneth), ele nada mais faz do que conceber uma soma total, a partir da adição de parcelas, ou um resto a partir da subtração de uma soma a outra; o que, (se feito com palavras) é conceber a consequência dos nomes de todas as partes para o nome da totalidade, ou dos nomes da totalidade e de uma parte para o nome da outra parte (…) Os escritores da política adicionam pactos (Pactions) para achar os deveres (duties) dos homens. E os juristas somam leis e fatos para descobrir o certo e o errado na ação dos homens privados. Em suma, em qualquer matéria onde existir uma adição e subtração haverá lugar para a razão (Reason). Onde aquelas não tiverem lugar, também a razão nada a fazer”. Assim, “razão” é cálculo, nada mais. Todo homem pode errar no cálculo, o que não quer dizer que inexista a razão. “Assim como ao surgirem controvérsias sobre um cálculo as partes precisam, por mútuo acordo (by their own accord) recorrer à razão certa de um árbitro ou juiz, a cuja sentença se submetem, a menos que sua controvérsia se desfaça e permaneça indecisa por falta de uma razão certa constituída pela natureza. O mesmo ocorre em todos os debates, de qualquer natureza. Quando homens se julgam mais sábios do que todos os demais gritam e exigem uma razão certa para juiz, eles só procuram garantir que as coisas sejam asseguradas não pela razão dos outros homens, mas pela sua. É intolerável, na sociedade e no jogo, uma vez escolhido o trunfo, usar como trunfo em todas as outras ocasiões a série de que se tem mais cartas na mão. Então os “jogadores” nada mais fazem do que tomar cada uma de suas paixões, à medida que elas neles surgem, pela razão certa, e isso em suas próprias controvérsias, revelando a falta de justa razão com a exigência que dela fazem.” (16) Pinturas conhecidas no mundo artístico e político mostram a atitude do “tricheur” que joga com a simulação e a dissimulação. Entre muitas, a de Georges La Tour (talvez 1593, morto em 1652), ou a de Caravaggio (Os Trapaceiros, por volta de 1594).
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Note-se, naqueles quadros, o jogo dos corpos e dos olhares. Tudo se define no plano da dissimulação, especialmente os rostos e as mãos. Torquato Acetto, embora em seu pequeno texto (17) invective a fraude, ao descrever a dissimulação indica bem o que a raison d´ État renascentista e moderna assume como essencial —La dissimulazione è una industria di non far veder le cose come sono. Si simula quello che non è, si dissimula quello ch’ è— (18) para manter o segredo e afastar os ouvidos e olhos do povo comum, os ministros e seu rei usam a fraude unida à dissimulação. Antoine Mizauld, em 1565, escreveu um livro para ajudar as pessoas a “julgar incontinenti o natural de cada um apenas pela inspeção da face e dos seus lineamentos”. Como indica Giovanni Macchia, o cardeal Mazzarino (ou o pseudo-Mazzarino) ensinava, com base nesta técnica, a distinguir o indivíduo astucioso e fraudulento pois este possuiria uma saliência na fronte, na altura pouco acima do nariz. O mentiroso teria, ao rir, duas saliências nas bochechas. Assim, o poderoso busca descobrir os intentos secretos de seus inimigos ou liderados nos menores gestos, nas mais tranqüílas situações. Não apenas os olhos eram movidos nesta descoberta: todos os sentidos entravam na economia do desvelamento. Trata-se de uma economia global do corpo a serviço da razão secreta do Estado. A situação perfeita, para os governantes, seria a de plena transparência dos inimigos e dirigidos, e a sua plena obscuridade própria. (19)
Afinal, o que é a raison d´ État ? Um analista diz que ela se assemelha ao jogo viciado. O governante que a usa para validar atos e tratados opostos às leis comuns do país, age como o jogador desonesto ou mau perdedor : quando as regras do jogo não lhe são favoráveis, ele trapaceia em segredo e quebra todas a sequência da partida. Deste modo, ele arranca dos cidadãos a confiança, a fé pública, base mesma da instituição do Estado. (20) Esta metáfora do jogo e das regras é antiga na filosofia política. No exato século em que a razão de Estado se firmou, um dos filósofos mais agudos da modernidade, Blaise Pascal, construiu a partir dela toda uma moral, uma política, uma teologia. A vida humana é jogo. As regras supremas são de acesso dificil aos homens. Só Deus joga com absoluta certeza. E ganha sempre. No caso humano, tudo é incerto, sobretudo no campo das leis e da política. Esta antropologia, que hoje volta a ser um assunto de interesse filosófico e político, é nuclear na história do pensamento moderno. (21) Nela, importa a idéia do cálculo como elemento básico da política, plataforma da razão de Estado. O governante que sabe calcular as suas oportunidades e as de seus inimigos tem condições de, pelo menos, desrespeitar sem muitos prejuízos as regras “normais” do jogo diplomático, bélico, ou de política interna, como por exemplo nas escolhas para os dirigentes públicos. (22)
Se atentarmos novamente para as linhas do Leviatã, notamos que Hobbes afasta a fraude no “jogo” da sociedade civil, mas em proveito do soberano que não está preso a regras. Os particulares não têm mais direito (porque assumiram o pacto) de viver segundo a fraude. O
soberano, cuja função é salvar o povo de todas as maneiras, sobretudo dos inimigos que pertencem aos Estados estrangeiros, não sofre esta limitação. O jogo opera com a inteligência e a imaginação dos indivíduos. Na sociedade civil, se todos podem jogar sem obedecer as regras, desaparece a essência mesma do jogo, porque nenhum dos jogadores parte da igualdade das chances, visto que o truque não se revela e nem pode-se indicar quem o usa (caso contrário, o jogo acaba e se transforma em guerra). O jogador sem regras usa o segredo, a simulação e a dissimulação. Ele finge seguir as regras, mas guarda para si mesmo o fato de que as desrespeita, simulando aceitá-las e dissimulando os truques. O jogador comum opera com a imaginação e a discrição: ele deseja ganhar, imagina-se no instante em que vence (pode imaginar os frutos do ganho como por exemplo riquezas, amores, etc) e ao mesmo tempo não pode revelar suas cartas. O jogador que não segue as regras (e, portanto, não é um jogador) deve usar a discrição, a imaginação, a simulação e a dissimulação. Ele opera como se estivesse em pleno direito natural. Mas seu intelecto (Wit) não é imediatamente natural, porque ele possui experiência e consegue enganar os demais se tiver uma imaginação rápida. Caso contrário, será bisonho ladrão de cartas. A imaginação sem discrição dificilmente é força.
E Hobbes apresenta a diferença entre o poeta e o historiador, um lugar comum que remonta a Aristóteles. O poeta usa a imaginação e o juízo, seus trabalhos devem agradar pela extravagância, mas não devem desagradar pela indiscrição. O historiador usa o juízo com método e verdade, a imaginação deve apenas ornamentar o estilo. Quem move o intelecto no jogo exerce uma deliberada dissipação da mente (mind), como ocorre na ordem familiar onde é permitido jogar com os sons e palavras equívocos. Alí permite-se a desregrada sequência da imaginação (Fancy), mas jamais num sermão ou em público diante de pessoas desconhecidas ou às quais é devido reverência. A discrição é fundamental, porque ela traz as regras do trato entre os indivíduos, regras que determinam a loucura (brilhante, pouco importa) de uns e a lucidez de outros. Juízos sem imaginação (Fancy) mostram inteligência (Wit), mas imaginação sem juízo foge do engenho. É possível ser discreto e prudente, mas perverso. “Caso à prudência se acrescente o uso de meios injustos ou desonestos, como os que os homens são levados pelo medo e pela necessidade, temos a perversa sapiência (Crooked Wisdome) a que se chama astúcia (Craft), sinal de pusilanimidade. A magnanimidade é o desprezo pelos expedientes injustos ou desonestos. Aquilo que os latinos chamam Versutia —versatibilidade— e consiste no afastamento de um perigo ou incômodo presente, mediante a passagem a um maior ainda, como roubar uma pessoa para pagar a outra, astúcia de vistas curtas”.
Como fazer com que todos os jogadores sigam as regras, sem truques? “As leis da natureza (justiça, equidade, modéstia, benevolência, em suma fazer aos outros o que gostaríamos que eles nos fizessem, por si mesma, sem o terror de algum poder, para fazê-los observá-las, são contrárias às nossas paixões naturais, que nos empurram para a parcialidade, orgulho, vingança etc. E pactos sem a espada, são apenas palavras (Covenants, without Sword, are but Words) e não possuem nenhuma força (strength) para assegurar um homem”.
O terror do poder dita as regras do jogo político e as impõe para todos e para cada um. Leis civis, os homens são obrigados a respeitar. Uma lei não é conselho, mas ordem dada pelo soberano, regra que o Estado impõe oralmente ou por escrito, ou por algum sinal suficiente de sua vontade, para uso e distinção do bem e do mal, do que é contrário ou não à regra (Rule). As leis são interpretadas pelo soberano e apenas por ele, ou pelos que ele designa para a tarefa de julgar. Elas não são julgadas pela razão dos particulares, porque implica em contradições dos intérpretes com suas escolas. “Se os homens tivessem liberdade para considerar como divinos os seus próprios sonhos e fantasias (fancies) não mais de dois homens concordariam (agree) sobre o que são os mandamentos de Deus. Quando o juízo privado pretende mudar as leis e o poder público, os que agem tendo em vista sua “consciência” assumem o papel de estraçalhadores da Commonwealth. No De cive (capítulo 12) lemos que “muitos homens, que mesmo sendo bem apegados à sociedade civil, fazem por carência de saber (knowledge) inclinar a mente dos súditos à sedição, quando ensinam, aos jovens, a doutrina conforme às suas opiniões nas escolas, e ao povo todo nos seus púlpitos. Os que desejam levar aquela disposição aos atos, colocam todo o seu esforço nisso: primeiro, eles juntam todos os doentiamente afetados na facção e na conspiração; depois, eles mesmos buscam ter a maior força na facção. Eles os colocam na facção enquanto fazem de si mesmos os relatores e intérpretes dos conselhos e ações do homem individual, e nomeiam as pessoas e lugares para reunião e para deliberar sobre as coisas nas quais o governo atual deve ser reformado, segundo deve parecer melhor aos seus interesses. O alvo é fazer deles mesmos os que governam a facção e a facção deve ser tolhida por uma outra facção; ou seja, eles devem ter suas reuniões secretas em separado, apenas com poucas pessoas, reuniões nas quais eles podem ordenar o que devem a seguir propor numa Assembléia Geral, e por quem, e sobre quais assuntos e em que ordem cada um deverá falar, e como eles atrairão os mais poderosos e populares dentre os homens para a facção de seu lado. E quando eles conseguem grande o bastante, a qual podem dirigir (rule) pela sua eloquencia, eles a mobilizam para administrar os negócios. E assim, às vezes eles oprimem a sociedade (Commomwealth) quando não existe outra facção maior para se opor a eles; mas na maioria das vezes eles conseguem fazer aquilo e começam uma guerra civil. Porque a loucura e a eloquência concorrem para a subversão do governo, de maneira igual à das filhas de Pélias, rei da Tessália, que conspiraram com Medéia contra seu pai. Elas iam restaurar o ancião decrépito em sua juventude, por conselho de Medéia cortaram-no em pedaços e o colocaram para ferver; em vão esperando o momento em que ele viveria novamente. Assim o povo comum em sua loucura, como as filhas de Pelias, desejando renovar o governo antigo, é conduzido pela eloquência de homens ambiciosos, como se tivessem enfeitiçados por Medéia; divididos em facções eles consomem em chamas em vez de reformar o governo”. (23)
Vejamos agora a versão diderotiana da mesma fábula escrita por Ovidio: “a condição do restaurador de uma nação corrompida é bem diferente. É um arquiteto que se propõe erguer sobre uma área coberta por ruínas. É um médico que se propõe tentar a cura de um cadáver grangrenado. É um sábio que prega a reforma a pessoas endurecidas. Ele só tem ódio e perseguições para obter da geração atual. Ele não verá uma geração futura. Ele produzirá poucos frutos, com muito trabalho, durante sua vida; e só obterá estéreis lamentos depois de sua morte. Uma nação só pode se regenerar num banho de sangue. É a imagem do velho Esão, a quem Medéia só concedeu a juventude cortando-o em pedaços e fazendo ferver. Quando ela decaiu, não cabe aos homens fazê-la levantar-se. Parece que tal obra é devida à uma lonfa sequência de revoluções. O homem de gênio passa muito rápido, e não deixa posteridade”. (24) Diderot distorce a história contada por Ovidio (Metamorfoses, 7), onde Medéia rejuvenesce seu sogro. Esão, cortando sua garganta e tirando o seu sangue, dando-lhe uma transfusão de sangue de ovelha, leite, vinho e outras iguarias. Seguindo este portento,Medéia engana as filhas do inimigo de Esão e irmão, Pélias, que desejavam também aumentar a vida do seu pai, fazendo-as despedaçar os seus membros e fervê-los, o que o matou. Diderot expõe num só lance dois episódios —o rejuvenescimento de Esão e o esquartejamento de Pélias— para mostrar que um indivíduo solitário não consegue regenerar o corpo político, apenas uma “longa sequência de revoluções sangrentas.
Diderot conhecia muito bem os escritos de Hobbes. A Enciclopédia está cheia de referências ao filósofo inglês e não apenas no verbete “Hobbismo”. No artigo “Vintième” discute bastante o pensamento de Hobbes. Diderot não se preocupa com a parte em que são condenadas as reformas e a eloquência, mas se volta para as passagem em que são decepadas pela sátira as pretensões de soberania espiritual da Igreja, no item do Leviatã intitulado “Reino das Trevas”. O colaborador de Diderot, Jaucourt passa por Hobbes em artigos como Contrat, Engagement, Estime, Injustice, Malmesbury, Morale, Rutland, Shropshire, Société, Sujet. Jaucourt, no artigo Sujet, recorda Antigona na peça de Sófocles: “Hobbes não teria fugido da questão mais importante que se coloca sobre a relação súdito-soberano, ou seja, se um súdito pode seguir inocentemente uma ordem que sabe injusta e que o soberano lhe prescreve formalmente, a sua resposta está longe de nos satisfazer. Hobbes sustenta que ser preciso distinguir se o soberano ordena fazer em nosso nome uma ação injusta que seja dita nossa, ou se ordena seguir em seu nome uma ação injusta e como simples instrumentos. No último caso, ele pretende que se pode efetivar sem medo a ação ordenada pelo soberano, que deve ser considerado como o único autor sobre quem deve recair a culpa. A distinção, para Jaucourt (e antes para Burlamaqui) não resolve a dificuldade porque “de qualquer modo que um súdito opere de modo ilícito, seja em seu nome próprio, seja em nome do soberano, a sua vontade concorre para a ação injusta e criminosa (…) é pois verdade que em toda ordem do soberano evidentemente injusto o que pareça injusto, ocorre mostrar coragem nobre, refutar seguí-lo, resistir com toda força à injustiça porque mais vale obedecer a Deus do que aos homens, qualquer que seja o seu cargo nesta terra (…) Eu não acreditava, diz Antigona a Creonte, rei de Tebas, que os editos de um homem mortal como tu, devessem prevalecer sobre as leis dos próprios deuses, leis não escritas na verdade, mas certas e imutáveis”. (25)
Cavallo, na obra citada, indica o verbete “Vintième” como uma espécie de reabilitação de Hobbes. Diderot afirma que os princípios autoritários do Leviatã devem-se às infelicidades pessoais do autor e à necessidade das circunstâncias nas quais ele viveu : “ocorre com essas obras políticas como o passado com o Principe de Maquiavel; os que apenas viram o sentido aparente que eles possuem, não compreenderam o verdadeiro”. Donde Hobbes e Maquiavel devem ser interpretados de maneira diferente ao jeito comum da cultura européia. Hobbes, ao fazer a apologia do soberano, tinha apenas o fito de conseguir um pretexto de satirizar a divindade à qual ele o compara, e à qual nenhum homem honesto desejaria assemelhar-se. Aceitando-se apenas a superfície dos textos “de um dos maiores lógicos” de seu tempo, é difícil não enxergar no Leviatã uma ordem tirânica. Mas, replica Diderot, “como presumir que um raciocinador (raisonneur) tão profundo tenha pensado que um ser qualquer pudesse dar sobre si mesmo para um outro ser da mesma espécie um poder indefinido, e que por consequência desta concessão, este pudesse ser na verdade um ser malévolo, mas nunca injusto? Como imaginar que ele tenha acreditado que aquele a quem o direito da guerra permitia matar no estado de natureza, submeter-se-ia a toda sorte de serviços e obediências para com aquele que deseja conservar sua vida com esta condição, e que esta obrigação é irrestrita para tudo o que ele desejar ? Esta proposição anuncia muito distintamente várias contradições. 1 . O vencedor, segundo este sistema medonho, poderia exigir do vencido que ele se matasse, assassinasse seu pai, sua mulher, filhos, enfim, que ele sacrificasse o que é mais caro e se curvasse a esta escravidão infame que pode conservá-lo. 2 . Se é verdade que na natureza o mais forte mata o mais fraco que lhe resiste, não é verdade que ele o faça seu escravo. (…) Onde as obrigações não são recíprocas, as convenções são nulas…Não seria um abuso das palavras e da faculdade de raciocinar (raisonner) dizer que o magistrado que tem o seu poder da lei, não está submetido à lei? Apesar de Santo Agostinho que o afirma, e apesar de todos os sofismas que se pode cometer para sustentar esta asserção desumana, é claro que ao transgredir a lei que lhe dá autoridade, o magistrado derruba os fundamentos de seu pode (…) Se Hobbes tivesse realmente pensado, como ele diz (…) que um povo que colocou seu direito nas mãos de um tirano não subsiste (…) a multidão (como a chama Hobbes depois que este direito foi entregue) diria ao tirano: ´não sou mais o povo de quem você recebeu o direito que deseja exercer : dado que sua eleição me nadifica, não sendo eu mais o que era quando contratei com você, sendo uma outra pessoa, não estou mais obrigado a seguir nenhuma de suas condições´”. Diderot “esquece” que o povo contrata com o povo, o rei não contrata com ele. Uma dificuldade hermenêutica bem grave para a leitura “inovadora” de Hobbes…
A defesa do povo e dos indivíduos, contra Hobbes, apresenta em Diderot vários matizes que devem ser analisados com precaução máxima. Antes de seguir adiante, vejamos a imagem do povo antes do século 18, na França. As batalhas entre os reformados e católicos, pensam os juristas do rei, ameaçam o Estado. É preciso dar um fim às rebeliões geradas em nome das causas religiosas. Em janeiro de 1562, o dirigente L´ Hospital (26) fala em nome do rei e dirige a Assembléia composta de Presidentes e Conselheiros dos Parlamentos da França, reunidos em Saint-Germain-en-Laye. A tentativa é, uma vez mais, atenuar as querelas e lutas físicas entre o partido católico e huguenote. Carlos IX (1550-1574) abre os Estados Gerais (13/12/1560) e participa do Colóquio de Poissy, entre os dois cultos religiosos. O Colóquio foi organizado por Catarina de Médicis e Michel de l´ Hospital, tendo por alvo aproximar os inimigos. Único resultado: a lista dos desacordos. Em 31/01/1561, um Ordenamento é assinado pelo rei em Orleans, proibindo as perseguições contra os protestantes, autorizadas por Henrique II. Mas as querelas aumentam. O duque de Guise, católico, tudo faz para gerar uma guerra civil, cujo primeiro passo seria o “Massacre de Wassy”. O nobre queria assistir a missa, se irrita com os cantos protestantes, entra no lugar onde aqueles últimos se refugiavam e os massacra. Este fato produziu a primeira guerra de religião moderna na França. Os protestantes, comandados por Louis de Condé e pelo Marechal Coligny perdem em Dreux (19/12/1562). Guise cerca Orléans, sendo assassinado por um protestante. Enquanto isso, Antoine de Bourbon, um chefe protestante, é morto em Rouen. Catarina de Médicis aproveita o sumiço de ambos os chefes e assina a paz, oferecendo liberdade (apenas privada) de culto aos huguenotes.
Carlos IX, maior a partir de 1563, anda pela França durante 1564 até 1566 e leva consigo Henrique de Navarra, que reinará como Henrique IV. O alvos das viagens é reconciliar os inimigos religiosos sob o manto real. Na sequência da guerra religiosa, condé cai na batalha de Jarnac e é executado. O marechal Coligny refugia-se em La Rochelle. Finalmente Catarina de Médicis assina a paz em 1570. Neste ano o rei se livra da tutela materna e continua a tentar a união dos inimigos. Em 1570 ainda (08/08) em Saint-Germain são oferecidas algumas garantias aos huguenotes e La Rochelle, Cognac, Montauban são ditas cidades protestantes. A liberdade de culto é oferecida, menos em Paris. Toda essa política tem inspiração em Michel de l’ Hospital. Coligny retorna ao círculo do rei, onde adquire influência, inclinando o soberano à guerra contra a Espanha. Catarina, católica e política de ferro, arrisca novamente a guerra civil. A família Guise quer vingar a morte de seu chefe e tenta matar Coligny contratando assassinos de aluguel. Em 22/08/1572, Coligny sofre um atentado, recebendo a visita do rei que, no entanto, assume a idéia de Catarina de acabar com os protestantes, acusados de, sob liderança de Coligny, subverter o Estado. O Marechal é executado com requintes de crueldade. Depois de sua morte, durante cinco dias, a partir de Paris ocorrem os massacres conhecidos como “A noite de São Bartolomeu” (na verdade, as noites…) praticados em Lyon, Dijon, Blois, Tours causando algo ao redor de 15 mil mortos. O rei perde a confiança dos súditos, os protestantes enfraquecidos não se rendem e se rebelam em 1573. (27)
Carlos IX usou a razão de Estado, um jogo onde as regras não foram, como é o hábito, obedecidas. Se conseguiu impôr sua decisão, nem por isso ele conseguiu o essencial: unir os súditos sob a sua autoridade. É esse o desejo expresso por Michel l ´Hospital na já mencionada reunião em Saint-Germain-en-Laye de 1562 : “O rei não quer que entreis em disputa sobre qual opinião (religiosa, RR) é a melhor. Porque não se trata aqui de constituenda Religione (….) sed de constituenda Republica. E muitos podem ser Cives, que non erunt Christiani, e pode-se viver em repouso com os de opinião diversa, como vemos numa família, onde os católicos não deixam de viver em paz e amar os da nova religião”. (28) Com esse passo, atingimos um ponto nuclear tratado nos textos de Hobbes e também nas obras diderotianas. Trata-se, como já indiquei antes, da secularização determinada pelo Estado ao espaço público. Hobbes viveu algum tempo na França, afastado pela guerra civil e religiosa que sacudiu a Inglaterra. Ao deixar seu país e penetrar na França, encontrou uma realidade próxima, pois as duas nações que estavam se constituindo na cena política européia corriam o risco de fragmentação devido às batalhas campais entre segmentos teológico-políticos. A unidade do Estado é um dos temas mais caros à raison d´ État, desde o Renascimento. (29) E a desejada unidade se dissolvia a olhos vistos no território francês e britânico.
Vale a pena examinar um autor estratégico do Renascimento e que tem um posto relevante na história da razão de Estado na França. Refiro-me ao autor do Discurso sobre a Servidão Voluntária, ou Contra Um, Etienne de la Boétie, morto com 33 anos em 1563. Ao falecer, deixou com seu “intimo irmão e inviolável amigo” Montaigne livros e documentos. Oito anos depois, o autor dos Ensaios publicou alguns dos escritos do falecido, traduções de Plutarco, de Xenofonte, versos latinos e franceses. As duas ausências na coletânea eram justamente o Discurso da Servidão Voluntária e os Relatórios sobre Nossas Confusões sobre o Edito de Janeiro de 1562. Ao justificar o corte ou censura, Montaigne diz que as duas obras eram delicadas em demasia para serem abandonadas “ao grosseiro e pesado ar de uma estação tão insalubre”. Quem segue a história do período recorda-se do que se passou no governo de Carlos IX, com ou sem a tutela de Catarina de Médicis. Os protestantes sublevados e os católicos que recorriam ao massacre não eram, com certeza, geradores de bons ares. Publicar os dois textos teria efeito semelhante ao de acender um palito de fósforo num paiol. Os volumes ficaram inéditos. Mas os huguenotes se apoderaram do Discurso e publicaram um pedaço em 1574 numa coleção de panfletos intitulada o Despertador dos Francêses (Réveille-matin des François). Nome sugestivo, pois os franceses deveriam acordar, bem cedo, se não desejassem perder a vida e a cidadania. Em 1576 e 1578, eles publicaram o texto inteiro, “levemente” adequada para a defesa da Causa. O juízo de Montaigne é duro para com os protestantes. Eles juntaram ao escrito de La Boétie coisas de sua própria lavra, para “confundir e mudar o estado de nossa polícia, sem se preocuparem se eles a podem reparar”. (30) Bem antes de Hobbes, pois, temos a percepção de que os rebeldes constituem pessoas incompetentes, facciosas, inábeis, que estraçalham a república e não a podem reparar.
Enquanto o bem demagógico Discurso serviu perfeitamente ao desígnio dos rebeldes, o Relatório passou intacto por eles. Durante bom tempo se considerou que o tirano desenhado vivamente por La Boétie fosse Henrique III. Mas o testemunho de um autor italiano em 1570, Jacopo Corbinelli que dizia ter lido um manuscrito do Discurso “in franceze elegantíssimo” deixou inequívoca paternidade de La Boétie e, portanto, a sua escrita no reinado de Carlos IX. Tendo em vista as trapaças políticas do rei, sob ou sobre Catarina de Médicis, é mais lógico pensar que o monarca que suportou ou aceitou ou incentivou os massacres e batalhas de todos contra todos (protestantes e católicos) cabe melhor no papel de tirano na obra de La Boétie. (31)
Como o Relatório não foi utilizado por nenhum dos partidos, ele permaneceu no anonimato até data muito recente, ao contrário do Discurso que adquiriu fama com o correr do tempo. Paul Bonnefon, pouco prezado no Brasil pelos que conhecem os temas por ouvir dizer ou pela fé em professores de filosofia, buscou em Arquivos e Bibliotecas o documento em questão. Encontrou o texto na biblioteca Mejanes, em Aix -en- Provence, no manuscrito Número 410. Quase todas as peças reunidas sob aquele número eram relativas ao século XVI, anteriores a 1575. Com as turbulências no reino, os conselheiros reunidos por L´ Hospital em Saint-Germain-en-Laye não poderiam discutir “qual seria a melhor religião, mas se as Assembléias deveriam ser permitidas”. Este é problema de La Boétie, de l´ Hospital e, depois, de Hobbes chegando a Diderot. La Boétie desejava a liberdade das pregações huguenotes, desde que os reformados seguissem a lei e devolvessem as igrejas tomadas por eles. A tese do Relatório é que todos devem respeitar a coisa pública. Vejamos o que se enuncia no texto, para notar o quanto ele se aproxima dos pressupostos hobbesianos.
Como pacificar as lutas intestinas na França ? La Boétie recorre, como inúmeros outros pensadores antes dele, à figura do médico. Para saber como acabar com a doença, urge saber “o estado presente do mal que se deseja curar, reconhecer a origem e a fonte para saber como ele nasceu, como ele se nutriu e cresceu. Se devemos encontrar algum remédio, o encontraremos mais facilmente após ter considerado aquelas duas coisas”. E qual é a doença? Toda ela encontra-se na diversidade religiosa, a qual avançou tanto que “um mesmo povo, vivendo sob um mesmo príncipe, dividiu-se em duas partes”. A ruptura não ocorre apenas na “consciência”, na “opinião”. Ela se instala “em diversas igrejas, diversos chefes, contrárias observações, diversa ordem, contrária polícia quanto à religião”. O resultado é a forma de duas repúblicas opostas, uma contra a outra. Ler o texto de La Boétie tendo o De cive e o Leviatã ao lado é tarefa mais do que instrutiva.
Vejamos: do mal causado pela divisão religiosa e da fratura da república, surgem dois outros malefícios. Em primeiro, o ódio (secreto ou público) e malefícios quase universal entre os súditos do rei, com os tristes efeitos previsíveis. Em segundo lugar vem o fato de que “pouco a pouco o povo se acostuma à uma irreverência diante do magistrado e, com o tempo, aprende a desobedecer voluntáriamente e se deixa conduzir para as armadilhas da liberdade, ou melhor, da licença, o mais doce e gostoso veneno do mundo. Isto porque o populacho, tendo conhecimento de que não é obrigado a obedecer o seu principe natural em se tratando de religião, aproveita mal esta regra que, em si mesma, não é ruim, e dela tira uma consequência falsa, a de que só é preciso obedecer aos superiores nas coisas boas em si mesmas, e depois ele se atribui o juízo do que é bom ou mau, e chega à pensar que não existe outra lei a não ser a sua consciência, isto é, a persuasão de seu espirito e de suas fantasias, e às vezes tudo o que eles querem; pois como nada é mais justo e nem mais conforme às leis do que a consciência de um homem religioso e temente a Deus, e provido de honestidade e prudência, também nada é mais louco, mais tolo e mais monstruoso do que a consciência e a superstição do aglomerado (multitude) indiscreto”.
Hobbes e La Boétie, a partir do mesmo diagnóstico —a república se quebra se a ruptura religiosa for mantida— passam ao modus operandi comum. O juízo dos particulares causa a guerra civil e destrói a obediência às autoridades. Hobbes afirma que na república nenhum juízo particular pode ser ensinado e praticado sem ordem do soberano. A opinião privada deve permanecer silente, sem exteriorizar-se. La Boétie fornece um outro remédio, como veremos adiante.
La Boétie indica também algo que pode ser verificado nos textos de Hobbes. A desobediência encontra alimento poderoso no fato de que integrantes do Estado, que deveriam distribuir a justiça do rei, possuem eles mesmos sua opinião religiosa. Assim, os “officiers de Justice” agem segundo a sua crença na tarefa que lhes cabe publicamente. Com isso, levantam a desconfiança e o rancor dos que assumem religião oposta às suas. Desse modo, “sendo grande o ódio contra a Justiça, é necessário que a reverência e a obediência seja diminuída em demasia, pois é impossível honrar os que desprezamos e obedecê-los de bom grado, voluntáriamente”. Se a doença não for curada, “por contágio” a pior doutrina “e a mais perniciosa” pode passar para todas as regiões da França. E pode ocorrer que “o populacho indiscreto” pode aderir aos grandes vícios e mesmo “dos que têm origem na licença”, como ocorre com as “doenças contagiosas que seguem de país em país”.
Agora temos a imagem que surge no De cive e que aparece com força no Relatório. Se as filhas de Pélias obedeceram a feiticeira Medéia e seguiram a sua “receita” matando o pai Esão, o populacho, diz La Boétie, cheio da febre das novidades, busca opiniões diferentes, segundo as razões que ele imagina. Tratando-se da salvação, a busca indiscreta é mais perniciosa porque “toma uma opinião falsa por verdadeira e muda de bom grado, e com frequência, sem saber o que deixa e o que toma. É bem o que um grande ator antigo dizia da medicina, sobre o perigo de colocarmos nossa pessoa nas mãos de um médico desconhecido”. Na licença religiosa e na busca indiscreta da salvação, o populacho coloca sua vida até nas mãos “das velhotas mais ignorantes, se elas prometem a saúde, com rezas ou braceletes de ervas”. E o medo da morte faz com que as pessoas “entreguem seu corpo a desconhecidos”. Tudo isto resume-se nas seguintes palavras : “tolice e um estulta e cega superstição”. Uma ferida inflamada, quando as pessoas têm medo de um cirurgião, precisa no entanto de seu bisturi para acabar.
A origem das lutas que ameaçam o Estado, pensa La Boétie, encontra-se na Igreja, há muitos anos “maravilhosamente corrompida”, pelos abusos e dissolução dos costumes. A comunhão eclesiástica foi tocada, pela Reforma, “nos pontos em que seria necessário mesmo efetivar a purga”. Somado a esse ponto, no entanto, as coisas pioraram porque o povo foi chamado pelos partidos em luta para ampliar as querelas e legitimar a busca do poder. Ora, “o povo não tem condição de julgar, porque é desprovido do que dá ou confirma o bom juízo, as letras, os discursos, a experiência. Porque não pode julgar, ele acredita nos outros. Ora, é comum notar que a multidão acredita mais nas pessoas do que nas coisas, e que ela é mais persuadida pela autoridade de quem fala do que pelas razões enunciadas; e não duvida que, em seu lugar, as impressões percebidas pelos seus olhos corporais têm mais poder do que as disputas sutís e os mais vivos argumentos. Porque o seu entendimento principal reside nos sentidos naturais e não no espírito”. Ao ver o péssimo comportamento do clero, e ouvindo as críticas dos protestantes, a multidão passa do que enxerga (o comportamento apodrecido) à doutrina, declarada errônea pelo que é visível. E muita gente deixou a Igreja por perder o respeito ao clero, “deixaram uma causa que não entendiam, como vários juízes que, por um zelo indiscreto, conhecendo uma parte de má fé e com defesa competente, condenam a causa devido à pessoa, sem respeitar o direito”. Um lugar comum da época, entre os católicos, dizia que os protestantes seriam “gente iletrada”. Como analisa E. Telle, “o erro dos dirigentes (católicos) naquele momento era acreditar que a nova religião só atraía as pessoas de inteligência e instrução medíocre ou nula, era praticar a política da avestruz”. (32) A Reforma, iniciada entre letrados (Lutero era um deles), recebeu adesões relevantes nas universidades e nos meios de ensino tradicionais. Os pastores nomeados eram antigos sacerdotes ou acadêmicos, juristas, etc. que tiveram papel relevante na cultura e conheciam o grego, o latim, o hebreu e sabiam o que fazer com o manejo daqueles idiomas no campo da filologia, história, filosofia, teologia, medicina, direito, etc. Ainda na edificação do futuro Estado norte-americano, os puritanos mostraram conhecimentos amplos e sofisticados da cultura, inclusive da Patrística, na sua prática e nas propostas de ensino. ( 33)
O “argumento” utilizado por La Boétie, na passagem citada acima, deve-se mais à uma apologética estereotipada e usual no catolicismo. A questão já vem dos Evangelhos, mais precisamente dos Atos dos Apóstolos (4:13) : João e Pedro são ditos, alí, “sine litteris, et idiotae”. (34) O ideal de “simplicidade” iletrada tentou os monges. Mas a elite do clero, bem logo, assumiu as letras e passou a acusar os hereges, dando-lhes o título “gentil” de iletrados. O assunto, que remete à uma história bastante singular dos preconceitos e dos ódios entre católicos e protestantes, é bastante estudado em nossos dias. 35La Boétie mostra apego ao “ethos” tradicional, o que mostra alguns limites de sua análise política e jurídica.
Os eventos que deram o sinal das guerras religiosas ocorreram dentro da Igreja, com as indulgências de 1517. O fato demonstra, adianta La Boétie, que “a Igreja estava tão tarada (tarée) que era impossível cobrir aquela deformidade sem demasiada impudência”. Os chefes da Igreja, a começar com o Papa, em vez de curar o mal no início “o alimentaram e nutriram”. O fogo da rebelião, assim assoprado pelos próprios eclesiásticos, consumiu não apenas o edifício existente, que era gasto e viciado, mais ainda “o lado bom, sólido, bem fundado”.
Com a repressão aos protestantes, pelos Estados católicos, pensa La Boétie, as coisas chegaram ao perigo máximo. “Pois nada é mais ameaçador num Estado, do que se desejar proibir o crescimento de uma opinião religiosa que perturba a coisa pública, obrigando os que a aprovam testemunhar por ela com a morte”. E o Relatório apresenta uma lista de mortos pela sua opinião religiosa, sem no entanto, La Boétie cita a regra de Santo Agostinho, terem sido verdadeiramente mártires —como no caso dos maniqueus, donatistas, anabatistas— mas apenas testemunhos desesperados que, “no entanto, não deixaram de aumentar seu número por aquele meio”. De qualquer modo, seja para decidir a questão num sentido, seja para determiná-la em outro, o soberano não pode, em hipótese nenhuma, acompanhar o povo nas suas opiniões, visto que o populacho “é o pior produtor de políticas que existe no mundo” (“le populaire, qui est le pire policeur du monde”). Se o rei permitir duas religiões, o estrangeiro pode guerrear a França e vencê-la, devido à divisão interna. “Nenhuma dissenção é maior nem mais perigosa do que a devida à religião: ela separa os cidadãos, os vizinhos, os amigos, os parentes, os irmãos, o pai e os filhos, o marido e a mulher; ele quebra as alianças, os parentescos, os casamentos, os direitos invioláveis da natureza, e penetra até o fundo dos corações para extirpar as amizades e enraizar os ódios irreconciliáveis.”. Pode ocorrer que, apesar de tudo isso, os cidadãos ainda continuem obedientes ao rei. Mas pela sua divisão, eles deixam de resistir ao estrangeiro com eficácia. A autoridade real deve prover templos comuns para que todos possam cultuar a Deus, em horários diferentes. Nenhuma das duas religiões teriam templos próprios, ostentando assim a divisão interna do reino. La Boétie termina seu Relatório comentando o dito de Santo Atanásio : quando Constantino lhe sugeriu que aos arianos deveria ser alocado um templo em Alexandria, a resposta do santo foi pronta. “Deixaremos sete templos, quando eles concederem setes aos católicos de Antioquia”. Com este diálogo, La Boétie deixa bem claro o que pensa sobre as divisões religiosas e o poder real: este não pode conceder nenhuma oportunidade para que os dois lados quebrem a ordem pública e a obediência ao soberano.
Tanto em La Boétie quanto em Hobbes, portanto, apesar de suas diferenças, existe o veto de se trazer ao público, sob controle do soberano, as opiniões religiosas e demais opiniões que residem na “consciência” individual ou dos grupos. Os Elements of Law já afirmam que (36) a dificuldade oferecida pela frase “É preciso obedecer mais a Deus do que aos homens” cai por terra. Em primeiro lugar, porque as leis não foram feitas para governar as consciências, mas as suas palavras e atos. Os cristãos encontram na Biblia o ensino de que devem submeter-se ao soberano “em todas as coisas”. O dilema (obedecer Deus ou obedecer o soberano) é desconhecido entre os Judeus, Gregos, Romanos e outros gentios. Naqueles povos, as leis civis definiam o justo e o virtuoso e o culto externo a Deus. Os católicos romanos apresentam dificuldades para o poder soberano, na medida mesma em que exigem para a autoridade religiosa poderes acima do civil ou, pelo menos dele independente. As leis civis não obrigam a consciência dos homens, mas suas palavras e atos. Mesmo os apóstolos não pretendem controlar as consciências, mas persuadi-las e instruí-las. Quanto às ações, a paz só é conseguida quando elas são reguladas (submetidas às regras). Caso contrário, persiste a divisão no Estado devido à “liberdade” de consciência. Ser papista, luterano, calvinista, arminiano, como no passado paulistas, apolineanos, cefasianos, não é necessário nem impede a obediência aos superiores na ordem pública. Quem luta com o pretexto dessas questões, e “se dividem em seitas, não devem ser contados entre os piedosos da fé, porque sua luta é carnal, o que é confirmado por São Paulo (1 Cor. 3, 4) ; quando alguém diz, afirma o apóstolo, eu sou de Paulo, e outro, eu sou de Apolo, nãos sois carnais? Porque aquelas questões não vem da fé, mas da inteligência (Wit) e carnalmente os homens são inclinados a buscar o domínio um sobre o outro. Porque nada é verdadeiramente um ponto de fé, senão que Jesus é o Cristo”. Assim, Paulo mostra que as questões surgidas pelos raciocínios humanos (human ratiocination) são perigosas para a vida cristã. Em se tratando do mundo civil, quem resiste a um rei porque duvida de seu título ou porque é dominado pelas paixões, merece punição. E de outro lado, sob um soberano poder de uma república cristã, não há lugar para a danação pela simples obediências das leis humanas. “Sendo a consciência apenas um juízo humano e opinião” não deve ela ser abolida, mas restrita a sua exteriorização para o espaço público o qual não pode ser uma soma heteróclita de opiniões, mas o resultado de uma só “opinião” racional. O medo da morte iguala a consciência comum do necessário pacto.
O debate sobre o destino post-mortem não deve ser feito em público e, sobretudo, deve ser afastado das leis comuns que regem todo o corpo social. Pierre Bayle indica esse ponto no pensamento hobbesiano, de modo claríssimo : “O sumário do Leviatã é que sem a paz não existe segurança num Estado, e a paz não pode subsistir sem comando, o comando sem armas; e estas últimas nada valem se não são postas nas mãos de uma pessoa; o medo das armas não pode conduzir à paz os que são impulsionados a combater por um mal ainda mais terrível do que a morte, isto é, pelas dissenções sobre as coisas necessárias à salvação eterna”. (37) O Estado possui uma potência que chega ao nível espiritual, sempre que se trata da república. No pacto, o indivíduo aliena o direito de agredir os demais. O soberano, no entanto, choca-se com algumas barreiras para a sua soberania. Em termos lógicos: se todos abrem mãos de seu direito natural para afastar a morte, não tem sentido o Estado exigir contra eles o direito de vida e morte. A segurança é inalienável.
Seria apenas no plano da conservação do Estado que Hobbes apresenta interesse? Aqui tocamos os elos entre o seu pensamento e os do século 18, sobretudo a filosofia diderotiana. Ferdinand Tönnies (38) editor e estudioso de Hobbes, movido pelo projeto de refutar todo o saber político e social mecânicos suposto no Leviatã (Tönnies pertence à sociologia romântica que opõe a vida comunitária, à vida societária moderna) define dois modelos contrários de ordem social, incluindo a vida pública. A sociedade é algo morto, maquinal, enquanto a comunidade é viva, corporal. “O que vai de uma ferramenta artificial ou a determinada máquina construída para certos fins, até um sistema orgânico ou a alguns órgãos concretos de um corpo animal, é o que vai de um conglomerado de vontade desse tipo —vontade sobreposta— a um conglomerado de vontade de uma outra classe, a uma vontade essencial”. Como indica com bastante correção Georg Lukács, “Tönnies pinta a sociedade com as cores da filosofia do direito de Hobbes, como o estado em que cada um é inimigo do outro e no qual apenas a lei assegura uma ordem externa.”. (39) Pois bem, é exatamente em sua famosa biografia de Hobbes, citada acima, que Tönnies recorda Augusto Comte e sua genealogia das Luzes e da Revolução Francêsa. No Cours de Philosophie Positive (Volume V), Comte aponta para os nexos entre Hobbes e o pensamento iluminista dizendo que “Hobbes é o verdadeiro pai da filosofia revolucionária”. E Tönnies concorda com o positivista, ao recordar que d´ Holbach traduziu bons trechos de Hobbes (Human Nature, em 1772) e que Rousseau combateu sua doutrina do Estado, enquanto Diderot, no Plano de Uma Universidade para a Rússia, recomenda ao lado da Lógica de Port-Royal o livro de Hobbes sobre a Natureza Humana “ouvrage court et profond (…) un chef- d´ oeuvre de logique et de raison”. (40)
Nada mais alheio à hermenêutica proposta, em péssima hora da humanidade, por Carl Schmitt. O Leviatã pode ser um símbolo do poder arbitrário, ditatorial, ou seja lá o que for, mas sua lógica é um dos esteios do pensamento filosóficos e políticos da modernidade. E isto é muito, quando se pensa na tarefa, proposta pelo irracionalismo fascista, que pretendeu usar a filosofia do século 17 para a domesticação das massas e dos indivíduos.
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1 Uso a tradução francesa: Le Léviathan dans la doctrine de l État de Thomas Hobbes, sens et échec d´ un symbole politique (Paris, Seuil, 2002).
2 A bibliografia oceânica sobre Hobbes não será invocada neste escrito. No Brasil existem muitos trabalhos sobre o pensador que merecem leitura, como é o caso do livro publicado por Renato Janine Ribeiro : Ao leitor sem medo (SP, Ed. Brasiliense). Publiquei um artigo sobre o tema com o título de “Massa, Poder e Morte” (Cf. Roberto Romano : Lux in Tenebris, meditações sobre Filosofia e Cultura, SP, Cortez/Unicamp, 1987, pp. 23 ss).
3 Richard N. Schwab comenta do seguinte modo a passagem citada : “This basic natural law is that which naturally leads men to preserve themselves from pain or death at the hands of those who are stronger than they. Ultimately, it is the natural law of social self-preservation that is stamped upon everyone, and it involves the necessity of resistance to oppression. Thus, the fundamental natural law of ethics and society is, for d’ Alembert, an empirical fact in the history of humanity. The first laws of organized societies were designed to limit oppression; thus they derive from the natural law of self-preservation, protecting the members of society as well as possible from pain and death at the hands of the strong. This seems almost to be a Hobbesian view of the natural state of man and the origins of law, government, and the ideas of right and wrong”. Cf. Preliminary Discourse to the Encyclopedia of Diderot (Jean Le Rond d’ Alembert) (The Library of Liberal Arts, 1963) página 12.
4 Cf. “Lettre de M. Denis Diderot sur l ´ Examen de l ´Essai sur les Préjugés”, in Versini, Laurent (Ed.) : Diderot. Oeuvres, Tome III – Politique (Paris, Robert Laffont, 1995), páginas 165 e seguintes.
5 TP, I, 1 : “Os filósofos concebem as afecções conflitantes em nós como se fossem vícios em que os homens caem por erro próprio. Por tal motivo eles se habituaram a ridicularizá-los, deplorá-los, reprová-los e, quando desejam parecer muito morais, detestá-los. (….) Concebem os homens não como eles são, mas como gostariam que eles fossem. Assim (…) é a política o campo em que a teoria passa por diferir mais da prática, e não há homens que se pense menos adequados para governar o Estado dos que os filósofos”. “Affectus, quibus conflictamur, concipiunt philosophi veluti vitia, in quae homines sua culpa labuntur; quos propterea ridere, flere, carpere vel (qui sanctiores videri volunt) detestari solent. (…). Homines namque non ut sunt, sed ut eosdem esse vellent, concipiunt; (…) Cum igitur omnium scientiarum, quae usum habent, tum maxime p o l i t i c e s t h e o r i a ab ipsius p r a x i discrepare creditur, et regendae reipublicae nulli minus idonei aestimantur, quam theoretici seu philosophi”.
6 Ovídio, As Metamorfoses, VII, 20 : “video meliora proboque, deteriora sequor”.
7 Dictionnaire historique et critique (Rotterdam, 1697). Desde o Renascimento e a Reforma, “ateu” era uma palavra de guerra. Ela designava uma pessoa sem bons costumes, contrária às leis morais, libertina. Erasmo foi chamado de “ateu” por Lutero e o termo passou do campo religioso para o da ética. Marx e Engels apenas repetem o juízo de todo o século 18 sobre Bayle “ quem, na teoria arrancou o crédito da metafísica do século 17 e de todas as metafísicas, foi Bayle. Sua arma era o ceticismo forjado em fórmulas mágicas da metafísica. Seu ponto de partida foi a metafísica cartesiana (…) Por duvidar da religião, Bayle submeteu a metafísica à crítica, em toda a sua evolução histórica. Ele anunciou a sociedade atéia que logo viria, ao demonstrar que pode existir uma sociedade de puros ateus e que um ateu pode ser honesto ”. A Sagrada Família
8(6) Esse ponto é tratado de maneira oposta por Spinoza. Sendo a força física um elemento do espaço e os juízos a modificação do pensamento, e sendo ambos, pensamento e força física modos da substância infinita, Deus ou Natureza, cada indivíduo possui em si mesmo a força e o pensamento que seguem ao infinito. Não é possível arrancar deles a força, como em Hobbes, mas é impossível também deles retirar, pela força, o juízo próprio. Algo só pode ser movido por algo que apresenta as mesmas determinações modais. Um corpo não pode ser movido ou forçado pelo pensamento. E também um pensamento só pode ser modificado por outro pensamento. Usar a força para impôr a soberania e o poder é um erro ontológico e epistemológico, além de ser uma violência que não garante o Estado e a soberania, visto que os indivíduos recebem o pensamento da substância infinita divina. Pode-se tentar controlar os pensamentos, mas ele não aceita os limites da força física e, sobretudo, os limites da imaginação religiosa ou política. Este é o sentido da frase spinozana quando o Eleitor Palatino lhe convidou para dar aulas, mas sem “perturbar a religião oficialmente estabelecida”. A resposta é clara: “Desconheço em quais limites minha liberdade de filosofar deveria ser contida para que eu não parecesse desejar a perturbação da religião estabelecida”. (Carta a Fabritius, 30/03/1773). Cf. Spinoza. Oeuvres complètes. (Paris, Gallimard, 1954), Coleção Pléiade, página 1284.
9 Problema ético e científico dos mais complexos, sempre retomado na filosofia política e no campo epistemológico. Importantes achegas ao campo podem ser encontradas no Seminário publicado sob a coordenação de Jean-Claude Beaune : La mesure, instruments et philosophies (Paris, Champ Vallon, 1994)
10 Leviatã, VII. Cf. Ed. Macpherson (Pelican, Penguin Books, 1977), páginas 132 a 134.
11 A atitude de Frederico foi piorada nos reinos de seus sucessores, sobretudo pelos que não partilhavam o seu racionalismo, como foi o caso de Frederico Guilherme 2. O rei baixou um Edito de Religião (09/07/1788) que proibia toda crítica pública à crença estabelecida. I. Kant criticou acerbamente o governo prussiano por controlar a população com o uso da fé religiosa, da medicina e do direito. Na Universidade, eles permitem aos ministérios o controle do povo. Este, por sua vez, “quer ser dirigido, isto é, na lingua dos demagogos, enganado. Mas ele não quer ser dirigido pelos cientistas da faculdade (…) mas por seus agentes, que sabem muito fazer, pelos eclesiásticos, funcionários da justiça, médicos, na medida em que eles são práticos e, por isso mesmo, lhe apresentam presunções mais vantajosas”. São “instrumentos do governo” (Werkzeuge der Regierung) os eclesiásticos, os magistrados, os médicos que se “endereçam diretamente ao povo que se compõe de ignorantes (Idioten), como, pode-se dizer, o clero em relação aos leigos”. Der Streit der Facultäten, Erster Abschnitt. In I. Kant Werkausgabe (F.A.M., Suhrkamp Verlag, 1977). Cf a tradução de J. Gibelin : Le Conflit des Facultés (Paris, J. Vrin, 1935).
12 “As Luzes não exigem mais liberdade além da que permite usar de modo público a própria razão em todos os domínios, seja como escritor ou erudito, mas não como funcionário a quem não se permite raciocinar (räsonnieren) enquanto tal. ”Cf. Eisler, Rudolf : Kant-Lexicon, Trad. francêsa de Balmès, A.D e Osmo, P. (Paris, Gallimard, 1994), página 646. Os enunciados de Kant no clássico “Que são as Luzes?”, mostram a plena ambigüidade do pensamento político que procura, como é o caso kantiano, negar a tese de Hobbes sobre a opinião na república. O funcionário não tem o direito de operar com o raciocínio livre, apenas os “intelectuais” podem usufruir tal privilégio, o que se paga, no entanto, com a ausência de poder efetivo no Estado. Quem partilha o poder estatal não tem “liberdade” de pensamento ao modo dos escritores e eruditos. Neste sentido, Theodor Adorno aponta uma ambigüidade no trato das Luzes com a razão pública. Cito um trecho de suas lições traduzidas para o espanhol : Th. Adorno : La Crítica a la Razón Pura de Kant, Lição 6, 09/06/1959, Traduzida por Francesc J. Hernàndez no site http://www.uv.es/fjhernan/arxiu/L6.pdf : “Desde que o funcionário tenha função determinada, como funcionário, o arrazoar acaba; para um funcionário o uso sem travas da razão tem o duplo significado da palavra “raciocinar” (Räsonieren) de injuriar inconveniente e de uma espécie de crítica prática às instituições. Ele diz : `As Luzes não querem dizer isto. Enquanto você fica apenas no dominio da razão que é auto-suficiente, tudo estará perfeito; mas este não é só o domínio do espirito puro no mundo da divisão do trabalho´ (…) esta tendencia, de ao mesmo tempo transfigurar a razão como o mais elevado e, no entanto restringí-la como um mero raciocinar [Räsonieren], já está em Kant, um ilustrado supostamente radical”.
13 Na tradução Guinsburg (Obras de Diderot, Filosofia e Política, páginas 244-245) lemos : “Raciocinei como um tonto, seja; mas fui sincero comigo mesmo; e é tudo o que se pode exigir de mim. Se não é virtude ter espírito, não é crime não tê-lo”.
14 Ainda Kant pode nos servir como elemento de comparação, sobretudo nos Sonhos de um visionário explicados pelos sonhos da Metafísica onde os metafísicos são ditos “construtores de castelos no ar (Luftbaumeister) e “sonhadores da razão ” (Träumer der Vernunft).
15 “Songeons au bien de notre espèce. Si nous ne sommes pas assez généreux; pardonnons au moins à la nature d’avoir été plus sage que nous. Si vous jetez de l’eau froide sur la tête de Greuze, vous éteindrez peut-être son talent avec sa vanité. Si vous rendez de Voltaire moins sensible à la critique, il ne saura plus descendre dans l’âme de Mérope. Il ne vous touchera plus. LUI: Mais si la nature était aussi puissante que sage; pourquoi ne les a-t-elle pas faits aussi bons qu’elle les a faits grands? MOI: Mais ne voyez-vous pas qu’avec un pareil raisonnement vous renversez l’ordre général, et que si tout ici-bas était excellent, il n’y aurait rien d’excellent. LUI: Vous avez raison. Le point important est que vous et moi nous soyons, et que nous soyons vous et moi. Que tout aille d’ailleurs comme il pourra. Le meilleur ordre des choses, à mon avis, est celui où je devais être; et foin du plus parfait des mondes, si je n’en suis pas. J’aime mieux être, et même être impertinent raisonneur que de n’être pas. MOI: Il n’y a personne qui ne pense comme vous, et qui ne fasse le procès à l’ordre qui est; sans s’apercevoir qu’il renonce à sa propre existence.LUI: Il est vrai. MOI: Acceptons donc les choses comme elles sont. Voyons ce qu’elles nous coûtent et ce qu’elles nous rendent; et laissons là le tout que nous ne connaissons pas assez pour le louer ou le blâmer; et qui n’est peut-être ni bien ni mal; s’il est nécessaire, comme beaucoup d’honnêtes gens l’imaginent. LUI: Je n’entends pas grand-chose à tout ce que vous me débitez là. C’est apparemment de la philosophie; je vous préviens que je ne m’en mêle pas.” Le Neveu de Rameau, éd. critique de Jean Fabre (Genève, Droz, 1977), pp. 14-15.
16 Sainte Beuve (Port-Royal) diz que entre Hobbes e Pascal há mais proximidade do que se imagina. Jogo e truque são analisados com a perspectiva do poder e da justiça por Pascal, sendo continuado no século 18 por filósofos como Condorcet.
17 Della dissimulazione onesta , cópia muito boa pode ser encontrada na seguinte home page italiana, dedicada à tarefa de publicar textos eletrônicos : http://web.comune.torino.it/liberliber/biblioteca/a/accetto/index.htm
18 “A dissimulação é uma técnica de não fazer enxergar as coisas como elas são. Simula-se o que não é e se dissimula o que é”. No jogo fraudulento da razão de Estado, como na fraude do jogo de cartas, a dissimulação e a simulação entram enquanto técnicas do engodo que, mesmo usando o cálculo, não respeitam as regras que devem ser obedecidas pelos súditos ou pelos “paspalhos” enganados nas partidas. Hobbes denuncia os que, numa república, fingem seguir as regras mas no segredo as violam e, pior, violam as próprias regras de seu jogo escondido. Mais adiante discutirei este ponto ao comentar as facções e a figura de Medéia. O artifício de fazer com que apenas o soberano não esteja submetido às regras suscita problemas graves de interpretação do pensamento hobbesiano no contexto da razão de Estado. Cf. o já citado texto de Micheline Triomphe: “Hobbes et la raison d´ État” in Zarka, Yves Charles : Raison et déraison d´État (Paris, PUF, 1994).
19 Breviario dei Politici, secondo il Cardinale Mazzarino. Edição italiana de Giovanni Macchia. (Milano, Rizzoli Ed., 1981)
20 Cf. Lazzeri, Christian e Reynié, Dominique: “Introduction” ao livro La raison d´ Etat: politique et rationalité. (Paris, PUF, 1992) página 9 e ss.
21 Lembro apenas três textos fundamentais para se entender uma parte deste rico pensamento: o volume de Laurent Thirouin, Le hasard et les règles. Le modèle du jeu dans la pensée de Pascal. Paris, Vrin, 1991, e o pequeno grande livro de Gerard Lebrun, Blaise Pascal, Coleção Encanto Radical, São Paulo, Brasiliense, 1983, além do clássico de Sainte Beuve, Port Royal, Paris, Gallimard. 3 volumes.
22 Toda esta temática se une ao problema essencial do golpe de Estado e da exceção ao direito, importantes na doutrina conservadora e nos textos fascistas como o Carl Schmitt. Uma fonte importante na cultura mais ampla, no entanto, é o relevante livro de Gabriel Naudé: Considérations politiques sur les coups d´Estat (1639). Uso a edição fac similar da Gallica (BNF). Ainda hoje a análise mais aguda do campo encontra-se no livro de Thuau, Etienne : Raison d’’État et pensée politique à l’ epoque de Richelieu (Paris, Albin Michel, 1966). Para uma crítica moderada do estado de exceção segundo Carl Schmitt e seus aderentes na esquerda ou direita ideológica, cf. Monod, Jean-Claude: Penser l ´ennemi, affronter l´exception, réflexions critiques sur l ´actualité de Carl Schmitt (Paris, Éditions La Découverte, 2007), importante sobretudo é o capítulo intitulado “La banalisation de l ´exception”, pp. 71 e ss.
23 De cive, 12 in Gert, B. (Ed.) : Thomas Hobbes Man and Citizen (Cambridge, Hackett, 1993, páginas 254-255. Esta crítica hobbesiana em imagens é seguida no século 18 por Edmund Burke, um dos maiores escritores contra-revolucionários que, nas Reflections on French Revolution indica as filhas de Pelias de modo idêntico. “To avoid, therefore, the evils of inconstancy and versatility, ten thousand times worse than those of obstinacy and the blindest prejudice, we have consecrated the state, that no man should approach to look into its defects or corruptions but with due caution, that he should never dream of beginning its reformation by its subversion, that he should approach to the faults of the state as to the wounds of a father, with pious awe and trembling solicitude. By this wise prejudice we are taught to look with horror on those children of their country who are prompt rashly to hack that aged parent in pieces and put him into the kettle of magicians, in hopes that by their poisonous weeds and wild incantations they may regenerate the paternal constitution and renovate their father’s life”. O texto de Edmund Burke pode ser encontrado no seguinte lugar da Internet : http://www.cpm.ll.ehime-u.ac.jp/AkamacHomePage/Akamac_E-text_Links/Burke.html
24 “La condition du restaurateur d’ une nation corrompue est bien différente. C’est un architecte qui se propose de bâtir sur une aire couverte de ruines. C’est un médecin qui tente la guérison d’un cadavre gangrené. C’est un sage qui prêche la réforme à des endurcis. Il n’a que de la haine et des persécutions à obtenir de la génération présente. Il ne verra pas la génération future. Il produira peu de fruit, avec beaucoup de peine, pendant sa vie; et n’obtiendra que de stériles regrets après sa mort. Une nation ne se régénère que dans un bain de sang. C’est l’image du vieil Æson, à qui Médée ne rendit la jeunesse qu’en le dépeçant et en le faisant bouillir. Quand elle est déchue, il n’appartient pas à un homme de la relever. Il semble que ce soit l’ouvrage d’une longue suite de révolutions. L’homme de génie passe trop vite, et ne laisse point de postérité.” (Histoire des Deux Indes citada por Srinivas Aravamudan : Tropicopolitans. Colonialism and Agency, 1688-1804 (Duke University Press, 1999), página 317. Cf. também Goggi, G. : “Diderot et Médée dépeçant le viel Eson” in Denis Diderot 1713-1784. Colloque International Paris-Sèvres-Reims-Langres. Actes recueillis para Anne-Marie Chouillet (Paris, Aux Amateurs de Livres, 1985), páginas 173-183.
25 Cf. Cavallo, T. : “Aggressore dell’umanità e apologeta della tirannide? L’Hobbes degli enciclopedisti” na home page do autor : http://www.cromohs.unifi.it/8_2003/Cavallo.html O texto indicado da Encyclopédie, “Sujet” foi redigido por Diderot e Jaucourt : “On demande donc si un sujet peut exécuter innocemment un ordre qu’il sait être injuste, & que son souverain, lui prescrit formellement ; ou s’il doit plutôt refuser constamment d’obéir, même au péril de perdre la vie? Hobbes répond qu’il faut bien distinguer, si le souverain nous commande de faire, en notre propre nom, une action injuste qui soit réputée nôtre, ou bien s’il nous ordonne de l’exécuter en son nom & en qualité de simple instrument, & comme une action qu’il répute sienne. Au dernier cas, il prétend que l’on peut sans crainte exécuter l’action ordonnée par le souverain, qui alors en doit être regardé comme l’unique auteur, & sur qui toute la faute en doit retomber. C’est ainsi, par exemple, que les soldats doivent toujours exécuter les ordres de leur prince, parce qu’ils agissent comme instrumens, & au nom de leur maître. Au contraire, il n’est jamais permis de faire en son propre nom une action injuste, directement opposée aux lumieres d’une conscience éclairée. C’est ainsi qu’un juge ne doit jamais, quelque ordre qu’il en ait du prince, condamner un innocent ni un témoin à déposer contre la vérité.Mais, cette distinction ne leve point la difficulté ; car de quelque maniere qu’un sujet agisse dans tous les cas illicites, soit en son nom, soit au nom du souverain, sa volonté concourt à l’action injuste & criminelle qu’il exécute. Conséquemment, ou il faut toujours lui imputer en partie l’une & l’autre action, ou l’on ne doit lui en imputer aucune. Il est donc vrai que dans tout ordre du souverain évidemment injuste, ou qui nous paroît tel, il faut montrer un noble courage, refuser de l’exécuter, & résister de toutes ses forces à l’injustice, parce qu’il vaut mieux obéir à Dieu qu’aux hommes, quel que soit leur rang sur la terre. En promettant au souverain une fidele obéissance, on n’a jamais pu le faire que sous la condition tacite qu’il n’ordonneroit rien qui fût contraire aux loix de Dieu, soit naturelles, soit revélées. ” Je ne croyois pas, dit Antigone à Créon, roi de Thebes, que les édits d’un homme mortel tel que vous, eussent tant de force, qu’ils dûssent l’emporter sur les loix des dieux mêmes, loix non écrites à la vérité, mais certaines & immuables ; car elles ne sont pas d’hier ni d’aujourd’hui ; on les trouve établies de tems immémorial ; personne ne sait quand elles ont commencé ; je ne devois donc pas par la crainte d’aucun homme, m’exposer, en les violant, à la punition des dieux. ” C’est un beau passage de Sophocle, Tragédie d’Antigone, vers 463. (D. J.)” Edição eletrônica da Encyclopédie em CD, na Redon, CD-Macintosh.
26 Michel l ´Hospital (1505-1573), Chanceler da França.
27 Para a documentação dessa passagem, cf. François Hotman, La vie de Messire Gaspar de Colligny, Admiral de France. Ed. Fac. símile aos cuidados de Emile-V. Telle (Genève, Droz, 1987). O texto original foi redigido, compreensivelmente, em latim.
28 Citado por Telle, Vie de Messire…”, Ed. cit. “Introduction”, página 35.
29 Em Shakespeare, o tema é onipresente nas peças políticas. O erro fatal de Lear foi a divisão territorial de seu Estado pelas filhas que o adularam e seguiram a sua ordem tirânica. Ele usou de maneira estulta a lei da razão de Estado que ordena Divide et impera. O soberano que perde seu espaço, tudo perde e nada garante aos súditos, salvo guerras civís. É bom lembrar o núcleo da peça logo nos primeiros instantes. “Lear. Meantime we shall express our darker purpose./Give me the map there.Know that we have divided/In three our kingdom: and ’tis our fast intent/To shake all cares and business from our age;/Conferring them on younger strengths, while we/Unburden’d crawl toward death./Our son of Cornwall,/And you, our no less loving son of Albany,/We have this hour a constant will to publish/Our daughters’ several dowers, that future strife/May be prevented now. The princes, France and Burgundy,/Great rivals in our youngest daughter’s love,/Long in our court have made their amorous sojourn,/And here are to be answer’d./Tell me, my daughters,/Since now we will divest us both of rule,/Interest of territory, cares of state,/Which of you shall we say doth love us most?/That we our largest bounty may extend/Where nature doth with merit challenge”. A peça liga-se à adulação, na linha do escrito de Plutarco Como distinguir o amigo do adulador do qual existe tradução em português (São Paulo, Scrinium Ed., 1997). Analiso tal problema com detalhes no meu livro Silêncio e Ruído. A sátira e Denis Diderot (Campinas, Unicamp Ed., 1997).
30 Polícia tem a mesma origem de política: ambas as palavras vem de Politéia (grego) e do latim Politia. É evidente o nexo com a polis. Quando se diz, até o século 19 pelo menos, “polícia”, entende-se geralmente um Estado dirigido de maneira legal pelo soberano, o que garante os direitos e deveres dos súditos. Dizer, como o faz Montaigne, que os rebeldes protestante desejam perturbar a polícia da França, não significa que eles levantam-se contra uma “polícia” tal como nos habituamos a nomear, mas contra toda a ordem legal e legítima do Reino.
31 Todos esses informes são extraídos do prefácio de Paul Bonnefon à sua edição do Relatório. Cf. Bonneffon, Paul: “Une oeuvre inconnue de La Boétie: Les Mémoires sur l ´Édit de janvier 1562”, in Révue d´Histoire littéraire de la France, 24e Année- 1917 (Paris, Armand Colin, 1917), página 1 e seguintes (primeira parte). O mesmo Paul Bonnefon publicou, em 1892, uma edição crítica das Oeuvres complètes de La Boétie (Bordeaux, G. Gounouilhou Éd./Paris, J. Rouam Ed.). Bonnefon também publicou uma importante biografia de La Boétie que até os nossos dias fornece preciosos dados para a análise do período e do pensador. Cf. Bonnefon, Paul: Estienne de La Boétie. Sa vie, ses ouvrages et ses relations avec Montaigne. (Genève, Slatkine Reprints, 1970).
32 Cf. Telle, E. : “Introduction”. La Vie de Messire…ed. cit. p. 25.
33 Os textos de Calvino e de outros reformadores, brilham pelo estilo, rigor lógico e controle das fontes. Um elemento decisivo na expansão da fé reformada entre as elites intelectuais européias e também de eficácia na pregação, o que conquistou vastas camadas populares. Na Inglaterra e suas colônias não foi diferente. “The Anglican sermon is constructed on a symphonic scheme of progressively widening vision; it moves from point to point by verbal analysis, weaving larger and larger embroideries about the words of the text. The Puritan sermon quotes the text and “opens” it as briefly as possible, expounding circumstances and context, explaining its grammatical meanings, reducing its tropes and schemata to prose, and setting forth its logical implications; the sermon then proclaims in a flat, indicative sentence the “doctrine” contained in the text or logically deduced from it, and proceeds to the first reason or proof. Reason follows reason, with no other transition than a period and a number; after the last proof is stated there follow the uses or applications, also in numbered sequence, and the sermon ends when there is nothing more to be said. The Anglican sermon opens with a pianissimo exordium, gathers momentum through a rising and quickening tempo, comes generally to a rolling, organ-toned peroration; the Puritan begins with a reading of the text, states the reason in an order determined by logic, and the uses in an enumeration determined by the kinds of person in the throng who need to be exhorted or reproved, and it stops without flourish or resounding climax” Perry Miller The New England Mind, (Boston. Beacon Press, 1968), páginas 332-3. Tal amplo domínio da lógica e do estilo prova também amplo domínio da história filosófica, teológica, etc.
34 “Vendo a constância de Pedro e de João, entendendo que eles eram iletrados e ignorantes, pensavam: e eles souberam então que eles estiveram com Jesus”. [Videntes autem Petri constantiam et Iohannis conperto quod homines essent sine litteris et idiotae admirabantur et cognoscebant eos quoniam cum Iesu fuerant].
35 Cf. Biller, Peter e Hudson, Anne (Ed.) : Heresy and Literacy, 1000-1530. (Cambridge, University Press, 1994). Uma coletânea bastante rica de análises sobre este ponto que até os nossos dias apresenta, nas franjas do populismo e do aristocratismo abstratos que falseiam os estudos sobre o mundo cultural, sérias consequências para o entendimento e a observância da ordem democrática.
36 Cf. The Elements of Law Natural and Politic / by Thomas Hobbes Electronic Text Center, University of Virginia Library.
37 “Le précis de cet ouvrage est que, sans la paix il n’y a point de sûreté dans un État, et que la paix ne peut subsister sans le commandement, ni le commandement sans les armes; et que les armes ne valent rien si elles ne sont mises entre les mains d’une personne; et que la crainte des armes ne peut point porter à la paix ceux qui sont poussés à se battre par un mal plus terrible que la mort, c’est-à-dire par les dissensions sur des choses nécessaires au salut. Ejus autem summa haec fuit, sine Pace impossibilem esse incolumitatem, sine Imperio Pacem, sine Armis Imperium, sine opibus in unam manum collatis nihil valere Arma, neque metu Armorum quicquam ad pacem profici posse in illis, quos ad pugnandum concitat malum morte magis formidandum; nempe dum consensum non sit de iis rebus, quae ad salutem aeternam necessariae creduntur, pacem inter cives, non posse esse diuturnam”. Pierre Bayle, Artigo “Hobbes”.DICTIONNAIRE HISTORIQUE Et CRITIQUE, 4e édition, Tome Second (C-I). Amsterdam et Leyde 1730
38 Thomas Hobbes Leben und Lehre (Stuttgart-Bad Cannstatt, 1971), páginas 272-273.
39 Cf. El Asalto a la Razon. La trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta Hitler. (Barcelona, Grijalbo, 1968), páginas 480-481.
40 Tönnies, op. cit. páginas 272-273 e Diderot, Plan d´mune Université… in Versini, L. (Ed.) Oeuvres de Diderot, T.III, (Paris,Robert Laffont,1995), página 445.
Fukushima e responsabilidade. Hans Jonas.
As notícias do Japão desafiam todo o pensamento ético. Elas também geram asserções sensatas ou desvairadas, como em todos os traumas coletivos, antigos ou contemporâneos. No pretérito, as pessoas se perguntavam se a culpa pelas desgraças seria dos deuses. Hoje, elas interrogam a ciência, a técnica, os alvos humanos. A busca de culpados mostra que tais problemas ainda são discutidos sob o signo das paixões e medo, longe da razão. Para desculpar os deuses, foi criada a Teodicéia. Os homens são indesculpáveis.
Hans Jonas, filósofo judeu nascido na Alemanha mas com reconhecimento acadêmico pleno nos EUA, refletiu sobre o futuro a partir da tragédia vivida em Hiroshima e Nagasaki. Longe de terem sido episódios inesperados, aqueles eventos revelam, diz o pensador, uma senda de horror pelo uso irresponsável das técnicas. Após a energia nuclear, afirma ele, a natureza passou a ser radicalmente alterada pelos homens. O que antes era nexo externo entre a nossa espécie e a natureza (catástrofes pluviais, maremotos, etc) agora tem impulso humano e pode resultar em desastre. Daí, a proposta do “princípio responsabilidade” para uma nova ética. O título de seu livro "Das Prinzip Verantwortung: Versuch einer Ethik für die technologische Zivilization" —O Princípio de Responsabilidade, à procura de uma ética para a civilização tecnológica— (), merece análise. Quando falamos em “responder”, de imediato vêm à tona as raízes jurídicas do nosso pensamento. “Respondere” no direito romano manda “garantir em troca, assegurar”. “Verantwortung” é responsabilidade diante de alguém que possui direitos. O vocábulo se aproxima da tese inglêsa e democrática sobre a necessária “accountability”. Com os Levellers, todas as autoridades do Estado, antes só responsáveis diante do Ser Supremo, têm o dever de prestar contas à cidadania. Tal doutrina custou a cabeça de Carlos 1. A mesma regra levou Luis 16 à guilhotina. Os EUA foram edificados sobre aquela base. Com Napoleão, a norma ética foi afastada em proveito da razão de Estado. Mas ela é essencial em toda política com pretensões democráticas.
Voltemos a H. Jonas. Antes das recentes inovações tecnológicas, o sujeito humano não podia alterar o mundo. Autores revolucionários, a exemplo de Karl Marx, deixaram de interpretar o universo, exigindo a sua plena alteração. “Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert, es kommt aber darauf an, sie zu verändern”. A profecia de Marx, imoderado admirador da técnica, foi realizada na era nuclear. Com ela surge enorme aporia, jamais proposta às mentes humanas. Não se trata apenas do sentido de nossa existência, mas da própria existência. É possível, com o simples manejo de botão, arrancar a vida do planeta e, mesmo, aniquilar a Terra.
Não só no campo bélico se instalou o desejo ilimitado de impor outras formas ao mundo, chegando à sua destruição. Também na medicina e na genética existe o desejo de alterar a estrutura somática do próprio ser humano. No controle dos comportamentos, na medicação, no exercício da engenharia e da medicina, surgem fatos inquietantes que atraem os pesquisadores responsáveis. Cito apenas, escolhendo entre muitos, Jonathan Moreno. Especialista em bioética, consultor do Congresso e do governo nos EUA, ele tem alertado coletividades e indivíduos para os caminhos da pesquisa, quando ela tenta modificar corpos e almas visando a "melhoria" do padrão humano. Como, antes de Moreno, asseverou Hans Jonas, estamos realizando tais projetos, mas nada garante que eles estão à nossa altura, ou que temos o direito de os efetivar.
Não podemos manter atitude despreocupada com o resultado de nossas façanhas técnicas. Temos o dever de preservar a vida humana e a do planeta, contra experimentos e aparelhos que não garantem o nosso patrimônio biológico ou espiritual. Jonas não segue Rousseau e menos ainda os ecologistas místicos. Nele não ocorrem frases ridículas sobre a "mãe natureza" ou sentenças tolas como "os terremotos e tsunamis têm origem no abuso humano". Seu diagnóstico é cheio de matizes e admite que a técnica possui valor inquestionável. O perigo reside no seu uso sem a necessária prudência. Aliás, ele não deixa de seguir o princípio esperança elaborado por Ernst Bloch, outro crítico das administrações burocráticas, marxistas ou capitalistas.
Responsáveis diante de quem ? Tal é a pergunta de Jonas. Não perante a natureza, pois ela não é portadora de direitos. Somos responsáveis pela nossa vida no uso dos recursos naturais. Não sendo possível interromper o movimento científico e técnico, importa lutar contra a tirania tecnocrática. É preciso que admistradores e políticos respondam diante dos governados e de toda a humanidade. Urge que eles sigam o mandamento ético que manda agir "de tal modo que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida autênticamente humana na Terra, durante o maior tempo possível". Jonas não tem fé ingênua em governantes que se regem segundo os alvos do poder, mas apela para a responsabilidade de todas as pessoas. O imperativo categórico é universal.
"A tecnologia, ao contrário da ciência, justifica a si mesma apenas pelos seus efeitos, não por si mesma e, assim, dados certos efeitos, avanços posteriores podem se tornar indesejáveis". (Jonas). Diante de situações dolorosas como a do Japão, o princípio da responsabilidade define tarefas para os que, sem cair no misticismo ecológico, desejam ser sucedidos, "no maior tempo possível" por seres humanos nesta partícula do universo a que demos o nome de Terra. Sem responsabilidade, morre qualquer esperança.
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Música e política.
Roberto Romano
Um lugar comum da filosofia política é o símile entre cidade e ordem musical. Na Renascença, François Hotmann usa as imagens antigas da harmonia para descrever o governo desejável. As figuras, como é previsível em alguém nutrido pelo pensamento antigo, são extraídas de Platão e de Cicero. Hotmann cita “a bela passagem” ciceroniana sobre o bom tempero musical do governo cuja fonte, afiança, é a República de Platão (escrita, diz Hotmann, com maestria na lingua grega “en si bons termes, qu’ il ne soit possible de lui donner une telle grace en la notre”) na qual o filósofo diz : os que tocam instrumentos musicais ou cantam em várias pessoas, “seguem certa medida e ressoam um canto harmonioso, mistura de vozes diversas reunidas e concordes, as quais se chegam a se fragmentar um pouco apenas e sair do tom, fazem mal aos ouvidos dos que as ouvem. E no entanto aquela harmonia só vem da perfeita consonância, bem acordada, de vozes diferentes.” De modo idêntico, segue Hotmann, “no governo da coisa pública, composta de pessoas de alta, média e baixa qualidade, quando as diferentes partes se unem, se ligam e se incorporam, não existe harmonia tão musical, nem melodia melhor acordada. A concórdia procede da união, caridade e mistura dos cidadãos da mesma urbe, como se fosse uma forte corrente e rija, para garantir o estado de uma coisa pública que não dura muito tempo sem justiça”.
Não apenas no lado protestante e rebelde à corte, ao qual pertencia Hotmann, foram postos em movimento doutrinas e saberes sobre a ordem musical de mundo e política. Entre 1564 e 1566 a rainha regente, Catarina de Medicis, e seu filho rei Carlos tentaram por todos os meios pacificar o Estado e a sociedade. Eles viajaram pelo interior da França buscando apaziguar os ânimos e cooptar novos aderentes para a corte. Mas a paz de Amboise, compromisso instável entre governantes e rebeldes que durou quatro anos, foi rompida em setembro de 1567 pelo príncipe Condé, protestante e líder dos reformados. O príncipe temia que Filipe 2, localizado próximo da fronteira entre Países Baixos e França para reprimir a revolta local, entrasse na França para apoiar Catarina de Médicis e vencer os protestantes. Foi tentado o rapto do rei. Além dos motivos religiosos para o ato, alvos políticos foram expostos, como o pedido de convocação dos Estados. A revolta de Condé vai de 1567 a 1569 e foi tratada como a anterior guerra do “Bem Público” de 1465, derrotada por Luis 11. Catarina venceu batalhas militares contra Condé. O movimento inteiro dos nobres protestantes era político e religioso, na tentativa de enfraquecer a Igreja Católica e a presença espanhola na política interna da França. As sedições levadas pelos huguenotes conseguiu o afastamento de Miguel de l ‘Hospital em maio de 1560. A liderança militar dos reformados era mantida por Gaspar de Coligny. Editos de tolerância nada valeram e não trouxeram paz à França, católica ou protestante. O edito de Saint Germain ofereceu aos huguenotes a liberdade de consciência, o culto por eles praticado antes das lutas e quatro cidades armadas (La Rochelle, Cognac, Montauban. La Charité). Assim, o rei reconhecia o partido da Reforma como potência militar autônoma e não apenas como uma dissidência religiosa. O sonho da harmonia política sob o rei se desfazia a cada instante. O monarca não mais garante a segurança geral da França.
Apesar desse fracasso, o campo noético da França, no relativo ao monarca, acentua a doutrina platônica, ou neo platônica, que afirma a hierarquia política (constante nas doutrinas do neo platonismo, em especial pela antiga tradição que passou por Santo Tomás de Aquino, de Dionísio o pseudo areopagita) e a idéia de harmonia. A corte de Carlos 9 nutriu pensadores que assumiram a exigência de hierarquia na ordem pública e de harmonia no reino, devida à pessoa do monarca. Em 1570 Carlos 9 incentiva a fundação da Academia de Música. Fundada por Jean-Antoine de Baïf em aliança com Ronsard e outros, seu objetivo era compor música segundo o modelo antigo e “acordar”a poesia com a música, conjugando sílabas francesas e notas. Assim, pensavam eles, seria possível atingir uma harmonia perfeita, concebida como fundamento do universo e da alma, prelúdio para o domínio das paixões humanas.
É com esse horizonte que o rei tenta, a partir da Paz de Saint-Germain, controlar a ordem política na França. Na tentativa de pacificação interna (que dera a Coligny lugar no Conselho de Estado), o casamento de Margarida, filha de Catarina, com Henrique de Navarra, líder dos protestantes depois da morte de Condé, serviu mais para erguer protestos de ambas as partes, a católica e a protestante, do que para definir uma paz duradoura e profunda. As coisas assumem rumo incontrolável com a tentativa de assassinato de Coligny por incitamento do duque Henrique de Guise.
Com essa situação insustentável, Carlos 9 e sua mãe tentam o golpe de Estado conhecido como a Noite de São Bartolomeu. Contra o golpe se levantam, como previsível, os protestantes e seus intelectuais. Hotmann será um deles. Dentre as fontes explícitas de Hotmann surge Platão nas Leis (sobretudo o livro III). A concórdia entre os humanos, a tolerância diríamos se estivéssemos no século 18, só é possível se os legisladores tiverem como referência o modelo musical.
Faço uma diversão em nosso tema, para adiantar alguns pontos importantes ao assunto. A figura da pacificação trazida pela música seguiu sua trilha até os nossos dias. No século 19 ela vigorou entre os românticos, teóricos e poetas. Shelley (1) resume o ponto ao enunciar que “o homem é um instrumento sobre o qual uma série de impressões internas e externas são conduzidas, como as alternâncias de um vento sempre mutável numa harpa eólica, que a move por seus movimentos numa sempre mutável melodia. Mas existe um princípio no ser humano, e talvez em todo ser sensível, que age de modo diverso do que ocorre na lira, e produz não só melodia, mas harmonia, por um ajuste interno dos sons e movimentos que excitam as impressões que os excitam”. (2)
O tema banal da harpa eólica se relaciona com a fábula da estátua egípcia do jovem Menão, onipresente na literatura romântica. Menão seria o filho de Titonius e Aurora morto na guerra de Tróia. Seu túmulo seria frequentado por um pássaro. Na poesia de Erasmus Darwin, “a gigantesca estátua de Menão no seu templo de Tebas, tinha uma lira em suas mãos que, muitos escritores críveis nos asseguram, ressoa quando o sol nascente nela bate”. (3) Entre o delírio dos apreciadores de ópio e do retorno à natureza, na qual brotaria a música melodiosa da concórdia comunitária, contra a via moderna e ao maquinismo da sociedade e do Estado, temos, portanto, as doutrinas humanistas de vários matizes, da Renascença ao século 18.
Montesquieu é escritor estratégico quando se trata da harmonia dos poderes estatais e das leis. Ele se refere à música e aprecia a sua função pública na política, moral e ideológica. No capítulo oitavo do livro IV (Espirito das Leis) são analisadas a força e a importância da música como instituição política da Grécia, tendo como base Platão e Aristóteles. Montesquieu explica, sem demasiada originalidade é certo, o quanto importa dar aos cidadãos um ofício que tempere a educação demasiado bélica. A música deveria “amansar os costumes” porque “de todos os prazeres dos sentidos, nenhum corrompe menos a alma”. O filósofo retoma o tema dos poderes morais da música. (4)
Catherine Kintzler, em belo artigo sobre o tema, passa rápido em demasia pelas teses de Montesquieu. No livro 4, capítulo oito citados, o filósofo trata de um paradoxo grego quando trata da música e dos costumes. Em primeiro lugar ele cita Políbio e Platão, sempre no sentido de se providenciar a atenuação da ferocidade guerreira. “Platão não teme dizer que não é possível modificar alguma coisa na música sem que mudanças ocorram na constituição do Estado”. Depois ele cita Aristóteles, Teofrasto, Plutarco, Estrabão, afirmando que o elo da música com as leis e costumes “é um dos princípios de sua política”. A partir daí, temos uma análise, de fundo econômico e social, que tenta explicar o vínculo entre música e legalidade. Nas cidades gregas, sobretudo as dedicadas à guerra, os trabalhos destinados ao ganho de dinheiro eram indignos do homem livre. A democracia manteve aquele veto. E foi apenas “pela corrupção de algumas democracias que os artesãos chegaram à cidadania. É o que Aristóteles informa e sustenta : uma boa república jamais lhes dará o direito de cidade”. A agricultura era própria dos servos, dos povos vencidos (Ilotas em Esparta, Periécios em Creta, Penestas na Tessália). Todo comércio baixo era infame, pois nele um cidadão servia um escravo, um locatário, um estrangeiro. Donde, adianta Montesquieu, um problema sério: seria preciso que os cidadão fossem ocupados, não se apegassem à preguiça. Mas eles não poderiam comerciar.
Logo, a ginástica e a guerra eram muito próximas. A sociedade grega seria uma espécie de clube de atletas e guerreiros. Tal ocupação torna os indivíduos duros e selvagens. Ela precisa ria ser temperada pela música e por outros afazeres. A música, por si só, não amansaria os costumes, mas ela atenuaria a ferocidade. Ela ajudaria a alma a sentir ternura, doce prazer, piedade. Existe, no trecho, um aguilhão contra o pensamento à moda de Rousseau : “Nos autores de moral, que, entre nós, proscrevem tão fortemente os teatros, nos fazem sentir bastante o poder da música sobre as almas”. Mas porque, interroga Montesquieu, escolher a música para amansar os costumes ? “De todos os prazeres dos sentidos, nenhum deles corrompe menos a alma. Enrubescemos ao ler em Plutarco que os tebanos, para amansar os costumes de seus jovens, estabeleceram por lei um amor que deveria ser proscrito por todas as nações do mundo”. (5)
Mas não apenas Montesquieu prestou atenção aos conceitos éticos sobre a música, engendrados pelos filósofos gregos. No Dicionário de Música (verbete “Música”) Rousseau afirma que “a música era muito estimada pelos povos da antiguidade, principalmente pelos gregos, e esta estima era trazida pela potência e efeitos surpreendentes que eles atribuíam a tal arte. Seus autores não acreditavam dela nos fornecer uma idéia demasiado grande, nos dizendo que ela era usada no céu e que ela a principal diversão dos deuses e das almas bem aventuradas. Platão não teme dizer que não pode existir mudança na música que não cause outra na constituição do Estado, e pretende ser possível assinalar os sons capazes de fazer nascer a baixeza da alma, a insolência, e as virtudes contrárias (…) a música integrava o estudo dos antigos pitagóricos. Eles a usavam para excitar o coração tendo em vista ações louváveis e para o inflamar do amor da virtude. Segundo tais filósofos, nossa alma era formada, por assim dizer, apenas de harmonia, e acreditam restabelecer, por meio da harmonia sensual, a harmonia intelectual e primitiva das faculdades anímicas; ou seja, a que, na sua opinião, nela existia antes que animasse nossos corpos e quando ela morava nos céus”. (6)
Apenas para não ficar nos poucos exemplos do romantismo, entre os pensadores situados no século 18, citemos Diderot. Poderíamos falar bastante sobre o elo entre harmonia, sociedade e poder estatal no Enciclopedista. Basta que recordemos o Sobrinho de Rameau. Mas no pensamento de um adversário maior dos enciclopedistas, inimigo de Rousseau, encontramos o panegírico da harmonia para determinar a natureza, a sociedade e o Estado. Trata-se de Jean-Philippe Rameau. O século 18 se define, normalmente, pelo classicismo, quando mais apropriado seria dizer que nele percebemos os derradeiros passos do barroco. A polifonia é criticada naquele tempo, sobretudo a propósito da opera. Como adianta uma analista da música no século das Luzes, não seria possível para as mentes cartesianas do período aceitar ser possível executar várias coisas ao mesmo tempo. “Se as vozes apenas se repetem, não existe interesse; se dizem coisas diferentes, é uma cacofonia incompreensível”. (7) A música como finalidade em si mesma é algo difícil de ser compreendido no século 18. Ela é pensada no conjunto dos costumes, da ordem política, religiosa, etc. Em tal contexto ela ainda é utilizada para a entender a noção de mimesis. E aqui as doutrinas gregas sobre a música mostram importância estratégica nos séculos 17 e 18.
Descartes, Mersenne, Kircher e outros conheciam rudimentos da música na Grécia antiga, como aliás também antes deles os mosteiros beneditinos. Tanto o Dictionnaire de Musique de Rousseau quanto a Enciclopédie diderotiana abrem caminho para o elo da música moderna com a antiga. Segundo Béatrice Didier, surpreende o número de informações sobre a música grega em Rousseau. Este último teria ensaiado aprender a lingua tendo em vista preparar seus artigos de música para a Enciclopédie. (8) Para os filósofos das Luzes, a Grécia teria sido a primeira terra a possuir um sistema musical coerente, embora não o mais antigo, pois tal elemento seria próprio do Egito. Alguns, no entanto, defendiam ser a China o lugar onde a música surgiu com anterioridade. O artigo “Música” da Enciclopédie enuncia que os antigos “diferem muito entre si sobre a natureza, o objeto, a extensão e as partes da música. Em geral eles davam à palavra um sentido muito mais extenso que o de hoje. Não apenas sob o nome de música eles compreendiam (…) a dança, o canto, a poesia; mas até a coleção de todas as ciências. Hermes definiu a música como o conhecimento da ordem de todas as coisas, esta era também a doutrina da escola de Pitágoras e a de Platão, os quais ensinavam que tudo no universo era música. Segundo Hesíquio os atenienses davam o nome de música a todas as artes”.
A música, para boa parte dos pensadores no século dezoito seria uma arte da totalidade. “O teatro grego seria justamente este espetáculo completo”. A Opera florentina se inicia com o modelo do teatro grego no qual “as tragédias eram cantadas” (Rousseau, “Fragmentos de Observação sobre Alceste …de Gluck”). (9) Segundo Rousseau o grego, ritmado pela alternância de longas e breves, já era musical e na música ”as medidas eram apenas fórmulas e ritmos fornecidos para todos os arranjos das sílabas longas ou breves, e pés suscetíveis à lingua e à poesia. De modo que, embora possamos distinguir muito bem no ritmo musical a medida da prosódia, a medida dos versos e a medida do canto, não podemos duvidar que a música mais agradável ou a melhor cadenciada seja aquela na qual estas tres medidas concorrem unidas da maneira mais perfeita possível”. (Escritos sobre a Música)(10)
Importa entender o sentido amplo da palavra “música” dos antigos ao século 18, para não cairmos na esparrela do romantismo e de seus representantes tardios como R. Wagner, sobre a ”obra de arte total”. (11) Segundo este último, tal prática seria “novidade” sua, obra de seu gênio. No entanto, basta abrir os textos da renascença, como os de Hotmann, para nos dar conta da amplitude do termo e da coisa para os pensadores que produziram antes do século 19. Segundo Condillac “a palavra música compreende não só a arte que ela designa em nossa lingua, mas ainda o gesto, a dança, a poesia e a declamação. A tais artes reunidas, pois, é preciso relacionar a maioria dos efeitos de sua música e desde então eles não surpreendem” (Ensaio). (12 ) Mesmo o grande inimigo do teatro, Rousseau, exclui a tragédia grega da condenação geral emitida na Carta a D’ Alembert sobre os Espetáculos. Naquelas peças canto e palavra seriam unidos, o que se perdeu com a degradação da sociedade. A degradação da música, aqui, tem o sentido que lhe foi dado por Platão na República e nas Leis.
A questão da harmonia é essencial naqueles textos, e assim eles foram percebidos na renascença e na idade moderna. Ao analisar o pensamento musical e metafísico de Rameau, (13 ) Catherine Kintzler diz que o compositor “não contente por ter submetido a música a um modelo matemático (…) empreende uma cruzada teórica cujo fim confesso é ‘abrir caminho’ alí onde reinava a obscuridade, empreende uma cruzada teórica para estabelecer a música no centro e no topo do saber. A música não poderia ser uma disciplina subordinada. Ela deveria se tornar a rainha das ciências”. Desde 1750 Rameau diz que a música pode ser vista como “o espelho da natureza na parte científica”. Logo ele inverte o papel da música e da matemática, pois no seu entender a segunda deve ser submetida à primeira. A música se transforma em princípio universal de inteligibilidade. A música encarna o fundamento material de toda verdade. É dela que as demonstrações matemáticas extrairiam sua certeza. Assim, a harmonia musical deve ser levada a sério: “não existem obras da natureza ou da arte na física ou moral, que não sejam suscetíveis do termo harmonia universal, harmonia celeste, harmonia do corpo humano, harmonia em pintura, arquitetura, harmonia do governo, etc. Se perguntarmos aos pintores o que significa acordar um quadro, veremos que é contentar o olho o que se faz em música para contentar o ouvido para chegar à justeza exata e rigorosa e sensível da música, a qual parece nos ter sido concedida pela natureza como o tipo sensível do que deve estar em proporções, ou seja, de toda a perfeição”. (14 )
Entremos no vivo da questão, com a fonte referida em quase todos os autores renascentistas ou dos séculos 17 e 18, para determinar a amplitude da música como perspectiva universal que engloba as artes e a política. Refiro-me naturalmente a Platão nas Leis, sobretudo no livro terceiro. Sem ignorar os conhecimentos do leitor sobre os escritos platônicos, peço vênia para resumir os pontos essenciais daquele texto. A pergunta inicial fornece todo o movimento do escrito: qual poderia ter sido a origem da sociedade política? (676 a). Para encaminhar a pesquisa, o ateniense propõe um ponto de partida, o que determina como os Estados caminham tanto no sentido da virtude quanto no do vício. E vem a proposta de recuar a tempos sem limites, seguindo as mudanças ilimitadas ocorridas naqueles tempos. Assim, trata-se de investigar o tempo no qual os Estados se organizaram em sociedades políticas, tempo que deve ser concebido, o que não é fácil, porque faltam meios para o fazer. Tal tarefa é árdua e sem instrumentos eficazes. A dificuldade de semelhante tarefa a torna ἀμήχανος (sem esperança, impraticável). Durante aquele tempo milhares e milhares de Estados foram constituídos e na mesma proporção, milhares desapareceram. Tais Estados conheceram todas as espécies de organização política. Eles não passaram de pequenos a grandes e de grandes a pequenos? Está posta aqui, desde já, o problema do crescimento do Estado, com o imperialismo. Falaremos do ponto mais tarde. Tal mudança quantitativa (maior/menor) tem seu correlato na qualidade: as organizações seriam piores ou melhores, mudando de sentido com o tempo. Trata-se, pois de captar a causa (palavra que vem de αἴτιος, o responsável, o culpado) de semelhantes modificações.
O tempo incomensurável, no entanto, e as mudanças qualitativas que ele encerra, poderia ser examinado, para se descobrir alguma verdade, segundo as tradições arcaicas sobre os eventos ocorridos. O termo empregado por Platão agora é παλαιοὶ λόγοι (os ditos primeiros, muito antigos). As narrativas rezam que os homens sofreram graves cataclismos (dilúvios, epidemias, etc) que só deixaram subsistir uma parte deles. No dilúvio, por exemplo, os pastores das montanhas teriam escapado em pequeno número. Eles seriam ignorantes do resto das técnicas (que não o pastoreio) quanto das maquinações (μηχανῶν, plural, feminino, no genitivo vindo de μηχανή, instrumento, astúcia) usadas pelas pessoas das cidades umas contra as outras, para ter mais bens do que os demais (o termo é pleonexia) para ser mais importante que eles (o termo agora é philoneikia, amor da vitória sobre os demais, o que leva ao significado de sectarismo, partidarismo, etc) sem falar das safadezas (κακούργημα, truques baixos, fraudes) usadas por uns contra os outros.
As cidades situadas na planície e beira mar foram inundadas e destruídas e com elas os instrumentos bem como as descobertas de valor implementadas pelas artes, sobretudo a técnica politica e demais saberes (sophias). Aqueles saberes ficaram escondidos, até que Dédalo as revelou em alguma parte, Orfeu em outras e Palamedes ainda outras no domínio musical. Marsyas no Olimpo e depois Anfião quanto à lira e outra infinidade de inventos, os quais, podemos dizer, datam de ontem ainda.
Após a destruição, a humanidade vive num estado terrível de solidão, em imensas extensões de terra desolada. Morreu a maioria dos animais, salvo talvez pequenos rebanhos de chifre, sem dúvida cabras, insuficientes para nutrir os sobreviventes. E da organização política e das leis, nada sobrou. Nada restou também da virtude em abundância e da perversidade idem. Os homens ignoram “as belas coisas da vida citadina”, na virtude e no vício. Com o tempo e o aumento da espécie humana, tudo chegou à situação presente. O provável é que as mudanças se tenham ocorrido gradativamente. Descer dos montes para a planície seria, para todos os sobreviventes, motivo de um terror que ressoava em suas almas. Como seu número era pequeno, sentiam alegria no encontro com os semelhantes. Mas os instrumentos de comunicação desapareceram com as demais técnicas, os que teriam sobrado, estavam gastos. Para ter novamente tais comodidades, foi preciso muito tempo.
Sem instrumentos que possibilitam os encontros, é menos importante a dissenção (στάσις) e a guerra (πόλεμος). Isolados, os homens tem prazer de se encontrar, com sentimentos de benevolência mútua. Como eram poucos não precisavam brigar pela comida, roupa, utensílios, etc. Eles eram pobres e não tinham motivos para as lutas. “Uma comunidade (συνοικία) na qual não comungariam a riqueza ou pobreza, é nela que se realizaria o a mais alta (γενναιότατα) nobreza ética. Nela não existiria desmesura (ὕβρις) , injustiça (ἀδικία), nem inveja (ζῆλοί) ou rivalidade (φθόνοι )” .
Aqueles homens teriam bondade de coração (εὐήθεια) e o que lhes era dito belo ou feio, o consideravam assim e se conformavam pois nenhum tinha o talento de suspeitar a falsidade. Eles viviam de acordo com o que lhes diziam sobre os deuses e os homens. Eles ignorariam os processos e dissenções, artes que consistem em maquinar (μηχανή) engodos em palavras e atos injustos, para se aproveitas uns dos outros. E como eles precisaram de leis e legisladores ? Se eram bons, não precisavam de leis. Eles não tinham escrita, mas por costume (ἔθεσι) as normas (νόμοις) eram as legadas pelos seus antepassados (πατρίοις).
Assim, eles dariam o nome de “ hereditariedade”(δυναστείαν) ao poder político, forma que ainda hoje existe entre gregos e bárbaros. Eles não precisavam de assembléias, pois cada chefe dava a lei para as crianças e mulheres. Com o aumento das pequenas comunidades primitivas, cada qual com seus costumes e devido ao seu isolamento recíproco, cria-se uma grande comunidade, composta das pequenas, e cada representante vinha à grande comunidade com as suas leis próprias, deixando de lado as leis das outras comunidades. Eles escolheriam para representá-los os que mais identificados fossem com os costumes e leis de sua comunidade, a tribo. Eles recebem o nome de legisladores, instituindo magistrados para trabalhar com o que se poderia chamar de rei, se definindo algo como um governo dos melhores (ἀριστοκρατία).
Uma terceira forma, é analisada depois da dinastia e da aristocracia. Tróia, ao deixar as alturas se estabeleceu numa grande e bela pradaria, sobre uma colina pouco elevada em cuja vizinhança corriam belos rios. Com os tempos, os seus habitantes esqueceram o dilúvio. Outras cidades foram iniciadas, que conduziram expedições contra ela. Os aqueus passaram dez anos diante dela a pudessem conquistar. Enquanto isso, nas cidades dos atacantes surgiam sedições fomentadas pelos jovens. Estes, quando os guerreiros voltavam, não os acolhiam como o devido, nem mesmo com justiça, mas com assassinatos, banimentos, degolação. Os que foram assim tratados mudaram seu nome. De aqueus eles passaram a se chamar dórios, pois Dorieus reuniu aquela gente. Esta é a história dos espartanos.
Toda a questão das leis surgiu, diz o ateniense, de uma digressão sobre a música e a embriaguez. Na via seguida, chegamos ao estabelecimento de uma população em Esparta, que teria sido um estabelecimento perfeito, o que nos leva até Creta, que tinha leis irmãs à de Esparta. Com a digressão, foram examinadas três formas políticas, que se sucederam no tempo imenso. Estamos diante de uma quarta, ou povo. Nos coloquemos nos tempos em que Esparta, Argos, Messena estavam sob o domínio dos ancestrais. Em Argos, agora independente do todo, Temenos se tornou rei, Cresfontes em Messena, Procles e Cresfontes em Esparta.
Um triplo juramento ligou cada um das três realezas aos três Estados, juramento conforme as leis instituídas para regular as relações dos governantes com os governados. Os primeiros se empenhariam a não, com a passagem do tempo, e de sua linhagem, fazer uso excessivo da força no uso de sua autoridade; os segundos, fortalecidos pelo juramento solene dos governantes, se comprometiam a nunca fazer algo para derrubar a realeza, nem abandoná-la aos que, no estrangeiro, desejariam derrubá-la. O juramento serviria para ajuda mútua entre reis e povos vitimas de injustiças. Um conselho prudencial para os legisladores : eles deveriam fazer leis que pudessem ser acolhidas de bom grado pela massa popular. Como os professores de ginástica e os médicos devem colocar algum prazer nos seus cuidados.
Entramos agora no ponto mais delicados das leis e da ordem política: o econômico que implica a propriedade. O ateniense diz que para estabelecer a igualdade (o termo de origem é ἰσότης, igualdade) entre os cidadãos, seria preciso que se efetivasse de modo conveniente a regulamentação da propriedade fundiária. Também seria preciso regular as dívidas, liquidando-as. Quando um legislador deseja mudar algo neste campo, todos se levantam contra ele e alegam que não se deve mexer no caso. E chegam imprecações contra os que propõem uma nova partilha das terras e modificações nas dívidas, de modo que tais problemas, para qualquer legislador, definem uma aporia (ἀπορία ).
Em Esparta, no entanto, graças à excelente distribuição das terras e da pouca importância das dívidas, não havia lugar para as competições invejosas. Como se deu então a quebra nos elementos constitucionais? Desde que os três estados foram constituídos politicamente, dois deles logo irão corromper (διαφθείρω, fut.) sua organização interna e suas leis, um só, Esparta, permaneceu fiel.
Enquanto a constituição dos três Estados era mantida, havia segurança para cada um deles e para todo o Peloponeso. Isto ocorre à semelhança do que se deu com Tróia, arrogante por confiar em demasia no poder dos Assírios. O que subsistia do prestígio daquele império era algo considerável. Como ainda hoje tememos (φοβέω) o Grande Rei, as pessoas daquele tempo temiam a reunião de povos agrupados sob uma única autoridade. Tróia tomada pela segunda vez, havia ali havia alí pelos Assírios (a cidade integrava seu império) poderosa queixa contra os gregos. Contra tal ameaça, os gregos acreditavam que constituindo um só exército, repartido pelos três Estados sob a autoridade de três irmãos, eles teriam um arranjo para suas forças que as faria superiores às que estavam presentes na expedição contra Tróia. Tal organização, o poder nas mãos de uma só família, parecia durável aos gregos. Mas a esperança mostrou-se vã. Uma parte se colocou em guerra contra as demais.
Qual a causa da ruptura desastrosa? Todos os homens possuem um comum objeto de desejo, tudo o que ocorre deve ocorrer conforme as exigências de nossa alma, de preferência tudo sem exceção, pelo menos tudo o que pertence à ordem humana. E o que pedimos nas orações, pedimos também aos que amamos. Um filho, no entanto, pode pedir aos deuses algo do qual seu pai pediria exatamente o contrário, quando se trata de um pedido desarrazoado. As preces devem ser dirigidas para o que é razoável. O legislador deve seguir este princípio. Ele deve estabelecer tendo em vista a virtude que comanda a tudo, o pensamento refletido (φρόνησις ) a inteligência (νοῦς) a opinião (δόξα) com o amor (eros), com o desejo ( ἐπιθυμία) que concorda com as primeiras atividades de nossa alma. Platão diz que enuncia em forma de brincadeira ( παίζω) com o que deveria ser assumido com sério (σπουδάζω) ( ) e vice versa. Para quem é desprovido de inteligência, é arriscado usar a prece, pois pode ocorrer o contrário do que se pede. A causa da ruína das realezas dóricas não está em algum medo mas no fato de que na guerra eles não souberam dizer quem deve mandar e quem deve ser mandado. A causa está na sua ignorância sobre o que mais importa nos assuntos humanos.
O legislador deve se esforçar na imposição ao Estado de toda prudência (φρόνησις) possível, purgando-o de sua desrazão (ἄνοια) tanto quanto estiver em seu alcance. Qual a ignorância visada? A produzida quando tendo julgado bela uma coisa, ou boa, não a amamos e pelo contrário, a odiamos. E quando amamos e procuramos o que consideramos perverso e injusto.
Tal discordância entre pena e prazer de um lado, e de outro entre a opinião razoável é a suprema ignorância e maior porque ela é própria da massa (πλῆθος) (14) pois a parte da alma sujeita à pena e ao prazer corresponde exatamente, no Estado, o povo e a massa. Quando a alma se opõe aos seus conhecimentos ou às suas opiniões, ou ao que é razoável (o que na natureza é feito para comandar), chamo isto nela de “desrazão” (ἀμαθία, ignorância, estupidez) e assim também no Estado, quando a massa não obedece os magistrados e as leis. O mesmo ocorre nos indivíduos, quando os bons princípios são ineficazes e se deixam agir ao contrário do que eles prescrevem, afirmo que os ignorantes são os seres mais dissonantes.
Nenhuma magistratura pode, portanto, ser atribuída a alguém que padeça de semelhante ignorância, mesmo que tenham a mente rápida e fina. Deve-se, ao contrário, chamar de sábios aquele cujo caráter é o oposto, mesmo quando não sabem ler ou escrever (ou mesmo nadar) e lhes atribuir os cargos porque justamente são pessoas sensatas. Na sinfonia (συμφωνία), a mais bela e elevada consiste no mais alto saber (σοφία), partilhado pelo homem que vive de maneira razoável. Quem carece deste saber arruina a sua casa, é impossível que seja um salvador (σωτήρ) para o Estado. Do indivíduo ao Estado, temos a questão da harmonia.
Num Estado é preciso quem obedeça e quem manda. O último deve possuir títulos para tal, nos grandes Estados, nos pequenos e nas famílias. Nestas, o pai ou a mãe comandam os filhos. No Estado, as pessoas de alto nascimento (γενναῖος) devem comandar os de baixa extração. Depois, os anciãos devem comandar os jovens, o escravo deve ser comandado pelo senhor. Depois, o fraco deve ser comandado pelo forte. Mas há um sexto modo de comandar, por título, o ignorante (ἀνεπιστήμων) deve obedecer o sábio, o que tem prudência (de φρονέω).
Há o modo de obedecer que não segue a natureza, mas segue a natureza, ou melhor, segue o comando natural da lei sobre as pessoas que se submetem voluntariamente, sem recurso à violência. Chegamos ao sétimo título, o sorteio, quem comanda é o que ganhou, o perdedor será comandado. Este título depende de ser amigo dos deuses ou presenteado pela boa fortuna (εὐτυχής).
Poderíamos brincar (παίζω) com os se põem a redigir leis e lhes perguntar quantos títulos ao comando existem e se eles não enxergam os contrastes que existem entre aqueles títulos. Temos aqui uma fonte de sedição (στάσις) . No caso dos reis de Argos, as causas de sua ruína e a perda de potência (δύναμις) do povo grego foi ignorar as palavras de Hesíodo segundo a qual, em muitos casos, “a metade vale mais do que o todo”. Sempre que é prejudicial por a mão sobre o todo, quando basta fazer isto com a metade, a justa medida vale mais do que o que o desmedido pois é melhor do que o pior.
Os reis que se arruinaram foram os primeiros a serem atingidos do mal que consiste em ambicionar ter mais (pleonexia) do que permitem as leis estabelecidas. Eles haviam louvado as leis, juraram seguir os seus mandamentos, em palavras. Mas não de fato. Esta discordância (διαφωνία) constitui a mais grave ignorância (ἀμαθία) mas é tida como sabedoria (σοφία). Em razão de tal dissonância e defeito amargo de cultura (ἀμουσία), se corromperam todas as belas coisas da constituição.
A justa medida é essencial na ordem política, como também nas relações do corpo (alimentação) ou técnicas (nos navios, mais velas do que o preciso), na alma direitos excessivos. Sem ela, tudo se inverte. Alí a abundância de carnes que leva à doença, aqui a ilimitação (hybris) que leva à injustiça (adikia). A alma dos jovens não pode suportar o peso do poder, logo ela é infectada da mais grave doença, a desrazão (anóia). Contra tais excessos de poder, cabe ao legislador prudente, graças à justa medida, tomar precauções.
E chega o instante dos pesos e contra pesos do poder. Em Esparta, em vez do rei único, uma dupla de reis, o que restringe o poder à justa medida. Além disso, o voto de 28 anciãos que possuem, nos assuntos mais graves, poder igual ao dos reis. Há um terceiro salvador (σωτήρ), com o poder dos Eforos, um poder que se aproxima do sorteio. Assim, o governo de Esparta é uma combinação de poderes que leva à salvação própria. Juramentos não controlam a alma de um jovem candidato à tirania. Importa limitar a medida dos poderes, fundir num só os três poderes.
Assim, existe de um lado o poder autocrático dos Persas , o poder temperado de Esparta. É preciso sempre o tempero, o acorde correto. Esta teoria do poder tem como pressuposto uma visão do universo e da sociedade como harmonia. E na ordem política, deve ser mantida a ordem antiga, sob o domínio das antigas leis , na qual o povo não tinha soberania (ele não era κύριος) nos assuntos, mas era escravo voluntário ( ἑκών) das leis.
Quais leis seriam as referidas? As relativas à música. Na época antiga a música era dividida segundo espécies e formas que lhe eram próprias. As preces aos deuses eram uma espécie de canto, os hinos. Depois havia uma espécie de canto oposto: lamentos chamados “trenos”. O pean era uma espécie distinta e outra, ligada ao nascimento de Dionisos, o ditirambo, etc. Reguladas as coisas não era permitido abusar de uma das formas, transpondo-as para outras. O poder de julgar sobre elas e julgar com conhecimento de causa e punir os transgressores não pertencia às vaias ou aplausos, mas era decidido por homens sábios naquela cultura que tudo ouviriam em silêncio e, com a varinha nas mãos, estabeleceriam a ordem e advertiriam as crianças e a seus professores. Esta a ordem aceita pelos cidadãos, sem que eles tivessem a audácia de recorrer à gritaria para dar sua opinião.
Os poetas foram os primeiros a quebrar as leis da música. Eles eram dotados para a poesia, eles nada conheciam da Musa enquanto fonte de legitimidade e fé pública, eles misturam as formas, levam tudo a se confundir, pretendem mentirosamente, em sua desrazão involuntária, que na música não existe lugar para alguma retidão e que, além do prazer que se encontra no seu gozo, não existe meio correto de decisão, melhor ou pior. Eles inculcam na massa (πολύς) o hábito de infringir as leis e a audácia de se acreditar capaz de decidir. Resultado: antes, o público não falava no teatro (era ἄφωνος), depois, começou a falar como se entendesse para saber o que é belo na música, ou não, surge então uma “teatrocracia” (θεατροκρατία) depravada que substitui o poder dos melhores juízes. Se apenas em música, e em música apenas, surgisse uma democracia composta por indivíduos de uma cultura liberal, não ocorreria algo tão desastroso. Mas na verdade é pela música que se iniciou, entre nós, com a crença na sabedoria de todo mundo para julgar, a atitude subversiva. Nenhum medo os retinha, pois se acreditavam sábios, e esta ausência de medo gerou a impudência, na audácia de não temer a opinião de quem vale mais do que nós, eis a impudência detestável, efeito da audácia de uma liberdade cuja arrogância é levada ao excesso.
Após tal liberdade, vem outra que consiste em não aceitar voluntariamente (ἐθέλω) ser um escravo (de δουλεύω, ser um escravo) de quem é depositário da autoridade. Depois vem a fuga da escravidão diante do pai e da mãe, diante dos antigos (fugindo de suas admoestações) e buscar um meio de não obedecer as leis. Neste termo, vem o desprezo dos juramentos, da fé publica, o desprezo dos deuses. O livro III termina com a indicação das tarefas do legislador: o Estado a que suas leis serão aplicadas deve ser livre, uma amizade mútua unirá nele os cidadãos, ele terá base no pensamento racional. Consideremos duas organizações políticas, uma despótica e uma livre, em qual delas existe a retidão? Obtendo para cada uma delas em separado um certo limite (poder despótico em uma e o direito de liberar a si mesmo, na outra) vemos que se produz nelas um sucesso excepcional. Quando, pelo contrário, cada uma delas conduzia a coisa ao seu máximo, servidão em uns e o oposto da servidão nos outros, nenhum bom sucesso ocorria.
É possível dizer que a correta constituição deve reunir aspectos da monarquia e da democracia, sendo temperada e permanecendo no justo meio. Todo poder dever ser limitado, tanto no lado do povo quanto no lado do príncipe. Atenas se inclinou em demasia para o lado democrático, a Pérsia do outro. A Pérsia se enfraqueceu porque a obediência dos povos nela se tornou servidão, mas Atenas se enfraqueceu porque a liberdade se transformou em licença, perdendo o sentido da autoridade. O Estado bem ordenado o poder político deve ser distribuído na proporção da virtude, cujos graus são os seguintes : bens da alma, unidos à temperança, bens do corpo, riqueza.
No século 17 a “harmonia das esferas”, doutrina acreditada até durante governo de Luis 14, foi superada pelas teorias de Newton e de Kepler. (15 ) Mas esta reviravolta não acabou de vez com a idéia pitagorica. Em nossos dias existem inúmeros trabalhos sobre o pensamento da harmonia. O tom romântico de semelhante interesse é claro. (16) Trata-se, como nas especulações românticas do século 19 (mas também do século 20) de reagir contra o paradigma da máquina e das suas supostas visões “reducionistas” do universo. Sempre que se ouve falar em “holismo” é possível ver na palavra a senha para a doutrina orgânica sobre o universo, com suas formas de pensar e de agir conservadores. Não por acaso, nos meios que defendem a “pureza” natural, a preservação da natureza, se percebe tal visão conservadora do universo.
Elemento nuclear dessa visão é a idéia de uma “biosfera”, antítese da visão mecânica do universo. Subsumida naquela noção encontra-se a antiga doutrina da “alma do mundo”, ou seja, o universo como ser vivo. Tais especulações se apresentam por exemplo em escritos sobre a Gaia, hipótese lançada por James E. Lovelock (17 ). Na antiga visão pitagorica (na verdade, um amplo conjunto de pensadores que engloba várias escolas filosóficas) (18 ) se determina que o mundo resulta da harmonia, ordenada na proporção da escala musical. Existem trabalhos que indicam o peso do instrumento monocórdio (ou kanon) na filosofia pitagórica e platônica.
Analogia significa “igualdade de ratios” ou proporções. “A palavra também é o módulo ou sistema das ratios no seu número total que fornece as ‘divisões do monocórdio’, o ponto preciso no qual a corda vibrante pode ser interrompida com uma ponte móvel, para ressoar os intervalos fixos ou fundamentais da escala musical, a oitava (2:1); a quinta (3:2); a quarta (3:4); e o tom maior (8:9). As íntegras 6, 8, 9 e 12 constituem o menor número total com o qual o sistema simétrico de ratios que se encontram –a moldura natural das antigas e modernas escalas diatônicas– pode ser expresso”. (19 ) O mais antigo sobrevivente dos livros sobre o monocórdio é de Euclides, o instrumento deve ser mais antigo. Seu uso e significação foram expostos por Ernest G. McClain, sobretudo no livro The Pythagorean Plato (20 )
Tomando os números usados ou derivados similares aos números do monocórdio “McClain identifica seu emprego que se espraia em alegorias numéricas, mitos, metáforas encontradas nos mais antigos livros. Quando Platão caracteriza o bom homem como ‘vivendo 729 vezes mais feliz e o tirano mais penosamente pelo mesmo intervalo’ (República 587e), ele usa o número que define o tríton (a sexta força do três; ou seja, 6/5 acima do tom fundamental). A tensão entre o homem bom e o tirano é comparada à pior dissonância possível no sistema da música ocidental” (cito sempre Graham Pont).
McClain analisa as alegorias numéricas de Platão e mostra como sua teoria política foi modelada pela teoria musical, com as Constituições de Calípolis, Atenas, Atlântica e Magnésia, correspondendo a quatro diferentes “temperamentos”, incluindo a escala temperada, durante bom tempo tida como invenção moderna. A chave das analogias músico-políticas seria a seguinte: a palavra grega syntagma pode se referir tanto ao sistema político quanto ao musical. Um autor recordado por Graham Pont apresenta uma análise importante neste campo. No escrito intitulado Classical and Christian Ideas of World Harmony (21), diz Graham Pont, Leo Spitzer deseja explicar os sentidos compostos da palavra alemã Stimmung e descobre suas relações no arranjo total dos termos harmônicos que ressoam na lingua européia. Com base apenas filológica, Spitzer divide aqueles termos em dois grupos: primeiro os relativos a acordo como “acorde”, “concorde”, etc. O segundo os relativos a “temperança” (tempo, temperamento, etc) . Os dois grupos correspondem à distinção entre ajuste (tuning) pelo número total e tempero (pequenos ajustes que envolvem proporções irracionais).
Spitzer estava intrigado com o significado da raiz das palavras do segundo grupo, um segmento de interrupção. De origem incerta, a variedade das palavras em ‘temp’ e sua ampla distribuição testemunha a existência de uma cosmologia musical muito antiga. Palavras como temenos (lugar sagrado), ‘templo’, ‘tempo’, ‘temperado’, and ‘término’ todas se referem a divisões do espaço e do tempo baseadas, supostamente, nas matemáticas comuns, as quais devem ter sido musicais na origem. A forte associação das ciências musicais e espaciais foi confirmada por Árpád Szabó (22), que argumenta serem os termos da geometria pré euclidiana derivados da teoria musical. Por exemplo, “diastema” significa um intervalo, espacial ou musical, como “corda” ainda tem uma significação musical.
Quando Hotmann, portanto, recorre à noção de Harmonia e a determina a partir das Leis platônicas, trata-se de um poderoso impulso e uma reflexão complexa sobre o Estado, no instante em que se instaura a monarquia absolutista. O problema ético do tempero e da harmonia no comportamento social e político é bem conhecido e analisado no período anterior a Hotmann, como em Montaigne. Basta abrirmos o ensaio “Sobre a moderação” (23 ) O comentário segue rumo à justa medida na ordem das práticas e valores. “Podemos amar a virtude em demasia, e nos comportar com excesso numa ação justa”. Montaigne diz gostar das naturezas “temperadas e médias. A imoderação diante do próprio bem, se não me ofende, me espanta e me coloca em dificuldade para a nomear”. Nem a mãe de Pausanias que arremessou a primeira pedra para matar seu filho, nem o ditador Postumios que mandou matar o seu filho cujo ardor na batalhar o fez jogar-se contra os inimigos, antes de ser a hora, me parecem justos, mas estranhos. “Não gosto de aconselhar, nem de seguir, uma virtude tão cara e selvagem”. E Montaigne cita o texto platônico : “Calicles, em Platão (Górgias) diz que a extremidade da filosofia é nociva, que tomada com moderação ela é agradável e cômoda, mas que no fim ela torna um homem selvagem e vicioso, desdenhoso da religião e das leis comuns, inimigo das conversas, inimigo dos prazeres humanos, incapaz de toda administração política (…) Ele fala a verdade, pois em seu excesso ela escraviza o nossa franqueza natural e nos desvia, por um sutileza importuna, do belo e claro caminho que a natureza nos traçou”. A lição de moderada atividade é vital quando se trata da arte política. (24 ) Nos tempos de Montaigne se tornava exacerbada a luta entre huguenotes e católicos radicais, entre os dois e o Estado francês.
“Nossos ancestrais foram maravilhosamente sábios e avisados ao bem determinar o governo político, de modo que considero seguro dizer que alí reside o único e verdadeiro remédio para todos os nossos males, ou seja, reformar nosso modo de vida no molde das virtudes exibidas por aqueles grandes personagens e reduzir o nosso Estado corrompido, como se ele fosse música dissonante, ao belo e antigo acorde dos tempos de nossos pais”. Assim reza o início da Franco Gallia. A França antiga, segundo Hotmann, seria temperada e harmoniosa como desejam os filósofos. “Nossos maiores, almejando manter sua república na bom temperamento, praticaram a mistura das três espécies de governo”.
O autor da Franco Gallia compara, no mesmo escrito, o Estado cujo governo se tempera e possui Conselhos efetivos e os dirigidos por dois conselhos, o primeiro deveria ser hegemônico, mas não é, ou seja, o Conselho Ordinário e outro, que deveria ser adjunto, mas se torna hegemônico, o Conselho privado que auxilia o monarca. “O primeiro tende a prover o bem de toda a república, universalmente. O outro, pensa apenas em se servir das comodidades e vantagens de um homem. Depois, visto que tais conselheiros moram num só lugar, ou não saem da corte principesca, eles não poderiam ver, nem conhecer o estado das províncias, que são mais afastadas. Melhor, ocorre muito frequentemente que sendo apegados às delícias e volúpias da corte, eles se corrompem e se deixam facilmente conduzir à um desejo de dominar, e ao desejo de fazer com que suas casas aumentem, de modo que no final eles se fazem conhecem não como conselheiros do reino, e do bem público, mas aduladores de um rei, e ministros de suas dissoluções e das suas”.
O Reveille Matin (1573/1574) afirma que nenhum povo estabeleceu um governante com autoridade absoluta para fazer o que bem lhe aprouvesse. A soberania encontra-se também nos demais magistrados, que possuem o direito de resistir à tirania. Os dirigidos deveriam obedecer o soberano apenas na medida em que ele obedeceria as leis e o contrato que o colocou no mando. Se um rei como Carlos 9 massacra seus súditos, é tempo de colocá-lo fora do trono. A Noite de São Bartolomeu seria motivos suficiente para tal expulsão.
Tanto Hotmann quanto o Reveille Matin consideram que a legitimidade para depor o governante reside nos magistrados inferiores. E tal doutrina eles a retiram de Calvino. Vimos que o reformador exigia obediência sem restrições ao governante, salvo em caso de ordens contrárias à fé. Mas ele confessa que em Atenas (falamos de um humanista) e Esparta existiam funcionários cuja missão era de vigiar o soberano, aplicando-lhe censuras conforme a gravidade de seus atos. Nos tempos modernos poderia ser retomada a experiência daqueles magistrados. Hotmann em Franco – Gallia e Teodoro de Beza no Du Droit des Magistrats afirmam que o rei partilha o poder com representantes do povo (embora, como vimos, o “povo” não era assim tão próximo da efetividade democrática, mas de certa aristocracia) e Beza chega ao ponto de enunciar que os representantes possuem o direito de afastar reis corrompidos ou injustos.
Segundo Hotmann em tempos pregressos “toda a administração do reino estava inteiramente à disposição da assembléia dos Estados, que se chamava (…) às vezes Placitum, pois como diz o uso da lingua latina (Placitum) propriamente indica a resolução e a conclusão final que se toma sobre determinada matéria debatida e disputada por vários. É por tal motivo que Cicero e outros autores chamam máximas tidas como certas e indubitáveis entre os filósofos (placita)”. Quando as decisões passaram a ser escritas em francês, diz Hotmann, a palavra placitum foi traduzida, “por ignorância ou malícia” como “tel est notre plaisir”. De qualquer modo, era imperativo ouvir a opinião (avis) do povo. Hotmann fala do governo inglês e espanhol, no sentido do império da lei sobre o monarca e no costume deste último ouvir a assembléia. Ele cita o texto lido pelos espanhóis quando um rei era coroado : “Nos qui valemos tanto como vos, y podemos mas que vos, vos elegimos rey con estas y estas conditiones : intra vos y nos, un que manda mas que vos”. Dada a presença geral do costume, conclui Hotmann, “não apenas esta liberdade tão bela de manter assembléias gerais de conselho, é uma parte do direito das gentes, mas até mesmo que os reis, por má prática e astúcias oprimem esta santa e sagrada liberdade, não devem mais ser tidos como reis, mas como tiranos, como os que violam o mais santo direito que sempre existiu entre os homens, e rompem os próprios liames da sociedade humana”. O tema aparece também em Teodoro de Beza (25 ).
Sagradas que sejam as razões do conjurados, devemos atentar para outros fatores além da religião na luta de parte considerável da nobreza contra o rei. Quando se fala do Estado moderno é preciso pensar na sua estrutura funcional. “Do ponto de vista da sociologia, o Estado moderno é uma ‘empresa’ com o mesmo título de uma fábrica. Nisto consiste precisamente seu traço histórico específico. E também deste modo se acha condicionada de maneira homogênea a relação do mando (Herrschafttsverhältnis) no interior da empresa”. (26). A separação (Trennung) entre os meios de administração e o seu operador, tanto na empresa quanto no Estado, define a burocracia que opera sine ira et studio, maquinal e hierarquicamente. O Estado absolutista, podemos dizer, montou o protótipo da referida empresa. Ele separou os nobres dos meios de administração feudal que eles herdaram de seus ancestrais. De modo idêntico, ele separou as cidades do auto controle administrativo.
As urbes que resistiram durante toda a Idade Média, após o esfacelamento do Império romano, guardaram seus costumes, sua administração e, sobretudo, o controle de seus impostos. Quando Igreja e Estado começaram a exigir taxas e impostos que iam além da capacidade daqueles centros urbanos, eles se levantaram contra os dois poderes centralizadores. As massas que fugiam dos feudos —o ar da cidade liberta— empregavam artifícios como as peregrinações. Os senhores feudais não podiam proibir tais expressões de piedade, mas os camponeses iam aos santuários como Compostela, e não retornavam aos domínios. Outro meio de movimentação de massas foi o comércio. O fato é que as referidas massas se concentravam, sem trabalho e costumes urbanos, nas periferias das cidades. As corporações fechadas não lhes proporcionavam emprego. O resultado foi a insegurança coletiva nas cidades. Por isto, “as primeiras constituições políticas urbanas tiveram a Paz como preocupação maior, elas apareceram como ´atos de Paz´ (Marc Bloch, A Sociedade Feudal). Para deixar clara esta violência, vejamos uma crônica da época: “No dia seis de maio o irmão Alberto de Mântua chegou a Florença e ali fez reinar a paz sobre 95 casos de homicídio; então pacificou em Bertinora; depois em Siena; depois em Castelnuovo; depois em Forlimpopoli; e finalmente em Imola pacificou 28 casos de homicídio” (Corpus Chronicorum Bononiensium, citado por R.W. Southern). Tais cifras são espantosas, se as compararmos com os habitantes das cidades. Em 1200, Florença tinha 30 mil habitantes. Tudo isso é bem exposto no dito espalhado por toda a Europa: “comunia est tumor plebis, timor regni, tepor sacerdotii” (A cidade é o tumor da plebe, o medo dos reis, o relaxamento dos padres: De rebus gestis Ricardi Primi, também citado por Southern).
É nessa brecha da insegurança geral que as cidades, gradativamente, cedem sua autonomia aos poderes papais e reais, com a centralização do poder e o aumento da força repressiva física. A estrutura do judiciário passa aos Reis e à Santa Sé, sempre disputada pelos dois poderes. E para manter a polícia e os exércitos, além de todo o aparato de mando central, recrudescem ao mesmo tempo os impostos e os saberes sobre a demografia, a economia, etc. já citados.
NOTAS
1) “Defense of Poetry”, in Shelley’s Literary and Philosophical Criticism (John Shaw Ed., Oxford, 1909), p. 121.
2) Cf. Para uma análise percuciente e válida até hoje, cf. Abrams, M.H. : The mirror and the lamp (Oxford, Univ. Press, 1971), p. 51.
3) Cf. Hayter, Aletheia : Opium and the romantic imagination (London, Faber and Faber Ed., 1968), p. 84 e ss.
4) Cf. Catherine Kintzler : “Montesquieu et la musique” no Blog da escritora (Mezetulle, http://www.mezetulle.net/) acessado no dia 09/01/2009, 10 horas.
5) Cf. De l ‘Esprit des lois (Ed. Pléiade, volume II), pp. 270-273. O trecho citado por Montesquieu refere-se ao Batalhão sagrado de Tebas, composto por amantes masculinos e cuja bravura suscitou os elogios de Filipe da Macedonia : “Pereçam miseravelmente os que suspeitam tais homens de ter feito ou sofrer algo desonesto!”. E continua Plutarco : “Não foi a paixão de Laios, como desejam os poetas, que introduziu em Tebas o amor de que falo; mas seus próprios legisladores que, para moderar e suavizar, desde a mais tenra idade, o caráter violento daquele povo, fizeram usar a flauta em todas as suas ocupações e divertimentos. Eles honraram aquele instrumento e se puseram a nutrir, nos ginásios, este amor puro e virtuoso, para domar o natural daqueles jovens. Foi portanto com sabedoria que tais legisladores deram como protetora de sua cidade a deusa Harmonia, a qual é dita filha de Marte e de Venus, para insinuar que, quando a ousadia e a coragem são temperadas pelas graças e pelo atrativo da persuasão, os povos usufruem do governo melhor ordenado e perfeito, fruto natural de uma feliz harmonia”.
6) Cf. Dictionnaire de Musique, ed. Pléiade cit. p. 921. Para uma análise da harmonia e do platonismo no pensamento de Rousseau, em especial na música, cf. Eigeldinger, J-J. : “Tartini, Rousseau et les Lumières” no mesmo volume V da Pléiade (onde se encontra o Dictionnaire de Musique), pp. 1694 e ss. Sobre o nexo entre política e arte, em especial no campo do teatro, passando pela filosofia de Platão, cf. o fragmento “De l ‘imitation théatrale”, mesmo volume da Pléiade, pp. 1196 ss.
7) Cf. Béatrice Didier : La musique des Lumières (Paris, PUF, 1985), p. 20.
8) Carta a Madame de Warens (27/01/1749). Didier, p. 43.
9) Écrits sur la musique, citado por Didier, p. 408, que remete também para o verbete “Opera” do Dictionnaire de Musique.
10) Didier, p. 44.
11) Cf. Roberto Romano: “Wagner, o conceito no palco” in Corpo e Cristal, Marx romântico (RJ, Ed. Guanabara Koogan, 1985). O livro está esgotado, mas pode ser lido em bibliotecas universitárias.
12) “Quant aux grecs, il leur paroissoit si honteux de l’ ignorer, qu’ un musicien et un sçavant étoient pour eux la même chose, et qu’ un ignorant étoit désigné dans leur langue par le nom d’ un homme qui ne sçait pas la musique. Ce peuple ne se persuadoit pas que cet art fût de l’ invention des hommes, et il croyoit tenir des dieux les instrumens qui l’ étonnoient davantage. Ayant plus d’ imagination que nous, il étoit plus sensible à l’ harmonie : d’ ailleurs, la vénération qu’ il avoit pour les loix, pour la religion et pour les grands hommes qu’ il célébroit dans ses chants, passa à la musique qui conservoit la tradition de ces choses. la prosodie et le style étant devenus plus simples, la prose s’ éloigna de plus en plus de la poësie. D’ un autre côté, l’ esprit fit des progrès, la poësie en parut avec des images plus neuves ; par ce moyen, elle s’ éloigna aussi du langage ordinaire, fut moins à la portée du peuple, et devint moins propre à l’ instruction.” (Essai sur l’origine des connoissances humaines [Document électronique] : ouvrage où l’ on réduit à un seul principe tout ce qui concerne l’entendement humain / par l’abbé de Condillac , no Site Gallica da BNF, acessado no dias 11/01/2009, as 10 horas AM. Quanto às inovações, também temidas por Platão, diz Condillac: “ Six cent ans avant Jésus Christ, Timothée fut banni de Spartes, par un décret des éphores, pour avoir, au mépris de l’ ancienne musique, ajouté trois cordes à la lyre ; c’ est-à-dire, pour avoir voulu la rendre propre à exécuter des chants plus variés et plus étendus. Tels étoient les préjugés de ces temps-là”. (ed. cit).
13) Jean-Philippe Rameau, Splendeur et Naufrage de l ‘Esthétique du Plaisir a l ’Age Classique (Paris, Le Sycomore, 1983).
14) Cf. A. Ed. Chaignet : La Vie et les écrits de Platon (Paris, Didier et Cie., 1871), pp. 403 e ss.
15) Isherwood, Robert M. 1973. Music in the Service of the King: France in the Seventeenth Century. Ithaca: Cornell University Press.
16) Toda a sequência deste trecho tem como base o artigo de Graham Pont, “Philosophy and Science of Music in Ancient Greece: Predecessors of Pythagoras and their Contribution”, Nexus Network Journal, vol. 6 no. 1 (Spring 2004), http://www.nexusjournal.com/filename.html Discordo do autor quanto à sua comparação antropológica entre Grécia arcaica e tribos aborígenes da Austrália. E também discordo de outros pontos. Mas sua explanação sobre a música e os nexos com a vida social e política servem bastante aos nossos propósitos.
17) Lovelock, James E. Gaia: A new look at life on Earth. (Oxford, Oxford University Press, 1979).
18) Basta recordar os argumentos postos por Cicero no De natura deorum contra os epicuristas, relativos à providência: um monte de palavras jogadas para cima não fariam a Ilíada, um monte pedras também jogadas jamais resultariam num pórtico ou obra de arte, supõe a idéia da harmonia no desígnio produtor do universo e da ordem humana.
19) Graham Pont, op. cit.
20) New York, Nicolas Hays Ed. 1978.
21) Spitzer, Leo : Classical and Christian Ideas of World Harmony: Prolegomena to an Interpretation of the Word “Stimmung” (Baltimore, Johns Hopkins Press, 1963).
22) Szabó, Árpád : The beginnings of Greek mathematics. (Dordrecht, D. Reidel, 1978)
23) Livro I, capítulo XXX, na edição Pléiade na página 195 ss.
26) Para uma análise correta das atitudes defendidas por Montaigne, cf. Jean Starobinski, “A ação calma” in Montaigne em Movimento (SP, Cia. das Letras, 1993), pp. 246 e ss.
24) O texto de Hotmann é de 1574, na tradução francesa que estou usando. Já em 1519, o tratado fundamental de Plutarco sobre a bajulação, “Como distinguir o amigo do adulador”, era conhecido na tradução de François Sauvage, a partir do latim de Erasmo. Em 1537 Antoine du Saix traduz novamente o tratado, com o nome exato de “La touche naifve pour esprouver l ‘amy et le flatteur, inventée par Plutarque, taillee par Erasme et mise a l’usage francoys par noble homme frere Antoine du Saix, commendeur de Bourg. Uso a edição moderna de Robert Aulotte : Plutarque en France au XVIe siècle (Paris, Ed. Klincksieck, 1971), pp. 15 ss. ”Or, il n’ est pas facile aux riches et aux Roys de dire ces parolles suyvantes: ‘A mon gré j ’eusse quelque pauvre personne encores plus indigente que ung mendian qui, en voulent mon bien et toute craintes ostée, me parlast de courage, en bon amy’. Mais, comme les joueurs de Tragedies et moralitez on besoing de musiciens et instrumentz qui supllient à leurs fainctes et pareillement ont mestier de gentz qui leurs applaudissent, de mesmes les grands seigneurs s’ en aydent. Pourtant, en sa Tragedie Merope admonestoit ainsi que ceulx là nous debvions faire noz amys qui ne dissimulent point pour le plaisir d ‘aultruy et chasser loing horas de l’ enceinte de nostre maison ces meschantz qui ne servent que de complaire et gracieuser. Toutestfois, les susdictz grands maistres font au rebours, car ilz chassent et fourbanissent de leur court ceulx qui se soubstiennent leur opinion, qui resistent par raison 1a leur concupiscence seulement en leur maison, mais aussi jusque aux affaires secretz et au dedans de leurs affections, les pipeurs chocquareroz”. Ed. Du Saix cit. p. 76.
25) Du droit des Magistrats, ed, cit. p. 39 e ss.
26) Cf. Max Weber : Wirtschaft und Gesellschaft. Fünfte Revidiert Auflage ,1972, p. 825.
O favor como técnica de controle e dominação encontra-se no plano mais amplo do Sobrinho de Rameau. Os fios que unem a sociedade em que Jean François se move, com suas cambalhotas para agradar os mestres e seus preferidos, foram tecidos na sociedade política conhecida como Ancien Régime. E o tempo da tecitura data, pelo menos, de Felipe o Belo. Mas ela foi acelerada no Renascimento. A ordem dos favores impera na corte e nos elos entre nobres importantes e outros, menos poderosos. Ela segura em redes complexas de nepotismo, apadrinhamentos, interesses, o rei a todos e a cada um dos súditos. Não por acaso, o título monárquico é o de Pai. Projeta-se na ordem pública o que se determina na vida familiar.
Como enuncia Joël Cornette () “O reino é organizado como uma família mais ampla de início, na qual as ligações de sangue e proximidade são hegemônicas, onde o rei sempre é percebido sob os traços de pai benevolente, do pater familias, concedendo suas benesses aos seus e sabendo distinguir, entre seus próximos, os que as merecem. Henrique IV, chefe benfeitor de clã, permanece para sempre como o que fez dos franceses ‘irmãos ’, ‘primos’, ‘amigos’, um clã que tem sentido não quando ele está em guerra ou em paz, mas porque está reconciliado (...) Todas as famílias concomitantes e superpostas, de Versalhes até a mais humilde choupana, são dominadas pela família mística: o Pai, o Filho e o Rei da França. Pois a essência divina da monarquia, pensada, difundida, teorizada definitiva e eficazmente a partir da ressacralização de Henrique IV, confere a esta dimensão paterna da monarquia um valor sagrado. Segundo uma propaganda oficial, as famílias terrestres do reino francês apenas transcrevem a família celeste, dos santos, dos anjos, do povo de Deus.”
Ademais, o trabalho do rei é o de prover os seus próximos “construindo uma rede familiar e doméstica que assegure a boa marcha do governo. Para tanto, é preciso achar subsídios. Os monarcas mais atilados elaboraram, com seus conselheiros, sistemas que ligam o ‘doméstico ao administrativo’, a fidelidade à venalidade, o ‘serviço de sua pessoa na administração da coisa pública’. Assim a monarquia criou em permanência a estrutura clientelar com ramos horizontais no espaço geográfico, limitadas apenas pelas fronteiras , com implicações verticais na hierarquia social, descendo até os submetidos à talha e à corvéia”. ()
A ascensão social e política é feita pelos grupos e indivíduos naquela imensa rede de favores instaurada pelo absolutismo. O rei precisa cooptar os nobres, estes precisam exibir poder ao rei. E ambos os lados precisam de operadores que permitam a fluidez dos interesses, a sua realização sempre dependente dos alvos concorrentes ou paralelos aos dos coletivos familiares ou de “amigos” que os mantinham. A política do “é dando que se recebe” não foi instaurada no Brasil, como se nota. A sociedade e o Estado absolutistas constituíam, diz um historiador, “redes de amizade, de primos, de camaradas de colégio e combate, companheirismo, afinidades diversas, encontros de vizinhos”. Elas eram, para um nobre, “uma rede de interdependência na qual ele se inseria desde o nascimento, onde se casava e que lhe permitia sustentar, ou aumentar, a reputação de sua casa. É um capital que em parte ele herdara de seus parentes, que deveria fazer frutificar, antes de o transmitir por sua vez aos filhos. O gosto das relações, o culto da amizade, contavam tanto quanto o sentido da honra e do devotamento”. ()
O reino, grande família, era movido pelos alvos das famílias. As redes horizontais de parceria e cumplicidade buscavam, todas, ascender na escala do Estado. O meio era encontrar conexões em estratos cada vez mais altos de redes de interesse e favor, até atingir os arredores do trono. Assim, os elos de clientela e fidelidade se tornavam a cada momento mais amplos e complexos. Entre os termos que assinalam os pactos tácitos (o termo é posto no Sobrinho de Rameau) está o que enuncia que alguém “pertence” a um outro, é sua “criatura” ou seu “doméstico”. Todos estes termos servem, perfeitamente, para descrever Jean François e seus concorrentes na busca da ascensão e sobrevivência. Só que tudo mais degradado, mais vil, desprovido da ilusão nobre da honra, da glória, etc. ()
Tais cadeias de solidariedade uniam três tipos de pessoas: o patrão, o cliente, e os “brokers” (os intermediários), ou seja, o corretor. A clientela é algo praticado desde os tempos de Roma. Deixemos um pouco os tempos absolutistas modernos e nos dobremos sobre o clientelismo em Roma. ()
Como ainda no Antigo Regime, as relações políticas de Roma ocorrem nos círculos complexos das famílias. As coalisões são formadas na base familiar, com as gentes e as familiae. O consulado romano foi possível, com certa estabilidade, com fundamento no trato dos grupos familiares e de sua clientela. A prática da adoção de indivíduos por famílias é uma outra maneira de manter vínculos de força e de poderio político. O costume de adotar, mantido pela sociedade, foi posto em movimento pelos imperadores, mas a partir de uma prática jurídica anterior: as famílias em filho homem como herdeiro, adotavam alguém que passava a usar o seu nome, dando-lhe sobrevivência e coesão. Adotar era um meio de estabelecer alianças entre famílias. () Os cargos maiores de Roma eram gratuitos, porque os seus ocupantes eram ricos e poderosos, não sendo próprio à sua dignidade receber para administrar. Receber salários para exercitar o governo é próprio de um regime que deseja fornecer livre acesso ao poder para todos os cidadãos. E Roma era uma aristocracia, não uma democracia. Mesmo sua república não era democrática. Assim, toda a eficácia política, guerreira ou econômica repousa sobre a influência de certos indivíduos de certas famílias no circulo social. Não existe matiz igualitário em Roma: ou a pessoa pertence à uma família poderosa, ou à uma família pobre. Há os que governam, uma elite, e a massa dos que obedecem. Trata-se da relação patres/plebs.
Dessa relação, conflitiva em toda a república e império romanos, surge uma prática de manipulação dominadora exemplar: o patronato e a clientela. Não se trata de algo inédito, inventado em Roma. Já na Grécia existia o patronato, sendo que um conservador como Fustel de Coulanges imagina ser ele “uma prática das mais conformes à natureza humana”. O próprio Fustel analisou tal costume na Gália e nos povos germânicos. () Os habitantes das cidades conquistadas por Roma se tornavam clientes do general que os venceu, este recebe o título de patronus. Os escravos libertos por manumissio,() entravam para a clientela do patrono. Tais casos não dizem muito para a dominação política, pois os seus partícipes dominados eram escravos. Importante é o ato “pelo qual um cidadão livre se coloca sob a proteção de uma pessoa mais poderosa e mais influente, o seu patronus. Esta forma de clientela se distingue essencialmente da anterior, porque é constituída por uma adesão livremente contraída após entendimento estabelecido entre as duas partes, o que se chama fides.” A clientela é oferecida para todos os que não possuem a plena cidadania. Ela resulta de um pacto solene, no qual o patrão enuncia a fórmula : Ego in fidem te recipio. Ela não traz prejuízos à posição jurídica do cliente, ela é puramente moral, não cai no domínio público. Os clientes, embora não sejam patrícios, podem pertencer a todas as categorias sociais, desde que encontrem apoio de um mais poderoso. A clientela é hereditária, mas pode ser rompida, ou estabelecida com maior número de patronos. Aí, a conciliação da fides a um ou a outros, é mais complicada.
O cimento que faz a fides permanecer, sólida, é o fauor (favor). Favere assume o sentido “ser favorável”, na lingua comum e na política. Ao termo fauere corresponde fautor : “aquele que favorece”. Ele aparece em data mais avançada da república. Favor é o que sustenta o político nas eleições, com aprovação popular. Ele significa o próprio voto (favor) mas não a campanha, que tem por nome officium. O favor se acompanha de sinais externos, em especial de laude, gratulationes, plausus, clamor (a manifestação externa do fauor). Trata-se de um termo também usado no teatro. A partir do teatro, o termo pode ter sido aplicado à política. Pouco a pouco o termo passa a significar “popularidade”. Fauere, por sua vez, significa “trabalhar para o aumento da posição política de alguém”. Se o cliente tem o dever moral de sufragar nas eleições o nome de seu patrono, este último deve proteger o cliente. Mas como, na república, existe a ficção da soberania popular (a monarquia caíra com Tarquínio, o soberbo), o favor do voto tem como nome o eufêmico beneficium. Tal relação pode, se transformar em obsequium (indulgência, cumprimento, complacência), blanditiae (de blandus, lisonjeador, adulador, acariciador), ambitio (na república a busca dos candidatos por votos, para solicitar aos cidadãos individuais os seus votos por meios corretos e legais) . ()
Cicero louva a amizade desinteressada, algo que só pode existir entre os boni viri, os integrantes do patronato. Ricos, eles não precisam de nada material para obter dos seus iguais. Mas, recorda Hellegouarc‘h, para o mesmo Cicero um dever dos amigos é ajudar o parceiro na carreira política. O comentador aponta para a contradição entre os princípios elevados da ética e as realidades da ordem prática. “Cicero esteve sempre entre as duas opções e nunca escolheu formalmente entre elas. Ele constata que a virtus não tem muito lugar na atividade pública quando a tomamos em sentido moral estrito e que é difícil acordar moral e política”. Assim, no ideário romano, permanece a amizade em sentido elevado, mas o que se pratica, de fato, é o interesse momentâneo, a amizade breuis et suffragatoria. As amicitiae “se constituem como elemento importante da política; elas são feitas e desfeitas segundo as circunstâncias e necessidades do momento; só o interesse comanda e o sentimento não tem muito a ver com elas. A influência de um personagem é de algum modo proporcional ao número de amigos que ele soube adquirir”. Na ausência de partidos organizados, “o político não tem outro recurso para expandir sua influência a não ser unir-se ao maior número de pessoas possível, as quais lhe trarão por sua vez apoio dos que lhes são apegados”. Há uma distinção, entretanto: os amici pertencem ao patronato, os inferiores formam a clientela. Tal é a teoria, como no caso da amizade em geral, como virtude moral, e como prática efetiva. Assim, era possível colocar no plano dos amigos, pessoas que o mais correto seria colocar no âmbito dos clientes. “Esta extensão súbita e diplomática do número de amigos devia ser particularmente importante na época de campanha eleitoral”. Assim, conclui Hellegouarc’h, “precisamos renunciar a toda distinção entre amicus e cliens. Embora na origem as duas palavras se apliquem a situações muito diferentes, elas se perverteram no uso e se tornaram intercambiáveis segundo as necessidades e as circunstâncias.” ()
Segundo o Contrato Social, nas antigas repúblicas virtuosas, “cada um tinha vergonha de dar publicamente seu sufrágio a uma opinião injusta ou a um assunto indigno, mas quando o povo se corrompeu e seu voto foi comprado, foi conveniente que o segredo fosse instituído para conter os compradores pela desconfiança e fornecer aos salafrários (´fripons´) o meio de não serem traidores”. () Ao comentar os comícios, Rousseau diz que as leis de eleições dos chefes não eram os únicos pontos submetidos ao seu julgamento. O povo romano, diz ele, tendo usurpado as mais importantes funções do governo, pode-se dizer que a sorte da Europa era regulada por aquelas assembléias. “Esta variedade de objetos dava lugar a diversas formas que tomavam tais assembléias, segundo as matéria sobre as quais ele deveria se pronunciar. Para julgar essas diversas formas, basta compará-las. Rômulo, ao instituir as curias, desejava conter o senado pelo povo e o povo pelo senado, dominando igualmente sobre todos. Ele deu, portanto, ao povo, assim, toda autoridade do número para equilibrar (balancer) a da potência e das riquezas que ele deixava aos patrícios. Mas, segundo o espírito da monarquia, ele no entanto deixou mais vantagem aos patrícios por influência de seus clientes na pluralidade dos votos. Esta instituição admirável dos patrões e clientes foi uma obra prima de política e humanidade, sem a qual o patriciado, tão contrário ao espírito da república, não teria podido subsistir. Roma apenas teve a honra de dar ao mundo este belo exemplo, do qual não resultará jamais abuso e que, no entanto, jamais foi seguido”. () Quanto ao fato de que a clientela serviu aos patronos ricos, Rousseau tem plena razão histórica. Se tal invenção foi algo excelente, em termos políticos e de humanidade, pode-se imaginar se o filósofo ironizava cruelmente, ou se foi atacado, quando escrevia as linhas acima, por um súbito ataque de realismo. Como a segunda opção é improvável...
Voltemos ao Antigo Regime francês, espaço de clientela e de favores. Em troca da proteção e benesses recebidas, o cliente deve servir ao seu patrão “com docilidade e lealdade, ajudá-lo a conseguir seu alvo, por exemplo, lhe fornecendo informações, o servindo com a pena ou espada, adotando suas inclinações, ambições, e às vezes seguindo-o na adversidade”. O patrão “ajuda seu cliente, se for preciso o veste, o alimenta, hospeda, lhe procura emprego, empresta ou dá o dinheiro para comprar um cargo, o empurra na ascensão social, o defende contra seus adversários. As vezes ele organiza seu casamento, educa ou casa seus filhos. Tal patrão, se não for uma pessoa rica, pelo menos é alguém influente, capaz de intervir em favor de seu protegido o recomendando aos mais poderosos do que ele”. ()
A ausência de reciprocidade traz ruptura, traição, acusações de ingratidão. Agora o terceiro elemento o corretor, ou broker. Ele é uma espécie de patrão pela metade, que põe sua própria clientela para servir um outro, mais poderoso. Ele facilita as negociações. “O patrão principal precisa desses ‘cafetões’ –entremetteurs– numerosos e eficazes para ampliar sua influência, assegurar o apoio de meios ou redes que ele não pode abordar diretamente. O corretor tem sua vantagem em fazer frutificar seu próprio capital de relações, monetarizando em preço alto seu papel de mediação e buscando por sua vez assegurar para si mesmo o monopólio do mercadejo (courtage), o que o patrão nem sempre tem interesse em conceder”. ()
Essas relações de favor e de influência são essenciais na sociedade do antigo regime. Elas permitem entender o funcionamento do poder num sistema estatal incompletamente institucionalizado, como a França do período, formando a “monarquia administrativa”. Note-se o leve tom de etnocentrismo na análise de Petitfils. A França “foi” assim no Antigo Regime. Outras culturas, “incompletamente institucionalizadas” de hoje, sofrem os mesmos males do clientelismo. É possível perguntar se na França e nos demais países “completamente institucionalizados”, o favor e as relações de clientelismo foram abolidas. O autor, na sua exposição, cita para os dias de agora François-Xavier Guerra, cuja tese de doutoramento defendida na França se intitula Le Mexique. De l ‘ancien régime à la révolution () Ele também cita Steffen Schmidt (Friends, Followers and Factions: a reader in political Clientelism). () Poder-se-ia pensar que as relações de favor do Antigo Regime seriam persistências anacrônicas do feudalismo.
Antes de François-Xavier Guerra discutir a ordem mexicana, no Brasil Maria Sylvia Carvalho Franco tematizou, para compreender a lógica que norteia a sociedade e a política nacional, as relações de favor, de “amizade” e de compadrio . Em Homens Livres na Ordem Escravocrata, a autora conceitualiza a partir de textos históricos e depoimentos, a rede de relações tecida entre poderosos fazendeiros, sitiantes mais pobres e os dominados no baixo da escala social. O grande proprietário, diz ela, manteve relações aparentemente horizontais com o sitiante. Ela começa pelo depoimento de um integrante de família rica em Resende, nascido em 1870. “Não havia desigualdade entre fazendeiros e sitiantes; havia mesmo amizade. Se um deles chegava à nossa porta, vinha para a mesa almoçar conosco”. () Aqui temos a noção de amiticia, imperante na sociedade romana e que, nela, apresentava uma polissemia imensa, a ponto de se precisar suspender a busca de sua designação “correta”. A ambigüidade da palavra entra na prática do político romano, do nobre francês, do fazendeiro brasileiro. Como prova da “igualdade” com o sitiante, era dito que eles e grande proprietários eram compadres.
Assim como a amicitiae romana, ou do antigo regime, a prática do compadrio suspende, de maneira imaginária, a diferença de nível e de riqueza. A autora cita Antonio Cândido () “Os vínculos estabelecidos entre padrinho e afilhado eram tão ou mais fortes que os de consangüinidade não apenas o padrinho era obrigado a tomar o lugar do pai, sempre que necessário, mas tinhas que ajudar seu afilhado em várias ocasiões (...) o afilhado, por sua vez, ajudava o padrinho em tudo o que este necessitava, e freqüentemente tomava o nome da família”. No compadrio, ressalta o fato de um dos lados, o mais poderoso, “se apresenta como um patrocínio do superior e uma decorrente submissão do inferior.”. A criança pobre deve ser “encaminhada na vida”, com ajuda do mais forte. A autora cita Coldman () “Como naturalmente o padrinho deseja cumprir sua promessa com a menor despesa possível, o que de melhor pode fazer senão prover o jovem, tão logo tenha idade adequada, com um emprego público? E se o governo não tem o suficiente número de cargos à sua disposição, como poderia a influência do Duque, Marquês, Barão, Comendador, ser mantida mais facilmente que criando novos cargos e novos funcionários?”. A autora lembra o que significa, no Brasil, o termo “apadrinhar”. Poderíamos dizer a mais, que em nossa terra, “quem tem padrinho, não morre pagão”, ou seja, sempre alcança os empregos públicos ou privados, quando funciona a rede de favores recíprocos.
“Ampliando-se as trocas do compadrio para situações sociais, compreende-se como deriva dele toda uma intrincada rede de dívidas e obrigações, infindáveis porque sempre renovadas em cada uma de suas amortizações, num processo que se regenera em cada um dos momentos em que se consome”. ()
A igualdade fictícia, trazida pelos ritos sagrados e pela “amizade” interessada, mostra sua face de dominação em momentos de apuro financeiro. O patrono ajuda o sitiante, este devolve em apoio político. Diz um rico, em depoimento anotado pela autora: “se os sitiantes da redondeza estavam em dificuldades ou queriam comprar um pedaço de terra, emprestavam dinheiro de meu pai; em compensação, esta gente sempre o acompanhava, eram seus eleitores ou seus cabos, pois ele era o chefe conservador da zona (...) Não havia compra de voto. Não havia concorrência entre os chefes políticos: não adiantava, quem era conservador era conservador e quem era liberal era liberal”. Deduz a autora: “a dependência” em que os protegidos estavam, “tornava inelutável a fidelidade correspondente. Sua adesão em troca dos benefícios recebidos é tão automática, que nem sequer são tomadas medidas que assegurem seu voto; tampouco se cogita de providências para atrair eleitores cuja fidelidade está definida para com o lado contrário. Umas seriam desnecessárias, e outras inúteis”.
Presos à política local ou no máximo regional, os dominados não perceberam o alcance de eventos como a Independência do Brasil e similares. “Estado, na consciência desses homens se confundia com a pessoa do príncipe e governo se identificava com seus atos e decisões, ou com a de seus representantes”. Assim, a consciência política dos setores livres e pobres não vai além da pessoa que lidera o elo entre os dois extremos da cadeia de domínio. A visão institucional do Estado e de seus interesses nacionais ou internacionais falta a tais setores. Os nexos entre patrono e cliente são definidos: “a lealdade inclui o reconhecimento do benefício recebido, o sentimento de gratidão por ele, e o imperativo de sua retribuição equivalente”. Mas “o fabricar de lealdades e fidelidades através de um processo cumulativo de recíprocos encargos e favores promovia, sucessivamente, a eliminação completa da possibilidade de um existir autônomo”. O poder, então, é impossível de ser concebido “senão mediante o prisma formado pela encarnação do poder: este transfigura a realidade social, convertendo-a nas formas objetivadas da existência daquele que é ideado como superior, e plasma as categorias através das quais ela é conhecida, confinando-as a imagens que não podem transcender essa mesma situação vital particular, personificada e alheia”. Isto mostra o peso do comportamento mecanizado do dependente e sua incapacidade para apreender a organização e a dinâmica da política em nível institucional. Atitude similar, de “amizade” ocorre entre patronos e agregados. O morador ficava nas terras do patrono se fosse amigo. “Agregado ou camarada, a anulação de sua vontade se revela na simples incapacidade de tomar uma decisão autônoma”. Uma testemunha, no caso de rapto de jovem, diz que o réu “lhe fora pedir para ter guardada em sua casa a menor e ele respondera que não o podia fazer sem o consentimento de seu patrão, porque era agregado”. Sua recusa, adianta a autora, “tem a ver menos com o risco de transgredir a lei, que de incorrer na desaprovação do fazendeiro”.
O favor permeia, assim, os elos entre patronos e gente livre, mas pobre no Brasil. E se atentarmos para o fato de sermos uma sociedade desigual por excelência, a ficção da igualdade jurídica e política se esvai rapidamente. No mesmo passo, guardamos as práticas políticas do Antigo Regime, como por exemplo a diferenciação entre operadores do Estado e “pessoas comuns”, simples pagadores de impostos, sem maiores direitos e poderes. Os cargos dos “amigos” e apadrinhados continuam em uso, na troca de favores entre oligarcas que tentam se aproximar do poder, na corte. () Os mesmos padrinhos tentam, por meio dos seus clientes, alicerçar alianças com seus pares oligárquicos, tudo segundo a receita absolutista.
As relações de amizade, no mundo moderno, seguem o padrão explicitado em Roma: amizade ligada a interesses de ascensão social ou política, breuis et suffragatoria. Voltemos ao Sobrinho de Rameau. Em primeiro lugar, ele cumpre o papel de broker entre personagens ricos e suas vítimas que devem sucumbir ao desejo “amoroso”. Mas ele, como diz um comentador, é apenas um “masca dinheiro, um pobre doador de lições, sem clientela e sem reputação” (Charles Asselineau, em prefácio ao Sobrinho de Rameau). () Sem clientela e sem reputação, o Jean François serve apenas no âmbito interno de seu patrão, ele não possui a utilidade e o estatuto de um “amigo”. Seus ofícios entram no rol das coisas abjetas, como o de cativar mocinhas para a lubricidade de personagens ricos e inescrupulosos. ()
Logo no início do texto, antes mesmo de dizer o nome do Sobrinho, Jean François, o autor diz que ele “tinha se introduzido, não sei como, em algumas casas honestas nas quais tinha seus talheres, mas à condição de não falar sem autorização. Ele se calava e comia com raiva”. Pouco depois, falando de seu tio músico, o sobrinho diz que ele “é um filósofo em sua espécie. Ele só pensa em si mesmo”. E gente assim, “não sabem o que significa ser cidadão, pai, mãe, irmão, parentes, amigo”. Jean François entra nas casas “honestas”, nelas come, mas não fala, ou seja, é destituído do elemento essencial da sociabilidade, a linguagem, onde se estabelecem os vínculos de amizade, parentesco, de política, etc. Já o filósofo, e seu tio é um, está liberado daqueles elos sociais. A receita de bem viver assumida neste ponto é a sabedoria de Rabelais cumprir o dever, sempre falar bem do prior, “deixar o mundo seguir segundo a sua fantasia”. As condições subalternas têm uma sabedoria ou nada falar, ou falar bem dos patrões. Não existe ilusão de igualdade na perspectiva do Sobrinho. E o poder da fala se concentra na mentira dos poderosos “eu estava um dia à mesa com um ministro do rei de França, que tem espirito para quatro; ele nos demonstrou claro como um e um fazem dois, que nada era mais útil aos povos do que a mentira, nada mais prejudicial do que a verdade”. Quem possui o poder de falar, mente, sobretudo se está no topo da hierarquia política. Estamos em plena sátira à razão de Estado, algo que suscita a ira diderotiana. Na raison d‘État se estabelece a heterogeneidade entre o mundo dos governados e o universo dos dirigentes. Como diz um comentador do problema, na aurora do Estado moderno “a verdade do Estado é mentira para o súdito. Não existe mais espaço político homogêneo da verdade; o adágio é invertido: não mais fiat veritas et pereat mundus, mas fiat mundus et pereat veritas. As artes de governar acompanham e ampliam um movimento político profundo, o da ruptura radical (…) que separa o soberano dos governados. O lugar do segredo como instituição política só é inteligível no horizonte desenhado por esta ruptura (…) à medida que se constitui o poder moderno. Segredo encontra sua origem no verbo latino secernere, que significa separar, apartar”. ( )
Diderot, numa Carta intitulada “Sobre o Exame do Ensaio sobre os Preconceitos”, escrito por Frederico da Prússia, o rei que iniciou sua carreira “filosófica” com um livro contra Maquiavel, defende o autor do Ensaio, D’ Holbach. Este, no seu escrito, aconselhava os príncipes a renunciar aos preconceitos da nobreza e da glória militar, abolir os privilégios reconhecendo o mérito verdadeiro realçado por uma educação pública de qualidade, e assegurando0 que deve-se dizer sempre a verdade ao povo () Ora, Frederico é o rei que chegou a propor à Academia de Berlim , em 1777, “se pode ser útil enganar o povo ?”. () No dia 23 de outubro de 1777, na sessão primeira da Academia de Berlim (Nouveaux Mémoires de l ‘Academie de Prusse, VIII, 46) Formey leu uma carta de Frederico na qual o rei perguntava “se é útil enganar o povo ?”. Em 1778 a Academia mudou a pergunta para “É útil para o povo ser enganado, seja que os induzamos em novos erros ou mantenhamos aqueles nos quais ele lavora ?”. Foram dadas 33 respostas, 20 pela negativa, 13 afirmativas, 4 foram tidas como boas para a primeira categoria, 7 para a segunda. Duas foram premiadas, a do alemão Becker na primeira categoria, a do matemático francês F. de Castillon na segunda. ()
Segundo d’ Holbach, lido por Diderot, o homem ama a verdade. Diderot considera, como idéia favorita, que “não existe nenhum exemplo de que verdade tenha sido prejudicial nem para o presente, nem para o futuro” () É o que o filósofo diz ao Sobrinho “apesar do ministro sublime que citastes, acredito que se a mentira pode servir um momento, ela é necessariamente prejudicial em longo prazo, e que ao contrário a verdade serve necessariamente em longo prazo, embora ela possa prejudicar no momento”. Mesmo movimento no Sonho de D’ Alembert “Bordeau: pensais que a mentira tem suas vantagens e a verdade os seus inconvenientes. Senhorita de Lespinasse –Sim. Bordeau Eu também. Mas as vantagens da mentira duram um momento e as da verdade são eternas; mas as sequências incômodas da verdade, quando ela as tem, passam rápido, e as da mentira só acabam com ela. Examinai os efeitos da mentira na cabeça do homem e seus efeitos na sua conduta; na sua cabeça, ou a mentira se ligou de tal modo à verdade, e a cabeça é falsa; ou ela é bem e consequentemente ligada à mentiram e a cabeça é errônea. Ora, qual conduta poderíeis esperar de uma cabeça ou inconseqüente em seus raciocínios, ou consequente em seus erros ? –Lespinasse – O último desses vícios, menos desprezível, e talvez a ser mais temido do que o primeiro”. ()
O verbete Raison d’ État da Encyclopédie determina os limites da verdade e da mentira do governante para com os governados: é preciso saber “se a raison d' état autoriza o soberano a fazer sofrer algum dano a um particular, quando se trata do bem do Estado”. É fácil responder: “se prestarmos atenção que, ao formar a sociedade, a intenção e a vontade de cada indivíduo deve ter sido sacrificar seus próprios interesses aos de todos, sem o que a sociedade não poderia subsistir. É certo que o todo é preferível à sua parte; entretanto nessas ocasiões, sempre incômodas, o soberano se recordará que deve uma justiça para todos os seus governados, dos quais ele é igualmente o pai; ele não dará por razões de Estado motivos frívolos ou corrompidos que o empenhariam para a satisfação de suas paixões pessoais ou as dos seus favoritos; mas ele gemerá diante da necessidade que o obriga a sacrificar alguns dos membros para a salvação real de toda a sociedade”. A mentira é o alicerce de todas as religiões, sobretudo do cristianismo (verbete cristianismo, XIV, 145). Montaigne, que é considerado por Diderot, é por ele condenado por considerar que existe mentira útil (Carta a Falconet, setembro de 1766).
Quanto à política do favor, o próprio Diderot dela não escapava na vida real. Basta recordar suas relações com Catarina 2, e outros elos sociais e políticos que lhe renderam bons recursos financeiros. Um personagem que aparece no Sobrinho, no entanto, mostra plenamente a efetividade do clientelismo e dos patrocínios políticos.
Trata-se de Palissot de Montenoi (1730-1814). Diderot o descreve como cínico, parasita, enganador. Em primeiro lugar, ele se instala no círculo “devoto” na corte do rei Stanislas da Polônia. Alí, encontra “proteção” em todos os sentidos. Frederico da Prússia, sendo péssimo escritor mas adulado por intelectuais, o conde de Stainville, mais tarde Duque de Choiseul e primeiro ministro, o aluga, ou aluga sua pena para criticar Frederico. Mais tarde, Palissot se beneficia dos favores de Choiseul, em 1755 ele consegue a Receita Geral dos Tabacos de Avinhão. Vítima de um desonesto, o mesmo Choiseul lhe perdoa uma dívida. Quando Diderot estava no máximo de tensão, pois periclitava a Enciclopédia, ele escreve as “Cartinhas sobre os grandes filósofos”, onde opõe Locke, Condillac, Voltaire aos enciclopedistas, sobretudo Diderot. Palissot, adulador de Luis XV e Luis XVI, adulará a Revolução, na sua parte mais extremista. Recebe uma cadeira no Conselho dos Anciãos e depois um cargo de administrador da Biblioteca Mazarino. ()
“Antiga política” a que vigorou na Idade Média, edificada com os frangalhos do pensamento grego e romano. No século 12 o debate ocorre em relação às virtudes políticas. Apenas no século 13 os fragmentos do saber antigo começam a a ser unidos de modo coerente, definindo-se as condições intelectuais para o Renascimento. Tal aglomerado de idéias, que dificilmente poder-se-ia intitular como sistema une-se às formas de pensamento que surgem nas cidades livres, os municípios que se tornaram praticamente autônomas em toda a Europa mas sobretudo na Itália onde chegaram a se determinar como repúblicas (formadas nos séculos 11 e 12). ()
Municípios : Roma, foedus, cai o império romano do Ocidente, feudalismo, anarquia, cidades municípios em luta contra a Igreja, os nobres, o imperador. Elas perdem sua autonomia e sua independência com a centralização do Estado. Na Itália e na Alemanha, apenas no século 19 o poder central conseguiu abolir a independência daqueles antigos municípios romanos. () No momento em que as cidades republica se firmam, três são as correntes que orientam a lingua política: a tradição das virtudes (magnificamente representadas na Alegoria do Bom Governo), o aristotelismo, o direito romano. As cidades da Liguria, Lombardia, Emilia, Toscana, seguem a forma de governo no qual os cidadãos não obedecem príncipes mas apenas a senadores eleitos por eles. Além disso, os cargos tinham duração limitada, os Consules eram trocados a cada ano. A “ideologia” ciceroniana e o direito romano formavam o ideário das republicas indicadas. O maior cargo de autoridade era o Podestà, ou Potestà, que possuía poder judiciário, militar, administrativo e decisão na diplomacia. Mas seu estatuto era de eleito limitado pelos estatutos da cidade. Ele não tinha poder legislativo e, no fim do mandato, prestava contas ao Conselho dos Síndicos sobre como foram mobilizados por ele os recursos públicos e as pessoas a ele submetidas.
Tal princípio tem sua origem remota na chamada dokimasia (δοκιμασία) () grega: antes e depois do mandato o dirigente devia ser examinado, quando suas contas eram aprovadas, ou não. Temos aí as bases da accountability democrática, princípio expulso da cena pública, liminarmente, pela razão de Estado, desde o século 17 até os nossos dias. Contra a razão mencionada se ergueram as revoluções inglesa, norte-americana, francesa. Do fracasso, desvio ou retrocesso dessas revoluções, renasceu a razão de Estado no século 19 e, depois, no século 20. Na Revolução Francesa, a confiança nas virtudes republicanas, com o Termidor, foi recusada como resquício subjetivo que não garantia a “governabilidade” contra os povos submetidos pela polícia ou exércitos, sobretudo após o domínio de Napoleão.
A seleção, nos escritos roussoístas, de escritos e sentidos, deu-nos algumas versões mentirosas sobre o pensador. E isto não foi obra do acaso. Com o golpe do Termidor, a Revolução Francesa deixou o campo dos valores e passou ao plano mentirosamente mais sólido do interesse econômico e social como base da política. As representações intelectuais do século 18, incluindo as de Rousseau, as de Diderot e mesmo as de um aristocrata como Voltaire, insistiam na virtude cidadã como base do governo não tirânico. Esta doutrina foi reforçada no período jacobino, sobretudo sob Robespierre. Com o golpe do Termidor, ela foi afastada na teoria e na prática políticas.
Comenta Alain Badiou num texto luminoso: “o ponto central é que ao princípio da Virtude se substituiu o princípio do interesse. O termidoriano exemplar (…) é certamente Boissy d’ Anglas. Seu grande texto canônico é o discurso do 5 Messidor ano 3. Citemos: ‘Devemos ser governados pelos melhores (…) ora, com poucas exceções, só encontrareis semelhantes homens entre os que, tendo uma propriedade, são apegados ao país que a contém, às leis que a protegem, à tranqüilidade que a conserva’.”. A virtude, comenta Badiou, “é uma prescrição subjetiva incondicionada, que não remete para qualquer determinação objetiva. É por este motivo que Boissy d’ Anglas a recusa. Não se exigirá do dirigente que ele seja um político virtuoso, mas que ele seja um representante governamental dos ‘melhores’. Estes não constituem uma determinação subjetiva. É uma categoria definível condicionada absolutamente pela propriedade. As três razões evocadas por Boissy d’ Anglas para entregar o Estado aos ‘melhores’ são essenciais e tiveram grande futuro: —para um termidoriano, o país não é, como para o patriota jacobino, o lugar possível das virtudes republicanas. Ele é o que contém uma propriedade. O país é uma objetividade econômica. —Para um termidoriano, a lei não é como para o jacobino, a máxima derivada do nexo entre princípios e situação. Ela é o que protege, e singularmente o que protege a propriedade. Assim, sua universalidade é totalmente secundária. Conta a função. —Para um termidoriano, a insurreição não poderia ser, como o é para o jacobino quando a universalidade dos princípios é pisoteada, o mais sagrado dos deveres. Pois a reivindicação principal e legítima do proprietário é a tranqüilidade. Encontramos, assim, o tripé fundamental de uma concepção objetiva do país, de uma concepção conservadora da lei, e de uma concepção securitária das situações. Uma primeira descrição do conceito de termidoriano nele vê a nuvem do objetivismo, do status quo ‘natural’ e da seguridade”. ()
Justo porque o princípio objetivo impera a partir do Termidor e as noções de justiça, valor, virtude, são esvaziadas ao máximo, dando-se preferência à propriedade; porque não é mais permitido mudar a política sem a licença do mercado, o poder passa a desempenhar o papel de protetor da propriedade —velha tese de Locke—() contra os que não podem se encontrar no rol dos “melhores”. Não é preciso consultar os autores liberais do período, ou mesmo o que sobrou dos que defendiam o jacobinismo, para perceber que a garantia da propriedade deu-se com a mais dura violência. Termidoriano foi o império e termidoriana a restauração monárquica. Em ambos os períodos, o elemento “objetivo” invadiu a política e a cultura, deixando para os indivíduos apenas os devaneios românticos e a sensibilidade exacerbada. ()
A passagem do “subjetivo” (as virtudes) para o “objetivo” marca o realismo ou razão de Estado. A política deixa de ser assunto da vontade, do querer coletivo ou individual, e se transforma em algo exterior aos planos dos homens, com estatuto “natural”. Quando o realista age, ele se ancora nas “leis da objetividade”, como se o Estado e a vida social seriam apenas uma réplica mais complexa dos mundo natural. Assim, os valores como a virtude deixam de ter sentido, eles são mais representações Ideeles do que realidades empíricas ou ideais. É como se o mundo político estivesse submetido às determinações expostas na Crítica da Razão Pura, deixando para o campo da Razão Prática o vazio metafísico. Quem se curva ao mundo político tal como ele “é” apenas “obedece leis objetivas” e quem tenta transformar as relações corrompidas é apenas um sonhador, nada mais.
Algo similar ocorreu no início do século 14, quando a maioria das repúblicas mudam a sua forma de governo em proveito de um signore ou família, com os príncipes. Azzo VII se torna principe de Ferrara a partir do cargo de podestà. Ele fez o Conselho Comunal prometer que, na sua morte, seria reconhecido seu sobrinho, Obizzo, Signore de Ferrara. Este foi aclamado Signore com o poder de governar segundo sua vontade. Em todas as antigas repúblicas, a mudança foi mais ou menos difícil e controvertida. Algumas cidades como Bolonha e Gênova alternaram república e principado. Outras, como Florença e Siena resistiram como repúblicas e caíram sob o domínio principesco apenas no século XVI.
O ideal virtuoso e republicano, a “política”, tem sua base estratégica em Macróbio, no comentário ao ciceroniano Sonho de Scipião (parte da República escrita por Cicero) (). Naquele sonhos os políticos virtuosos são premiados quando morrem, com a felicidade eterna. O essencial guardado pelos republicanos : “nada do que ocorre na terra é mais agradável ao Deus supremo que governa todo o cosmos do que o estabelecimento de associações e federações de homens unidos por princípios de justiça (iure sociati) que chamamos comunidades (civitates), Os governantes e protetores delas (rectores et servatores) dela vêm e para e para ela retornam após sua morte” (Comentário do Sonho de Scipião). A virtude garante a felicidade do governante. A equação é platônica. O político prudente, segundo Macróbio, ordena seus atos pela razão, desejando o que é reto, justo. Este político permite a felicidade coletiva.
Seria Maquiavel o inverso dos ideais elaborados por Cicero? Segundo seus críticos do século XVI e XVII ele é o corruptor das verdadeiras políticas e modificou a mais nobre arte humana, transformando-a em instrumento de servidão. Segundo Inocent Gentillet, ele inventou máximas totalmente “malvadas (meschantes) e sobre elas construiu uma ciência política ainda mais tirânica”(Discours sur les moyens de bien gouverner et maintenir en bonne paix un royaume ou autre principauté, citado por Viroli).
As virtudes integram os princípios ciceronianos da política. Se a justiça não assegura a todos o que lhes cabe, some a sociedade pela ação de sentimentos baixos como a inveja e a sedição. Para que exista justiça é preciso que a virtude impere nos governantes e nos governados. Seria Maquiavel inimigo da justiça, amigo das sedições ? Segundo James Harrington (Oceana, 1656) ele encobriu idéias republicanas sob a capa do elogio da dissimulação e ferocidade principescas. Harrington distingue duas espécies de prudência: o governo de jure, com justiça e obediência à razão, e o governo onde “alguns poucos homens sujeitam uma cidade ou nação e governam segundo seus (ou seu) interesse privado”. Este é o governo segundo os homens e não segundo as leis.
Viroli, que sigo ainda aqui, nota um pensamento de Hannah Arendt segundo o qual “Maquiavel é o único teórico político pós clássico que fez um esforço extraordinário para ‘restaurar a política na sua dignidade antiga’”. Outros comentadores, como Hans Baron, comparam o autor e o cidadão republicano ao autor de O Príncipe. Note-se uma peculiaridade: naquele texto não usa o termo “político” e nem seus equivalentes. Para esta constatação, Viroli é devedor de Dolf Sternberger. () Segundo Viroli, não existia mais terreno para se falar em política, dada a nova lingua que estava sendo forjada e imposta praticamente, a da tirânica razão de Estado. Este juízo de Viroli pode ser discutido. Assim, outros autores, partindo também da constatação de Sternberger indicam um outra caminho. Segundo Giovanni Giorgini, ( )Viroli tem razão, mas é preciso qualificar seu enunciado. O Príncipe trata do “grau zero” da política, a situação na qual é “preciso instalar as condições para a possibilidade da política, criando ex novo ou salvando a comunidade política. Maquiavel aprendeu muito bem a lição de Tucídides (a soteria poleos é a mais importante consideração para um estadista) e também a lição do pensamento político romano ( salus reipublicae suprema lex esto).”. Assim, o Príncipe deveria ser lido como “uma variação do tema sobre o status necessitatis, a condição extrema e excepcional na vida de uma comunidade política (...) O príncipe, especialmente o novo, é com frequência forçado a agir contra a fé, a caridade, a humanidade, a religião, para preservar o Estado, citando Maquiavel na sua famosa frase, ele não deve separar-se do bem, se pode, mas estar pronto para o mal, se forçado. (...) O mal é especialmente necessário quando h]a corrupção no Estado ou quando a comunidade política enfrenta a destruição que vem de fora. E existe corrupção quando as leis favorecem apenas um segmento da comunidade e favorece a ambição dos poderosos. Em tal situação o vocabulário da política é pervertido: homens perniciosos são ditos industriosos no mesmo tempo em que bons cidadãos são tido como loucos”. Temos aí, novamente, a tese da “purga” invertida indicada por Platão, no seu retrato da tirania.
Notadas as divergências dos comentários, devemos ressaltar que, para Viroli, o vocabulário político anterior se justificaria, no entanto, nas cidades republicanas. O assunto de Maquiavel, no Príncipe, é o Estado do príncipe e, como tal, estado algo a ser preservado e dirigido. Viroli cita Maquiavel quando este diz o seguinte : “deixarei o raciocínio (ragionare) das repúblicas, porque em outra ocasião arrazoei muito. Trataremos apenas do principado (...) e discutirei como estes principados são passíveis de governar e manter”. Maquiavel, em Istorie Fiorentini fala de Cosimo, segundo o qual não é possível manter Estados com rosários (paternostri). Cosimo pensa no seu Estado, o dos Medici, não no poder soberano da comunidade política de Florença. Outro ditado da nova política ilustra a diferença entre Estado republicano e Estado de alguém: “é melhor uma cidade arruinada do que perdida”. Tal ditado expõe muito corretamente a política do Papa Julio 2, quando invadiu Bologna pretextando restaurar as antigas franquias daquela cidade. A sátira de Erasmo contra o pontífice é virulenta. () Cosimo defende o seu stato e para isso exilou, confiscou, etc. Os cidadãos que não obedeciam não eram inimigos da república, mas do seu Estado. Ele premiou os amigos e partidários, como é evidenciado por Platão.
Segundo Viroli, Maquiavel, à semelhança dos humanistas do Quatrocentto, não fala da arte do Estado (na qual o Príncipe se baseia) como sinônimo do antigo vivere politico porque, para ele, “stato” não era apenas outro termo para republica, mas uma forma específica de organização que exclui a tirania e o governo despótico, sendo incompatível com o governo de alguém. Se um cidadão ou partido domina os demais acima das leis e acima dos magistrados, desaparece a república. Tres tipos de Estado, como se nota a partir do Principe: a) stato del Turco, despótico; b) stato di Francia (reino moderado); c) Stati qui sono consueti a vivere con le loro leggi e in libertà, repúblicas.
Maquiavel, assim, não usa o termo ‘político’ porque no Príncipe não existe política no sentido republicano. Ele escreve sobre a arte do Estado, a de preservar ou reforças o estado de alguém. O debate sobre o governo tirânico no qual a polis “pertence” a alguém e o governo político onde todos, governantes e governados, obedecem a Lei, é antigo como a filosofia. Em Platão, Aristóteles, etc. existem notas estratégicas sobre o tema.
Marcello Gigante, em Nomos Basileus () apresenta um tratamento clássico do tema. Como ele mesmo diz, o assunto toca fundo no problema da justiça e da injustiça, “quanto no problema da legitimidade e da injustiça”. E também na questão da legitimidade da violência no mundo dos violentos. Hoje, adianta ele, “se pratica a violência em nome do ‘direito’ do punho, descoberta antiga do homem ainda deseducado. Mas tal ‘direito’ não tem raiz divina, nem o homem conseguiria codificá-lo. Hoje o interesse econômico elevou a nomos novíssimo uma história inglória, com a violência do mais forte sobre os mais fracos. Sobram apenas as teorias ‘intimistas’ do desfalecimento da consciência moral, e cuja ação inclui os procedimentos tortuosos e de bajulação”. Gigante escreve logo após a IIa Guerra Mundial, com o fascismo vencido, bem como o nazismo. O estalinismo estava no auge. A pergunta sobre o político, o republicano, o justo, permanece, bem como a questão dos saber se obedecemos leis ou somos servos de outros homens. Aqui, poderemos recordar as invectivas de Etienne de la Boétie, no Discurso da Servidão Voluntária. Somos cidadãos dignos deste nome, ou apenas objeto do poder?
Em Nomos Basileus temos exibidos os elos entre moral, força e direito no pensamento grego, de Homero a Platão. Nos poemas épicos, Zeus garante a diké (a lei), mas o termo nomos aparece apenas no composto eunomia (em antítese à hybris, OD. XVII, 487). Hesíodo fala de nomos genericamente como norma de vida: Zeus determinou um nomos para os animais (mas sem diké) e outro para os homens, e tal nomos é fundido na diké, contraposta à Bia, a violência física, a pura força. (“For the son of Cronos has ordained this law for men, that fishes and beasts and winged fowls should devour one another, for right is not in them; but to mankind he gave right which proves [280] far the best. For whoever knows the right and is ready to speak it, far-seeing Zeus gives him prosperity; but whoever deliberately lies in his witness and foreswears himself, and so hurts Justice and sins beyond repair, that man's generation is left obscure thereafter”. Trab. Dias, 276-280, Perseus Project).
A primeira vez em que a idéia de que a violência pode se harmonizar com a lei encontra-se em Solon, quando ele defende sua reforma. Ele afirma: “com o império do nomos, conciliando violência e justiça, cumpri esta obra”. O sintagma Nomos Basileus se encontra em Píndaro, que recorda como Hércules se apoderou das vacas de Gerion com a força. Mas a própria violência pode ser justa, se imposta pelo Nomos soberano. Nomos é a vontade de Deus. Mesmo perplexos, devemos nos inclinar diante do Nomos que autoriza a violência (como a de Hércules contra Gerion). Heródoto (III, 38) cita o poeta Píndaro ao narrar que Dario perguntou aos Callati (tribo indiana) e aos gregos sobre os funerais. Os indianos comiam os cadáveres dos genitores, viam como sacrilégio cremá-los. Gregos os cremavam e jamais aceitariam comê-los.
Heródoto: “Tais são, pois, as tradições e me parece que Píndaro tinha bem dito ao afirmar que o Nomos é o senhor do mundo”. O sentido dado por Heródoto é relativista mas, segundo Gigante, “as tradições de um povo têm, para ele, o valor de uma norma que ninguém deve violentar”. Demarato teria previsto que os espartanos não cederiam a Xerxes e o combateriam até a morte “porque acima deles está, soberana, a lei”. Segundo Gigante, no pensamento arcaico não existe conflito entre nomos e physis, “o predomínio da divindade é nomos e physis ao mesmo tempo, é lei santa e violenta, ao mesmo tempo”. (Gigante, p. 12). O Nomos basileus preside deuses e homens.
Quando, mais tarde, se distingue outra lei escrita (humana) e outra não escrita (divina) já se nota que a unidade arcaica do nomos foi violada. o que torna problemático o convívio político e social; a ética também se torna relativística. Este é o momento da sofística, com a “descoberta” do direito do mais forte, do nomos physeos. Antes, o direito do mais forte tinha uma só fonte: o divino, como em Píndaro. Os sofistas concedem ao direito do mais forte o fim terrestre e materialista do sympheron, o útil individual. Em Tucídides, Platão, Eurípedes, há o retorno da antiga raiz universal de lei fundamental. Daí a luta contra os sofistas e a tirania, com a unidade do direito e da ética. É o que se chamou, ao longo da Idade Média e no início da Renascença, “política”.
O imaginário medieval sobre o tempo e o eterno é transposto para os programas políticos. De um lado, os católicos da Europa que enxergam na razão de Estado o “inferno”, unindo semelhante doutrina a Maquiavel, e de outro os protestantes que, também vendo na razão de Estado um elemento pecaminoso, atribuem aos católicos todo maquiavelismo. Enfim, temos os que na França são chamados de “políticos”, dispostos a ultrapassar os vetos religiosos para a imposição do Estado sob comando central, do soberano monarca. Começo nosso exame com um autor protestante e republicano do século 17 revolucionário, John Milton, justamente no monumento poético e político denominado O Paraíso Perdido. Todo o poema pode ser lido como uma alegoria da ordem governamental, na passagem das repúblicas para o poder monárquico. Satã contesta a sucessão ao trono do Eterno pelo Filho, considera injusta e não justificada a escolha arbitrária da segunda pessoa da Trindade, em seu detrimento. A partir daí, comanda uma rebelião que mimetiza (apenas mimetiza) os traços republicanos e igualitários do seu movimento. Na verdade, seu programa é tirânico porque o poder seria exercido por ele, em seu nome. O Estado celeste ainda teria um dono, seria de alguém. Nos entrechos da saga luciferina encontramos elementos das doutrinas reais ou fictícias atribuídas a Maquiavel. ()
Existe hoje, entre os comentadores, quase consenso sobre os elos entre Milton e Maquiavel, em termos culturais. Milton, ao começar seus trabalhos já encontra vários “Maquiavéis” : o amoral, o político teórico, o diabólico do teatro, o satanás dos teólogos, o campeão das virtudes republicanas. O Paraíso Perdido recolhe fragmentos de tais tradições múltiplas mas o poema, sem dúvida, toca essencialmente no problema da sociedade ideal. Recordemos que um dos veios essenciais do protestantismo encontra-se no pensamento de Santo Agostinho e na sua separação rigorosa entre a civitas celeste e a terrestre. A primeira, eterna, serve como belo modelo, impossível de ser alcançado dentro do tempo e do espaço; a segunda é mostra da nossa degradação após o pecado. Em nosso mundo, podemos ansiar pelo paraíso perdido, mas apenas a passagem ao Eterno, pela graça divina, poderemos encontrar a paz e a felicidade. Este ponto ajudou e muito os protestantes reformadores a desconfiar das instituições eclesiásticas visíveis (logo, ligadas ao espaço e ao tempo) e nas autoridades da Igreja e do Estado. Milton segue a tradição protestante, evocando a passagem do Eterno, após a Queda, como melancólica perda de toda felicidade.
Seria possível conciliar os clássicos do pensamento antigo e o cristianismo? A pergunta que teve resposta negativa em Tertuliano (leia-se novamente o Apologeticum) e positiva em muitos padres da Igreja como São Justino, na corrente neo-platônica, ou nos que seguiram o caminho de utilizar pensamentos estoicos como base de sua compreensão do mundo físico e moral () ainda hoje suscita debates no mundo religioso. A posição católica tradicional pensa responder de modo positivo à pergunta. Os escritos de Santo Tomás de Aquino, com forte presença de elementos aristotélicos mas também neo-platônicos, como no caso de Dionisio Areopagita, mostram este encaminhamento positivo. E surgem resultados estratégicos, como o poema de Dante, a Divina Comédia. Alí ocorre o diálogo tenso que se completa, de lado a lado, na cultura cristã e na antiguidade representada por Virgílio.
Além desse ponto, Milton também enfrenta, na condição de pensador da Reforma, o problema do elo entre indivíduos e comunidade política. Recordemos, novamente, que a Reforma se dirigiu contra o princípio da autoridade visível eclesiástica, liberando assim o indivíduo dos laços comunitários e o entregando à uma solidão fundamental diante de Deus e da humanidade. O vínculo entre indivíduo e Igreja (que reverbera nos tratos do indivíduo com o Estado) situa-se na mais íntima questão do liberalismo e do republicanismo moderno. Quem desejar maiores detalhes sobre o ponto, consulte o clássico escrito de J. G. Fichte, Considerações sobre a Revolução Francesa () Se não mais existe uma Igreja visível, dado o predomínio da Igreja celeste, e se o Estado por sua vez não recebe mais legitimidade do poder religioso, o único fundamento da obediência e confiança no poder público encontra-se na vontade e na consciência, invisível e autônoma, dos indivíduos. Contra tal doutrina se ergueu Hegel e o pensamento moderno. Mas sempre que se fala em liberalismo, deve-se pensar no marco trazido por Fichte, na trilha de Kant.
Voltemos a Dante, um poeta e pensador que defende a independência do poder terreno diante do religioso. () Dante encontra, diante de si, as mesmas aporias ainda hoje não resolvidas, entre o indivíduo e o comunitário, entre o pensamento cristão e o paganismo. Sua síntese é uma resposta provisória, sempre ameaçada pelos integrismos e pela razão de Estado. Indico, para análise, o texto de Erich Auerbach, “Farinata e Cavalcante” (). No poeta, diz Auerbach, “a figura humana se impõe de maneira mais forte, concreta e peculiar do que, por exemplo, na poesia antiga. Pois da autoconsumação que compreende toda a vida passada, tanto objetivamente quanto na memória, faz parte de um desenvolvimento histórico individual, uma história, em cada caso individual, de um devir cujo resultado está diante de nós como coisa pronta, mas cujos estágios são apresentados porém, em muitos casos, pormenorizadamente”. Nos tres reinos, existem indivíduos concretos em situação concreta, para usar a frase de Marx na Ideologia Alemã. O Inferno reflete, anamorfóticamente, o Paraíso. Recordemos a alegoria do Bom Governo.
Milton procurou ver o instante inicial da vida humana em sociedade, a Queda que faz irromper o tempo, a corrupção e a opacidade na mente e no corpo humano. Dante exibe o que pode se tornar o homem por suas virtudes ou vícios, paixões e dignidade. Nos dois casos, os poetas individualizam os méritos e as culpas, mas em sentidos diversos: Dante projeta indivíduos concretos, históricos (até papas simoníacos) para o Além. Milton mostra como caímos do Além para o tempo e o espaço, como perdemos e nos perdemos do Eterno. Em Milton não temos os Farinata nem os Cavalcante, nem toda a multidão de indivíduos com nome de família, de cidade, etc. Mas Adão, Eva, os anjos e, sobretudo Satã, têm traços individualizantes marcados. Eles não se perdem em coletivos abstratos, mas têm vida, idiossincrasias.
Maquiavel trata dos mesmos problemas no Príncipe e na Primeira Década de Tito Lívio. Milton deliberadamente evoca o Príncipe na sua pintura de Satã. Deste modo, ele vai contra Maquiavel e, de certo modo, contra Dante e Tomás de Aquino (não esqueçamos o peso de Lutero e de Calvino no entrecho). Para os Reformadores, que seguem o apóstolo Paulo, a sabedoria pagã é loucura diante de Deus. Para Dante e Aquino impera o enunciado de que “gratia non tollit naturam, sed perficit”. Ou seja, no plano da natureza (o dos pagãos) existem possibilidades de salvação e, mesmo, de inspiração para a vida cristã. Se Milton recusa a tradição católica, na qual não se estabelece uma ruptura absoluta entre natureza e Além, pelo menos não uma ruptura sem remédio, ele, no entanto, move o quadro do inferno do poder.
Já no livro primeiro do PP, Satã exibe os traços do Príncipe: impetuoso, confiante em si mesmo, corajoso e tortuoso. Recordemos que no capítulo 18 do Príncipe o governante deve saber usar a fera dentro de si, sendo ao mesmo tempo leão e raposa, segundo as circunstâncias. No capítulo 25, Maquiavel critica a tendência à rigidez de comportamento, do governante que não sabe se desviar de suas inclinações. Então é elogiado quem sabe mudar sua natureza segundo a contingência, ou seja, a Fortuna. Para ele, a virtù é o talento para agir que se alia à prudência. Assim, Satã é ao mesmo tempo maquiavélico e não maquiavélico. Seu discurso nos dois primeiros livros do PP evoca os princípios da força e da astúcia. Entre muitas passagens, os versos 645 do livro I: “Nossa melhor parte consiste/ em operar com desígnios ocultos por fraude ou astúcia/ o que a força não consegue” (). Mas surge um problema: Satã é inflexível e imprudente, o que não corresponde às receita de poder apresentadas no Príncipe. Aqui, Milton força um lado do pensamento maquiavélico, o republicano segundo o qual os principados são, na verdade, fracos pois abolem a força que reside na soberania popular. Satã possui a impetuosidade indicada por Maquiavel para que se vença a Fortuna pois esta, como toda mulher é melhor dominada pela força (Cap. 25 Principe). Mas coragem não é o único requisito, pois é preciso sabedoria. sempre recordando que a politica, como diria Bismarck (repetido por um ex-presidente brasileiro) é a arte do possível. Maquiavel não elogia os que, por princípio, perdem o principado. O elogio de Maquiavel também se amplia para as inovações, mas com prudência, porque ao inovar um governante pode abrir a comporta para um oceano de contingências, fora de seu controle. Donde a lição com um oxímoro : a “inovação estável” que exige clarividência e coragem ao mesmo tempo. No mesmo capítulo 25, a Fortuna é comparada a um rio violento que só pode ser detido por diques, desde que ele seja visto com previsão prudente, que se baseia no domínio do passado e do presente, orientando em parte o futuro.
O oceano de contingências que segue a rebelião de Satã mostra inovação imprudente o que é uma fratura na sua virtù. Ele admite sua imprudência ao confessar para Belzebu que tinha menosprezado o poder divina em armas (I, 93-94). No inferno, ele continua inflexível, ou imprudente. Ora, o ensino de Maquiavel é que importa mudar o pensamento segundo as circunstâncias externas. Satã está tão petrificado em seus pensamentos sobre si mesmo que não percebe a radical mudança em seu estatuto. Ele se endurece na força, um perigo contra o qual adverte Maquiavel. Como, devido ao automatismo, os governantes tendem a repetir tudo o que lhes trouxe sucesso, eles perdem a habilidade de inovar e se tornam vítimas da Fortuna, que sempre cria desafios novos (Principe, 25). Satã não endurece por suas vitórias, mas pelo seu fracasso, à semelhança do Faraó, cujo coração vira pedra mais dura a cada nova praga divina. Maquiavel ensina se dobrar diante do poder de fato e de sua vitória. Satã não se dobra diante da vitória divina, mostrando cegueira política. Satã se ilude no presente e no passado. Ele passa a acreditar, como se fosse verdade, que as forças lideradas por ele “abalaram o trono divino” e que Deus mesmo “duvidou de seu império” (PP, I, 105). Ele acredita ter adquirido clarividência com os fatos que testemunhou e praticou. Mas, na verdade, nada aprendeu, porque insiste em combater um poder invencível. Ele se imagina livre para inovar seu futuro, mas é escravo de sua própria natureza. Aqui temos a recordação da República platônica. Nela, nos livros 8 e 9, Sócrates mostra que a personalidade dos tiranos - indefesa diante dos seus próprios desejos, isolado dos outros, miserável. O erotismo de seu próprio ser, puro desejo, nunca pode ser satisfeito, porque é insaciável. Na mística, sabemos, o elo entre Deus e criatura é de ordem absoluta, insaciável na terra, só completa no Eterno, quando toda a beatitude será, como diz o Apocalipse, grátis : δωρεάν (acusativo, como advérbio : graciosamente, sem uma causa, livremente). “Et spiritus, et sponsa dicunt: Veni. Et qui audit, dicat: Veni. Et qui sitit, veniat: et qui vult, accipiat aquam vitæ, gratis” (Apocalipse, 22, 17)
No Príncipe, um enunciado que escandalizou muitos que o leram, foi a recomendação para que o governante esteja apto a fazer o mal. Satã atende ao requisito : “Fazer o que é da boa vontade nunca será nosso labor, / Mas sempre fazer o mal é a nossa delícia,/ pois é contra à sua Alta vontade/ Contra a qual resistimos”. (PP, I, 159-62). Sua busca é o do interesse pessoal, acima de tudo : “viveremos neste vasto recesso,/ Livres, e não prestando contas a ninguém”(PP, II, 253-56). “Free, and to none accountable”. Tal é a divisa do absolutismo da monarquia moderna, absolutismo que jamais foi aceito pela Igreja católica e que, entre protestantes, significava um excesso das prerrogativas do governo civil.
Segundo leitores protestantes e católicos, Maquiavel incentivaria o mal no mundo, em vez de combatê-lo. Leo Strauss não foi o primeiro, nem será o ultimo a identificar maquiavelismo e política da perversão. () Pouco importa que outros leitores, também agudos, digam que Maquiavel sublinha que o mal deve ser feito, segundo o preceito da salvação do povo, “segundo a necessidade”. Seu uso do mal seria pragmático. Já o de Satã é pouco maquiavélico, porque absoluto, auto-destrutivo para seu reino. Ele é fixo em demasia, quando é preciso, para salvar o povo, que os principes ou o povo sejam abertos a inovações. O povo é mais facilmente adaptado para enfrentar novos desafios, tal é a lição posta nos Discorsi (livro III). Em texto político essencial, Milton afirma que as comunidades são de modo inerente mais estáveis do que as monarquias. (The readie and easie way) () . “A realeza foi considerada mais segura e durável, porque o rei e, na maior parte o seu Conselho, não muda durante a sua vida: mas uma comunidade é imortal; e, portanto, ela é mais firme, segura, e muito acima da Fortuna. Porque a morte de um rei causa com frequência muitas alterações perigosas; mas a morte agora e então de um senador não é sentida; a maior parte do corpo senatorial continua e permanece nas grandes e nobres comunidades, como se eles fossem eternos”.
Maquiavel prefere os governos mistos porque eles reúnem as habilidades do “um”, “dos poucos”, “dos muitos” conforme surgem as dificuldades. Naquele regime, o misto, os cidadãos constroem o Estado e, por sua vez, cada cidadão é nutrido pelo todo. A virtude cívica se fortalece com o uso e desaparece com o desuso. Uma pequena nota: a combinação dos três elementos é um axioma dos pensadores contra revolucionários do século 19, contra as teses republicanas ao modo de Maquiavel e das Luzes. Segundo eles, a Igreja é o modelo de poder, tanto civil quanto religioso, porque nela se encontram o um, os poucos, os muitos. Ela é ao mesmo tempo monárquica, aristocrática, democrática.
Milton, como Maquiavel, via nos seus compatriotas gente corrompida, efeminada, indigna da liberdade republicana. Os ingleses de seu tempo seriam “escravos por natureza, animais vagabundos e sem palavra; inaptos para aquela liberdade pela qual eles clamam com barulho, mas aptos a serem reconduzidos rumo à sua velha servidão, como uma espécie de clamorosas e briguentas brutas ( ...) que não sabem como usar a liberdade pela qual lutam”(Eikonoclates, XXVII).
Uma leitura interessante dos poemas miltonianos encontra-se em Christopher Hill, historiador inglês cujos conhecimentos da História de sua terra é dos mais amplos e profundos. () Particularmente no capítulo intitulado “A queda do homem”, encontramos a exegese política do PP e de outros poemas. Trata-se, segundo Hill, de uma crítica virulenta aos revolucionários que, na busca de mudar o mundo da razão de Estado e da monarquia, tombam nas tentações do poder, ou seja, nas tentações da razão de Estado, pioradas pelo orgulho, ganância material, etc. ( ).
Precisamos voltar ao pensamento medieval, com a noção da hierarquia celeste que serve de modelo para a terrestre e política. Repercutem em Tomás de Aquino os escritos de Dionísio, o pseudo-Areopagita, sempre pelo filtro de Agostinho: “um soldado está sujeito ao seu rei e ao seu chefe de exército; em sua vontade ele pode buscar o bem de seu chefe, e não o de seu rei, ou o contrário. Mas se o chefe recusa a ordem do rei, a vontade do soldado será boa se recusar a vontade do chefe em favor da real; ela será ao contrário má, se obedece a do chefe contra a do rei, pois a ordem de um princípio inferior depende da ordem do princípio superior.” As substâncias separadas, adianta Aquino, “não são apenas ordenadas em relação a Deus, mas umas em relação às outras, da primeiro até a última”. (Summa contra gentiles).
O universo inteiro segue, dos anjos aos governantes, a ordem hierárquica essencial. “A bondade da criação não seria perfeita sem uma hierarquia dos bens segundo a qual alguns seres são melhores que os demais; sem isto todos os graus do bem não seriam realizados e nenhuma criatura seria semelhante a Deus por sua preeminência sobre as outras. Assim a bondade última dos seres desapareceria com a ordem feita de distinção e disparidade; bem mais a supressão da desigualdade dos seres arrastaria a supressão de sua multiplicidade: um é o efeito melhor do que o outro pelas próprias diferenças que distinguem os seres uns dos outros, como o vivente e o inanimado e o racional do não racional”. Esta escala cósmica e ontológica (sobremodo axiológica) continua na soberania política: “a perfeição para todo governo é prover os seus súditos no que diz respeito à sua natureza, tal é a noção mesma de justiça nos governos. Do mesmo modo, pois, que para um chefe da cidade opor-se — se não for apenas de maneira monentânea em função de certa necessidade —a que os súditos cumpram sua tarefa , seria contrário ao sentido de um governo humano, do mesmo modo a sua natureza seria oposta ao sentido do governo divino.”
Aquino, com base na doutrina da hierarquia celeste, escreveu minuciosas observações sobre o livro de Jó. As mais relevadoras, no vínculo entre poder e orgulho, encontram-se em notas sobre os derradeiros versículos do poema. Diz Tomás: “após o Senhor descrever as particularidades do diabo sob a imagem do elefante, o maior dos animais terrestres, ele o descreve na figura do Leviatã, ou da baleia que é o maior animal marinho”. O poder do Leviatã não pode ser evitado ao modo humano, pela lisonja ou ameaças. Assim, “o diabo não teme o homem”. A potência de Satan é imensa. E Aquino enfrenta, ao seu modo, o problema arcaico da teodicéia: Deus não é cruel por ter suscitado o poder demoníaco. “Por tê-lo suscitado não sou cruel”. A onipotência divina não poupará o poderoso Leviatã : “todas as coisas sob o céu são minhas”.
Aquino segue para as linhas finais: “Nenhuma potência sobre a terra é-lhe comparável. Ele foi feito para não temer ninguém. Ele vê grande em tudo; ele mesmo é o rei de todos os filhos do orgulho”. A versão latina, utilizada pelo doutor da Igreja, é a da Vulgata, a mesma que suscitou o imaginário hobbesiano sobre o poder terrestre: non est super terram potestas quae comparetur ei, qui factus est ut nullum timeret. Omne sublime videt : ipse est rex super universos filios superbiae.()
Ao comentar este passo, o filósofo cristão ressalta a incomparável e indizível força do Altíssimo, infinitamente superior à do Leviatã. Quando o diabo for vencido, “os anjos do Senhor temerão admirando o poder divino; mas nessa admiração muitos efeitos da virtude divina são-nos conhecidos e (o autor do livro de Jó, RR) introduz aqui ”e o terror os purificará “; com efeito, como diz Dionísio no capítulo 6 dos Nomes divinos (na verdade, trata-se do tratado sobre as Hierarquias Celestes, RR), os anjos são ditos purificados não de uma impureza, mas da ignorância; como toda criatura corporal, se comparada aos santos anjos, é pouca coisa, não se indica por aí que os anjos celestes estão muito espantados com o cetáceo corporal, a menos que talvez se enxergue homens nestes santos anjos; os anjos de que tratamos assistem a decadência de Satan, o Leviatã espiritual que foi transido pela justiça divina quando caiu do céu pelo pecado, então os anjos admiraram a majestade divina e se purificaram ao separar-se de sua companhia”.
Finaliza Aquino : “…o intento do demônio é agarrar tudo o que é sublime. E como essas coisas são próprias do orgulho (…) o diabo não só em si mesmo é orgulhoso, mas ultrapassa todo o mundo em sua soberba e mostra-se como fonte de orgulho para os outros, (…) ele mesmo é rei de todos os filhos do orgulho, ou seja, dos escravos do orgulho e que o tomam por guia”. Que lições Job (e cada ser humano após ele) tira da parábola do Leviatã? Responde Aquino: “o que mais deveria ser temido por Jó é que o diabo pedisse para lhe tentar, levando-o ao orgulho e ao seu reino; ser-lhe-ia necessário evitar as disposições e as palavras que respiram orgulho”.
Satan quer agarrar tudo o que é sublime. E como essas coisas são próprias do orgulho (…) o diabo não só em si mesmo é orgulhoso, mas ultrapassa todo o mundo em sua soberba e mostra-se como fonte de orgulho para os outros, (…) ele mesmo é rei de todos os filhos do orgulho, ou seja, dos escravos do orgulho e que o tomam por guia”. Que lições Job (e cada ser humano após ele) tira da parábola do Leviatã? Responde Aquino: “o que mais deveria ser temido por Jó é que o diabo pedisse para lhe tentar, levando-o ao orgulho e ao seu reino; ser-lhe-ia necessário evitar as disposições e as palavras que respiram orgulho”.
Apesar dos muitos choques entre o ensino católico, representado por Tomás de Aquino e as doutrinas protestantes —na interpretação da origem do mal e do poder mundano— existe pouca discrepância nas duas percepções sobre a rebelião de Lúcifer. Tudo o que enunciei sobre o comentário tomista foi assumido nas várias igrejas e seitas reformadas. Mesmo autores que ajudaram poderosamente a separar o Estado de seus fundamentos religiosos, como Francis Bacon, usam o símile angélico para expor os nexos entre conhecimento e poder político. “O desejo de poder em excesso causou a queda dos anjos; o desejo de saber em excesso causou a queda do homem”. Essa fórmula adquire um significado grave se aproximada do aforismo baconiano célebre: knowledge and power meet in one. Sim, desde que limites sejam respeitados.
As achegas anteriores permitem-nos visualizar o maior poema cristão sobre o poder e o conhecimento, após o Inferno dantesco. Refiro-me ao Paraíso Perdido. Milton constrói a sua trama e mantém a espinha dorsal da hierarquia, herança do neo-platonismo, certamente de Proclus, mas com muita segurança também de Dionísio, o pseudo-Areopagita. Sem ela, fica sem nenhum sentido cada passo do imenso drama cósmico desenvolvido de modo épico. Sobre Milton, tudo foi dito e tudo ainda resta a dizer. Saliento apenas o aspecto da soberba que marca, no caminho dos versos, a Queda satânica e o campo da política humana. Como sublime artesão do verso, Milton exercita um imaginário que vai além dos textos e dos motivos encontrados na vasta história do cristianismo ou da cultura judaica e grega que o moldaram. Assim, não se recobrem totalmente os personagens angélicos e suas atribuições, em Dionísio Areopagita e no poeta inglês. Na hierarquia celeste, os anjos ocupam os lugares mais próximos do Altíssimo, idéia ampliada por Milton com todos os recursos culturais a seu dispôr.
A soberba une-se de imediato à política angélica no Paraíso Perdido. Lúcifer, o glorioso, desejou “ombrear com Deus, se Deus se lhe opusesse” e “do Onipotente contra o Império e trono/Fez audaz e ímpia guerra”. Sua marca, desde então, encontra-se na “Soberba, empedernida, ódio constante”. Na queda, ele traz o sinal do medo, algo próximo em demasia ao exercício político: “De sua coma fúlgido privado; Ou quando posto por detrás da lua, /E envolto no pavor de escuro eclipse,/Desastroso crepúsculo derrama/Pela metade do orbe, e os reis consterna/Em seu poder temendo algum desfalque./Obscurecido, mesmo assim fulgura/Mais que os outros arcanjos, seus consócios;/Mas dos raios profundas cicatrizes/Aram-lhe o rosto macerado, aonde/Mil cuidados contínuos se aposentam/Sob o ouropel de intrépida coragem/De ultriz tenção, de refletido orgulho”. Nas suas falas aos dirigidos, anjos de escalão menor na via ascendente dos seres, o monarca do inferno é soberbo orador, em todos os sentidos. Domina a retórica com maestria e nela exibe sua plena arrogância. Diante do silêncio temeroso do exército maligno, que teme assaltar o trono divino, “Com orgulho monárquico se expressa : ´Dos céus prole sublime, empíreos tronos, /Sois intrépidos, sim! mas não estranho/Que hoje o silêncio e hesitação vos prendam./ É dilatado e aspérrimo o caminho/ Que à luz do Empíreo vai das trevas do Orco”. As indicações do orgulho luciferino são múltiplas, ao longo do poema. Todas conduzem ao mesmo ponto : “Guerrear nos Céus, dos Céus o Rei supremo,/ De lá me arrojam a ambição, o orgulho,/ Mas…ai de mim! por quê ? Justo e benigno, / De tal retribuição credor não era,/Ele que o ser me deu, que nessa altura/Me colocou imerso em brilho, em glória”.
No sistema doutrinário de John Milton, a recta ratio encarna-se na pessoa do Cristo, sinômino de harmonia e de paz, enquanto Satan é a razão que delira e arma laços para os demais seres. Como diz um comentador, “Cristo é o Logos da cristandade neo-platônica e o agente executivo de Deus, ao mesmo tempo abolindo a rebelião e criando o universo e o homem de acordo com a sua ´grande Idéia`” (Bush, D., 1977: 167). Assim, o sistema do mundo e do poder exigem a soberania da razão e da vontade racional sobre as paixões, sobretudo contra a libido dominandi. A grande raiz de todos os males sociais ou éticos encontra-se no orgulho. O mesmo comentador chega a enunciar que “o orgulho e a presunção constituem o tema inteiro de Milton”. Para tudo resumir, “o orgulho que aspira para além dos limites e das necessidades humanas, o desejo de poder pelo conhecimento é o motivo que se encontra em toda a tentação de Eva por Satan”. Deste modo, Milton teria diagnosticado, na pessoa de Lúcifer, os males todos de nossa modernidade, com o naturalismo, o liberalismo sem peias, o orgulho irreligioso. Ele também mostrou “a vontade de potência, pública e privada, a presunção intelectual, o desejo egoista, buscando seus fins pelo uso da força e da fraude e destruindo a ordem divina e natural no mundo e na alma”. (Id. Ibid., 171-174)
Um trecho do poema suscita debates acalorados entre os comentadores. Trata-se dos versos onde Cristo se dirige à primeira pessoa da Trindade dizendo: “Omnipotente Pai, razão te assiste/Para te rires de teus vãos contrários/E seguro tratares com desprezo/Seus tumultos e ardis, inúteis, fátuos.” O riso divino não é novidade alguma na época. Recordemos Pascal: na célebre 11ª Carta a um Provincial encontra-se toda uma teologia do riso contra a presunção tola e orgulhosa dos homens. Segundo Pascal, a própria divindade criou o riso para colocar Adão no seu devido lugar: “nas primeiras palavras ditas por Deus ao homem após a Queda, encontra-se uma caçoada e uma ironia picante (…) pois seguindo-se a desobediência de Adão (…) parece pelas Escrituras que Deus, em castigo, tornou-o sujeito à morte e após tê-lo reduzido à miserável condição devida ao pecado, riu-se dele (…) com palavras de brincadeira, `Eis que o homem tornou-se um de nós`. Ironia cruel e sensível pela qual Deus o espetou vivamente”. Deste modo, o riso foi merecido pelo homem, a quem Pascal nomeia, em italiano, ridicolosissimo eroe !.
O riso divino levanta a questão: todo o Paraíso Perdido armaria uma enorme comédia na qual anjos e homens seriam apenas e tão-somente heróis superlativamente ridículos? Esta possibilidade não é alheia à cultura ocidental anterior a Milton. Nas Leis, Platão pede que imaginemos seres vivos, como nós, espécies de marionetes fabricadas pelos deuses: “fomos produzidos para o seu divertimento, ou para um fim sério? Não o sabemos.”. E. Curtius lembra que Lutero usou, para designar a justificação, o termo Spiel Gottes quando se trata dos homens. Se tragédia ou comédia, não está ao alcance do homem decidir o sentido último da existência. Robert Burton, a grande fonte moderna sobre a melancolia, ao falar dos demônios, lembra o dito platônico: ludus deorum sumus. (Burton, R., 2001: 326)
É possível enxergar no Paraíso Perdido as duas faces, a cômica e a trágica. O melhor seria percebê-lo como terrível tragicomédia35 na qual o sentido existencial se perde ou se ganha, conforme a situação do sujeito. C.S. Lewis, em ensaio clássico sobre o Satan de Milton afirma o primeiro traço —o ridículo— como chave hermenêutica. Razão em demasia conduz à loucura. É assim que Lúcifer —o ente em cuja consciência mais se depositou a luz da razão— ensandeceu por completo. Sua razão é louca. Este é o significado da epígrafe de seu texto, posta por Lewis: …le genti dolorosi/ C´hanno perduto il ben de l ´intelleto. (Dante).
Essa lembrança do verso dantesco, devida a C.S. Lewis, tem enormes razões históricas atrás de si, sobretudo no campo da medicina imediatamente anterior ao poema de Milton. Ao estudar a prática terapêutica do século 16, Jean Ceard discute os nexos entre melancolia e influência diabólica. O melancólico é triste como Lúcifer, mas “se o diabo pode teoricamente nos aplicar mil doenças, ele no entanto tem predileção pelas que ofendem o cérebro e os nervos”. Se perseguirmos esta via, o demônio de Milton experimenta o seu próprio mal, pois é melancólico e perdeu o siso. Ceard lista os acometidos pela enfermidade na Bíblia, sobretudo nos escritos cristãos. Ali encontramos um lunático epiléptico (Mateus, 17, 14 ss), um maníaco licântropo (Lucas, 8, 27 ss), um outro doente de “convulsão da espinha” (Lucas, 13, ss). O diabo prefere “as doenças de nervos e do cérebro, o que deve nos alertar para certo número de representações pouco conscientes e incompletamente formuladas”.
Desde remotas épocas a forma literária em O Paraíso Perdido confunde os analistas. Juizos categóricos conduzem a recusas e a teses problemáticas, como a de Hegel: “Milton parece, tendo-se em conta a sua época, um modelo digno de admiração, seja pela cultura reunida por meio do estudo da antiguidade, seja pela correta elegância da expressão. Ele, no entanto, é absolutamente inferior a Dante na profundidade de conteúdo, na energia, na originalidade da invenção e fatura e particularmente pela objetividade épica. De fato, de um lado o conflito e a catástrofe do Paraíso Perdido pende para um caráter dramático, de outro (…) a tendência lírica e didascalico-moral constitui um traço peculiar de se afastar muito do assunto, no que diz respeito à forma original”. Cf. GWF Hegel, Estetica, Trad. N. Merker e n. Vaccaro, (Milano, Eunaudi, 1976, T. 2), p. 1241. Os “defeitos” encontrados por Hegel são pequenos, se o diagnóstico do filósofo é comparado a outras exegeses.
Fernel, para quem a loucura, fruto do jogo dos humores, consiste na “depravação do funcionamento da faculdade principal da alma que reside na substância cerebral como em seu domicílio” e cujo nome latino é desipientia e os gregos são paraphrosyne e paranóia, ou seja, mentis alienatio. A melancolia ao mesmo tempo provoca e destrói o intelecto, “ela é o seu aliado mais eficaz e seu inimigo mais terrível” (Ceard). Segundo Jean Taxil, outro médico da época, “os corpos que o diabo possui interiormente são melancólicos, pois é o humor a verdadeira sede, no qual o diabo se apraz, e do qual ele produz tão estranhos efeitos”. O próprio diabo é melancólico e o poder diabólico é coberto pelo manto da melancolia...
Roberto Romano
Existem valores perenes na luta em prol dos direitos humanos. Como em tudo o que é finito, tais valores possuem o seu lado oposto, os quais não raro os arruinam. Impossível pensar a humanidade sem a técnica e a ciência. Mas é necessário olhar para os desvios acarretados por semelhantes forças. Vejamos um traço grave, antigo mas que hoje preocupa os que defendem direitos, as intervenções técnicas no corpo humano, implicados nos avanços da engenharia eletrônica. Como é sempre possível esperar, tais investigações ligam-se ao fato guerreiro. Recordemos os antigos elos entre pesquisa médica e o treino para a guerra, traço comum entre ciência e morte nas batalhas. O tema assume característica nuclear nas culturas que iniciaram a nossa ética e política.
Passamos, no mundo ocidental, por tentativas de conseguir o “apuro” da ordem humana. Os esportes () a educação física uniram-se, não raro, à tentativa de “melhorar a raça”. E os “inferiores” (os pobres habitantes das montanhas norte-americanas, os judeus, os ciganos, os homossexuais, os asiáticos, os negros) sofreram uma guerra de extermínio cujo nome é eugenia. () Não me deterei muito, agora, em tal aspecto.
Importa, do ponto de vista ético lembrar a tecnologia de controle de corpos e de almas aplicada em campanhas de extermínio dos “inaptos” (assim decretam os “superiores”) para a vida no planeta. As pesquisas médicas, de engenharia e genética em nossos dias podem seguir (isto não é necessário, nem está definido na essência do saber científico) o rumo iniciado pela antiga e renitente história do “aperfeiçoamento” dos pretensos superiores e das ameaças contra os supostos inferiores. Existe a tentação de reduzir o ato educacional ao “apuro” e disciplina, à seleção dos “melhores”. Mas é possível sugerir caminhos diferentes na ética e na ciência. Esta última, mais as técnicas, não se destinam apenas à tarefa que frutificou na guerra ocidental ou nas lutas pela eugenia. Recordo a análise de um pensador de nossos dias, em livro ainda recente.
Massimo De Carolis discute a engenharia cognitiva e biológica e tenta fugir de um risco comum às análises favoráveis ou contrárias às ciências e técnicas. É redutor, no seu entender, todo exame que elude o fato de que os significados do mundo humano podem ser compreendidos cientificamente. E para tal fim, é necessário que a informação sobre a humanidade seja tão acessível quanto a informação sobre os demais campos da natureza. Existe, constata ele, informação e existe rumor (palavra com sentido ou palavrório, diriam os filósofos clássicos).
Os homens compreendem informações e rumores no interior da natureza e no seu campo específico. Eles distinguem a si mesmos do ambiente natural. E captam sentidos sobre a sua vida. Nesta faina, De Carolis distingue três aspectos essenciais: a performatividade, a virtualidade, a auto-referência. A performatividade é o poder de constituir um sentido por um ato fundador. A virtualidade é a marca dos eventos de sentido nunca estabelecidos definitivamente, mas re-definidos sempre, em novos nexos entre signo e rumor. Auto-referência é a força de representar a si mesmo e distinguir a si mesmo do mundo externo.
Hoje somos praticamente presos da técnica que permite transmitir informações –esta inclui a Internet mas soma a mídia, o cinema, etc.– que atenua o sentido e a liberdade. No aperfeiçoamento corporal, máquinas são oferecidas como substitutas eficazes da ação volitiva, tendem a dispensar os intentos humanos. O Estado e o mercado dispensam entes voluntariosos que decidem este ou aquele rumo coletivo. A política econômica e a política representam automatismos que operam como se fossem instrumentos infalíveis.
As guerras são vividas como espetáculo televisivo ou fílmico pelos que não as sentem no corpo, pelo menos nos seus primeiros instantes. O treino para o automatismo conduz às mesmas atitudes dos antigos gregos diante dos outros povos e culturas, vistos como estranhos, perigosos e inferiores. É “natural” que eles sejam vencidos em batalhas “científicas”, com bombas “inteligentes”. Mas um traço pouco discutido, neste âmbito, é o nexo entre a ciência, o ensino e a guerra. Vejamos um exemplo.
Em 1983 E. Pozzi analisa a tendência ao controle maquinal das atividades lúdicas e do esporte. Refiro-me ao artigo intitulado “Giochi di guerra e tempi di pace”. O texto examina a espacialização do tempo cujos exemplos mais relevantes, no mundo contemporâneo, são os jogos de guerra e o esporte. As duas formas de diversão expõem formas da consciência ética automatizada e prestes a ser movida no interesse do extermínio dos “inferiores”.
Os jogos de guerra surgem com o Estado moderno, entendido e praticado como imensa fábrica de controle político. Desde Platão a idéia de que o universo físico e humano são artefatos produzidos com arte e técnica, os quais devem ser dirigidos por sábios competentes, habita as mais importantes teorias políticas. Basta que se pense em Thomas Hobbes. O Estado-máquina é desafio importante: não por acaso Platão o ideou contra a democracia ateniense, lugar onde nasce a nossa imaginação política. Confiantes na eficácia da polis dirigida por sábios, contra a instabilidade das massas, o pensamento assumiu o cálculo e a eficácia que instauram o Estado e se oferecem para Max Weber na figura do “Estado fábrica” onde todas as conexões são artificiais e mecânicas. A essência burocrática seria o resultado lógico dos séculos de razão mecânica .
André Leroi -Gourhan () em Evolução e técnica () examina as artes de fabricação, aquisição ou consumo. Ali ele expõe o quanto o elemento tecnológico define a vida social e mostra a vida forjada pela técnica como um sistema onde, dado um traço os demais se definem, com maior ou menor densidade e coerência. O sistema de ciências e técnicas ergue-se contra o acaso. Assim, "o processo humano, surgido dos constrangimentos biológicos, desenvolvendo-se na ordem dos signos, apressado pela indústria e figurado pelas técnicas da comunicação, é processo cumulativo. O passado da espécie condiciona o futuro da etnia". ()
Os movimentos tecnológicos e científicos são conquistas milenares: a postura ereta, a linguagem, a imaginação, a memória.
Tal é a constante no movimento evolutivo. “O técnico comporta-se frente à matéria, que ele ataca, em função de certos meios de atividade, do mesmo jeito que o ser vivo, no interior de seu meio”. Só há produção para o ente vivo, para a técnica, para as sociedades, sob constrangimento. A evolução transforma o constrangimento em tendência adquirida pela espécie. As faculdades do cérebro e das mãos, em milênios, se tornam tendências inconscientes, mas ativas nas sociedades. O instrumento é conseqüência da mão. "O homem não é um resultado, ele é um produto, e mesmo seu produto, um ser que soube e pode acomodar sua contingência, aproveitar a si mesmo e ao meio". A humanidade vive, desde época remota, no "meio técnico" cuja tendência é substituir o natural.
Nenhuma técnica existe isolada e toda sociedade é politécnica. O instrumento ou processo ausente num coletivo humano encontra-se em outro, premido à sua invenção pelos desafios naturais. São fatos diferentes “ter” um instrumento e “fixar” o mesmo instrumento. Só na segunda via o objeto é “digerido” pelo meio, “integrado ao seu capital, porque é harmônico à politécnica preexistente ao grupo.” (Guérin). () Entre a vida e a morte, o instrumento técnico possibilita uma tripla sequência comportamental (agressão, aquisição, alimentação), de preensão (lábio-dental, digito-palmar, interdigital e projeção), de percussão (dentária, manual, unguear). ()
Para quem se apresta a olhar o ente humano com as lentes da etnologia, portanto, nada surpreende quando se trata de perceber os acréscimos trazidos ao corpo e à mente pelas próteses avançadas de nossos dias. Se nós mesmos somos o resultado técnico de nossa atividade corporal, quando novos instrumentos auxiliam a aumentar nossa força e poder sobre o universo e sobre a sociedade, tal fenômeno inscreve-se numa continuidade milenar, durante a qual produzimos o que entendemos como homo sapiens.
Permanece, no entanto, o problema ético sempre espantoso: as melhorias que fazemos em nossa estrutura somática e funcional têm mão dupla. Elas podem nos conduzir para o convívio que nos refina em termos éticos, estéticos, religiosos, científicos, ou à destruição dos que julgamos estrangeiros, inferiores, bárbaros. É semelhante ponto o examinado no livro pungente de Jonathan D. Moreno, Mind Wars, brain research and National Defense. ()
Filho de famoso pesquisador que definiu parâmetros de saber médico durante a Segunda Guerra Mundial, Moreno começa seu relato com um episódio significativo. O pai, Jacob Levy Moreno serviu muito às Forças Armadas, britânicas ou norte-americanas, com a sociometria () a psicoterapia de grupo, o psicodrama. Nada disso ele escondeu dos leitores em sua Autobiografia (). Enfermeiros foram assim treinados para conseguir maior eficiência na sua luta contra a morte dos que lutaram na Segunda Guerra Mundial. Soldados também receberam treino segundo as técnicas criadas por Moreno, para aumentar a sua capacidade letífera. Este é o núcleo da pesquisa de Jonathan D. Moreno: o uso das técnicas para ampliar, sem medidas, a força de abate dos soldados norte-americanos. Tais procedimentos são descritos minuciosamente pelo autor, dando-nos a certeza de que de fato já vivemos em pleno “Brave New World”.
Quando criança Jonathan nota, certo dia, que um grupo de jovens, quase adolescentes, chega à sua casa em ônibus escolar e segue para o laboratório do pai. Anos mais tarde ele pergunta à sua genitora o motivo da visita inusitada. E fica sabendo que as quase crianças serviram para testar o LSD. O fascínio com a droga veio de pesquisadores que trabalhavam em Harvard, que estudavam a droga desde 1950. O primeiro ponto ética controverso, portanto, reside nos experimentos com seres humanos, jovens e inexperientes. O segundo, é a pesquisa ter sido conduzida em segredo. E o terceiro é grave como os anteriores: a pesquisa era, em parte mais do que considerável, feita em prol das agência encarregadas pela segurança nacional. Como diz Moreno: os sonhos de Thimothy Leary, um guru do tipo hippie que desejava mudar a sociedade com a droga em questão “could trace their roots to America’s early cold war defense establishment”. ()
Anos depois, o filho encontra-se em posição de pesquisa em bioética, numa faculdade de medicina, para trabalhar em certo Comitê Presidencial para o estudo de experimentos em radiação, com as seqüelas nos seres humanos, patrocinados pelo governo norte-americano desde 1940. Seu trabalho seria acompanhar a história secreta (classified) do financiamento oficial em experimentos humanos. Dessa maneira, percebeu as conexões entre o uso do LSD e outros meios de influência sobre o cérebro e a CIA e o Pentágono, pelo menos desde 1960. O interesse anterior, também descobriu ele rapidamente, dos mesmos organismos de espionagem e de guerra, continuam no campo da neurociência.
Pouco a pouco Moreno amealhou dados sobre a defesa nacional e seus financiamentos, e a pesquisa em neurociência. Um outro fato significativo em termos éticos grande parte dos cientistas, brilhantes, pouco sabia sobre a origem dos financiamentos globais de suas investigações, ou imaginavam que o nexo entre financiamento e o que faziam pouco trazia para ser pensado no campo prudencial. Quando recolheu dados suficientes que lhe permitiam dizer que o vínculo entre segurança nacional e pesquisas em neurociência, neurofarmacologia e áreas conexas era extenso e em crescimento, ele notou também que poucos discutiam “many fascinating ethical and policy issues that might emerge from this relationship”.
Não temos condições de indicar, aqui, os elementos técnicos implicados nas intervenções sobre corpos humanos, inicialmente dos guerreiros, expostos por Moreno. Basta, no entanto, assinalar os perigos éticos e políticos neles consubstanciados, que implicam gravíssimos crimes contra os direitos humanos, individuais e coletivos. A leitura de Mind Wars deveria ser obrigatória pelos que, no Brasil, se interessam pelo futuro da humanidade.Um outro livro de Moreno que merece análise é Risco Indevido ()
Nele, o autor mostra o quanto os governos, não apenas o dos EUA, mas de muitos países, privilegiam pesquisas em seus próprios cidadãos (experimentos das ordens biológicas, químicas, atômicas) tendo em vista a "segurança nacional". Os direitos dos que servem para tais experimentos são atingidos profundamente. Moreno descreve o uso de militares e civis, incluindo crianças, em tais pesquisas. Pacientes foram submetidos a toxinas biológicas ou químicas, a explosões nucleares –oftalmologistas mediam os efeitos da radiação nos olhos, variando a distância do foco. Outros casos descritos, envolvendo LSD e mescalina, tinham como alvo saber se os inimigos, sob aqueles elementos, ficariam desarmados, ou não. Os inúmeros casos mostram que os direitos dos submetidos foram ignorados e violados intencionalmente pelos poderes e pelos pesquisadores, sempre em nome da segurança nacional. Tais experiências foram feitas, mesmo depois de instaurado o Código de Ética médica da American Medical Association e depois do Código de Ética de Nuremberg cujo núcleo lógico e deontológico rezava: "O consentimento voluntário do sujeito humano é absolutamente essencial"
Em data recente tivemos outra notícia sobre ética médica e atos contrários à democracia. Os EUA pediram desculpas à Guatemala pelas experiências realizadas em prostitutas e doentes mentais naquele país por volta de 1940. Tais agressões aos corpos alheios, cometidas pelos aventais brancos, foram efetuadas sem consentimento e consciência das vítimas.
Em 1940, médicos que deveriam cuidar dos seres humanos os destruíram. “Usarei meu poder para socorro do adoecido, segundo o melhor da minha habilidade e juízo; evitarei, com ele, ferir ou enganar todo e qualquer homem”, diz o juramento de Hipócrates. Aqueles médicos infectaram de propósito, com gonorréia e sífilis, 1.500 pessoas na Guatemala. “Estamos escandalizadas por saber que essa pesquisa ocorreu sob o disfarce de ação de saúde pública”, dizem agora as secretárias de Estado dos EUA, Hillary Clinton, e a da Saúde, Kathleen Sebelius. “Sentimos muito e pedimos desculpas a todos os infectados na pesquisa”. Barack Obama pediu perdão ao presidente da Guatemala, Alvaro Colom. “Regulamentos sobre pesquisas médicas em humanos nos EUA hoje proíbem esse tipo de violação terrível”, disseram Hillary e Sebelius. Elas afirmaram que será feita uma investigação sobre o caso, especialistas internacionais farão um relatório sobre padrões éticos nas pesquisas médicas.
Na mesma época, pouco mais tarde, no próprio território norte-americano “pesquisas” eram feitas em humanos por médicos com olhar - diz a pensadora Elizabeth de Fontenay - frio como o escalpelo. No caderno de horrores intitulado Risco Indevido, um especialista na bioética, respeitado hoje nos EUA por organismos do governo e da sociedade, inclui mesmo oftalmologistas encarregados de verificar o que ocorreria com os olhos de soldados expostos à radiação atômica. A data? 1950 em diante. () Moreno recompõe, rumo ao pior, os círculos dantescos do Inferno. Notemos que todos os crimes indicados têm um denominador comum: falta de alma dos pesquisadores e segredo.
Mas os dias de hoje trazem eventos terríveis, no campo da experimentação com seres humanos. Não falarei aqui dos médicos que ajudaram nos procedimentos de tortura em regimes ditatoriais como o da Grécia, do Brasil e de outras partes do mundo. Mas o elo entre pesquisa e guerra ainda trará muitos sofrimentos para a humanidade. Vejamos, para terminar, uma notícia recente publicada na Folha de São Paulo
"Psicólogos reproduziram teste da década de 1960 (Reuters). Psicólogos conseguiram reproduzir um experimento clássico dos anos 1960, mostrando que a maioria das pessoas aceita infligir dor em outras quando recebe ordens de alguém em posição de autoridade.No novo estudo, 70% dos participantes convidados a ajudar um cientista aceitavam aplicar choques num voluntário, que deveria ser punido cada vez que errava uma resposta de uma prova oral. Mesmo quando o homem se contorcia (na verdade era um ator fingindo dor), as pessoas continuavam a aumentar a voltagem da "punição", a pedido do pesquisador."Se você colocar as pessoas em certas situações, elas vão agir de maneira perturbadora", diz Jerry Burger, da Universidade de Santa Clara (EUA). A versão original do experimento, de 1961, foi feita por Stanley Milgram, da Universidade Yale, de Connecticut. Ele verificou que, mesmo depois de ouvir um ator gritar de dor no nível de 150 volts, 82,5% dos participantes continuaram a dar os choques -a maioria até o nível máximo de 450 volts. Até hoje, ninguém tinha replicado o experimento em razão do trauma sofrido por voluntários que acreditavam estar lesionando as pessoas. Burger, então, decidiu parar em 150 volts no estudo com 29 homens e as 41 mulheres. Quando soldados foram pegos torturando prisioneiros no Iraque, alguns alegaram que o ato teria sido fruto dessa obediência irrestrita. Burger, porém, nega que esse evento possa ser totalmente explicado com os voluntários de seu teste."Não é que haja algo errado com essas pessoas", diz. "A idéia que vem dos anos 1960 é que, de alguma forma, elas têm essa característica de serem mais propensas a obedecer."
Jonathan Moreno relata em Minds Wars algo similar. Um pesquisador afamado de Harvard, Henry Murray, psicólogo chefe do Office of Strategic Services, que chegou a ser indicado ao Nobel e amigo do pai de Moreno, realizou experiências com jovens de sua faculdade, a partir das informações sobre a experiência da humilhação, aplicada pela China e Coréia em prisioneiros. Os EUA desejavam adquirir o know how daquela técnica. Parece que até hoje não a aprenderam na totalidade, visto que ainda praticam afogamentos simulados para encontrar a verdade. Mas fiquemos com o psicólogo dos anos 60 do século vinte. Ele dizia aos jovens estudantes que eles deveriam fazer um texto com o seu pensamento sobre a vida, a cultura, a sociedade. E afirmava que tais escritos seriam examinados por colegas estudantes de direito de Harvard. Quando chegava o dia, os jovens eram introduzidos em salas absolutamente vazias, brilhantes e brancas, sem outro recurso senão o seu texto. Eles o liam e depois eram massacrados pelos melhores professores de direito de Harvard, que usavam de todos os recursos científicos do direito e da retórica para reduzir a nada os argumentos juvenís. O experimento durou anos, com a mesma turma sendo massacrada de modos vários. Um dos estudantes, formado com louvor e depois doutorado também com louvor, se dirigiu para a Universidade de Berkeley, onde ensinou alguns tempos. Depois sumiu e o mundo ficou sabendo dele por meios sinistros. Ele era Ted Kaczynski, o Unabomber, que lançou manifestos contra a técnica na internet para justificar atentados violentos.
Nunca devemos nos permitir a falta de saberes em matérias que implicam reduzir seres humanos ao estatuto de máquinas e, no mesmo golpe, permitir o aniquilamento dos julgados “inferiores” pelos que, saciados de saberes científicos mas ignorantes dos fundamentos éticos, movem as máquinas de guerra e de conquista no século 21.
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Homossexualidade, Metafísica e Morte. A honra masculina e o Direito de Matar.
Roberto Romano
CURSO DE CAPACITAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS E DIVERSIDADE SEXUAL PARA GESTORES PÚBLICOS DO ESTADO DE SÃO PAULO (14/12/2007). Palestra proferida no Auditório da OAB/SP (Largo da Polvora).
Existem ilusões sobre a democracia grega espalhadas no pensamento acadêmico e político. Existem ilusões sobre a atitude grega diante do homossexualismo, aceitas sem análises cautelosas, inclusive entre homossexuais. Tais ilusões, penso, em vez de ajudarem a construir sistemas de justiça, alimentam mitos sobre os indivíduos e os grupos que levam ao assassinato dos que não se enquadram nos efetivos ideais gregos de vida natural. Espero que no fim da minha fala, estes pontos fiquem mais claros.
Na revista Diké, prestigiosa pela escolha dos colaboradores e relevância dos temas expostos, Robert Wallace analisa o problema da atimia no direito grego, em especial no período clássico. Aquela figura é acolhida pelos tribunais de Atenas e apoiada amplamente pela sociedade inclusiva. Trata-se de grave restrição aos direitos civis dos acusados de crimes e delitos hoje separados na ordem legal. (1) Wallace menciona, na coletânea de leis sobre a atimia, o comentário de Esquino com as cinco causas que podem gerar a perda dos direitos cidadãos. Esquino acusa Timarcos que, supostamente, “vivia coberto de vergonha [ou seja, como prostituto masculino] e a lei o proibe de falar ao povo”. A ordem legal citada por Esquino proclama que “Se algum ateniense prostituir sua pessoa, não será permitido o seu acesso ao cargo de um dos nove arcontes, nem o exercício do sacerdócio, nem a função de advogado (syndikos) para o povo, nenhuma magistratura, no país ou no estrangeiro, tanto os cargos preenchidos por sorteio ou eleição; ele não pode entrar nos debates nem se apresentar nos sacrifícios públicos; quando os cidadãos usarem guirlandas, ele não poderá fazer o mesmo; e não poderá ultrapassar os limites da Agora”. (2) Detalhe fundamental a ser anotado com muita cautela. Os processos registram, em casos semelhantes: quem perdia assim os direitos, não tinham a sua culpa declarada pelos tribunais. Bastava a desconfiança para definir a pena. Daí a expressão de juristas modernos de que aquelas pessoas seriam “atimoi não declarados culpados”. Um autor, MacDowell, (3) diz que os prostitutos masculinos deviam “evitar o exercício dos direitos cidadãos, ao serem tidos como atimoi, pois eles seriam processados se ignorassem tal determinação. “A pena era a morte”. A dokimasia, exame para ingresso e saída dos cargos públicos, define que “a atimia (perda dos direitos) pode caber como pena aos acusados de prostituição, mas só para os políticos, não para os cidadãos privados”, afirma S.C. Todd (4) Este “só” não tranquiliza ninguém, porque o grego, segundo Aristóteles, é animal político. As penas de atimia eram aplicadas, em casos diferentes da prostituição, aos magistrados que, sem deixar o cargo, não pagavam ao Estado os seus débitos aos tribunais e à Assembléia. Também os cidadãos que, chamados para integrar o exército, não compareciam, eram submetidos à plena atimia.
O que eram as timai que ordenavam o termo negativo, atimia? Elas resumiam a honra pública que permitia acesso aos cargos, aos tribunais, ao povo reunido em asssembléia. Atimia era imposta aos covardes na guerra, aos que não protegiam seus familiares, sobretudo menores, aos devedores do erário oficial. Atimia pode ser ser hereditária. A maior ou menor abrangência da perda dos direitos era decidida caso a caso. Autores indicam que no cotidiano certas penas de atimia eram quase ignoradas pela população, como nos débitos de cidadãos privados para com o erário público. E temos também o caso dos promotores públicos que, se não conseguissem convencer pelo menos um quinto dos juízes e jurados, ou eram proibidos de tratar novamente de causas públicas ou eram, pelo menos, multados pesadamente.
Quando se fala em democracia grega é preciso, portanto, muita cautela. A referida forma de poder não apresenta as determinações definidas hoje na semântica e prática política ou jurídica. Como vimos no caso da atimia, a permanência no coletivo cidadão era restrita e, não raro, dependia das lutas e acusações feitas por adversários, sem garantias duradouras dos direitos. Não por acaso Aristófanes e Platão, representantes da aristocracia, notaram defeitos gravíssimos na ordem democrática, assistidos de razão plena. Também Tucídides mostra, com uma lógica férrea, que a democracia na Grécia seguiu o caminho perigoso da ambição imperial, para satisfazer a fome de mando e de riquezas dos cidadãos. As Vespas de Aristófanes mostram com minúcia o quanto a justiça se transforma, na democracia helênica, em assalto aos cofres públicos e aos cargos da justiça, em troca de salários, posição social e política. Não erra muito quem afirma da ordem democrática grega, que nas suas cidades Estado o efetivo era um clube de homens, proprietários, xenófobos e arrogantes.
O acesso ao sistema legal ateniense, bem como em outras áreas da vida política, comenta um especialista em direito e história jurídica da Grécia, eram prerrogativas dos cidadãos. Note-se que mesmo o termo “as atenienses” não existia, mas apenas “os atenienses” (oi Athenaioi). Para ser cidadão, era preciso antes de 451 AC, ter pai ateniense e mãe livre. Depois, a qualificação se tornou mais exigente, sendo necessário que pai e mãe tivessem nascido gregos. O âmbito das mulheres era a casa. Como diz Clitemnestra a Agamenon, “no mundo você domina, na casa, mando eu”. Só os homens poderiam ter cargos públicos, participar da Assembléia, servir como juízes ou promotores, advogados ou testemunhas. Em casos de inquérito sobre homicídios, as mulheres poderiam comparecer, mas pouca documentação sobre isto pode ser citada. Para toda ação legal, a mulher era representada por um adulto homem, o seu Kyrios (guardião, mas com tradução melhor como Senhor) que poderia ser seu pai, antes do casamento, ou seu marido. Se acusada judicialmente, o processo seguia contra ela e seu Kyrios. Evidências eram dadas, no tribunal, pelo marido. Pode-se aquilatar, portanto, o que significa a atimia entre os gregos. Trata-se de perder a condição de homem, de Kyrios. O atimos é o que não tem honra, sendo a honra uma das propriedades essenciais dos homens. A atimia apenava sobretudo os covardes na guerra. Os atimoi não tinham proteção segura para a sua vida e bens. (5)
No caso da homossexualidade, a proibição que, infringida leva à atimia é a venda do próprio corpo para uso sexual de outro homem. A atitude passiva conduz o indivíduo ao estatuto feminino, o que lhe retira, ipso facto, a prerrogativa cidadã. Para bem compreender semelhante ponto, não basta compulsar as leis atenienses e os costumes. A Grécia legou ao Ocidente uma visão masculinizante da sociedade, algo que ainda hoje permite aos entes do gênero masculino dominar amplos setores institucionais e religiosos, como é o caso da Igreja Católica. Não se trata apenas de hábitos, mas de concepções racionalizadas até mesmo em termos metafísicos. Em Aristóteles, o mestre de boa parte da teologia cristã via Tomás de Aquino, o útero é o orgão essencial da mulher. Mas ele não produz semente fértil pois a mulher gere e não gera o embrião. Procriar um garoto é sinal de perfeito acabamento. Já o contrário é signo de fraqueza. (6) Segundo Aristóteles, os termos “macho” e “fêmea” mostram que a “natureza da terra é algo feminino e por isto ela é chamada ‘mãe’, mas “o céu e o Sol são geradores e pais”. (Geração dos Animais, 716a). O princípio (arché) encontra-se no macho e produz movimento, geração. É bom lembrar que o termo arché conota, de modo relevante, o poder político. O poderoso mobiliza os fundamentos da natureza e da polis. Os Archontes eram os magistrados que garantiam a ordem e a estabilidade estatal. A fêmea teria em si a hylé (o princípio da matéria). O macho geraria em outro e a fêmea em si mesma. Assim, macho e fêmea diferem pela sua própria estrutura ontológica. Na fêmea, o útero seria a peça essencial, no macho os testículos e o pênis. “A relação macho/fêmea”, diz Aristóteles, “é naturalmente do superior ao inferior, o macho governa, a fêmea obedece” (Política, 1254b). A semente masculina supre o principio ativo da geração e, pois, da alma racional e sensitiva. A mulher seria “um macho infértil (…) ou deformado, a descarga menstrual é semente, mas em condição impura (…) falta-lhe o princípio da alma” (Geração dos Animais, 737 a). (7)
Podemos agora analisar a semântica da palavra atimia, que joga indivíduos masculinos para fora da lei e do gênero que a natureza lhes deu. Timós, nas suas significações mais arcaicas conota ao mesmo tempo os pensamentos e as emoções, ambos regulado pelo diafragma, entendido como “freio” do corpo e das ações.(8) Assim, o timós equivale ao logos, a razão que tudo controla e freia. Assim, o homem que possui um timós intacto, não corrompido, apresenta não apenas coragem, mas também o controle racional da coragem, o que é próprio do logos. O preceito da parresia, da fala livre do cidadão na Assembléia, exige que o indivíduo não seja impedido de falar pela vergonha, pelas paixões, pela chantagem, pela falta de vergonha. Quando vende seu corpo, vende também a coragem, a razão, a vergonha, a honra. E não pode ser partícipe de nenhum direito, porque o direito é palavra utilizada publicamente e em particular, sem impedimentos. Temos a chave para entender em parte a pena de atimia. Negociar o corpo e assumir o papel passivo é para o adulto ateniense passar para o lado feminino, sem ter útero. Se a mulher é “macho infértil” para Aristóteles, o macho que assume o papel da mulher, numa compra e venda de seu corpo, não consegue substituir o corpo feminino na geração de filhos. Se a mulher é ser humano imperfeito, o homem prostituido nega em si mesmo a sua própria natureza.
Se levarmos em conta os enunciados de Michel Foucaul e de Keneth Dover, (9) seria de se pensar que os gregos consideram a homossexualidade ativa como perfeitamente “natural”. Mas não se pode eludir o fato de que adotar uma atitude submissa e passiva desabilita o indivíduo masculino para a cidadania livre e coberta pelos direitos. (10) Foucault avança a tese de que na Grécia o homoerotismo é visto como natural, não existindo a bivalência homossexual/heterosexual e que não existiria, portanto, prática ética ou legal de normatização neste campo. O tema é mais complicado. É certo que os gregos tinham consciência das ambiguidades e conflitos entre leis e costumes, e que as primeiras variavam de uma cidade Estado a outra. Umas proibiam a pederastia, outras a autorizavam. Platão, no Simpósio, põe na fala de Pausanias a sentença de que em Atenas as leis e costumes ligados à pederastia são definidos como o que é próprio à poikilia (multicolorido, intrincado, com muitas saídas), pois naquela cidade ao mesmo tempo eram censurados e aprovados os fatos daquele campo ético e jurídico. Poikilia é noção usada na República platônica para descrédito do regime democrático. Nesta forma política, diz o filósofo, a mais bela de todas, as opiniões políticas são multicoloridas, não fazem unidade alguma. Tal regime é comparado por Platão às vestimentas dos atores que, ao entrar na cidade, atraem as crianças e as mulheres com seus mantos de retalhos bordados em matizes berrantes. (11) O regime proposto na República e nas Leis afasta-se deste carnaval opinativo, foge do gosto estético e político do povo, das mulheres e crianças. A poikilia agrada aos olhos, mas afasta o pensamento da justiça e da verdade. Do regime democrático, com esta festa sensual, o resultado só poderia ser a violência tirânica. Assim, quando o Pausanias de Platão diz que as leis atenienses sobre a pederastia e homossexualidade pertencem ao campo da poikilia, ele afirma que os cidadãos e governantes de Atenas não conseguiram estabelecer leis e costumes racionais, escrevem leis não unitárias em termos de condenação ou consentimento da homossexualidade. Note-se que Platão é bem menos excludente da mulher no âmbito político do que Aristóteles.
As leis atenienses reguladoras do homoerotismo podem ser agrupadas em três categorias (12) : leis sobre a prostituição, leis sobre a educação e as provisões sobre atentados sexuais. As primeiras: o cidadão era posto na atimia se tivesse vendido seu corpo para o prazer sexual de um homem, o vendedor poderia estar na idade adulta ou na infância. Se o garoto era alugado pelo genitor, irmão, parentes ou qualquer responsável legal por ele, tais pessoas respondiam a processo penal. Na educação: leis detalhadas protegiam os estudantes do assédio adulto. As escolas, por exemplo, não poderiam abrir suas portas antes da luz solar ou depois do entardecer. A terceira lei liga-se à hybris (insulto, ultraje, abuso). Costuma-se traduzir hybris por desmesura. Esta é uma das suas significações, na arrogância do rico e do poderoso contra o pobre e fraco. Mas hybris pode ser aplicada a todo comportamento masculino que abusa do mais fraco (mulher, criança, estrangeiro, escravo) para seu prazer e auto-indulgência. É o caso do abuso do macho adulto contra um menino.Importa recordar, dizem os comentadores, que os nomes ligados à hybris e ao verbo hubrysein possuem forte conotação sexual. Voltemos a Aristóteles. Para ele, a hubrys é todo comportamento que desonra e envergonha a vítima para o prazer ou gratificação do ofensor (Retórica 1378 b). É com base neste ponto que Esquino afirma, ao comentar a lei, que no caso da ofensa por hubrys a desonra cai sobre a vítima, mesmo que ela não tenha consentido. Temos casos semelhantes em nossos dias, no Brasil e em países árabes. Aqui, uma menina a quem se acusou de prostituição foi posta em cela com machos adultos. Segundo a maior parte das autoridades públicas por ela responsáveis, a culpa seria dela. Em país árabe, uma jovem foi violentada por vários machos adultos e condenada a receber a chibata, por “atentado ao decoro”. Como se nota, a Grécia ensinou muita coisa aos nossos tempos. É bom lembrar que só temos conhecimento da filosofia e das leis gregas porque os árabes guardaram seus manuscritos e os transmitiram ao Ocidente. Eles conhecem as bases do que fazem.
A lógica da atimia, portanto, é evitar a desonra dos jovens e futuros cidadãos atenienses, todos másculos geradores de familias, o que seria frustrado caso um indivíduo que se vendeu ou foi vendido por seus responsáveis penetrasse o círculo fechado da política. Entende-se também o peso da acusação contra Sócrates, condenado a beber cicuta por impiedade (asebeia) e por corromper os jovens de Atenas. A pena de morte era destinada a quem se aproveitasse, por hybris, dos jovens escolares. A honra masculina, como indica um comentador, seja na pessoa própria, seja na mulher ou filhos é “jogo de soma zero: o aumento da honra de um homem dá-se às expensas de outros”. A proibição da venda, para fins eróticos, do corpo masculino tem implicações éticas relevantes, se notarmos que a honra na cultura grega é o correlato da noção de vergonha, pudor, Aidós. Assim como o guerreiro covarde não sente vergonha da fuga, abandona o seu dever de proteção aos seus familiares e aos demais membros da cidadania, também o homem (ou menino) que se entrega a um adulto masculino em troca de presentes e dinheiro perderia a vergonha como experiência ética fundamental. Assim sendo, a corrupção do prostituido, além de colocá-lo no falso papel de mulher, o que seria um ato duplamente contrário à natureza, faria desaparecer os laços de respeito entre pessoas e de respeito próprio. (13)
Essa noção de honra e de valor, que abomina a traição dos elementos masculinos quando passam ao lado da mulher, sobretudo da prostituta, justifica os movimentos antigos e modernos voltados à aniquilação dos homossexuais. Religiosos de quase todas as confissões e seitas, os fascismos e o nazismo, acentuaram o par verginha/honra para estigmatizar o “crime contra a natureza”, punível com a morte ou o exílio da cidadania. Hoje os nazistas que se escondem sob os nomes do “neo-nazismo”, ou dos seus herdeiros carecas ou não, aplicam a lei supostamente mais antiga e mais digna da ética masculinizante. E sua sentença é de morte, como as estatísticas fazem notar no mundo e no Brasil. Passo à análise de um detalhe de nossa formação social, para evidenciar o quanto é árduo modificar o costume do morticínio praticado contra os diferentes em termos de opção sexual.
É preciso notar a duplicidade evidenciada na violência da honra, tal como herdada por nós do pensamento antigo. A violência é espiritual e física. As duas são distintas, mas unem-se quando se trata de impor um modo coletivo de administrar vidas e mortes. Cito Maria Sylvia Carvalho Franco em Homens livres na Ordem Escravocrata,(14) que recolhe a violência aparentemente gratuita (estudada em processos crime do século 19 ) de nossa formação social. Até hoje, por motivos fúteis na superfície, milhares de mortes são cometidas em defesa da honra. A simples recusa de uma bebida no bar pode tolher uma existência. A autora segue do aparentemente irracional para a estrutura da sociedade. Ela mostra que a violência em nossa terra surge de um modo particular na geração do lucro em larga escala, explorando-se mão-de obra como os mecanismos pessoais (que mobilizam a “honra”), nas relações de compadrio e favor. Tais mecanismos de controle perpassam também as forças institucionais (o “público”). Sendo a mão de obra escassa, as relações de compadrio e favor, onde supostamente há igualdade entre proprietários e não proprietários (o patrão/padrinho e o dependente) atenuam os abusos dos patrões sobre os seus “compadres”, pois ambos são unidos por um pacto tácito de “proteção mútua”. O fazendeiro paternalista mata o seu concorrente e rival fazendeiro, e manda destruir os que ameaçam sua fazenda, os sem propriedade territorial. Para isto, ele conta com os “compadres” pobres. Dificilmente ele manda matar os seus protegidos. Se isto ocorresse com freqüência, seria perdida a mão de obra e as almas sobre as quais domina.
Comentando Carvalho Franco, Alba Zaluar diz que o estudo do coronelismo aponta “os laços morais fortes entre o coronel e seus seguidores, especialmente os consagrados pelo compadrio. Os jagunços que formavam a sua guarda não o protegiam dos seguidores, mas dos seus rivais fazendeiros. É claro que isto não eliminava totalmente as relações de força e a violência, usadas sempre que um conflito interpessoal (frise-se aqui o pessoal) dividisse patrões e clientes, ou colocasse em campos opostos os homens livres da sociedade escravocrata (Carvalho Franco), mas a sua articulação com esses vínculos morais conformavam uma situação bem diferente da atual, onde a violência articula-se com os princípios do individualismo egoísta do mercado” (15)
Desde o início, temos as dominações físicas e anímicas “privadas”, postas acima da lei estatal, o “público”. As relações de compadrio e favor são universais da vida brasileira, ampliadas ao plano político, definindo o Estado, sobretudo nos Parlamentos e nos Executivos. No século 19, a parca mão de obra obstaculiza o abuso absoluto da dominação. O fazendeiro, por força da concorrência econômica e política, mata outros fazendeiros. Mas para a “sua” gente ele é “pai”. Em nossos dias, afirma Zaluar, “na versão atualizada, o clientelismo brasileiro aproxima-se do empregado pelas máquinas políticas -o bossismo americano- que se valem do poder de compra do dinheiro (e não mais de laços éticos, como o compadrio) e cujo efeito corruptor é conhecido. “Por isso o ‘chefe’, ‘o cabeça’ o que ‘está na frente’ (termos todos usados pelos populares, para designar os chefes do tráfico de drogas) é tido como um patrão fársico, sem as qualidades morais atribuídas ao patrão no registro tradicional. Não tem autoridade nem induz ao respeito, mas consegue obediência através do medo pelo seu poder (ou o de perseguir seus desafetos uma vez eleito, no caso dos políticos, ou pelo poder de fogo de sua quadrilha, no caso dos empresários do crime). O seu caráter despótico é revelado pelos nomes usados para designá-lo: ‘homem’, porque os que a ele se submetem adquirem características do feminino; ‘cabeça’, porque, estando acima dos outros, é o único que pensa, age, e é portanto livre, os outros são seus meros escravos”. Nas relações políticas e sociais brasileiras, continua Zaluar, “por ter que se submeter a poderes não legitimados que usam e abusam da força, os homens tornam-se suscetíveis a qualquer provocação, interpretada como ameaça à sua honra e integridade masculina”.
A mesma futilidade de motivos indicada por Carvalho Franco nos homens livres no Brasil escravocrata, nota-se agora nos jovens pobres e de cor. “Pelos dados do Ministério da Saúde, no Município do Rio de Janeiro, em 1988, o número de mortes por causas externas (6008) ficava em terceiro lugar, só perdendo para as mortes por doenças do aparelho circulatório (19.482) e neoplasmas (6.323). (…) Na média geral brasileira, morrem quatro homens para cada mulher e, em alguns municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro, essa taxa diferenciada atinge o valor de 15 homens para cada mulher. A partir de 1987, os homicídios (intencionais ou dolosos) passaram à frente das mortes por acidente de trânsito (culposos) e hoje os supera em cerca de 30%, afetando principalmente os jovens pobres e de cor que estão deixando a escola”. É preciso ter presente que as mortes são de jovens, na sua maioria, adolescentes ou na verdade crianças, promessas calcinadas de vida. Termina Alba Zaluar: “Nos países em que a lei, em vez de impor limites ao dinheiro, deixa-se seduzir por ele, o acúmulo de riquezas e dos instrumentos de violência são fundamentais para capacitar as pessoas na resolução de conflitos. Pois, se a Justiça não funciona, as armas de fogo são extremamente eficazes para destruir desafetos e rivais, para dominar as vítimas, para amedrontar possíveis testemunhas e criar respeito entre comparsas e policiais, garantindo a impunidade”.
Em data recente, um governador da Paraíba deu o exemplo cabal do fato evocado pela antropóloga, evidenciando o comportamento “público” e a violência dos políticos machistas. Para vingar sua honra, ele entrou num restaurante e sem nenhuma hesitação se dirigiu à mesa de um adversário. Sem cuidados com a lei ou a segurança dos presentes, deu um tiro na boca do antagonista. O princípio da honra também surge como traço definidor da masculinidade, nas lutas ocorridas entre os empregados das quadrilhas. Valor universal e abstrato que pode ser atribuído aos atos mais loucos, a honra faz com que indivíduos não hesitem em matar o semelhante. Os motivos destas mortes definem o lugar da pessoa na produção do lucro. A honra, temeridade na aceitação de riscos letais, determina a hierarquia do sujeito no bando. Unida à capacidade de liderança e à inteligência, honra garante a liderança e parte do botim. A questão da honra foi muito estudada em termos históricos, sociológicos e antropológicos. Ela ajuda a explicar sistemas aparentemente “irracionais” de vida social, como a violenta nobreza européia, particularmente a germânica, com o uso do duelo . Norberto Elias, sobretudo no livro Os Alemães, expõe esta mazela que ajudou muito a criar a ética da qual brotou o nazismo germânico.
Zaluar indica a contribuição do Estado brasileiro para a violência. Com a república, “o novo governo queria marcar uma revolução moral no país por meio da separação rígida entre trabalho regular e penoso, pai de todas as virtudes, e o ócio, mãe de todos os vícios. Os republicanos jacobinos, que desejavam dar uma feição moralista e repressiva ao trabalho, foram os principais mentores desta política que resultou na repressão às formas de expressão cultural dos brasileiros negros e mulatos, assim como na detenção dos classificados como vadios e desordeiros. Nos cálculos de Boris Fausto, os números de detidos desta forma correspondiam a 86% de todas as prisões entre 1912 e 1916. Os que haviam cometido crimes, assim definidos no Código Penal, eram cerca de 14% deste todo. E o que é mais importante, enquanto os brasileiros (em geral negros e mulatos) eram tachados logo de vadios, os estrangeiros continuavam sendo considerados bons trabalhadores e iam presos por desordem”.
O Estado produz “bandidos”, os “vadios”, na maioria negros ou mulatos. Todos desonrados e declarados incapazes para a cidadania. Produzindo os atimoi ao proclamar normas contra a vadiagem, sem investir em educação e em políticas sociais conseqüentes, o poder canaliza para os chefes da droga mão de obra abundante e barata, a qual não tem a proteção legal. De modo oposto ao dos fazendeiros do século 19 os empresários da droga possuem incontáveis braços sem qualificações educacionais ou técnicas. As massas são exploradas num instante e moídas por matadores profissionais. A indução sistemática, por parte da mídia, produz o resto.
Se a honra do ser humano masculino é tomada como absoluto na sociedade, se ela permite a ética do assassinato de mulheres indefesas, ela também assegura o controle de bandidos sobre bandidos, constitue um código que se afasta de qualquer lei civilizada. E ademais, os assassinatos de homossexuais, inquietantes no Brasil, seguem a lógica de Aristóteles. É correto anular seres masculinos que traem o seu gênero e o ameaçam no papel feminino. O homossexual masculino, sobretudo o que se prostitui, como na Grécia, tomba na atimia, na pena de morte executada pelos supostos seres perfeitos. O que apavora os másculos auto-imaginados como normais, é que os traidores, os homoeróticos, guardam aspectos da masculinidade, não raro a coragem, a razão, a força física. Isto inquieta porque, desde Aristóteles, as mulheres verdadeiras devem ser governadas porque são fracas e alheias ao logos. Não apenas Aristóteles, mas Hegel, o grande inspirador das modernas ideologias totalitárias, o estalinismo e o fascismo, assume tal atitude que nega o direito aos não homens. Basta abrir as Lições sobre a Filosofia do Direito hegelianas: “As mulheres”, diz o autor, “podem ser cultivadas mas não foram feitas para as ciências mais nobres, nem para a filosofia, nem para certas formas artísticas, que exigem o universal. As mulheres podem ter penamentos, gosto, elegância, mas o Ideal não lhes é acessível. A diferença entre o homem e a mulher é semelhante à do animal face à planta. O animal corresponde mais ao temperamento masculino, a planta mais ao feminino. A mulher se desenvolve mais quietamente, pois se mantêm sobre o fundamento da unidade sensível indeterminada. Se as mulheres estão no ápice do governo, o Estado corre perigo, pois elas não agem segundo as exigências do universal, mas segundo inclinações e opiniões contingentes”. (Filosofia do Direito, § 166 e nota).
Para terminar e mostrando o quanto a atimia e a metafisica dos sexos enunciada por Aristóteles não correspondem ao real histórico, cito um dos maiores especialistas da prática militar na Grécia, Victor Davis Hanson. Ao comentar a coesão das forças militares ocidentais, nas quais o compromisso dos soldados entre sí é mais relevante para a sobrevivência dos exércitos do que as ordens burocráticas do quartel general e dos governos, Hanson escreve as seguintes palavras: “As ligações extraordinariamente fortes entre os hoplitas constituiam simplesmente as relações normais de quase todos os combatentes nas falanges da maioria das cidades gregas, Elas não pressupõem treinamento especializado excepcional ou esforço concentrado para formar um corpo de elite. (…) Em toda a Grécia é provado que as amizades homosexuais eram fator que contribuia para o moral de uma unidade. em Esparta, por exemplo, a separação dos sexos na jovem idade bem como as atitudes próprias dos outros gregos sobre o papel das mulheres resultavam em relações homossexuais circunscritas à vida dos acampamentos. Sem nenhuma dúvida, ligações tão fortes persistiam nos campos de batalhas e devem explicar o heroismo espartano, particularmente nas gloriosas derrotas que vão das Termópilas (480) a Leutres (371) onde homens preferem a morte à vergonha da fuga. Não temos exemplo mais extremo entre os Dórios, mas em Tebas: o batalhão sagrado composto de 150 duplas de homosexuais, coisa desconhecida mesmo em Esparta, combateu heroicamente durante 50 anos em batalhas terríveis da cidade. O batalhão foi exterminado até o último homem em Queronéia (338). Filipe da Macedônia ficou espantado com o espetáculo dos montes de cadáveres empilhados dois a dois”. (16)
Encerrando e à vista da atimia aplicada em acusados de prostituição (não raro sem provas, apenas para afastar concorrentes aos cargos públicos) vale citar Cohen, que segui em boa parte desta palestra, mas agora em outro trabalho. “Como vimos, de um lado os processos por ofensas públicas em Atenas eram informados por idéias sobre o crime, a punição e o domínio da lei, todos familiares aos leitores modernos em sua adesão a noções de julgamentos imparciais dispensados em nome da lei para corrigir e prevenir prejuízos à comunidade como um todo. De outro lado, a incorporação de elementos de auto-ajuda, procedimentos sumários, execução sem inquéritom julgamentos baseados no caráter, riqueza, importância política e privilégios públicos das partes, nos desafia a entender porque a compreensão do crime e castigo na Atenas democrática difere muito da nossa. E difere não porque seu sistema legal era corrupto, primitivo, ou incompetente, mas porque o entendimento ateniense dos conceitos de justiça, democracia, e domínio da lei difere, em importantes pontos, fundamentalmente dos nossos” (17)
Mudando os nomes, a fábula narra a história do Brasil e de sua justiça.
NOTAS
1)“Unconvicted or potential atimoi in Ancient Athens”, pp. 63-78. Além do artigo escrito por Wallace, toda a revista merece acurado exame e reflexão. Cf. Eva Cantarella (ed.), Dike. Rivista di storia del diritto Greco ed ellenistico, vol. I-IV. (Milano,Edizioni Universitarie di Lettere Economia Diritto, 1998-2001).
2)O texto encontra-se, com pequenas diferenças de tradução, em Arnaoutoglou, Ilias: Leis da Grécia Antiga (São Paulo, Ed. Odysseus, 2003), p. 76.
3) Cf. Douglas M. MacDowell: The Law in Classical Athens (Ithaca, Cornell University Press, 1978).
4) The Shape of Athenian Law (Oxford, University Press, 1993) pp. 107-116.
5) Cf. Christopher Carey: Trials from Classical Athens (London/New York, Routledge, 1997), pp. 8,187 e 202, com a citação de Demóstenes, que acusa Neaira.
6) Cf. Knibiehler, Y. e Fouquet, Cath. : La femme et les médecins (Paris, Hachette, 1983), p. 33.
7) Cf. Roberto Romano: “A mulher e a desrazão ocidental” in Lux in Tenebris (Campinas, Ed. Unicamp, 1987), pp. 126-127.
8) Cf. Richard Broxton Onians : The Origins of European Thought. about the Body, the mind, the soul, the world, time and fate. New interpretations of Greek, Roman and kindred evidence also of some basic Jewish and Christian beliefs. (Cambridge, University Press, 1954).
9) Michel Foucault: L´usage des plaisirs (Paris, Gallimard, 1984), pp. 47-62; Dover, Keneth : Greek Homosexuality (London, Duckworth, 1979) pp. 60,81,109.
10) Cf. David Cohen : Law, sexuality and society, the enforcement of morals in classical Athens (Cambridge, University Press, 1994), p. 171.
11) “Esta é a mais bela das constituições; como um agasalho de muitas cores, bordado com muitas cores, assim ela, aparecerá como a mais bela, como uma confusão colorida. É seguramente provável que, a semelhança das crianças e mulheres quando olham objetos multicoloridos, este regime será considerado por muitos como o mais belo de todos” [..kallistê hautê tôn politeiôn einai: hôsper himation poikilon pasin anthesi pepoikilmenon, houtô kai hautê pasin êthesin pepoikilmenê kallistê an phainoito. kai isôs men, ên d' egô, kai tautên, hôsper hoi paides te kai hai gunaikes ta poikila theômenoi, kallistên an polloi krineian]. República, VIII, 556 e. Segundo o Dicionário de G. Liddlel & R. Scott, “poikilos” significa “many-coloured, spotted, mottled, pied, dappled”.
12) David Cohen, op. cit. pp. 175 e ss.
13) Cf. Douglas L. Cairns: Aidós The Psychology and Ethics of Honour and Shame in Ancient Greek Literature (Clarendon Press, 1993).
14) São Paulo, Unesp, 1997.
15) Alba Zaluar: “A Autoridade, o Chefe e o Bandido: Dilemas e Saídas Educacionais”, Unicamp, mimeografado. Os trabalhos da antropóloga, que pesquisa o problema do tráfico nas favelas cariocas, não raro com risco de vida, são recomendáveis quando se trata de analisar a violência no Brasil.
16) Cf. The Western Way of War, infrantry battle in classical Greece, uso a tradução francêsa : Le modele occidental de la guerre (Paris, Les Belles Lettres, 1990), pp. 167-168.
17) “Crime, punishment and the rule of law in Classical Athens” in The Cambridge Companion to Ancient Greek Law. Michel Gagarin e David Cohen (Ed. (Cambridge, University Press2005), pp. 234-235.
quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007
Raison d´État em Maquiavel e Spinoza.
Apresento abaixo uma outra versão do texto sobre Razão de Estado. Como trata-se de um trabalho em andamento, cada uma das versões traz algo novo, somado a materiais antigos. No caso de Spinoza e Raison d´État, a questão é polêmica. Aceito, no entanto, as propostas de Christian Lazzeri, para quem se é verdade não se encontrar indicação explícita do problema nos textos do filósofo, naõ deixa de ser verdadeira a tese de que neles a questão integra o próprio nervo dos argumentos. Leia-se: "Spinoza et le problème de la raison d´État" in Zarka, Y.Charles: Raison et déraison d´État (PUF, Paris, 1994), página 369 e seguintes. Um debate aproximado a este encontra-se no site Foglio Spinoziano. Naquele lugar publiquei o artigo "A igualdade. Considerações críticas".
Razão de Estado em Maquiavel e Spinoza.
Roberto Romano/Unicamp
Um aspecto relevante de qualquer estudo político em nosso tempo encontra-se na razão de Estado. Toda a agenda do terrorismo estatal ou de grupos anônimos passa pelos temas tradicionais do segredo, da ação que se põe acima ou ao lado das leis comuns, dos alvos só definidos pelos governantes ou líderes políticos, e que permanecem longe da vista dos governados. Para bem definir a razão de Estado é de bom alvitre examinarmos a idéia oposta à ela, a noção democrática da transparência. Em O Caldeirão de Medéia (1) apresento um capítulo inteiro sobre aquela realidade. Mostro alí algumas dificuldades do regime político, democrático no qual os atos e pensamentos dos governantes seriam visíveis para os cidadãos. A idéia do século 18 sobre o poder transparente é uma esperança, sempre renovada e desmentida, dos movimentos que pretendem instaurar a justiça e o respeito aos indivíduos e grupos no mundo de hoje. À visibilidade do mando estatal, sempre foi oposta à razão de Estado, cujos defensores elogiam o segredo dos mecanismos políticos como salvaguarda de qualquer comunhão política, democrática ou aristocrática, monárquica ou tirânica.
O segredo é o mais importante componente do controle político. Elias Canetti, em Massa e Poder, apresenta considerações lúcidas sobre este ponto. Jean-Pierre Chrétien Gony, num estudo sobre o assunto também o discute em minúcia. (2) É um paradoxo que a política, por excelência o campo do que deve ser público, aberto aos sentidos de todos, tenha se encaminhado, sobretudo após o século 16 e 17, rumo ao secreto e ali se aninhe até os nossos dias. O segredo passa a ser algo que todo político deve usar e seu conhecimento vem da frequentação dos poderosos somada à leitura dos grandes teóricos dos Arcana imperii, sobretudo Tácito, Tibério, Maquiavel. Afiança Goni que o segredo une-se ao elogio da mentira e da duplicidade. A partir da caricatura de Maquiavel, o chamado “maquiavelismo” (3) tudo deixa de ser sagrado, inclusive a religião. Como diz um autor citado por Goni, “nada ajuda mais os negócios de um principe do que a crença de sua união com Deus”. (4) A verdade do Estado torna-se mentira para o cidadão, o que ajuda a separar de modo radical o soberano e os súditos. O segredo surge neste intervalo. Goni cita um psicanalista contemporâneo que analisa a própria etimologia do termo “segredo”, que viria do latim secernere, separar, dividir, afastar. (5) A ruptura na sociedade moderna, com a instauração do Estado, abre o campo para o exercicio separado do poder, longe dos olhos e demais sentidos comuns. A tese assumida a seguir por Goni, a da paranóia do governante, extraída de Theodor Adorno (tanto nas Minima Moralia quanto na Dialética das Luzes), merece um exame apurado. Ao discutir esse problema, também apresentei algumas reflexões que, penso, devem ser discutidas. (6) A idéia principal é a seguinte: tendo sido o poder, na era da razão de Estado, concentrado na pessoa do principe, as ameaças que o poder antigo resolvia, exorcizava, afastava, controlava, voltam-se contra o novo soberano. O segredo é o modo de proteger, simbolica ou realmente, o paranóico que assume o lugar central do mando. Todos tornam-se seus inimigos e são perigosos para o Estado. Este é um modo terrível de se entender o famoso L´État c´est moi, com a noção de lesa majestade. Tintas religiosas nessa experiência trazem a marca do Cristo, quando surge após a ressurreição: Noli me tangere. A pessoa real é intocável sobretudo quando se trata de revoltas e rebeliões, possíveis assassinatos dos dirigentes.
A moral do governante, a partir da ruptura trazida pelo segredo, não é uma anti-moral, mas uma outra moral. Esta distinção feita por Goni é relevante. A atuação do príncipe não pode abolir a moral comum. Esta é estratégica até mesmo para que opere a “outra moral”. Ocorre uma assimetria, ou uma oposição múltipla entre as duas morais. Mas nunca abolição da primeira, a do povo comum. A teoria do golpe de Estado é o grande exemplo. Nele, nem tudo é abolido na vida politica habitual, mas invertido. Um indivíduo ou grupo que pensava dar o golpe, o recebe, enquanto outro, que se julgava em segurança porque providenciara a insegurança de seus concorrentes, morre. Na frase de Naudé, “tudo no golpe de Estado se faz noite, no obscuro, entre brumas e trevas”. Goni aponta um lado especialmente grave nessas frases: no golpe, como nas missas satânicas, não é abolida a canônica religiosa ortodoxa. Ela é invertida. Entre a moral comum e a dos poderosos há uma inversão diabólica, mas a primeira não some. A distância entre ambas, no entanto, é incomensurável. E a distância marca a emergência do segredo. O governante deve saber e ouvir tudo. O governado deve ignorar quase tudo na vida estatal.
Num texto atribuido ao cardeal Mazarino, mas de autoria incerta, o grande assunto é o do segredo. Refiro-me ao livro Breviarium Politicorum secundum Rubricas Mazarinicas, publicado em 1684. (7) Alí, o culto do segredo atinge uma altura que tende a se confirmar, ampliada mais fortemente, nos tempos modernos. Nas observações de Macchia, apresentador italiano do texto : “Se a razão de Estado significa razão de domínio, aquele termo pode também aludir (...) a uma ´profunda, intima e secreta lei ou privilégio dado à contemplação da segurança naquela senhoria, à qual Tacito deu o nome de arcana imperii”.
O segredo é a alma da razão de Estado. O estadista gostaria de ser o único a dele gozar. Se pode ler porque foi alfabetizado, o mais cômodo para o poderoso seria que todos os cidadãos fossem analfabetos. O ideal do rei erudito é simultâneo à idéia de razão de Estado. Vigora antes, em boa parcela dos governantes da Idade Média a noção de que as letra são incompatíveis com o mando secular . No século 12, Salisbury defende a ilustração dos príncipes, mas o rei romano Conrado 3 lhe responde: “rex litteratus est quasi asinus coronatus”. Mesmo assim, pode-se ler, numa obra prima da política medieval, a tese que só floresce após os tratados sobre o “espelho dos príncipes” : Rex illiteratus est quasi asinus coronatus (Policraticus, Livro IV, Cap. VI). A passagem recolhida por E. Curtius (8) indica a mutação estratégica na imagem do príncipe, ocorrida com a Renascença. A partir daquele período, toda uma arte de redigir e de ler documentos secretos, a qual utiliza desde símbolos até a linguagem cifrada em termos semiológicos, conduz a afastar dos olhos cidadãos o que se passa no intimo dos palácios governamentais. Do mesmo modo, também se desenvolveu a técnica que permite decifrar documentos secretos, redigidos pelos cidadãos que podem se insurgir contra os poderosos ou de outros dirigentes de Estado, amigos ou inimigos. Hobbes utiliza uma imagem eloquente para descrever esta situação: “os espiões são como os raios de luz para a alma humana, no discernimento dos objetos visíveis”. Eles formam delicadas redes que unem pele e olhos e permitem aos reis inimigos dirigir-se rápida e certeiramente para seus limites extremos, na tarefa que consiste em devorar os assaltantes da teia republicana. Reis aranha têm o direito e a obrigação de digerir inimigos externos ou internos. (9)
Nos artifícios utilizados para decifrar ou esconder os intentos governamentais, recebem destaque os trabalhos encomendados pelo Imperador Maximiliano de Absburgo a de João de Trittenheim, sobretudo o livro Polygraphia, cum clave seu enunclatorio (1518). Nele, se define um método e exemplos de escrita secreta para uso de reis e ministros. Interessante é a técnica de revelar escondendo ou de esconder revelando. A escrita secreta tem uma face que pode ser entendida por qualquer leitor. Mas apenas quem possui a chave de leitura pode atingir o seu enunciado real. A técnica se parece muito às utilizadas em pintura, sobretudo na anamorfose, algo muito importante a partir do século 16. O político, no entender dos estadistas, durante os séculos 16 e 17, deve agir sempre nos limites do que pode ser visto e do que pode ser entendido. Mesmo autores que escreveram contra a tirania na época, como Torquato Aceto, operaram nas fronteiras do visível e do invisível. Se estamos num reino persegue as pessoas livres, estas devem saber simular e dissimular muito bem seus propósitos aos juízes e policiais mandados pelo governante, de modo a não serem vítimas do poder. Esta é a Dissimulazione onesta, segundo Torquato Aceto.
Francis Bacon, no ensaio Of Simulation and Dissimulation, mostra que a segunda é uma forma política ou de sabedoria. Cabe ao coração forte, ou à mente forte, “conhecer quando deve ser dita a verdade, e fazê-lo. Pois se um homem tem esta penetração de juízo, através do qual ele pode discernir quais coisas devem permanecer abertas, e quais secretas, e o que deve ser mostrado em meia luz, e para quem e quando (estas são, de fato, a arte do Estado, e as artes da vida, como Tacito as chama), para ele, um hábito de dissimulação é uma pobreza. Existem três gráus neste ato de esconder e velar o ser de um homem. O primeiro é a reserva e o segredo. Quando uma pessoa mantem sem observação ou sem cuidados o que ele é. O segundo, a dissimulação, no negativo, quando ela deixa surgir sinais e argumentos, que indicam que ela não é o que é. O terceiro, simulação no afirmativo, quando ela, industriosamente e de modo expresso, finge ser o que ela não é. Para o primeiro caso, temos o segredo. Esta é a virtude do confessor. E com certeza, o segredo tem muitas confissões. Para quem se abre, dizemos que é um falador ou um tagarela? Mas se uma pessoa é pensada como secreta, ela suscita a descoberta. Assim, mistérios são devidos ao segredo. Mas os gárrulos que falam sobre o que conhecem, falarão sobre o que não conhecem. O segundo é dissimulação. Esta segue do segredo como por necessidade. Quem deve ser secreto, deve dissimular em algum gráu. Porque os homens são tão astutos, e não suportam que um homem permananeça sem decidir entre eles. Assim, nenhum homem pode permanecer secreto, sem dissimular pelo menos um pouco. Para o terceiro, a simulação e profissão falsa, julgo-a mais culposa e menos política, exceto em grandes e raras matérias. Um costume geral de simulação sendo vício, faz com que a simulação seja ampliada para outras coisas”. E continua Bacon: “As grandes vantagens da simulação e da dissimulação são três. Primeiro, fazer com que a oposição adormeça possibilitando surpreendê-la. Pois onde as intenções de um homem são publicadas ocorre um barulho para convocar as pessoas contra ele. A segunda é proporcionar a determinada pessoa uma tranqüila privacidade no retiro de si mesma. Pois se alguém dá uma declaração, deve ir adiante ou comete falta. A terceira vantagem é descobrir melhor a mente alheia. Pois quem abre a si mesmo dificilmente verá aberto para si o campo do adversário. Existem também três desvantagens. Primeira: a simulação e a dissimulação trazem consigo uma exibição de medo, o que prejudica todos os negócios. Segunda: ela confunde pessoas que poderiam, de outro modo, cooperar com um indivíduo, e faz com que ele fique solitário, caminhe sozinho rumo aos seus fins. O terceiro e maior inconveniente é retirar da pessoa o principal instrumento de ação, a confiança e a fé”.
A última frase de Bacon é vital quando se trata da governabilidade em regime não tirânico. Sem a fé pública, a razão de Estado torna-se pura propaganda ou força. Se as individualidades livres precisam dissimular nos governos tirânicos, estes últimos precisam ainda mais da dissimulação para apanhar seus inimigos ocultos. Assim, comenta Macchia, o político que serve à razão de Estado deve possuir o hábito de viver com o segredo, com o “steganós, aquilo que é escondido, oculto”, chegando à esteganografia. Trata-se de toda uma concepção da própria natureza como grande guardiã de coisas ocultas que devem ser arrancadas com arte e técnica. Sendo a natureza uma astuta fonte de segredos, apenas chegando até eles poder-se-ia atingir a natureza humana, que a integra.
O mesmo Francis Bacon citado acima deu um exemplo fantástico da arte de arrancar sigilosas estruturas naturais. É preciso, dizia ele, “torturar a natureza, para que ela conte os seus segredos”. Não é preciso dizer muito mais sobre esta tecnologia do poder que vai do gabinete do principe ao laboratório do cientista e passa pelas mãos do policial. É algo que pode nos inquietar sabermos que a idéia de verdade, que define boa parte do nosso ideário filosófico e jurídico, tem origem na palavra basanos, pedra de toque para atingir o veraz na tortura. Os antigos gregos usavam o termo para designar a pedra que servia para definir a pureza do ouro. Depois seu uso foi extendido para denotar um teste ou triagem, determinar se alguem era fidedigno. A tortura assim designada serve para extrair tudo o que é escondido, oculto. A tortura traz à luz os veios secretos da natureza. Num livro importante sobre todo esse aspecto, Page du Bois escreve coisas lancinantes sobre este lado pouco estudado da filosofia ocidental. (10)
Tanto o cientista quanto o filósofo usam técnicas de desocultamento que eles partilham com os governantes. Estes últimos arrancam de seus inimigos internos ou externos, através da astúcia, das técnicas como a esteganografia ou de outros refinamentos e violências como a tortura, a “verdade”, meio eficaz de mando. Uma técnica muito usada, desde o século 16, foi a leitura das expressões dos rostos. Em um estudo sobre Descartes intitulado “A razão sonhadora”, analiso este prisma. (11) Antoine Mizauld, em 1565, escreveu um livro para ajudar as pessoas a “julgar incontinenti o natural de cada um apenas pela inspeção da face e dos seus lineamentos”. Como indica Macchia, Mazzarino (ou o pseudo-Mazzarino) ensinava, com base nesta técnica, a distinguir o indivíduo astucioso, pois este possuiria uma saliência na fronte, na altura pouco acima do nariz. O mentiroso teria, ao rir, duas saliências nas bochechas. Assim, o poderoso segue a tentativa de descobrir os intentos secretos de seus inimigos ou liderados nos menores gestos, nas mais tranqüílas situações. Não apenas os olhos eram movidos nesta descoberta: todos os sentidos entravam na economia do desvelamento. O padre jesuita Athanasius Kircher ideou, para as paredes dos palácios, orelhas artificiais que levariam até o gabinete do principe as conversas de súditos, embaixadores, etc. Trata-se de uma economia global do corpo a serviço da razão secreta do Estado. A situação perfeita, para os governantes, seria a de plena transparência dos inimigos e dirigidos, e a sua plena obscuridade própria.
O cuidado com o segredo atingiu o ápice no século 17. Um exemplo pode ilustrar esta situação, quando a burguesia francêsa pediu prestações de contas aos ministros das finanças reais, no instante em que este últimos solicitavam mais recursos para as guerras. A declaração do voto do clero é sintomática. Segundo os sacerdotes, as finanças seriam como o Santissimo Sacramento, escondido no altar. Apenas os padres e os iniciados poderiam deitar os olhos sobre elas. Caso oposto, sacrilegio e perigo rondariam o Estado. A temática do segredo, pois, define todo um aspecto da razão de Estado, incluindo a religião econômica, que hoje é a mais católica e abarca o mundo inteiro.
Afinal, o que é razão de Estado? Um analista diz que ela se assemelha ao jogo viciado. O governante que apela para a razão de Estado para validar atos e tratados opostos às leis comuns do país, age como o jogador desonesto ou mau perdedor : quando as regras do jogo não lhe são favoráveis, ele usa a trapaça do segredo e quebra todas a sequência da partida. Deste modo, ele arranca dos cidadãos a confiança, a fé pública, base mesma da instituição do Estado. (12) Esta metáfora do jogo e das regras é uma das mais antigas da filosofia política. No exato século em que a razão de Estado se firmou, um dos filósofos mais agudos da modernidade, Blaise Pascal, construiu toda uma moral, uma política, uma teologia com aquela base. A vida humana é jogo. E as regras supremas são de acesso dificil aos homens. Só Deus joga com absoluta certeza. E ganha sempre. No caso humano, tudo é incerto, sobretudo no campo das leis e da política. Esta antropologia, que hoje volta a ser um assunto de interesse filosófico e político, é nuclear na história do pensamento moderno. (13) Nesta vertente, é importante a idéia do cálculo como elemento básico da política, plataforma da razão de Estado. Um governante que sabe calcular as suas oportunidades e as de seus inimigos, tem condições de, pelo menos, desrespeitar sem muitos prejuízos as regras “normais” do jogo diplomático, bélico, ou de política interna, como por exemplo nas escolhas para os dirigentes, nas eleições.
A razão de Estado, assevera Lazzeri, não se confunde de imediato com a tirania. Mesmo dirigentes de Estados democráticos podem seguir as suas sendas, ou serem tentados a segui-las. Constituições liberais modernas deixam brechas para o seu uso, em capítulos sobre a segurança pública, etc. Lazzeri vai mais fundo e indica, sem análise é certo, que a própria Declaração dos Direitos do Homem está “cheia de concessões por onde deslizam sem dificuldades desejos despóticos” da razão de Estado.
Outro aspecto importante: a razão de Estado, além dos conhecimentos e técnicas mais rudimentares, como as que indiquei acima, incorporou ao seu procedimento o saber quantitativo e qualitativo sobre a sociedade moderna. O programa desta atitude encontra-se no século 16, sobretudo nas obras de Francis Bacon. É dele a noção de que knowledge and power meet in one, banalizada no Brasil como “saber é poder”. Não se trata disto. O Estado, pensava Bacon, precisa instituir e organizar saberes sobre a natureza e os homens, de modo a agir com eficácia na sua expansão e domínio. Um Estado sem saberes é frágil, um Estado com saberes e com força física é poderoso. Esta receita, como temos consciência, serviu muito à Inglaterra, em toda a sua expansão colonial pelo mundo, das Américas à Asia.
Como indica Lazzeri, a razão de Estado une-se à idéia de que “nada presidirá mais eficazmente os destinos de um Estado do que o conhecimento de suas qualidades específicas: seu povo, sua geografia, seu tempo, seus recursos, sua organização econômica e o modo de aprimorá-la. O governo da razão de Estado se apoiará num saber pouco a pouco instituido numa teoria moderna do político e finalmente conduzido ao conteúdo firme de uma ciência da administração e de seus efeitos sobre a sociedade da qual o mercantilismo, o cameralismo, a estatística e as teorias da polícia constituem o núcleo duro. A razão de Estado remete para uma outra forma, então, de racionalidade governamental e de técnica de governo”.O conhecimento técnico e político ajuda a definir o “olhar soberano”, com o qual os dirigentes inspecionam o corpo social, para manter o mando.
Haveria, pois, uma diferença essencial entre a razão do governante e a dos governados. O primeiro pode enxergar, graças aos informes e saberes de todas as ordens, trazidos pela máquina do poder, realidades inacessíveis aos segundos. É contra esta doutrina que se levantam todas as perspectivas democráticas modernas, a começar por Spinoza. Os pensadores democratas, como Diderot, Condorcet e outros, propõem que os cidadãos sejam educados ao máximo, e possam acompanhar mesmo os cálculos economicos e políticos do Estado. Ao mesmo tempo, pregam a mais ampla liberdade de imprensa e de debate, para que as informações não fiquem restritas ao seleto número dos dirigentes. Este aspecto também foi tratado por mim no primeiro texto de O Caldeirão de Medéia, de mesmo nome, que resulta de um seminário feito na Câmara dos Deputados, em Brasilia, na sua Comissão de Ciência e de Tecnologia.
A idéia de razão de Estado é vulgarmente atribuída a Maquiavel, mas é preciso moderar muito esta enunciação. O trecho mais célebre, neste sentido, é aquele onde o escritor florentino afirma ser “necessário a um príncipe, se deseja se conservar, aprender a não poder ser bom, e usar dele segundo a necessidade (secondo la necessita)”. (Principe, capítulo 15). E mais : “Estando o principe necessitado de usar a besta, deve escolher dentre elas a reposa e o leão, porque o leão não se defende dos laços e a raposa não se defende dos lobos. Necessita, pois, o principe, ser raposa para conhecer os laços e leão para espantar os lobos. Os que se apoiam apenas no leão não entendem (a arte de governar). Não pode, nem deve, portanto, um senhor prudente observar a fé jurada quando tal observância se torna contrária e passou a ocasião que obrigou a fazer a promessa. Se os homens fossem bons, este preceito não o seria; mas como eles são perversos e não guardaram sua fé jurada contigo, não tens porque guardá-la em relação a eles. Nunca faltam a um principe ocasiões legítimas de coonestar a inobservância”. E finalmente, ainda no Principe: “para manter o Estado o principe, sobretudo se for um principe novo, precisará operar contra a fé, contra a caridade, contra a humanidade, contra a religião. E se necessita que tenha um animo disposto a tornar-se segundo mandem os ventos e mudanças da fortuna e, não separar-se do bem se puder faze-lo, mas saber entrar no mal se é necessário”.
Estas sentenças ressoam nos Discursos sobre a primeira decada de Tito Livio: “quando se delibera acerca da saúde da pátria, não deve-se deixar que prevaleçam considerações de justiça ou injustiça, piedade ou crueldade, honra ou ignominia mas, deixando de lado qualquer consideração outra, seguir por inteiro o partido que lhe salve a vida e lhe conserve a liberdade”. A corrupção dos homens é fato constante e universal, mesmo nos que foram educados para o bem. Há uma persistência das paixões : “em todas as cidades e em todos os povos há e sempre houve sempre os mesmos desejos e humores, de tal modo que é fácil para quem examina com diligência as coisas passadas, prever em toda república o futuro e aplicar os remédios empregados pelos antigos ou, caso não encontre nenhum empregado por eles, imaginar outros novos segundo o parecido dos acontecimentos”. (Discorsi, livro I).
A desconfiança de Maquiavel na ética do povo tem fundamentos sólidos. Ética, como sabemos, é o conjunto de atitudes, hábitos, que se tornaram costumeiros e deixaram até mesmo de ser conscientes, sendo assumidos como “naturais” e inquestionáveis. Muito do que se disse no século 17 e 18, e até mesmo em nossos dias, sobre o “preconceito”, tem esta base. O povo adere às práticas e valores antigos. Assim, escreve Maquiavel, para mudar hábitos arraigados e sólidos é preciso dissimular, fngir que a sua essência permanece quando medidas para a sua mudança são implementadas pelos governantes. Se o principe fosse contra os hábitos populares, dificilmente ele se manteria. Mas se pouco a pouco ele muda as formas e as instituições, então consegue mudar a ética do povo. Assim, diz Maquiavel: “quem deseja reformar o estado de uma cidade e quer ser aceito e manter a satisfação de todo mundo, necessita conservar pelo menos a sombra dos modos antigos, de tal jeito que possa parecer ao povo que não houve mudança nas ordens, embora na realidade as novas sejam inteiramente distintas das velhas. Porque a grande maioria dos homens se contenta com as aparências como se fossem realidades e amiúde se deixa influenciar mais pelas coisas que parecem do que por aquelas que são”. (Discorsi, livro I).
Francis Bacon, para citá-lo novamente, mostra-se atento aos conselhos de Maquiavel. Nos Ensaios, o item Of Innovations afirma : “Seguramente, todo remédio é uma inovação; e quem não aplica novos remédios, deve esperar novos males. Pois o tempo é o maior inovador, e se o tempo certamente altera todas as coisas para pior, a sabedoria e o conselho não as alteram para melhor, qual será o fim? É verdade, o que é posto pelo costume, embora não seja bom, pelo menos se mantem (...) a inovação é coisa turbulenta e quem reverencia muito o passado receia as coisas novas. As inovações dos homens deveriam seguir o próprio tempo, o qual inova muito, mas mansamente, por gráus difíceis de serem percebidos. (...) É também muito bom não experimentar nos Estados, exceto quando a necessidade for urgente, ou a utilidade evidente. E deve-se estar atento, de que é reforma que traz a mudança, e não o desejo de mudança, que pretende tudo reformar. Finalmente, a novidade, embora não deva ser rejeitada, deve ser suspeita. Como diz a Escritura, que contemplemos a antiga estrada, e depois olhemos ao nosso redor, e descobriremos o caminho certo para nele seguir”. O povo deseja novidades mas rejeita as que o coloquem na incerteza de saber quem manda. De um modo ou de outro, a massa tem opiniões que não devem servir como paradigma do governante.
O problema da ética enquanto costume é dos mais graves dentre os que surgem no âmbito político. Não se muda uma forma de vida, por mais desastrosa que ela seja, quando é antiga e aceita como “natural”, de um só golpe. Um povo acostumado a determinadas leis, ou a certas maneiras de comando nas instituições de Estado ou religiosas, encara com desconfiança as inovações, dado que se habituou às fórmulas arcaicas que integram, por assim dizer, a sua alma. Se este é um perigo eminente na recepção das ciências, das técnicas e da filosofia, se isto faz com que renovadores artísticos sejam mal vistos nos inícios de suas carreiras ou de suas propostas, o hábito pode derrubar regimes com inspiração dmeocrática. Este problema pode explicar o paradoxo de Rousseau, o qual dizia ser preciso forçar os homens à vida livre. Examinemos esse ponto num avisado analista dos costumes, Michel de Montaigne. Trata-se do capítulo 22, Livro I dos Ensaios. “Sobre o costume e de não mudar facilmente uma lei recebida”.
Montaigne, com o estilo saboroso habitual, inicia o capítulo com um exemplo eloquente. “O que seria o costume?” Alguém, diz o filósofo, o definiu muito bem com o símile de uma senhora camponêsa que aprendeu a acariciar um bezerrinho entre seus braços. Ela ficou acostumada a fazer isto, mesmo quando o bicho se transformou num grande boi. Esta é uma verdade, fala Montaigne, porque o costume é uma violenta e traiçoeira professora. O costume se abriga em nós pouco a pouco, escondido, e nos impõe sua autoridade. No início ele pode ser suave e doce, e isto nos tranquiliza. Mas no fim mostra um rosto tirânico e furioso, contra o qual sequer temos a liberdade de erguer os olhos. E vemos, assustados, que ele destrói todas as regras da natureza. Vem a seguir uma série de costumes que se tornaram comuns, por mais atrozes que eles tenham sido no início. Antes, entretanto, Montaigne cita Platão e os médicos. Nesta matéria, muitos deixam a arte médica, ou política, em proveito da autoridade costumeira, ética.
Assim, entregues ao costumes e à opinião, muitos cometem desatinos, por hábito adquirido. Um rei que acostumou seu estômago a ingerir veneno, uma rapariga cujo hábito é comer aranhas, alguns povos que ingeriam gafanhotos, formigas, morcêgos, lagartos, sapos. Para certos povos, as carnes européias eram mortais e venenosas. Qual a causa da citação desses costumes estranhos? É porque, afiança Montaigne, o costume torna os nossos sentidos abestalhados (hebetés). O filósofo refere-se aqui ao conceito de sensibilidade mental e corporal trazido dos gregos. Uma pessoa marcada pela ausência de sensibilidade, no termo grego, é anaisthêtos. Quanto mais alguém perde a sensibilidade para os matizes do real, mais está acostumado a ver em preto e branco, menos percebe o mundo como ele é ou pode ser. Mais se aferra ao costume e mais é dele vítima, antes de ser algoz dos outros. O costume faz com que os ouvidos, os olhos, não percebam a natureza e os homens na sua medida própria, mas segundo a régua dos preconceitos. Em certas situações, o costume muda até a percepção. Um soldado se acostuma ao barulho dos canhões enquanto para as demais pessoas ele é insuportável. Um sino que bate todo dia integra a rotina, apesar do seu incômodo para os não acostumados. Platão censurou um menino, porque ele jogava com nozes. Resposta da criança: “tu me censuras por pouca coisa”. Réplica de Platão: “o costume não é pouca coisa” (anedota narrada por Diógenes Laércio).
Os piores costumes, os que definem as piores éticas, acrescenta Montaigne, nascem no berço. Aqui, Montaigne apenas amplia o que leu em Platão. Nosso primeiro governo está nas mãos das babás. Estas são complacentes com nossos mais agressivos instintos. Mas não apenas elas, pais e mães facilitam péssimos costumes, deixando que eles entrem em nossa alma e corpo. A mãe que assiste, tranquila ou maravilhada, o pimpolho torcer o pescoço de um frango, ferir um cão ou gato, o pai que é tolo o bastante por tomar como futura prova de virilidade quando enxerga seu filho insultar um transeunte ou empregado que não podem se defender, ou quando nota que ele engana com trapaças os seus companheiros, todos esses comportamentos engendram tiranos. Aqueles pais regam as sementes da crueldade e da traição. Com o crescimento das sementes malditas, vem a força dos costumes adquiridos. Pior é quando os pais desculpam violências dizendo que elas são feitas por crianças frágeis e inocentes. É preciso, diz Montaigne ainda seguindo Platão, ensinar as crianças a odiar os vícios de sua própria contextura, ensinar o quanto eles são disformes, para que elas deles fujam, não só do exterior, mas do fundo do coração. Platão dizia que ensinar era tingir almas com a tintura das leis. É preciso que as leis esteja marcadas de modo indelével nas almas. Caso contrário, o respeito da lei será apenas exterior. A lei deve ser gravada no coração dos homens.
A política que se baseia apenas nos costumes é insana. Nenhuma fantasia terrível, arrisca dizer Montaigne, deixa de encontrar exemplos anteriores que a torne possível. Os costumes são relativos e diferem de povo a povo. Mas eles imperam em todos eles. Mesmo as leis da consciência, que dizemos nascer da natureza, brotam dos costumes. Cada um venera internamente as opiniões e mores aprovados e recebidos ao seu redor, e deles não se separa sem remorsos. O principal efeito do costume é nos dominar de tal modo, que ele entra em nós e raciocina em nós as suas ordens. Alimentamos esse domínio desde a infância, quando foram infundidas as suas sementes em nós, por nossos pais. E pensamos tudo aquilo que está fora dos costumes, é estranho à razão. Deus sabe, afiança Montaigne, o quanto isto é desarrazoadamente freqüente. Raros costumes trazem o bem coletivo. É verdade que povos nutridos de liberdade e autonomia, consideram toda outra forma de governo contrária à natureza. Mas os que se acostumaram à monarquia fazem o mesmo. Montaigne chama a atenção para o problema da opinião pública. E cita o texto platônico das Leis. Neste, o grande inimigo da opinião pensa, num paradoxo, que ela pode ser usada para impedir atos contrários à natureza, como o parricidio, a homosexualidade, etc. Yvon Brès, em trabalho sobre a psicologia de Platão, indica bem o quanto o filósofo ateniense foi realista no uso da retórica para persuadir massas. Desde o vinho, recomendado como preparador da persuasão, até o teatro, tudo o que pudesse causar horror ao crime deveria ser utilizado pelos governantes para determinar o rumo da consciência pública. No livro 8 (838 c) das Leis, Platão discute o incesto . No comentário de Yvon Brès: “se cada homem pudesse experimentar diante de todo menino ou menina o mesmo sentimento de retenção que tem diante de um filho, um irmão, uma filha ou irmã, a lei moral se beneficiaria com a força desta `lei não escrita´ que se opõe ao incesto. Ora esta força vem de uma espécie de unanimidade: desde nossa idade mais tenra, vemos a comédia e a tragédia nos representar o comportamento de Tieste, de Édipo e de Macareu como abominável; nós os vemos dando-se a morte quando descobrem e grandeza de sua falta . E Megilos, [personagem das Leis] aprova: sim, a opinião pública tem verdadeiramente uma força extraordinária”. (14)
Explicita Montaigne, ao discutir o mesmo problema a eficácia da a receita platônica, segundo a qual as mais belas filhas não atrairiam o amor dos pais, nem os irmãos mais excelentes em beleza, o amor das irmãs. As fábulas mesmas de Tieste, Edipo, Macareu, infundiriam, com o prazer de seu canto, esta crença útil no macio cérebro das crianças. Assim, mudanças dos costumes podem ser saudáveis, desde que introduzidas pelos magistrados, com o devido controle. Esta lição platônica é extraída, pois, pelo cético Montaigne. A religião cristã, diz ele, tem todas as marcas de extrema utilidade e justiça. Mas nenhuma delas é mais aparente, do que a exata recomendação da obediência ao magistrado e a manutenção da ordem pública. Deus não destruiu, para nos salvar, a ordem política. Assim, as inovações devem ser feitas de modo controlado para evitar as opiniões antigas e apaixonadas das massas indiscretas.
Toda essa espécie de platonismo que define boa parte do pensamento de Maquiavel e de seus leitores, como Bacon, ou contemporâneos como Montaigne, é agudo na desconfiança da doxa que impera entre o povo. O que não o impede o Florentino, leitor de muitos outros antigos além de Platão, de romper o ideal de um Estado pequeno, com número restrito de cidadãos e cujo espaço é restrito. Assim, embora deseje um Estado sem rupturas internas, ele não aceita a tese platônica da cidade com apenas 5040 membros, ou a cidade aristotélica na qual todos os cidadãos se conhecem. Ele escreve: “tendo organizado uma república capaz de manter-se sem ampliação, se a necessidade a conduz a ampliar-se, veremos que seus fundamentos cedem e a república se arruina a seguir. E, por outra parte, se o céu a favorecesse de tal modo que não tivesse ela de guerrear, nasceria disto um ócio que a tornaria efeminada ou dividida, coisas que, juntas ou separadamente, causariam sua ruina. Como não se pode, pois, encontrar um justo meio nisto, nem equilibrá-lo, é conveniente escolher, ao organizar uma república, o caminho mais honroso e ordená-la de tal modo que, mesmo que a necessidade a obrigue a ampliar-se, possa ser capaz de se conservar ocupada”. (Discorsi) (15)
A razão de Estado, nessa leitura, baseia-se no conhecimento das paixões humanas, por parte do principe, e no imperativo de não seguir a cabeça do povo, preso às formas éticas injustificadas e à opinião. Novamente, há bons elementos platônicos no diagnóstico feito por ele sobre a saúde da república e sobre o papel que nela desempenha o povo. Ainda nos Discorsi podemos ler: “O quão erradas são muitas vezes as opiniões dos homens é coisa que viram e verão todos os que testemunharam as suas deliberações, as quais, a menos que estejam dirigidas por homens excelentes, são muitas vezes contrárias a toda verdade. Mas como nas repúblicas corrompidas, sobretudo em períodos de paz e tranqüilidade, os homens superiores são aborrecidos, seja por inveja ou por ambição dos outros, segue-se daí que se dá preferência ao que o erro comum julga como bom ou ao que sugerem homens que são mais desejosos de conseguir o favor geral do que o bem comum”.
Como dominar a multidão indiscreta e crédula? O remédio situa-se no mesmo plano da doença, no principio homeopático do semelhante para curar o semelhante. Se a massa só acredita no que parece e não busca o que é, para dominá-la é preciso encontrar “um homem grave e digno e com autoridade, que se oponha a ela....concluo, pois, que não existe meio mais seguro de acalmar a multidão excitada do que a presença de algum homem de aparência imponente e que será respeitado”. (Discorsi). Os liderados obedecem porque enxergam seus iguais obedecendo. A imitação, a mimesis descrita por Platão e pelos antigos, é vital na ordem do governo. Como a massa é sempre semelhante aos seus governantes, adianta Maquiavel, “Lorenzo de Medicis confirma esta idéia dizendo: ´o que faz o senhor, o fazem os muitos, pois todos os olhos estão fixados no que o senhor faz ”. O senhor faz uma coisa diante dos liderados, mas precisa, tem necessidade, de fazer outra coisa longe de seus olhos. Aí estaria a base da razão de Estado.
A palavra mais utilizada por Maquiavel é “necessidade”. Nela unem-se a perversão humana, a tolice da massa, as variações da fortuna e a urgência dos momentos particulares. Tudo isso para manter o Estado. Esta doutrina, afiança Lazzeri, foi combatida no século mesmo de Maquiavel por pensadores que defendiam os padrões morais antigos. Seria este o caso de Innocent Gentillet (1576). O texto de Gentillet, hoje publicado como Anti-Maquiavel, tem como título em 1576 o seguinte: Discurso sobre os meios de bem governar e manter em boa paz um reino ou outro principado. Dividido em tres partes, a saber, do Conselho, da Religião, e da Polícia que deve manter um principe. Contra Nicolau Maquiavel, Florentino. (16) Gentillet coloca a arte de bem governar contra a ragion di stato. Esta expressão, no entanto, não foi cunhada por Maquiavel, ela vem de Guicciardini que a emprega como ragione degli Stati. Na indicação de Maurizio Viroli : “nos inícios da segunda década do século, o conflito entre razão legal e moral e o interesse do Estado, começou a ser exposto não como uma divergência entre razão e prática do Estado, mas como um conflito entre razão moral e legal e outra ´razão, a ´razão de Estado´. O conceito de ´razão de Estado aparece pela primeira vez em Francesco Guicciardini, no Dialogo de reggimento di Firenze composto entre 1521 e 1524. Citando o exemplo dos cidadãos de Genova que não libertaram os prisioneiros feitos na batalha de Meloria em 1284, assim causando irreparável dano nos seus inimigos de Pisa, Bernardo del Nero argumenta que os de Genova fizeram uma crueldade que a consciência moral nunca poderia aprovar. No entanto, desde que todos os Estados, —com a única exceção das repúblicas no interior de seu próprio território— estão erguidas em nada mais do que a violência, para preservá-las é necessário apelar para a violência sempre e sempre. E Bernardo del Nero conclui o seguinte : 'quando falo em assassinato ou em manter os de Pisa na prisão, eu talvez não fale como cristão, falo de acordo com a razão e a prática dos Estados [secondo la ragione e l'uso degli stati]'. Ele fala, portanto, e trata-se de uma nota importante, que ninguém que desconheça isto é desculpável perante Deus porque —como dizem os frades— mostra ‘ígnorância crassa’. Quem reconhece o ponto não pode dizer que é razoável ouvir a consciência pessoal em um caso e desprezá-la em outro. (…) É dificil viver no mundo sem ofender a Deus. É preciso falar realisticamente sobre as coisas, tal como elas são de fato”. (17)
As críticas a Maquiavel são ampliadas até que em 1589 ele é atacado pelo jesuita Giovanni Botero (18) secretário de Roberto Bellarmino, o idealizador da soberania indireta do poder religioso contra o Estado, muito criticado por Hobbes, Filmer e outros teóricos do pensamento absolutista sobre o Estado.
Assim, passam a existir duas formas de razão de Estado: a atribuída, com fundamentos ou não, a Maquiavel e a que se define nos programas dos jesuítas, eles mesmos acusados de maquiavelismo. É fascinantes acompanhar, dos inícios da Companhia de Jesus aos nossos dias, a suspeita que ela desperta em católicos, protestantes, liberais, anarquistas, comunistas. Ainda nos séculos 19 e 20, os anarquistas enxergavam nas idéias do marxismo sobre o partido uma imitação da Companhia de Jesus, inclusive, segundo Alain Besançon, nas “tenebrosas manobras” jesuíticas praticadas pelos que formariam mais tarde o Partido bolchevique. Bakunine acusou Netchaev, antes disto, de organizar a máquina revolucionária segundo “os sistema de Loyola e de Maquiavel”. Leão Trostky, em 1938, num estudo importante intitulado “A nossa moral e a deles”, compara o partido bolchevique e a Companhia, ambos, segundo o revolucionário, marcados pela degenerescência burocrática. (19)
Existe uma tese, a dominante, sobre as bases da doutrina antimaquiavélica, sobretudo a católica. Ela seria uma tentativa de conservar, custasse o que custasse, a base política feudal, predominante na Idade Média. Creio que Lazzeri tem razão quando indica que este juízo deve ser corrigido. Autor eu mesmo de um estudo sobre a Igreja Católica (20) e analista do pensamento conservador (21) percebi que a conservação proposta pelo catolicismo não se encontra sobretudo nas formas de Estado, mas na manutenção do religioso como poder. Assim, o compromisso da Igreja não se define, em termos absolutos, com esta ou aquela determinação social, política, jurídica. Os doutrinadores do seu mando colocam-se sempre no horizonte da prudente mudança segundo os tempos, mesmo que alguns deles se aferrem a formas e conteúdos ultrapassados. O conservadorismo religioso não rompe com novas maneiras de governar, ou administrar o Estado. Pelo contrário. A própria Igreja realiza, em seu modo de governo interno, modificações modernizadoras relevantes. É possível que uma instituição seja conservadora no plano do seu pensamento, sem definir-se como oposta à modernização. Este prisma já foi analisado por Max Weber, de modo estratégico. Assim, quando na Contra reforma a Igreja adequou a sua visão de si mesma e de seu mando, com Roberto Bellarmino e a soberania indireta do Sumo Pontífice, ela na verdade inovou diante das suas doutrinas medievais, sobretudo das que, no máximo declínio do poder do Papa, num espasmo, exigia para este as chaves dos reinos mundano e espiritual. (22) Com o Concilio de Trento, a Igreja renovou profundamente suas doutrinas e práticas, não retroagiu para a Idade Média, mas encontrou um novo modus vivendi com os poderes terrestres.
É tal Igreja que assistiu a expansão das doutrinas de Spinoza sobre o Estado e a liberdade civil, contra as pretensões do mando teológico-politico.
GÊNESE E INSTABILIDADE DOS REGIMES POLÍTICOS EM SPINOZA.
A doutrina política de Spinoza liga-se à teoria das paixões. Ela pode ser lida, nos mínimos detalhes, na Ética. A paixão compreendida permite entender também as causas e fundamentos da sociedade política e das instituições. (23) É a partir das paixões que Spinoza entende as disfunções institucionais encontradas na origem da auto-destruição das sociedades políticas. As paixões geram o Estado e podem destruí-lo. Com esta plataforma, analisemos as propostas indicadas por Spinoza para remediar a marcha da dissolução da sociedade política. Sendo o filósofo um defensor da democracia, os remédios por ele sugeridos integram a auto-regulagem das disfunções institucionais. Como toda a sua filosofia, da natureza ao conhecimento e deste à administração das paixões, é imanente (as mudanças não vêm de fora, de uma divindade ou de valores eternos), e monista, qualquer solução externa, em vez de remediar um status quo em declínio serve, na verdade, para piorá-lo. É por esse motivo que as teses teológico-políticas desgastam ainda mais o Estado, conduzindo-o à guerra das religiões, tão comuns no século 17 europeu.
Tomemos o artigo 7 do Capitulo I do Tratado Político: “Visto que todos os homens, bárbaros ou cultivados, formam em toda parte costumes que se dão um estatuto civil, não é dos ensinos da razão, mas da natureza comum dos homens, isto é, da sua condição, que é preciso as causas e os fundamentos naturais dos Estados…”. (24) Quando Spinoza fala em “condição comum dos homens”, refere-se a eles como seres apaixonados. Mas submetidos a quais paixões? Todo o Tratado Político pressupõe que os homens desejam necessáriamente bens materiais. Trata-se da avaritia, paixão universal e constante. (TP, X/6). Eles também são necessariamente supersticiosos. “Concluo, portanto, dizendo que os vícios inerentes ao estado de paz (…) não devem ser combatidos diretamente, mas de modo indireto, colocando-se princípios fundamentais de modo que o maior número se esforce não de viver sábiamente (isto é impossível) mas se deixe dirigir pelas afecções das quais o Estado arranca mais benefícios. É preciso tender sobretudo a fazer com os ricos sejam senão ecônomos, pelo menos que eles desejem aumentar suas riquezas. Pois não há dúvida que se esta avidez (avaritia) que é uma paixão universal, e constante, seja alimentada pelo desejo de glória, a maioria se aplicará com maior zelo a aumentar a sua riqueza sem os meios desonrosos , o ter que eles podem pretender serem bem considerados evitando a vergonha (ignomínia)”. (25) O desejo de possuir bens materiais, na sua origem, é exposto na primeira metade do livro III da Ética.
“Toda a coisa se esforça, enquanto está em si, por perseverar no seu ser”. (Etica, III/4-9) (26) Quando esse esforço (conatus) é favorecido por causas externas, ele se transforma em alegria (E, III, 11) (27) Se o nosso corpo aumenta ou diminui sua potência de agir, a idéia desta coisa aumenta e diminui, aumenta ou reduz a potência da nossa mente. (28) Quando a alegria é seguida da causa exterior que lhe atribuimos, ela torna-se amor por esta causa externa (E, III, 12-13) Amor é a alegria seguida da idéia de uma causa externa, ódio a tristeza seguida da idéia da causa externa. Quem ama se esforça necessariamente por ter presente e conservar a coisa que ama, quem odeia se esforça por destruir a coisa que odeia. Se amamos algo, nos apegamos incondicionalmente e queremos nos apropriar e conservá-lo, portanto. Nós nos alienamos inteiramente nele. Esta alienação pode passar da coisa que nos alegra para outras, a ela ligadas em nossa mente. Assim ocorre com os meios para conseguí-la no futuro, como é o caso do dinheiro ou da terra.
Para conseguir o necessário para todos os indivíduos, as forças de cada um deles não bastariam se os homens não se prestassem serviços mútuos. O dinheiro tornou-se instrumento com o qual nos proporcionamos todas as coisas, sendo ele o resumo de todas as riquezas, tanto que sua imagem ocupa ordináriamente mais do que todas as outras coisas nas almas vulgares. Elas não podem imaginar nenhum tipo de alegria, senão acompanhando como causa a idéia da moeda. Este, no entanto, é um vício nos que estão à busca de dinheiro, não por necessidade nem para prover as necessidades vitais, mas porque aprenderam a arte variada de enriquecer e se honram de possuir. Eles dão ao corpo o seu pasto, segundo o costume, mas tentando poupar, porque acreditam perdida toda parte de seus bens dispendida para a conservação do corpo. Para os que conhecem o verdadeiro uso da moeda, e regulam sua riqueza segundo as necessidades apenas, eles vivem contentes com pouco. (29)
No Apêndice do livro I da Ética, mostra-se como semelhante teoria do amor permite explicar a origem de nossa crença em divindades antropomórficas. Deus existe necessariamente. Ele é único. Ele age apenas pela necessidade de sua natureza. Ele é a causa livre de todas as coisas. Tudo é em Deus e depende dele, nada pode ser concebido nem ser sem Ele. Tudo foi prederminado por Deus, não por livre vontade, por um beneplácito absoluto, mas pela sua natureza absoluta, ou seja, por sua potência infinita. Os homens imaginam que todas as coisas da natureza agem, como eles, tendo em vista um fim. E imaginam que Deus dirige tudo para uma finalidade. Deus fez o homem para que ele lhe prestasse culto. Isto é um preconceito. Todos nascem sem o conhecimento das causas das coisas e todos têm apetite de buscar o que lhes é útil. O que está em sua consciência. Daí,
1) os homens imaginam ser livres, porque têm consciência de sua volições e de seu apetite e não pensam, mesmo em sonho, nas causas que os dispõem a apetecer e a querer, não possuindo delas nenhum conhecimento.
2) Eles agem sempre tendo em vista um fim, o útil que lhes apetece. Eles se esforçam sempre e unicamente para conhecer as causas finais das coisas completadas e se colocam em repouso quando delas são informados, não tendo mais razões de se inquietar.
3) Se não podem conseguir tais razões finais dos outros, refletem sobre os fins pelos quais são determinados em ações semelhantes, e assim julgam os outros por eles. Como encontram em si mesmos e fora de si meios que ajudam para atingir o que é útil (olhos para ver, dentes para mastigar, ervas e animais como alimento, Sol para iluminar, mar para produzir peixes) eles chegam a considerar tudo o que está no interior da natureza enquanto meio para seu uso. Como tais meios não são produzidos por eles, persuadem-se da existência de um ou vários diretores da natureza (Naturae rectores) dotados da liberdade humana, que provêm as suas necessidades e tudo colocam ao seu uso.
4) Como ignoram a compleição daqueles seres, julgam-na segundo a sua própria e admitem que os deuses dirigem tudo para uso dos homens, afim de que eles se apeguem às divindades e para serem honrados pelos humanos. E todos, projetando a sua própria compleição, inventaram no seu engenho diversos meios de cultuar Deus, com o fim de serem amados por Ele acima de todos os demais. E assim, obter que Ele dirigisse a natureza inteira em proveito de seu desejo cego e de sua insaciável avidez (avaritia).
5) Tal preconceito se transforma em superstição e lança raizes profundas na mente humana. Tentanto dizer que a natureza nada faz em vão (segundo a sua economia, na qual eles são o fim), nada mais provam que os deuses e a natureza deliram como eles. Como a natureza comporta furacões, tempestades, terremotos, etc. coisa naturais, tanto quanto as que servem utilmente aos homens, este tentam inverter toda a fábrica natural, inventando uma outra. E admitem que os juizos divinos transcendem os humanos e, portanto, a verdade nunca seria acessível a eles. Isto seria assim, se as matemáticas ocupadas não com os fins mas apenas com as essências e propriedades das figuras, não apresentassem uma outra norma da verdade, permitindo perceber os preconceitos comuns e chegar ao conhecimento verdadeiro das coisas.
Além da Ética, o Prefácio do Tratado Teológico Político analisa o mecanismo pelo qual quando somos presas do medo (E, III/18 e Escólio 2) tal crença se transforma em superstição (E, III, 50 e Escólio). Tanto o Estado quanto as superstições, como a avaritia, a fome de bens, são explicados pela teoria das paixões. Donde a alienação explicada por Spinoza é dupla: ela é econômica e ideológica. No artigo 5 do capítulo I do Tratado Político Spinoza resume as teoria das relações humanas apaixonadas, tal como a expôs na segunda metade do livro III da Ética. As paixões analisadas são a piedade, a ambição da glória, a ambição de mando e a inveja. Todas têm uma origem comum : a imitação afetiva, cuja dedução é dada na Ética III/27. “Se imaginamos que uma coisa semelhante (simile) a nós e diante da qual não experimentamos nenhum afecção de nenhum modo, experimenta alguma afecção, experimentamos por isto mesmo uma afecção semelhante. As imagens das coisas são afecções do corpo humano, cujas idéias nos representam os corpos externos como se estivessem presentes em nós, ou seja, cuja idéia envolve a natureza de nosso corpo e ao mesmo tempo a natureza presente de um corpo externo. Se a natureza do corpo externo é simile à do nosso corpo, a idéia do corpo externo que imaginamos, envolve uma afecção do nosso corpo similar à do corpo externo. Por conseguinte, se imaginamos algum semelhante a nós afetado de alguma afecção, esta imaginação envolve um afecção similar do nosso corpo. É por isso que imaginamos que se uma coisa similar a nós experimenta alguma afecção, experimentamos uma afecção similar à sua. Se, pelo contrário, tivessemos ódio uma coisa similar a nós, experimentariamos, na medida de nosso ódio uma afecção contrária e não semelhante à sua”. (30) Quando vemos alguem sofrer, partilhamos a sua dor (é a piedade, E. III/27) e queremos socorrê-lo (é a benevolência, E III/27, corolário 3). Se conseguimos socorrê-lo e ele se alegra e, pois, nos alegramos com a idéia de nós mesmos como causa (é a glória, E III/30 e escólio) e como se trata de um sentimento muito agradável, desejamos, para reproduzi-lo, continuar na ajuda aos outros (é a ambição da glória, E III/29 e escólio).
Mas se desejamos fazer alguém feliz, não queremos no entanto lhe sacrificar nossos desejos próprios. Nos esforçamos, pois, para resolver esta contradição, e tentamos converter o outro aos nossos próprios valores, obrigando-o a amar o que amamos e a odiar o que odiamos (E, III/31 e corolário): a ambição de glória se transforma em ambição de mando (E, III/31 escólio) e esta ambição de mando pode gerar a pior das intolerâncias (Id), em especial a ideológica, a intolerância supersticiosa. Se conseguimos fazer alguém gostar do que queremos que ele goste, se ele se apossa de alguma dessas coisas e com ela se alegra, e se esta coisa só pode ser possuida por um indivíduo, desejamos delas gozar sozinhos e, por conseguinte, dele arrancá-la, esta é a inveja (E, III/3 e escólio) que se manifesta sobretudo em matéria econômica. Mas quando conseguimos privar o outro daquilo que o alegrava, ele fica triste, temos piedade dele e o ciclo recomeça.
No artigo I do capitulo VI do Tratado Político Spinoza afirma que os homens vivem em sociedade política não devido à razão, mas pelas paixões, como a do medo. Ele cita o artigo 9 do Capitulo III, onde mostrou que os homens se unem quando o medo que sentiam em comum se transforma em indignação. Esta é uma forma de imitação afetiva (Ética III/27, corolário 1): ela é o ódio experimentado por quem faz mal a um ser similar a nós, e sentimos isso por imitação dos sentimentos da vítima. Imagine-se o estado de natureza, com um indivíduo que não consegue comida. Por piedade ou desejo de glória, alguns o socorrem. Se a ajuda é eficaz, sua piedade ou ambição de glória se transforma em ambição de mando e de inveja, e começa a agressão contra o “socorrido” que não aceita ser mandado ou não aceita falar sempre do socorro, para glória do seu “salvador”. Alguns que, até então, apenas assistiam aquelas cenas, se indignam com o mal que lhe é feito e o ajudam. E isto se complica e se repete muitas vezes. O agredido se torna agressor e vice-versa, levando consigo grupos e coletivos de agressores e de agredidos. E aumenta a indignação geral. E cada um se beneficiará e também será prejudicado pelas agressões. Cada um tem medo de todos e espera obter ajuda de todos. Uma só coisa suscita em todos o medo e a esperança: o poder coletivo. (TP, III/3). Mas todos julgam esta situação intolerável e se dispõe a ajudar cada um que julga ser vítima de agressão. Cada vez que um entra em conflito, cada um deles pede socorro aos outros, e os que se julgam mais semelhantes ao agredido, agredirão os seus agressores. Até que o consenso imponha normas comuns para reprimir massiçamente os que as violam e proteger quem as respeita. Há então uma potência coletiva da multidão que assegura os obedientes e ameaça os não conformistas. Temos o embrião da soberania política, porque, segundo Spinoza, a soberania é “o direito que se define pela potência da multidão” (TP, II/17).
“Este direito que define a potência da multidão, costumeiramente chama-se poder público (imperium), e ele possui absolutamente este poder, o qual, por consenso comum cuida da coisa pública e estabelece, interpreta, e abole as leis, defende as cidades, decida a guerra e a paz. Se tal cuidado pertence a uma assembléia (concilium) composta de toda a multidão, então trata-se da democracia. Se a assembléia se compõe de algumas pessoas de escol, aristocracia. E se o cuidado da coisa pública e por consequência o poder pertence a um só, monarquia”. (31)
Não basta que a massa popular se una e se torne mais forte do que os indivíduos que a compõem. É preciso que tal poder seja reposto, de modo a poder agir com eficácia no presente e no futuro. Esta é a tarefa da institucionalização do poder. Quais são os problemas mais urgentes da institucionalização ?
1) O comando. O coletivo é uno. Mas quem o dirige? Existem muitos candidatos (TP, VII/5) “É certo…que ninguem gosta de ser governado, mas de governar. Ninguém cede voluntariamente o mando para outrem (…) É evidente que a massa do povo jamais transferiria seu direito a um pequeno número de homens, ou a um só, se ela pudesse concordar consigo mesma e se as discussões que se levantam com frequência nas grandes assembléias não gerassem sedições. A massa do povo não transferirá jamais livremente a um rei o que lhe é impossível guardar em seu poder, o direito de acabar às discussões e tomar uma rápida decisão. Se ocorre com frequência que se escolha um rei devido à guerra, porque os reis são mais eximios na guerra, está aí uma tolice porque, para guerrear com maior eficácia, consente-se à servidão na paz , supondo-se que a paz reine num Estado onde o soberano poder foi confiado a um só devido apenas pela guerra e porque o chefe mostra principalmente na guerra seu valor (alí ele é proveitoso para todos). Num Estado democrático, no entanto, tem-se o fato notável de que o seu valor é bem maior na paz do que na guerra. Mas qualquer que seja a razão pela qual se escolhe um rei, ele não pode, sozinho saber o que é útil ao Estado (…) ele precisa de conselheiros em grande número dentre os cidadãos….”. (32) Assim que se forma o poder político cada um, por ambição de mando, deseja participar dele o mais possível. Seguem-se os conflitos que decidem a sorte do coletivo.
2) A ideologia. Não basta saber quem comanda, é preciso saber o que será comandado. O que o bem e o mal? (TP, II/18). Como os homens se batem porque não têm os mesmos valores, pois cada um tende a seguir seu próprio engenho (ingenio) e cada um quer impor as suas noções aos outros, o coletivo só pode sobreviver se a autoridade politica conseguir fazer aceitar, de modo estável, um sistema comum de valores. Como os valores dependem das superstições pessais, é institucionalizada a superstição. Um atributo do Estado é decidir quais religiões são autorizadas e quais proibidas. (TP, III/10).
3) A Propriedade. Trata-se da segunda fonte de conflitos, a inveja econômica. Como disputam as mesmas coisas, quando elas só podem ser possuídas por um apenas (é particularmente o caso da terra), o grupo sobrevive apenas se o soberano definir com precisão quem tem direito a que, ou o que pertence a cada um (TP, II/23). Para isto, ele precisa fazer com que sejam obedecidos o regime da propriedade. Tais problemas são péssimamente resolvidos, o que gera toda espécie de disfunção institucional, que, em prazo longo, acabam destruindo o Estado.
Disfunções da política, o primeiro principio geral:
Não se pode obrigar os homens a fazer qualquer coisa, é impossível fazê-los algo sem esperança de recompensa ou ameaça de castigo. Eles não podem ser obrigados a voar. Também a pura repressão não adianta para fazê-los crer em coisas absurdas, a não desejar o que amam, amar o que odeiam. Os soberanos necessariamente devem obedecer tais limites. É impossível alterar a natureza humana e fazer com que homens deixem de ser homens.
Aqui, é preciso recordar o monismo de Spinoza. Existe apenas uma Substância (Deus ou Natureza), da qual somos modificações. A nossa força vem da substância divina, infinita. Assim, quanto mais próximos de Deus (mais pensamos e agimos segundo as leis natuais/divinas) mais livres somos. Querer nos fazer agir ou pensar contra a nossa natureza é colocar uma força finita (a de homens, poderosos mas homens) contra uma força infinita na qual nos movemos. Um poderoso pode tentar fazer com que um indivíduo isolado atue contra sua natureza. Ele não consegue e pode apenas dobrar a lingua do seu objeto de ódio, mas jamais a sua mente. Se o indivíduo une-se a outros, com rapidez de tempo e chega à simultaneidade na união, a força coletiva é maior do que a do tirano. Assim, quando os indivíduos estão separados porque não seguem a lei e a força divinas (naturais) eles podem ser dominados pela tirania. Mas ao se unirem, aproximam-se do poder natural divino, aproximam-se do infinito. E podem vencer o tirano.
Segundo princípio geral:
Quando os dirigentes ignoram e desrespeitam a força natural divina que está neles e nos dirigidos, ultrapassando imagináriamente os limites do direito natural, catástrofes surgem para eles e para o Estado. Quanto mais reprimem, mais temor inspiram. O medo é uma tristeza (Etica, III/18-Escólio 2), que implica em ódio contra os que tememos. Se os dirigentes não sabem se manter em limites, mesmo na repressão, erguem a indignação geral, a máquina das paixões que instaurou a sociedade política, e que pode causar a sua dissolução (TP,III/9 e IV/4). Quando todos percebem que podem contar com a ajuda dos outros, porque todos estão indignados contra o mal feito contra alguns ou muitos, unem-se contra o dirigente que, no limite, é derrubado. “A Esperança é uma alegria inconstante, nascida da imagem de uma coisa futura ou passada cuja saída é considerada duvidosa. O Medo, pelo contrário, é uma Tristeza inconstante nascido da imagem de uma coisa duvidosa. Se dessas afecções extraimos a dúvida, a Esperança torna-se Segurança, e o Medo desespero. Entendo uma Alegria ou uma Tristeza nascida da imagem de uma coisa passada, cuja saída foi tida por nós como duvidosa. O remorso é a Tristeza oposta ao gáudio.”
E vem a aplicação geral : “Quando se trata de medida que provoque indignação geral, obedecendo a natureza, os homens unir-se-ão contra ela, seja devido a um medo comum seja por desejo de vingança de algum malefício comum e, visto que o direito da Cidade é definido pela potência comum da multidão, é certo que a potência e direito da Cidade diminuem, pois foram fornecidas razões para que se forme uma liga conspirativa. A Cidade certamente enfrenta perigos e deve temê-los; como no Estado de natureza um homem depende mais de si mesmo quanto mais razões tem de temer, também a Cidade, pertence pertence menos a si mesma quanto mais tem a temer.” (33) Quando ocorrem as situações de medo? Em qual hora os governantes e governados sentem aquela paixão de modo decisivo? Matheron cita alguns casos ilustrativos.
1/ Uma hipótese: os homens sairam neste instante do estado natural e acabam de instituir a sociedade política, sem nunca ter a experiência anterior de um Estado. Esta hipótese é falsa, visto que não é possível, na filosofia de Spinoza, chegar ao “primeiro” instrumento técnico (o martelo) ou ao “primeiro” instrumento técnico da política ou do saber científico. É o que já se pode ler no Tratado da Reforma do Intelecto: “[…] precisamos indicar a Via ou Método por onde chegaremos a conhecer tão verdadeiramente as coisas que precisamos conhecer. Para isto é reciso observar de inicio que não haverá aqui busca ao infinito: para encontrar o melhor método pelo qual procuraríamos a verdade, não precisamos de um método para buscar este método e para buscar este segundo método não precisaremos de um terceiro e assim ao infinito. Pois daquele modo nunca chegaríamos ao conhecimento da verdade e a nenhum conhecimento. É o mesmo que ocorre com os instrumentos materiais, que daria lugar ao mesmo raciocínio. Para forjar o ferro, com efeito, é preciso um martelo e para ter um martelo é preciso fazê-lo. Para isto, um novo martelo, e outros instrumentos são necessários e, para ter aqueles instrumentos, outros ainda ao infinito. E assim poder-se-ia provar que os homens não têm nenhum poder de forjar o ferro. Na realidade puderam, com instrumentos naturais, chegar aquele invento, embora penosamente e de maneira imperfeita, vencendo tarefas com procedimentos fáceis. Uma vez tendo-as acabado, executaram outras mais difíceis com menor esforço e mais perfeitamente e assim indo por gráus dos trabalhos mais simples aos instrumentos, destes instrumentos a outros trabalhos e instrumentos, num progresso constante, e chegaram a executar tantos trabalhos difíceis, com pouco esforço. Assim também o intelecto com sua força natural produz para si mesmo instrumentos mentais que aumentam a sua força para executar outros trabalhos intelectuais, desses últimos ele extrai outros instrumentos, ou seja, o poder de empurrar para mais longe sua pesquisa, e continua assim a progredir até chegar ápice da sabedoria”. (34)
Assim como não existe a regressão ao “primeiro martelo” ou ao “primeiro método”, também não existe regressão à “primeira coletividade política”. Com isto, Spinoza dá um tiro mortal nos programas conservadores que indicam uma “comunidade” perfeita no início da Humanidade. Este coletivo jamais existiu. Com prudência política, pode-se apenas recolher e aperfeiçoar no presente e no futuro o que os homens fizaram no passado. E com o monismo, não existe fora da natureza nenhum modelo ou paradigma da “boa” sociedade política. Nota-se que o neo-platonismo ou mesmo o platonismo são descartados por Spinoza neste passo. Se temos um coletivo que nunca possuiu Estado ou política, qual soberania ele dará a si mesmo? Depende do regime a que estavam habituados “antes” de retornar ao estado de natureza. Os judeus habituados à escravidão no Egito, não podiam viver em democracia. (TTP, V).
O Capítulo V, do Tratado Teológico Político apresenta razões gerais do poder político e logo a seguir deduz as consequências para os Hebreus recem saídos do Egito. “A sociedade é útil e necessária no mais alto ponto, não apenas porque protege contra os inimigos, mas também porque ela permite reunir um grande número de comodidas. Se os homens não desejassem se ajudar mútuamente, a habilidade técnica e o tempo lhes fariam igualmente falta para manter sua vida e conservá-la tanto quanto possível. [Recordemos a Ética : “o esforço para se conservar é o primeiro e único fundamento da virtude”] . Ninguém teria o tempo e as forças necessárias se fosse preciso arar, semear, colher, moer, cozer, tecer, costurar e efetuar muitos outros trabalhos úteis à manutenção da vida. Isto, para nada fazer das artes e ciências, que são supremamente necessárias para a perfeição da natureza humana e para sua felicidade. Vemos, com efeito, que os que vivem como barbaros, sem civilização, conduzir uma vida miserável e quase animal, e no entanto o pouco que eles possuem, miseravel e grosseiro, eles só o conseguem prestando-se mútuo socorro. Se homens fossem dispostos pela natureza de modo que só desejassem o que ensina a verdadeira Razão, a sociedade não precisaria de lei nenhuma, bastaria esclarecer absolutamente os mesmos homens com ensinos morais para que eles mesmos fizessem e com alma liberal o que é verdadeiramente útil. Mas é bem diferente a disposição da natureza humana; todos observam seu interesse, mas não seguindo o ensino da reta razão ; o mais frequente que os homens sejam arrastados por seu apetite apenas de prazer e as paixões (que não se preocupam com o futuro e só dão conta de si mesmas) que eles desejam algum objeto e o julgam útil. Daí que nenhuma sociedade pode subsistir sem um poder de comando e uma força, e por conseguinte sem as leis que moderam e constrangem o apetite do prazer e as paixões sem freio. Contudo a natureza humana não suporta ser constrangida absolutamente, e como diz Seneca o Trágico : “ninguém exerceu muito tempo um poder violento, um poder moderado perdura”. Enquanto, com efeito, os homens agem apenas por medo, fazem o que é mais contrário à sua vontade, e não consideram de nenhum modo a utilidade e a necessidade da ação, mas só se preocupam em salvar sua cabeça e não se expor aos suplícios. Bem mais, é-lhes impossível não sentir prazer com o mal e com o prejuízo do governante que tem poder sobre ele, mesmo em seu detrimento, de não lhe desejar malefícios e fazer-lhe tanto mal quanto possam. Nada existe mais difícil enfim, do que arrancar dos homens uma liberdade , após tê-la concedido.
Segue-se que toda reunião humana deve, se é possível, instituir um poder que pertença à coletividade de modo que todos sejam levados a obedecer a si mesmos e não aos seus similes. Se o poder pertence apenas a alguns, ou a um só, este último deve ter algo superior à natureza humana, ou pelo menos deve se esforçar para fazer com que o vulga creia nisso. Em segundo, leis deverão ser estabelecidas em todo Estado de modo que os homens sejam contidos menos pelo medo do que pela esperança de algum bem particularmente desejado. Assim, cada um cumprirá seu mister com ardor.Finalmente, dado que a obediência consiste no fato de se executa ordens por submissão apenas à autoridade do chefe que comanda, vê-se que ela não tem lugar nenhum numa sociedade onde o poder pertence a todos e onde as leis são estabelecidas por consentimento comum. Seja numa sociedade assim, pu em outra sociedade, as leis aumentem em número ou diminuam, o povo permanece sempre livre igualmente, pois não age por submissão a autoridade alheia, mas pelo seu próprio consentimento. Ocorre algo muito diferente quanto um só detem o poder absoluto. Então, todos, sem nenhuma exceção, executam as ordens do poder por submissão à autoridade de um só. A menos que os homens sejam amestrados a desde o princípio a ficarem presos à palavra do chefe que comanda, será muito difícil para ele, em caso de necessidade, instituir leis novas e arrancar do povo uma liberdade concedida certa vez.
Depois dessas considerações gerais, voltemos à organização política dos Hebreus. Quando sairam do Egito, eles não eram obrigados pelo direito de nenhuma nação, e podiam estabelecer leis novas segundo melhor lhes aprouvesse, ou seja, constituir um direito novo, fundar seu Estado onde escolhessem e ocupar as terras que desejassem. Eles não estavam preparados para estabelecer regras de direito e exercitar o poder coletivamente pois todos possuiam um engenho grosseiro e deprimido pela servidao sofrida. O poder precisou ficar, pois, nas mãos de um só, capaz de comandar os outros, de constrangê-los pela força, de prescrever enfim leis e interpretá-las. Este poder, Moisés pôde fácilmente continuar a detê-lo porque estava acima dos outros por uma virtude divina como ele persuadiu o povo e mostrou por numerosos testemunhos (Exodo, capitulo 14, último versículo, [“E Jeová salvou Israel naquele dia das mãos do egípcios; e Israel viu os egipcios mortos no mar. E Israel viu a grande obra que Deus fez contra os egipcios, e o povo temeu Jeová: e eles acreditaram em Jeová e no seu servo Moisés”] e capítulo XIX, versiculo 9). Ele estabeleceu portanto, e impôs regras de direito pela virtude divina que o distinguia. Mas tomou o maior cuidado de fazer o povo cumprir o seu ofício, menos por medo do que expontâneamente. Duas razões principais o constrangeram : de início, a insubmissão natural do povo (que não suportava ser dominado apenas pela força) e a ameaça de guerra que exigia, para ser feliz, que os soldados fossem conduzidos mais pela persuasão do que pelos castigos e ameaças. Desse modo, com efeito, cada um se esforçou de se distinguir pela coragem e grandeza de alma do que escapar apenas do suplício”.
Como no estado de natureza “absoluto” hipotético, ninguém era superior a outros, a primeira suposta forma de regime soberano é a democracia. No estado de natureza ninguém comanda duravelmente ninguém, ninguém se impõe pela sua força ou prestígio. A ambição de mandar e a inveja está em todos, sem nenhum constrangimento, impede que a autoridade seja dada apenas a um só ou a alguns. Logo, apenas a assembléia inteira do povo. A democracia é a solução mais simples, mais lógica, “mais natural” (TTP, XVI)
Mesmo os hebreus, na situação posterior ao Egito, experimentam as bases da ordem democrática. “Dado que os Hebreus não transferiram para ninguém o seu direito, mas todos eles, como numa democracia, renunciaram ao seu direito, e clamaram numa só voz que fariam tudo aquilo que Deus dissesse (sem nenhum mediador expresso), segue-se por conseguinte em virtude desse pacto, que todos ficaram completamente iguais, no direito de interpelar Deus, de receber e de interpretar leis e de participar em todas as tarefas da administração do Estado”. (TTP, Capítulo 17). (35) No Estado proposto pelo filósofo, as formas democráticas exigem a igualdade plena dos cidadãos. (36) Para perceber o radicalismo da idéia, precisamos tecer alguns considerandos sobre o direito natural e discutir as suas teses sobre os vínculos dos homens com Deus e entre si.
A doutrina de Spinoza é contrária à teoria de Hobbes. O próprio pensador enunciou as principais oposições entre ambos: “a diferença consiste em que eu mantenho sempre o direito natural e que só concedo numa cidade qualquer direito ao soberano sobre os dirigidos na medida em que, pela potência, ele é mais forte do que eles; é a continuação do estado de natureza”. (37) Ao contrário de Hobbes, no instante em que se institui a soberania nenhum indivíduo abdica do direito natural em prol de um arbitro posto acima da reunião societária. A igualdade entre dirigidos e dirigentes é garantida, modificando-se apenas o âmbito e a força das pessoas e funções. No Estado democrático “ninguém transfere o seu direito natural para um outro, a ponto deste nunca mais precisar de o consultar; transfere-o, sim, para a maioria da sociedade , de que ele próprio faz parte. Portanto, nessa medida, todos se mantêm iguais, tal como acontecia antes, no estado de natureza
Spinoza, longe de exigir o combate às paixões, ou de recusar a sensibilidade humana, afirma a preponderância das mesmas na vida e na política. A paixão do medo não será atenuada por uma ascese ou exercício racional. Ela apenas será afastada com o aumento da potência de uma outra paixão, a trazida pela alegria. Para o pensador judeu se quisermos pensar a política precisamos reunir no intelecto os extremos da tristeza e da alegria. Quando temos a imagem de algo o consideramos presente, mesmo que ele não exista. E o imaginamos como passado ou futuro, apenas enquanto a sua imagem está unida à imagem do tempo pretérito ou que virá. Considerada em si mesma, a imagem de algo é a mesma, seja unida ao passado, seja ao futuro, ou ao presente. Em qualquer daquelas situações, a alegria ou tristeza será a mesma. Coisa passada ou futura: enquanto somos ou seremos afetados por ela, se algo que comemos nos fez mal, ou nos fará, etc. Nosso corpo não experimenta nenhuma afecção que exclua a existência da coisa, porque ele é afetado pela imagem da coisa, como se ela estivesse presente. Como temos várias experiências, quando consideramos uma coisa passada ou presente flutuamos e não conseguimos nos manter firmes, vendo como duvidosa a resolução do dilema que nos ameaça. As afeccões nascidas das imagens que flutuam em nós, também flutuam segundo as imagens de coisas diversas, até que tenhamos adquirido alguma certeza para a solução do nosso relacionamento com a coisa. Assim, podemos conhecer a esperança, o medo (Metus), a segurança (Securitas), o desespero, o contentamento (Gaudium) e o remorso. “Esperança é alegria inconstante nascida da imagem de algo futuro ou passado cuja saída consideramos duvidosa. O medo, pelo contrário, é uma tristeza inconstante nascida igualmente da imagem de algo duvidoso. Se destas afecções extrairmos a dúvida, a esperança se transforma em segurança, e o medo se transforma em desespero. Falo de uma alegria ou tristeza nascidas da imagem de algo que nos afetou de medo e de esperança. O gaudio é uma alegria nascida da imagem de algo passado cuja saida foi considerada por nós como duvidosa. O remorso é a tristeza oposta ao gáudio”.
A partir desse conceito de flutuação da alma, vejamos o que enuncia o Tratado Teológico-Político: “Se os homens fossem capazes de governar toda a conduta de sua vida por um objetivo regrado, se a fortuna lhes fosse sempre favorável, sua alma estaria livre de toda superstição. Mas como eles estão sempre postos num estado incômodo que não lhes pemite tomar nenhuma resolução razoável, como eles flutuam quase sempre miseravelmente entre a esperança e o medo, por bens incertos que não sabem desejar com medida, seu pensamento abre-se sempre à mais extrema credulidade. Ele oscila na incerteza. O menor impulso o joga em mil direções diversas, e as agitações da esperança e do medo aumentam mais a sua inconstancia. De resto, observemos os homens em outros encontros, nós os veremos confiantes no futuro e cheios de jactancia e orgulho”. E novamente no Tratado Teológico-Politico : “Ninguém viu os homens sem notar que, ao estarem na prosperidade, todos se gabam, tão ignorantes quanto possam ser, de uma sabedoria tal que julgariam uma injúria receber um conselho. No dia da adversidade, surpreendidos, não sabem qual partido escolher: vemos que eles mendigam ao primeiro que aparece, e por mais inepto, absurdo e frívolo que se imagine um conselho assim, eles o seguem cegamente. Mas logo, a partir da menor aparência, recomeçam a esperar um futuro melhor ou temer as piores infelicidades.
Que lhes ocorra, com efeito, quando estão presas do medo, algo que lhes recorde um bem ou mal passados, eles dizem logo que o futuro será propicio ou funesto. E cem vezes enganados pelo evento, eles não deixam de acreditar nos bons e maus presságios. Se testemunham um fenomeno extraordinário e que os fere de admiração, aos seus olhos trata-se de um prodígio que anuncia a colera dos deuses, do Ser Supremo. E não dobrar sua colera através de preces e sacrificios, é uma impiedade para estes homens conduzidos pela superstição e que desconhecem a religião. Eles querem que toda a natureza seja cumplice de seus delírios e ficções ridículas, eles a interpretam de mil modos maravilhosos”. O medo é desejo de evitar o mal maior que tememos por outro menor. (Ética, 3, 39). Assim, definem-se todos os passos seguintes na Ética, como a audácia, desejo que excita alguem a fazer alguma ação correndo o perigo que os seus semelhantes temem enfrentar. A pusilaminidade é o desejo reduzido pelo medo do perigo que as pessoas semelhantes ousam enfrentar. A pusilaminidade é só o medo de um mal que a maioria não costuma temer. Por isto, Spinoza, não a coloca entre as afecções do desejo. A explica apenas, porque ela se opõe realmente à audácia, tendo em vista o desejo que ela reduz. “A consternação diz-se daquele cujo desejo de evitar um mal é reduzido pelo espanto do mal de que ele tem medo. Consternação seria um modo de pusilaminidade. Mas ela nasce de um duplo medo e pode ser definida mais comodamente como o medo que contem de tal jeito um homem ferido de estupor ou flutuante, que ele não pode afastar o mal de si. Digo ferido de estupor, enquanto concebemos seu desejo de afastar o mal como reduzido pelo espanto. Digo flutuante, enquanto concebemos este desejo como reduzido pelo medo. Medo de um outro mal que também o atormenta. Donde vem que ele não saiba qual dos dois contornar”.
É útil aos homens atar relações entre si, forjar liames que os tornam mais aptos a constituir, juntos, um só todo e fazer sem restrições o que contribui para afirmar as amizades. (Ética, livro 4, capitulo 12). A concórdia, nasce da justiça, equidade, honestidade. Os homens suportam dificilmente além do que é iniquo e injusto, o que se considera vergonhoso. Eles suportam mal testemunharem o desprezo dos costumes recebidos no Estado. Na mesma Ética, livro 4, capítulo 16 lemos : “a concórdia, ordinariamente tem por origem o medo, mas sem boa fé (sed sine fide)”. Acrescentemos que o medo nasce da impotência da alma e não pertence ao uso da razão, não mais do que piedade, embora esta última tenha a aparência da moral. Retenhamos a expressão, “sem boa fé”. Ela é estratégica para entender a tese de Spinoza, eivada de maquiavelismo, na questão do pacto social e do direito natural. O pacto, para ser válido, e durável, deve seguir algumas condições. “É uma lei universal da natureza que ninguém renuncia ao que considera ser um bem, salvo na esperança de um bem maior, ou no medo que resulte indiretamente num prejuizo. Ninguém aceita um mal, a não ser para evitar um pior, ou na esperança de um bem. Trata-se daquilo que ele considera melhor ou pior, sem necessariamente o seja de fato. Esta lei está escrita em caracteres tão fundos na natureza humana, que é preciso considerá-la entre as verdades eternas, das quais ninguem pode fugir”. Consequência: ninguém pode prometer, sem engôdo, alienar-se do direito do qual goza em todos os domínios, (38) nem se decidir a manter esta promessa, a menos que tenha medo de um mal maior ou esperança num bem. “Um ladrão me constrange a lhe prometer a lhe entregar tudo o que é meu. Meu direito natural é determinado apenas pela minha força. Se posso escapar do ladrão por uma promessa enganosa, estou autorizado pelo direito natural. No meu interior, posso perfeitamente não ter a intenção de manter a promessa. Ou se prometo a alguém que passarei vinte dias sem comer. Se percebo a estupidez desta promessa, estou na obrigação de escolher entre dois males, o menor”. Dentre as fontes de Spinoza, neste passo, uma é certa: Maquiavel, na Primeira Década de Tito Livio, livro 3, capítulo 42: “não existe vergonha em violar as promessas arrancadas pela força. Serão rompidas sem desonra as convenções pelas quais se empenhou a nação todas as vezes que a força que a obrigou a contratá-la não existe mais”.
No Artigo 5 do capitulo 1 do Tratado Politico, pode-se ler que as relações entre os homens ou a unidade em forma social trazem o selo de origem das paixões. A piedade, ambição de glória, ambição de dominação, inveja. “Só pelo fato de sua constituição, eles lamentam os seus semelhantes infelizes, e os invejam quando felizes, inclinando-se à vingança e pouco à misericórdia, cada um querendo fazer com que os demais adotem a sua regra pessoal de vida, aprovar o que aprova, recusar o que rejeita. Tais homens querem, assim, ser os primeiros, entram em rivalidade, e tentam, na medida de seu poder, esmagar uns aos outros. O vencedor, após a luta, se gloria mais de ter causado prejuízo ao outro, do que ter ganho algo para si. Sem dúvida, assim agindo, todos permanecem convictos de que a religião lhes ensina algo diferente. Ela ensina a amar seu próximo como a si mesmo, isto é, se fazer tão ardente campeão do direito do outro quanto do seu. Mas esta convicção, como vimos, não tem efeito sobre os sentimentos. No máximo, ela influi na hora da morte, quando a doença triunfou sobre os sentimentos e o ser humano jaz inerme, ou nas igrejas, onde os homens não têm relações entre si. Mas ela não prevalece no tribunal nem nas casas dos poderosos, enquanto a sua necessidade seria certamente sentida. É verdade que a razão é capaz de combater sentimentos e moderá-los consideravelmente. Entretanto, a via indicada pela razão nos pareceu muito árdua. Não iremos, pois, acariciar a ilusão de que seria possível conduzir a multidão, nem os homens públicos, a viver segundo a disciplina exclusiva da razão. Neste caso, estaríamos sonhando com uma poética da idade do ouro, uma história fabulosa”. As paixões que definem a política têm origem comum naquilo que Alexandre Matheron chama, seguindo o próprio Spinoza, “imitação afetiva”, deduzida na Ética, 3, 27. O item imediatamente anterior à proposição 27, refere-se ao orgulho, alegria que nasce do fato de que um indivíduo se estime de modo mais do que o justo, ele se considera melhor do que é. Aliás, o orgulho é definido como delírio, porque nele o homem sonha com os olhos abertos. Nele o indivíduo julga poder tudo o que abarca a sua imaginação. A partir daí, Spinoza diz que “da imaginação que uma coisa semelhante a nós (e que antes nos era indiferente) prova por nós algum afeto, também nós experimentamos, por isto mesmo, um afeto semelhante.” Para demonstrar essa tese, Spinoza indica que as imagens são afeccões do corpo humano, cujas idéias nos representam os corpos externos como se fossem presentes a nós. Estas ideias envolvem a natureza de nosso corpo e ao mesmo tempo (simul) a natureza presente de um corpo exterior. Se a natureza de um corpo exterior é semelhante à de nosso corpo, a idéia do corpo exterior que imaginamos envolverá uma afecção de nosso corpo semelhante à do corpo exterior. Por conseguinte, se imaginamos alguém semelhante a nós afetado de alguma afecção, esta imaginação envolverá uma afecção semelhante de nosso corpo. Pelo próprio fato de imaginarmos que alguma coisa semelhante a nós experimenta alguma afecção, experimentamos uma afecção semelhante à sua. Se, ao contrário, odiássemos uma coisa semelhante a nós, experimentaríamos na medida de nosso ódio uma afecção contrária e não semelhante à sua. E no escólio: “Esta imitação das afecções, quando ela ocorre diante da tristeza, chama-se comiseração, mas se é à respeito de um desejo, ela torna-se emulação, que nada mais é que o desejo de uma coisa engendrado em nós pelo motivo de que imaginamos que outros seres semelhantes a nós também a desejam”.
Indica um comentador italiano de Spinoza (Tiziano Salari “Spinoza e il mimetismo del desiderio”) (39) a grande superioridade da intuição spinozana sobre as cartesianas, a de sujeitar as paixões, que eram discutidas como separadas uma da outra, a um principio unificador: o desejo (Paixões da almacupiditas), como “a própria essência do homem, enquanto ela é concebida como determinada a fazer algo por um afeto qualquer, dado nela”. Desejo é o apetite com consciência de si mesmo, é o fazer coisas que sirvam para a conservação de si. (Cf. Ética, 3, Definição das Afecções). O mimetismo do desejo funda a comunidade política e nesta fundação o medo adquire relevo. Segundo Lucia Nocentini (“I fondamenti naturali della civitas. La concezione spinoziana dello Stato, individuo di individui”), a união estatal forma uma individualidade, só distinta das individualidades que a compõem em quantidade e força. O indivíduo Estado (imperium) e o complexo da individualidade político social (Civitas) se cortam, segundo um duplo relacionamento. Ao mesmo tempo que as subjetividades concretas determinam a existência do Estado e o setor governante e institucional, segundo uma linha ascendente, de modo paralelo os institutos descem até às subjetividades concretas segundo uma comunicação biunivoca de cujo equilíbrio dependem a sobrevivência e a estabilidade de todo o corpo social. (40) Há uma relação de reciprocidade : “Para conservar a si mesmos os individuos precisam uns dos outros; devem pois ser conduzidos, através da busca de seus próprios interesses, a desejar a conservação do Estado” (Tratado Político, VII, 4, 22; VIII, 24, 31; X, 6). Sua constituição natural, diz Spinoza, conduz os homens a procurar apaixonadamente o interesse próprio e a julgar a justiça das leis com parcialidade, segundo elas contribuam ou não para preservar o crescimento de seus bens. Sabe-se também que eles só tornam-se campeões da causa alheia na medida em que acreditam, por este meio, defender seus próprios negócios. E “reciprocamente o Estado, para se conservar, deve tender a conservar os individuos, garantindo-lhes a segurança que é a condição fundamental da obediência civica: em um Estado dominado pela anarquia, ou sujeito à potência dos seus inimigos, desaparece a lealdade. (Tratado Político., X, 9-10; e todo o cap. VI)” . Em verdade, se um corpo político pode assegurar sua eterna conservação, diz Spinoza, quando analisa a aristocracia, será necessariamente aquele cuja legislação, uma vez estabelecida sob forma conveniente, permanece protegida contra todo atentado. Pois a legislação é a alma do Estado. Se ela dura, o Estado de seu lado preserva-se. Ora, qual deve ser a legislação para resistir a todas as mudanças? Ela deve se apoiar ao mesmo tempo sobre a razão e sobre a disposição apaixonada própria aos humanos. Se ela só tivesse o sustento da razão, seria fraca e sucumbiria facilmente. Jogo das paixões. Um sentimento é vencido por outro. “Não se vê, com frequência, o medo da morte ser vencido pela violência de um desejo aos bens externos? Ou então alegar-se-ia, os que fogem com medo do inimigo não seriam mais detidos por nenhum outro medo? Eles se precipitam nos rios ou penetram num braseiro, para evitar o ferro do inimigo. Uma nação pode ser bem organizada e suas leis excelentes, tanto quanto se quiser. Entretanto, assim como demonstra a história, os habitantes são por vezes tomados (em situações críticas para o Estado de um terror pânico (terrore quodam panico) que nada mais enxerga senão o medo (metus) que se experimenta no presente. Sem nenhuma consideração pelo futuro, nem pela simples legalidade, todos os olhos se dirigem para um homem de guerra famoso. Ele é desligado da obediência comum às leis, decisão desastrosa lhe prolonga o seu comando ao exército e a salvação coletiva é totalmente posta em suas mãos. A resposta a toda esta objeção do pânico, é fácil. Numa coletividade pública bem organizada, um terror daquele gênero não teria nascido sem motivo verdadeiro. De modo que o terror e a confusão, se estalam numa tal república, só decorreriam de uma causa, imprevisível mesmo para a maior sabedoria”.
O corpo político, como os demais corpos vivos é sujeito a coisas externas e à instabilidade interna. (41) Estas ações podem aumentar o seu conatus ou dominuí-lo. Este é o tema do capítulo 10 do Tratado Político. “Desde que os homens…se fazem dirigir pelas paixões mais do que pela razão, uma multidão de pessoas é conduzida, por natureza, a unir-se com numa só mente, não dirigida pela razão, mas por algum afeto comum, ou seja (como dissemos no artigo 9 do capitulo 3), por uma esperança comum, ou medo ou desejo, de vingar um dano. Porque de fato o medo da solidão é ínsita em todos os homens, do momento em que nenhum deles, por si só, tem força para defender-se e dar-se o necessário para viver, assim, os homens tendem, por natureza, ao estado civil, e não ocorre nunca que eles o destruam totalmente” (TP, VI, 1).
Quais paixões entram em jogo no espaço político quando este último se instaura? A piedade, a ambição da glória, a ambição do domínio e a inveja. Todas possuem uma origem comum : a imitação afetiva, cuja dedução encontra-se no livro 3 da Ética. (42). Quando imaginamos —a imaginação, como vimos, possui estatuto privilegiado na política de Spinoza (43)— que um ser igual a nós experimenta certo sentimento, também o experimentamos. Se vemos alguem sofrer, partilhamos a sua dor e queremos aliviá-lo. Se o fazemos com sucesso, ele se alegra e nos alegramos com ele, ou melhor, nos alegramos com a imagem que está em nossa mente de que somos a causa de sua alegria. Tal sentimento é agradável e desejamos repetí-lo, o que nos joga na tentativa de sempre ajudar os outros. Aqui temos a base da busca incessante da glória, uma ambição primitiva. Mas se queremos ajudar, também queremos atingir nossa própria felicidade. E isto pode ser algo contraditório. Entre os desejos dos demais e os nossos, imaginamos que os últimos são eminentes. Assim, de pessoas que fazem o bem aos outros desejamos, como segundo passo, convertê-los aos nossos desejos e tentamos obrigá-los a gostar do que gostamos e odiar o que odiamos. A ambição de glória se transmuta em ambição de mando, com a sua corrente de males como a intolerância, o pior deles na vida em comum. Se não conseguimos dobrar o desejo alheio em proveito do nosso, passamos a odiar quem assim resiste a nós. Se conseguimos vencê-lo, caso ele se aproprie de uma coisa que prezamos e se alegre com isso, desejamos a sua posse para nós mesmos e dele retirar o gozo. Estamos jogados em plena inveja, a qual se manifesta sobretudo nas matérias econômicas. Quando conseguimos privar o indivíduo dos bens que invejamos ele se entristece, temos dele piedade e o círculo das paixões recomeça, definindo cada vez mais ódio, inveja, desejos em relações complexas que se tornam como que elementos a priori de uma vida comum.
A quantidade de paixões em jogo na política obscurece alguns fatos essenciais para a manutenção da república, e nela a racionalidade ocupa lugar mínimo. Se a corrente apaixonada conduz ao inferno da intolerância, inveja, mandonismo, o único passo eficaz para atenuar o círculo enunciado acima e que permite entender a instauração pública também encontra-se na paixão. Os indivíduos concordam em viver na comunidade porque todos têm medo. Este ponto é comum em Hobbes e Spinoza. (44) O medo impulsiona, no plano da imitação afetiva, as pessoas a se indignarem ao perceber que alguém prejudica um ser que é seu igual. Sentimos indignação por mimesis dos sentimentos da vítima, como vimos acima. Se, no estado de natureza um homem sente fome, um ou vários, por piedade ou ambição de glória o ajudam. Se o auxilio é eficaz, a piedade ou ambição de glória se transformam em dominação e inveja. Define-se melhor a agressividade. E os que enxergam esta agressividade se indignam e começa o ciclo das indignações que movem os indivíduos. Nele, ou alguém é visto como vítima da agressão ou agressor que merece indignação. Neste circuito violento cada um teme o outro e quer obter ajuda de todos os demais. O limite do circulo encontra-se na esperança de todos no auxilio do coletivo inteiro contra seu direto agressor ou suposto inimigo. Assim, todos imaginam que instaurar uma potência coletiva possibilita o seu melhor socorro. Note-se que a igualdade é um pressuposto da instauração republicana, segundo Spinoza. Como afirma Matheron, no texto que sigo ao pé da letra, “a cada vez que dois indivíduos entrarão em conflito, cada um deles clamará pela ajuda de todos os demais, e cada um dos outros, respondendo ao chamado e imitando os sentimentos de alguns dos adversários que será o mais semelhante a ele (Matheron sublinha), se indignará e lutará contra o que lhe parecerá menos: contra aquele cujos valores serão mais divergentes dos seus ou que possuirá mais coisas dos ques possuidas por ele. O adversário que mais se afastar da norma majoritária (o que menos se parecer aos outros) será pois esmagado e dissuadido de recomeçar”. (45) Esse é o primeiro passo para a instauração da república. A igualdade define a base do Estado. Mas tal realidade apresenta problemas, todos vinculados às paixões, de árdua resolução. A primeira aporia reside no mando. O coletivo é força única, superior aos indivíduos. Quem dirige aquela força? Muitos desejam comandar e poucos obedecer. Com a força coletiva, a ambição do mando se expande e com ela a inveja do poder usufruido pelos demais. Neste passo, não se trata apenas de impor aos outros os desejos e opiniões próprios ou de invejar seus bens materiais. Agora a paixão se complexifica, pois além dos desejos primordiais, ela é carregada de aspectos políticos. Como resolver as paixões contraditórias que se tornaram assim saturadas de sempre novos elementos ? A solução torna-se ainda mais difícil porque não se trata apenas, na comunidade, de saber quem manda, mas o que ele manda. Torna-se preciso saber o que é o bem e o mal para a república. Assim, aparecem as lutas sobre as opiniões e para impôr de modo estável, ao todo idéias éticas, um sistema comum de valores. Como neste momento primitivo da república todos são dominados pela imaginação e não desenvolveram a racionalidade conceitual, todos pensam segundo os padrões imaginativos, todos são supersticiosos. Trata-se de escolher dentre as superstições particulares ou grupais a mais forte, a que será institucionalizada pelo coletivo em forma de culto e noções religiosas autorizadas. Mas não ficamos apenas no plano da imaginação religiosa. O mais árduo é encaminhar a questão da propriedade, pois uma das fontes dos conflitos reside na inveja econômica. Os homens disputam as mesmas coisas quando elas não podem ser possuidas por um deles apenas (a questão da terra é a mais grave). A república só permanece se o soberano define com precisão quem tem direito a que, ou o que pertence a cada um e se ele impõe um regime da propriedade.
Todos os problemas mencionados acima, pensa Spinoza, são resolvidos sempre de modo precário. O filósofo, que não pensa exibir um modelo ideal do Estado, indica alguns princípios de prudência política para garantir a estabilidade republicana. O primeiro princípio prudencial, do qual já falamos, diz que os governantes devem ter consciência de que os homens, quando entram no plano político, não renunciam aos seus direitos naturais (como vimos na carta de Spinoza a Jarig Jelles) e que existem limites para o seu mando. Como só entram no campo da política movidos pelas paixões e não por um cálculo racional (ao contrário do que expõe Hobbes) os indivíduos só obedecem ou desobedecem se forem incentivados pelo medo de castigos ou esperança de recompensas. Mas tanto o medo quanto a esperança devem ser relativos a algo que esteja ao seu alcance. Não é possível obrigar os dirigidos a voar (na época isto era uma ordem impossivel de ser cumprida) ou a acreditar naquilos que lhes parece absurdo ou a não querer o que amam ou amar quem lhes faz mal e odiar os quem lhes causa o bem. Resumo de Matheron: “é impossível ir contra a natureza humana e fazer com que os homens deixem de serem homens”. Se os governantes esquecem essa regra prudencial e exigem o impossível dos dirigidos, eles causam medo neles. Mas o medo traz a tristeza e esta produz ódio pela pessoa que tememos. Se os dirigentes não assumem a prudência máxima na repressão (sobretudo neste caso, em que ela é desprovida de razões) o medo se transforma em ódio e indignação contra eles. Ou seja: o mecanismo que serviu para edificar a república serve também para dissolvê-la. Quando os dirigidos não percebem nenhuma segurança na política e constatam as injustiças mútuas impunes e as injustiças dos dirigentes também impunes, sendo os dirigentes arrogantes e orgulhosos, eles não aceitam mais obedecer e sua indignação está pronta para se transformar em revolta que pode destituir não só os dirigentes mais dissolver o Estado.
Spinoza analisa as formas de regime que poderiam impedir o retorno ao estado de natureza como resultado da arrogância ou imprudência dos governantes. No Tratado Político, o filósofo discute a monarquia, a aristocracia, a democracia mostrando as suas forças e fraquezas. Para que o regime político seja eficaz e se mantenha (o ensino vem de Maquiavel), é preciso que ele consiga se auto-regular, remediando os erros dos governantes e do povo. São desse tipo as medidas prudenciais que podem servir para a diminuição dos conflitos. No setor econômico Spinoza propõe a nacionalização do solo. “Nacionalização não significa coletivização. O que Spinoza diz é que a terra pertencerá ao Estado e que este a alugará aos particulares, os quais a explorarão individualmente e venderão os produtos no mercado. Eles serão locatários, não proprietários. A diferença é enorme. Assim será evitada a imobilização dos capitais na compra de terras” (Matheron). Deste modo, “o acesso ao solo será facilitado ao máximo. Mas será facilitado sob uma tal forma que a terra, deixando de ser objeto de um investimento financeiro, deixará ao mesmo tempo de ser objeto de um investimento afetivo” (idem). Note-se que a marcha do pensamento político de Spinoza vai da igualdade natural à igualdade jurídica com medidas de prudência que permitam sempre repor a igualdade. As medidas sobre a apropriação do solo marcam este ponto. A igualdade não é atribuida ao Estado e ao soberano de modo absoluto e total. “A oposição do ´direito de natureza´ (jus naturale) e da ´lei da natureza´ (lex naturalis), que constitui um dos núcleos da filosofia política hobbesiana (Leviathan, Cap. 14) é anulada por Spinoza. Neste, vida e razão, longe de se oporem, mutuamente se enriquecem”.(46)
Como vimos, o perigo de dissolução do Estado é mais interno do que externo, devendo-se sobretudo à imprudente arrogância dos dirigentes que rompem a igualdade civil e política em seu proveito. Como, para Spinoza, o princípio e fundamento da virtude e da vida é a força possuida por todos os indivíduos de conservar a si mesmos e se expandir, o regime que mais garante esta segurança e expansão é a democracia. “O Estado democrático é a resposta racional às necessidades naturais. Na sua constituição são determinantes quer a razão quer a natureza. Mas só com a razão se constrói uma verdadeira solidariedade, só ela estabiliza. Por ela percebemos que os diferentes poderes nada mais são do que manifestações parcelares de uma potência comum”. (47) Conditio sine qua non dessa forma de Estado é a idéia spinozana do divino e da natureza. Deus, ou natureza, é a substância única, com infinitos atributos, dentre os quais nós conhecemos a extensão e o pensamento (que nos constituem). Os atributos combinam-se de infinitos modos, o que é a nossa efetividade, pois somos indivíduos que existem naqueles atributos. Deus é imanente em toda a natureza e em nós. Não existe entre nós e Deus nenhuma transcendência e todos estamos —se fosse possível usar esta imagem— situados numa igual distância em relação à natureza comum e à divindade. A democracia é o regime mais natural porque não existe, nos vínculos entre a natureza e nós nenhuma hierarquia metafísica, ao modo grego, cristão ou judaico. Essa idéia da igualdade causou um abalo que persiste até hoje nas teorias políticas do Ocidente. Não por acaso o pensamento spinozano jaz sob as teses democraticas das Luzes. (48)
Ao contrário do pensamento que afirma a igualdade radical dos entes humanos, na perspectiva spinozana, as doutrinas cristãs ergueram um sistema hierárquico que postula a desigualdade como fundamento e alvo do político.Um dos maiores pilares do pensamento católico é Tomás de Aquino. Nele, a noção do universo como imensa hierarquia verticalizada que desce do Senhor, atravessa os arcanjos e anjos, chega aos sacerdotes e passa aos leigos poderosos para atingir os ínfimos da natura, define a doutrina cósmica e cívica, espinha dorsal do catolicismo religioso e político. Essa doutrina tem origem neo-platônica, em Dionisio o pseudo-areopagita. Deus encontra- se além de todos os nossos sentidos e apenas pelos intermediários entre Ele e nós recebemos as suas bençãos. A hierarquia encontra-se na mais funda determinação do ser. É o que diz o teólogo e filósofo Paul Tillich, ao citar em Dionísio o “sistema sagrado onde os graus referem-se ao saber e à eficácia”. E arremata o pensador : “Isto caracteriza todo o pensamento católico em grande extensão; ele não é apenas ontológico, mas também epistemológico; existem graus não apenas no ser, mas também no conhecimento”. (49) Há, neste sentido, uma via para cima e uma via para baixo da escala e cada ente encontra-se num lugar certo e determinado desde sempre. Deus está além de todos os nomes que a teologia lhe atribui, além do espírito, além do Bem, numa “indizível obscuridade”. Dada esta transcendência absoluta, a hierarquia celeste é a emanação de sua luz. Quanto mais próxima d´Ele, mais a entidade se ilumina, quanto mais distante, mais escura. Os homens não podem perceber a luz divina, porque ela é tão intensa que os cega. Assim, os intermediários angélicos são o caminho para o fulgor Eterno. A Igreja Católica exibe na sua forma de governo e de pensamento social este imaginário metafísico. (50) É impossível quebrar a escala hierárquica dos anjos aos homens. Trata-se de responder à pergunta central de todo pensamento político sobre a teodicéia: “Porque, se Deus fez todas as coisas, ele não as fez todas iguais?”. Agostinho apresentou a sua fórmula: non essent omnia, si essent aequalia (se todas as coisas fossem iguais, nada seriam). Cada coisa ocupa um lugar na escada dos seres, da mais humilde à excelsa.(51) A queda do arcanjo luminoso apenas destrói na aparência, jamais na essência, a ordem universal. Lúcifer engana-se e procura enganar os homens sobre o poder divino. Há um heliotropismo essencial no pensamento católico onde a hierarquia insere-se com perfeição. Embora cada ser tenha o seu lugar natural, os homens possuem o livre arbítrio (algo que trouxe lutas penosas para a Igreja, desde Agostinho até Jansenius e Pascal). Assim, retoma-se na Igreja a tese de Platão de que “o divino não é culpado” pelos nossos males. O mal não pode ser atribuído ao Absoluto. “Deus”, afirma Tomás de Aquino, “não quer que se faça o mal, nem quer que não se faça; o que Ele quer é permitir que se faça, e isto é bom” (Summa Theologia, 1 q. 19 a 9). O espelho terrestre foi embaçado pelo hálito pestilento do mal, mas pode ser limpo e resplandecer novamente. A criaturas atingem a perfeição no campo iluminado pelo brilho divino. No capítulo sobre a luz e a visão dos homens, Aquino refuta o simile entre os últimos e o morcego “que não pode ver o mais visível, o Sol, por causa precisamente do excesso de luz”.Os homens não nasceram para a lamentável escuridão e seu alvo é a perfeita alegria da vista: “como a suprema felicidade do homem consiste na mais elevada de suas operações, a do intelecto, se este nunca pudesse ver a essência divina, segue-se que o homem nunca alcançaria a felicidade, ou que esta é algo distinto de Deus, o que se opõe à fé (…) uma coisa é tanto mais perfeita, quanto mais se une ao princípio”. Assim, “os bem aventurados vêem a essência divina” (Summa 1 q. 12 a 1). Mas como pode o homem unir-se ao divino? Os anjos e a sua hierarquia, espelhada na hierarquia eclesiástica, dão a primeira resposta. A segunda (a que trouxe maiores violências no debate cristão, sobretudo entre os jansenistas e calvinistas) é explicitada por Tomás de Aquino: “é indispensável que, em virtude da Graça, seja-lhe concedido o poder intelectual e este acréscimo de poder é o que chamamos iluminação do intelecto, bem como chamamos luz ao objeto inteligível. Esta é a luz de que fala o Apocalipse referindo-se à sociedade dos bem aventurados que vêem a Deus, que a claridade de Deus a ilumina e graças a esta luz se fazem deiformes, isto é, semelhantes a Deus (idest Deo similes)” (Summa, 1 q. 12 a 5). Os entes humanos, pela Graça, tornam-se iguais a Deus na contemplação beatífica, na transcendência eterna. (52) A igualdade entre eles não é possível, visto que em cada um dos indivíduos humanos há uma relação especial com Deus mediata pela cooperação de cada um deles com a Graça divina, o que indica uma proximidade maior ou menor entre a consciência e Deus.
Para que possa existir visão divina, a luz deve ser percebida segundo graus, não de imediato. A doutrina sobre o poder político exige a tese dos graus de visibilidade contemplativa, o que prepara o óbice maior que se instala entre o pensamento católico e as modernas idéias democráticas sobre a igualdade, onde o divino transcendente é posto fora do trato político ou, como dizia Laplace a Napoleão Bonaparte quando este ao folhear o texto sobre a Mecânica Celeste, perguntou ao cientista sobre Deus: “Je n'ai pas eu besoin de cette hypothèse”. O tema da secularização cultural e política produziu oceanos de livros e não pode ser discutido aqui. Mas certamente é preciso analisar, quando falamos da igualdade, a quebra com os pressupostos religiosos aristocráticos e a nova ordem democrática que se instaura. Um dos comentários mais belos sobre o assunto foi realizado por Erich Auerbach sobre a Divina Comédia. A unidade daquele poema que sintetiza o pensamento ético cristão, “descansa sobre o tema geral, sobre o status animarum post mortem; este deve ser, como sentença divina final, uma unidade perfeitamente ordenada, tanto como sistema teórico, quanto como realidade prática e, portanto, também como criação estética; deve representar a unidade da ordem divina de uma forma ainda mais pura e atual do que o mundo terreno, ou algo que nele acontece, pois que o Além, ainda que inacabado até o Juízo Final, não apresenta, na medida em que o faz o mundo terreno, desenvolvimento, potencialidade e provisoriedade, mas é o ato completo do plano divino. A ordem unitária do Além, assim como Dant no-la apresenta, é tangível da maneira mais imediata como sistema moral, na repartição das almas nos três reinos e suas subdivisões: o sistema segue em tudo a ética aristotélico-tomista”. (53)
Spinoza e a Razão de Estado
Visto que o mundo europeu se expande no século 17, e que as fronteiras nacionais são melhor definidas pelos Estados, o problema da igualdade entre os cidadãos torna-se agudo. A hierarquia, a que define precedências no feudalismo e nos primeiros inícios do Estado, tomba a cada avanço do poder real. O poder assume uma nova ordem de referências e novos privilégios, todos referidos ao comando do Rei. Dos impostos à justiça, desta às normas legais, incluindo-se o poder militar e de polícia concentram-se no ministério que responde diretamente ao soberano. Embora renitentes, as formas aristocráticas cedem lugar à ascensão burguesa e inicia-se uma espécie de condominio do Estado pelos vários segmentos sócio-econômicos e políticos. Se o poder do rei é sinônimo de universalidade que abarca todos os particulares, coloca-se o problema da relativa distância de cada indivíduo ou setor em relação ao núcleo do poder. Desloca-se a hierarquia que se fundamenta no sagrado, o qual por sua vez sancionou, autorizou e exigiu as três ordens feudais (clero, nobreza, os comuns). Os nexos entre dirigidos e governantes se ordenam cada vez mais horizontalmente : quanto mais próximo da corte, mais influência, quanto mais distante, menor capacidade de influir. A hierarquia cede, lenta e seguramente, à distinção entre capital e provincia. Na primeira, instala-se a cabeça do Estado e o aparato diplomático, administrativo, militar, policial e intelectual (a máquina de propaganda do monarca). (54) Na segunda, fica a resistência à máquina do poder.
Tomemos um campeão do conservadorismo, Alexis de Tocqueville. Ele analisa o crivo da igualização crescente na França e na Europa como uma das marcas essenciais das Revoluções Francêsa e Americana. No Ancien Régime o Estado existe em parâmetros diferentes dos encontráveis na Idade Média. A realeza possui “outras prerrogativas, tem um outro lugar (…) é a administração do Estado que se amplia para todas as partes sobre os restos dos poderes locais; a hierarquia dos funcionários substitui sempre mais o governo dos nobres. Todos estes novos poderes agem segundo procedimentos e máximas que os homens da idade média não conheceram ou reprovaram, e que se relacionam a um estado de sociedade do qual não tinham sequer a idéia”. (55) Surge “a igualdade diante da lei, a igualdade dos cargos, a liberdade de imprensa, a publicidade dos debates, princípios novos ignorados pela sociedade medieval.” Trata-se de uma “nova ordem social e política, mais uniforme e simples, que tinha por base a igualdade de condições”. (56)
O poder real, para estabelecer seu poderio, enfrenta o poder dos municípios. Em quase toda a Europa, mas particularmente na França, a liberdade municipal, diz Toquecville, sobreviveu ao feudalismo. Em nações como a alemã e italiana, com caraceterísticas diversas, resistiram ao poder central várias cidades que eram pequenos Estados e cuja potência era maior ou menor conforme o jogo da guerra, da diplomacia, etc. Florença, cidade de Maquiavel, era uma cidade-Estado. O poder das urbes foi atenuado no feudalismo, sendo que alguns centros quase foram dissolvidos. Uma característica do Estado renascente é que ele encontra nas capitais e nas cidades maiores e mais ricas, seu ponto de apoio na reconquista de prerrogativas antes destinadas ao clero e aos nobres.
Tocqueville mostra o quanto foi importante para o centro do Estado sufocar a potência das cidades para impor a sua burocracia e a igualdade de todos diante do Rei. Mesmo no feudalismo, muitas cidades estratégicas mantiveram a prerrogativa de governar a si mesmas. Nelas, os magistrados eram eleitos, sendo responsáveis diante da população. A vida urbana é pública e ativa, as cidades se orgulham de seus direitos e são muito ciosas em relação a eles. (57) As eleições foram abolidas por volta de 1692. As funções municipais se transformaram nos offices, cargos vendidos pelo rei, em algumas cidades, a alguns habitantes para que governassem perpétuamente. Com o fim da liberdade, veio o sacrifício material. Afirma o autor que a transformação dos cargos, de eleitos para vendidos pelo rei, a primeira instituição a ser prejudicada, em detrimento dos cidadãos, foi a justiça. “A boa justiça”, diz Tocqueville, tem como condição “a completa independência do juiz”. Quando ela foi independente, foi possível encontrar responsabildiade, subordinação e zelo pela coisa pública. Os governos do monarca sabiam o quanto lhes seria prejudicial aplicar à sua administração a receita que impunham às cidades: seus cargos de intendentes e subdelegados nunca foram postos como ofícios venais.
Assim, “Luis XI restringiu as liberdades municipais porque seu caráter democrático lhe dava medo; Luis XIV as destruiu sem as temer. (…) Na realidade, eles queriam menos abolir tais liberdades, do que traficá-las e as aboliram foi, por assim dizer, sem pensar, por puro expediente financeiro”. O direito de eleger seus magistrados é vendido e arrancado das cidades pelos reis. Quando elas se acostumam às liberdades, o rei as retira, para revendê-las. E o rei confessa o fundamento fiscal desse comércio sem nenhum rubor. Diz o Edito de 1722 : “as necessidades de nossas finanças nos obrigam a buscar os meios mais seguros de aliviá-las”. (58) Tocqueville cita um Intendente que envia carta ao Controlador Geral em 1764: “Estou espantado com a enormidade das finanças pagas em todos os tempos para resgatar os ofícios municipais. O montante desta finança, empregada em obras úteis, seria proveitoso para a cidade que, pelo contrário, sentiu apenas o peso da autoridade e dos privilégios desses ofícios”. E finaliza Tocqueville: “Esta espécie de mercadoria se avilta cada vez mais, à medida que a autoridade municipal se subordina mais ao poder central”.
Enquanto ainda no século XV a Assembléia geral do municipio era composta por todo o povo, no fim do século XVII esta prática era rarefeita. No século XVIII o governo e as decisões estavam nas mãos dos notáveis, o povo se desinteressa pelos negócios municipais e “vive como estrangeiro no interior de seus próprios muros”. No século XVIII o governo municipal degenera em pequena oligarquia, “algumas familias conduziam neles os negócios, tendo em vista fins particulares, longe do olhar público e sem serem responsáveis diante dele: trata-se de uma doença espraiada por toda a França”. As cidades perdem a possibilidade de “impor concessões, decidir contributos, hipotecar,vender, disputar judicialmente, controlar seus bens, os administrar, empregar o excedentes de sua receita, sem ordens do conselho sob relatório do intendente. Todos os trabalhos são executados sob supervisão do conselho e aprovados por sua ordem”. Deste modo, os oficiais dos municipios, com os cargos comprados “sentem convenientemente o seu nada” diante do poder do Rei. “O último dos agentes reais, o sub-delegado os fazia obedecer aos mínimos caprichos. Com frequência, ele os multava; os aprisionava; pois as garantias que, em outros lugares, defendiam ainda os cidadãos contra o arbítrio, não mais existiam alí”.
Paro por aqui e assinalo que os capítulos seguintes do livro são importantes sobretudo para nós, os brasileiros, pois ele trata da independência do poder judiciário. Mas fiquemos no problema da igualdade. As urbes medievais eram assinaladas pela sua desigual força, poder, prerrogativas. O poder Estatal tentou igualizá-las, tornando-as centros desprovidos de força, venais, em favor do mando concentrado na capital. Os cidadãos que tinha direitos, desiguais mais direitos, passam a serem nutridos pelo castigo e pelas multas, além das taxas contra as quais não era possível recorrer. A burocracia real sufoca a independência dos municípios.
Passemos agora ao problema do mal no mundo humano. Os comentadores do século 20, entre eles Leo Strauss, Ernst Cassirer e outros, criticam Maquiavel por ter este tratado a ética e a política, com o mal no seu interior, “para usar as palavras de Spinoza, como se fossem linhas , planos, ou sólidos. Ele não ataca os principios da moralidade; mas ele não pode encontrar uso para eles na vida política”. (59) No caso de Spinoza, o problema do mal pode ser notado na Ética e, quando se trata do mal político, na Quarta Parte. (60) Interessa sublinhar que neste ponto da exposição, Spinoza trata ao mesmo tempo do antigo problema trazido pela noção de paradigma moral e político, ligados ambos à noção do que é perfeito e imperfeito, ruim e bom, certo e incorreto.
O que é a sociedade senão o vínculo de indivíduos humanos ? E o que são estes últimos senão um feixe complexo de paixões as mais diversas e conflitantes? Ao encarar tal jogo inextricável dos apetites humanos, filósofos como Platão empreendem estabelecer um governo das afecções pelo pensamento racional. Sigo agora as sugestões já antigas de Pierre Louis, num estudo precioso sobre as metáforas de Platão. (61) Segundo as Leis, a alma é anterior ao corpo (Leis, 892a, 896 b e c), deste modo ela naturalmente ela tem uma autoridade frente a ele, autoridade similar à do senhor diante do escravo. “Deus fez mais antiga a alma do que o corpo tanto pela idade quanto pela virtude de comandar como senhora, e o corpo para obedecer” (Timeu, 34 c). Interessa notar que o mando indicado no Timeu é de ordem despótica. O corpo é submetido à servidão (já o próprio título de Spinoza na Quarta Parte da Ética remete a este plano) e à obediência (Fedon, 80 a). Os prazeres do corpo são próprios ao que é servil (Fedro, 258 e). Isto estabelece uma hierarquia entre corpo e alma. E tal hierarquia não sendo respeitada, ocorre uma guerra permanente das afecções contra a alma despótica. A maior parte dos indivíduos são escravos do corpo (ou seja, são escravos de um escravo) (Fédon, 66 c d). Nesta passagem, afirma-se explícitamente que “as guerras, as dissenções, as batalhas, são trazidas pelo corpo e pelos seus desejos; pois é devido à posse das riquezas que se produzem todas as guerras, e, se nós somos obrigados a possuir riquezas, isto é por causa do corpo, somos como escravos prestes a serví-lo”. (62) O corpo é um peso que torna lenta a alma (Fedon, 81 c; Fedro 248 c, 256 b), como se fossem chumbo nela preso (República, 519 b).
Na dialética do senhor e do escravo, a alma está sujeita ao corpo por vínculos que a prendem (Fedon, 64 e, entre vários lugares). No Fedon, trata-se de cadeias de um prisioneiro enquanto no Timeu (73 d) são amarras de um navio. No Fédon, também, são pregos que fixam-na ou ainda no Fedro (250 c) são liames que ligam o corpo e a alma como a ostra é presa à sua crosta. Em especial, e isto possue relevância para que se pense a diferença entre platonismo e spinozismo, o corpo pode ser para a alma um túmulo (Górgias 493 a). Outras imagens menos sombrias são usadas por Platão, como a do corpo enquanto terreno no qual a alma semeia e se enraíza. O corpo pode ser comparado a um templo onde habita a alma, um ser divino (Leis, 869 b).
A psicologia que reside nessas imagens indica o sentido das metáforas platônicas sobre os embates ocorridos no ser humano, quando se trata das paixões. Platão distingue na parte irracional (alogiston) da alma dois instintos, a colera ou instinto de defesa (timoeidés) e o desejo (epitimétikon). Ela é um monstro triplo (República 588 c), sendo que o elemento irascível é comparado a um leão. Ainda na República (411 b) o timós representa os “tendões” da alma. Certas práticas imoderadas da música, podem afrouxá-los ou endurecê-los. Na mesma passagem, o timós é um metal que a música pode fundir. Finalmente, o timós é um fogo que pode ser extinto. Uma alma corajosa entregue sem medida à música torna-se rápida para encolerecer e lenta para diminuir seu ardor. (República, 411 c).
Junto ao leão, o timós, que não raro torna-se aliado da razão (República 440 b) a parte apetitiva da alma é uma besta fera e selvagem (tériodés te kai agrion), um bicho que é preciso nutrir, mas deixar bem preso. Neste campo, o desejo é comparado por Platão à fome ou sede. A democracia, lugar dos desejos irrefreados, é similar na sua sede de liberdade aos homens atendidos por péssimos servidores de vinho, os seus dirigentes. Nela, os cidadãos se embriagam de liberdade. Finalmente o desejo é comparado à uma corrente que carrega os homens. “Quando os desejos seguem violentamente rumo a um único objeto, sabemos, suponho, que eles têm menor força para tudo o mai, como uma corrente desviada numa só direção” (República, 485 d).
Quando se trata da questão do Mal, Platão também personifica os defeitos humanos. Na República, os defeitos são hóspedes que se instalam na alma do tirano como num albergue (580 a), enquanto a injustiça é um hóspede indesejável (367 a). A injustiça, o desprezo das leis, a desmesura são personalizadas na República (424 d, 610 e). O próprio Mal é um ser vivo correndo atrás dos humanos, mais rápido do que a morte (Apologia de Sócrates, 39 b). O malvado é uma fera selvagem, o filósofo no meio da multidão ignorante do bem é similar a um homem acuado por bichos ferozes (República, 496 d). Trasímaco é apresentado assim, antes de se jogar na discussão sobre a justiça e o direito do mais forte (República, 336 b-e). Na mesma República (588 b-e) a imagem é aplicada ao malvado, no sentido do monstro triplo. Conservar a calma é permanecer sóbrio (Fedro, 230 e). Quem perde o controle está bêbado de amor (Fedro, 240 e), de prazer (Critias, 121 a), de medo (Leis, 639 a-b). A alma serena é como um mar calmo (Fedon, 84 a). Mas tal calma é adquirida numa guerra contra os vícios. A virtude é um combate contra as paixões e os prazeres (Laches, 191 d).
Tendo-se em vista essas imagens do mal, pode-se passar ao problema do Estado (63), exposto como um organismo. Nas Leis, o Ateniense nota que um regime político, como um corpo, tem muitas ocasiões para se desagregar (945 c). O mundo político onde os cidadãos desrespeitam a justiça e a moral, é doente, e o malvado é uma peste (Protágoras, 322 d, República 552 c). A sociedade adoece quando mal governada, ou quando a discórdia a estraçalha. A grandeza de Atenas sob Péricles é descrita como um inchaço doentio (Górgias, 518 e 519 a, República, 372 a). Tal doença torna a sociedade fraca. Um máu governo é um corpo fraco, que o menor abalo externo basta para adoecer (República, 556 e). O legislador deve cuidar da saúde do corpo político, como um médico, para lhe dar ou conservar a saúde. Ou então, ele é o dirigente de um navio, um piloto, no meio das ondas causadas pelos outros Estados. Quando faltam os pilotos, os passageiros do Estado sentem a flutuação do mar e têm medo, insegurança. (Leis, 758 a).
Paremos essa resenha, baseada na exploração minuciosa de Pierre Louis, e retornemos ao texto spinozano. Embora Spinoza leve em conta os problemas apresentados por Platão (e pela ordem moral imperante no Ocidente), ele apresenta uma reversão perceptível de imediato no diagnóstico do Estado, do regime político, do mal e das afecções humanas. Sigamos a parte Quarta da Ética desde o começo.
Se Platão indica que a alma deve governar despóticamente os desejos, sendo estes últimos servos dela, quando indivíduos ou povos não dominam assim as suas paixões, eles se tornam escravos de escravos. Spinoza parece seguir o mesmo pensamento quando afirma ser a servidão humana a impotência para governar, ou moderar as afecções. Quando submetido às afecções, o homem não é sui iuris, não segue a sua própria lei (não é autônomo, diria um kantiano) mas obedece a Fortuna, cujo poder sobre ele é tal que o constrange a, mesmo vendo o melhor, seguir o pior.
Spinoza propõe-se, logo, explicar a causa desse estado em que o indivíduo, atônito, não consegue unir o que é melhor com a sua ação, mas obedece o pior mesmo ao ver o melhor. O “melhor” seria o que o tornaria sui iuris, o “pior” o que o joga na incerteza externa da Fortuna. Os leitores de Maquiavel percebem que os termos usados por Spinoza são extraídos da análise executada pelo Florentino sobre o poder, o problema da sua manutenção ou perda. Como analisar o mando político e o controle das paixões, sem discutir as teses tradicionais sobre a perfeição e a imperfeição do Estado e dos indivíduos, do bem e do mal que os ameaçam ou salvam ? Para entendermos todo esse movimento noético, recordemos o vínculo entre o mal e o poder, em Platão, como os apresentamos acima. É nuclear, para entendermos a política platônica a ser recusada por Spinoza, discutirmos a noção de paradigma.
"Paradigma" surge num campo da língua grega que se liga deiknumi, cujo sentido é "mostrar", "demonstrar", "indicar". Quando acrescido da partícula "para", significa "mostrar, fornecer um modelo". Termo importante na técnica dos oradores. (64) A raiz deik-, por sua vez, refere-se ao ato de "mostrar mediante a palavra", mostrar "o que deve ser", donde a conseqüência de união com dike a lei, a regra. (65) Uma interpretação do pensamento platônico, pelo menos em determinadas passagens, coloca o paradigma como ilustração de uma evidência sensível que remete para uma necessidade inteligível. (66)
A noção de paradigma cobre, na Antiguidade, os campos hoje distantes da ciência, da técnica, das artes. A filosofia deu-lhe vários estatutos, todos eles capitais para as atitudes éticas herdadas por nós. Na expressão grega, paradeigma tem a ressonância de modelo, exemplo, plano de arquiteto. Em Heródoto (5, 62), o termo é usado para indicar o esforço dos atenienses na construção do templo, em Delfos: "sendo muito ricos e, como seus pais, homens de reputação, eles trabalharam no templo para que ele tivesse uma forma mais bela do que a posta no paradigma". (67) O contexto dessa passagem de Heródoto é de luta política contra o despotismo. Nela, o elemento político une-se à ética e à estética.
Em Platão, o termo refere-se, entre vários reflexos semânticos, ao modelo do pintor. Na República (500e), Sócrates discute com Adimantos sobre o homem ético e sábio, cujo pensamento está fixado nas coisas eternas e verdadeiras. Um tal homem não tem lazer para inspecionar as mesquinharias dos indivíduos comuns mas dirige seus olhos para o eterno, com sua ordem imutável. Quanto mais admira as coisas eternas, mais ele se produz à sua semelhança e assimila a si mesmo a elas. Após várias considerações sobre o povo, e seu modo inconstante de viver e opinar, Sócrates retoma a tese de que, à semelhança do homem reto, a cidade apenas será feliz "se as suas linhas forem traçadas por artistas em pintura, os quais usam o paradigma celeste". (68) No mesmo diálogo, de 591c até 592b, lemos que o homem reto une à saúde física a justiça sapiente, operando de modo a estabelecer harmonia entre sua alma e seu corpo. Desse modo, ele será o músico verdadeiro, afastando a desmedida que impera na multidão, no relativo às riquezas. Ele enxerga a harmonia de sua alma, fuge do excesso ou da falta de bens. Tal homem fará, com prazer, em público ou em privado, tudo o que não dissolva o hábito (de hexis, donde "ética") de sua alma. Assim, ele não irá voluntariamente se misturar à política. Sua participação será dirigida para a cidade, não a de seu nascimento, mas a que é descrita na República, "cujo modelo (paradigma), talvez esteja no céu, para quem deseja contemplá-la e se tornar seu cidadão. Mas não faz diferença alguma se ela existe agora ou se ela está sempre se tornando. A política dessa cidade sempre será apenas dele, e de nenhum outro". E assim termina o livro 9 da mais eminente obra sobre ética e política de nossa cultura. No trecho, encontramos vinculados exemplos das artes, da música entre outras, com a busca da medida ética e cívica. Platão julga ser necessário forçar o homem reto e sábio a se comprometer com a vida política, mesmo que ele, voluntariamente, respire melhor na celeste harmonia.
No Timeu, o filósofo distingue, na teorização do universo, o que sempre é e não tem devir e o que está em devir e nunca é. O primeiro pode ser captado pelo pensamento com a ajuda da razão, pois é idêntico a si mesmo, enquanto o outro é conjecturável pela opinião com a ajuda da sensação desprovida de razão, pois é gerada e perece. Aliás, tudo o que nasce deve necessariamente nascer de uma causa, pois nada pode, sem causa, nascer. Assim, pois, quando o operário (demiurgo) que forma um objeto, com os olhos fixos no imutável, toma um modelo (paradigma) desse tipo, aquele objeto, executado desse modo, deve necessariamente ser belo; mas sempre que ele olha para o que vem à existência e usa um modelo (paradigma) produzido, o objeto assim executado não será belo (28 a-c). E Platão passa a discutir o Demiurgo ou Pai do cosmos, interrogando "qual modelo (paradigma) foi usado pelo Arquiteto para construí-lo? Foi o que é sempre idêntico a si mesmo e uniforme, ou segundo o que vem à existência? Ora, se o cosmos é belo e seu construtor é bom, é claro que ele fixou os olhos no que sempre é". Portanto, "ele construiu o cosmos segundo o modelo do perceptível pelo pensamento e pela razão, e, pois, é idêntico a si mesmo". (69)
Segundo Henri Martin, a presença constante do termo "paradigma" reforça a interpretação do pensamento platônico segundo a qual, para ele, com exceção de uma só essência, a indivisível e imutável, todas as demais essências das coisas nada oferecem de estável, sendo, portanto, estranhas ao domínio da ciência. O demiurgo, o fabricante do cosmos a partir das idéias que ele contempla, e da matéria preexistente, é descrito no Timeu em várias formas de trabalho técnico e artístico. Ele é um modelador de cera, um operário que recorta a madeira, um construtor que sintetiza todos os elementos, um fabricante (poietés). (70) Nem é preciso recordar a polissemia de poietés, no transcurso da história ocidental. Fala-se muito do ódio platônico aos artistas. Mas não se toma em suficiente conta as expressões da beleza no artifício chamado cosmos, resultado de um trabalho artístico. Conhecemos os lugares comuns da história da filosofia sobre Platão, "inimigo das artes" e defensor da ciência. Todas as modernas objeções à teoria platônica da arte estão centradas na assertiva de que o seu racionalismo o impede de reconhecer o caráter específico da criação artística. Ele é acusado de modelar a arte segundo a ciência, a qual deve copiar a natureza do modo mais verdadeiro possível. Diz-se ter ele esquecido que a arte verdadeira não copia uma realidade existente, mas cria uma nova realidade que brota da fantasia própria ao artista, e que o caráter espontâneo dessa expressão garante o valor independente das puras qualidades estéticas. Não irei ampliar este ponto, bem discutido por W.J. Verdenius. (71)
Hans-Georg Gadamer, analisa o Timeu e retoma a idéia de Platão de que o paradigma deve ser único, porque ele serve ao demiurgo para moldar o universo, o qual tudo inclui em si mesmo. Entre o paradigma e as suas cópias, estas são múltiplas, haveria uma diferença importante. Sobretudo após a moderna hegemonia romântica, que potenciou o cristianismo, para o qual o universo é criado por Deus a partir do nada, (72) foi desvalorizado o difícil trabalho do "poeta" demiurgo, que luta com a matéria rebelde e fluente para construir um artefato. O mundo da arte, como o da religião, invoca um Deus onipotente, o qual "cria" o universo ex nihilo. Essa idéia, aplicada ao gênio romântico, afastou os termos "modelo", "imitação", e outros, essenciais no argumento platônico.
De Platão aos nossos dias, encontramos nas teorizações sobre a natureza, a sociedade, o homem, paradigmas extraídos especialmente do nosso próprio corpo, ou dos instrumentos por nós produzidos. Ou projetamos o cosmos e o social como imenso corpo, e ampliamos ao máximo o modelo do organismo, ou ideamos o universo na figura de refinada máquina, construída por um demiurgo, cujo ato devemos repetir. À linhagem mecânica, de Platão a Hobbes e aos philosophes das Luzes, contrapõe-se a seqüência orgânica, seguindo de Aristóteles aos estóicos, e deles aos românticos. Evidentemente, nenhum desses paradigmas foi utilizado, sempre, de modo unívoco ou sem "contaminações", pelo seu oposto. Nem tudo em Aristóteles é "orgânico". Georges Canguilhem mostra as dificuldades encontradas, nesse sentido, para se definir uma ou outra perspectiva. (73)
No Renascimento teve enorme impulso o paradigma instrumental, mecânico, o que repercutiu até no século XX. Entre inumeráveis exemplos, tomemos o do matemático Henri de Monantheuil, que apresentou, na trilha do Timeu, Deus como um mechanikos e mechanopoios, com o resultado de que o mundo seria "a máquina mais eficaz, sólida e bela de todas as máquinas" (Mundus enim hic machina est, quidem machinarum maxima, efficacissima, firmissima, formosissima). (74)
Mas voltemos a Platão, e ao nexo entre paradigma e conceito. Como vimos, o paradigma abarca figuras instrumentais, ofícios, técnicas, para tentar uma aproximação da realidade. Naquela palavra, temos uma gama de ressonâncias plásticas, científicas, jurídicas, éticas. Nos próprios textos platônicos, especialmente no Timeu, toda a imagética mecânica não exclui figuras de ordem vital. (75)
Passada a inspeção do conceito de paradigma, voltemos ao texto da Quarta parte da spinozana. O filósofo toma como fio condutor de sua análise das afecções e da ordem política, tendo como foco o problema do mal, o fato da produção técnica e artística segundo paradigmas. “Quem faz uma coisa e a terminou diz que ela está perfeita. E não apenas ele, mas todos os que tiverem conhecimento exato da intenção do autor de tal obra e o seu fim, ou que acredita ter semelhante conhecimento. Por exemplo: se alguém enxerga uma obra não acabada e sabe que o fim do seu autor é construir uma casa, dirá que a casa está imperfeita. Dirá no entanto que está perfeita, quando perceber que a obra chegou ao fim que o autor queria efetivar. Mas se alguém vê uma obra, nunca tendo visto coisa igual e desconhecendo o fim do do artista (opificis), não poderá saber se a obra está perfeita ou imperfeita.”. Ética.
A raison d´État, portanto, encontra-se na urgência de ser refeita a máquina da instituição política, segundo os seus interesses próprios e nunca segundo os interesses de outros engenhos estatais. "A força para conservar a si mesmo é o supremo e único fundamento da virtude" (Ética). O que vale para os indivíduos, impera nos Estados. A razão, no caso, é a forma e o ato pelos quais um povo, caso o regime seja democrático, alguns dirigentes em caso de aristocracia ou oligarquia, ou um monarca cuida de conservar intacto o mecanismo e a força do Estado em seu proveito, durante o maior tempo possível. Todas as astúcias podem e devem ser movidas neste empenho, desde que não sejam colocadas contra o povo. A raison d´État, no sentido spinozano, difere portanto das outras doutrinas sobre o tema, mas continua fiel à lógica maquiavélica, repúblicana. A novida é que ela é democrática. Se isto é algo possível, ainda estamos longe de concluir, positiva ou negativamente. Pelo que parece, o movimento da racionalidade estatal contemporânea segue mais rumo à desrazão, do que à razão de Estado.
Notas
(1) “A transparência democrática, esperanças e ilusões” in O Caldeirão de Medéia (São Paulo, Editora Perspectiva, 2001).
(2) Cf. “Institutio arcanae. Théorie de l´institution du secret et fondement de la politique”. In Lazzeri, Christian, e Reynié, D. : Le pouvoir de la raison d´état. Paris, PUF, 1992, pp. 135 e ss.
(3) O termo e o plano político aberto por ele foi exaustiva e profundamente estudado por Claude Lefort, Machiavel, le travail de l´oeuvre, Paris, Gallimard, 1973.
(4) René de Criziers, Le Tacite français avec des réflexions chrétiennes et politiques sur la vie des rois de France. Paris, 1648, citado por Goni, p. 139.
(5) Análise de A. Lévy, “Évaluation étymologique et sémantique du moto `secret`. in Du secret. Nouvelle revue de psychanalise. 14, 1876. Goni, p. 137.)
(6) Cf. “A razão terrorista”, in Mosaico, Revista da Fundação João Pinheiro, fevereiro de 2002, incluído acima nesta coletânea.
(7) Edição italiana de Giovanni Macchia: Breviario dei Politici, secondo il Cardinale Mazzarino. Milano, Rizzoli Ed., 1981.
(8) Cf. Curtius, E. : La littérature et le moyen âge latin. Paris, PUF, 1956, p. 219.
(9) Analiso extensamente este ponto num capítulo de meu livro Lux in Tenebris, intitulado “Massa, poder e morte”. São Paulo, Ed. Unicamp, 1987, pp. 23 e ss. Quanto aos textos sobre a escrita secreta, é possível consultar alguns escrito na internet, como o Steganographia de João de Trittenheim . Cf. http://www.esotericarchives.com/tritheim/stegano.htm
(10) Cf. Torture and Truth. London, Routledge Ed., 1991.
(11) Roberto Romano, O Caldeirão de Medéia. pp. 139 e ss. em especial pp. 140-141.
(12) Cf. Lazzeri, Christian e Reynié, Dominique: “Introduction” ao livro La raison d´Etat: politique et rationalité. Paris, PUF, 1992, pp. 9 e ss.
(13) Lembro apenas três textos fundamentais para se entender uma parte deste rico pensamento: o volume de Laurent Thirouin, Le hasard et les règles. Le modèle du jeu dans la pensée de Pascal. Paris, Vrin, 1991, e o pequeno grande livro de Gerard Lebrun, BlaisePascal, Coleção Encanto Radical, São Paulo, Brasiliense, 1983, além do clássico de Sainte Beuve, Port Royal, Paris, Gallimard. 3 volumes.
(14) Cf. Brès, Yvon. La Psychologie de Platon, Paris, PUF, 1973. sobretudo pp. 362 e ss. Brès comparar a técnica platônica à dos “persuasores escondidos”, que operam no mercado econômico e político de nossos tempos. Cf. Vance Packard, The Hidden persuaders, NY, David and Co., 1957. Tradução francesa : La persuasion clandestine, Paris Calman Levy, 1958.
(15) Cf. Barnes. H. E. e Becker, H. : Historia del Pensamiento Social. trad. Vicente Herreo, Mexico, FCE, 1945, V. I. pp. 311 e ss.
(16) Uso a edição de C. Edward Rathé, Anti-Machiavel, Droz, Genève, 1968.
(17) Cf. Viroli, Maurizio. Machiavelli (Oxford University Press, 1998), p. 49. Viroli cita Guicciardini, no Diálogo sobre o Governo de Florença. Importante também a nota do mesmo Viroli sobre a idéia de Estado em Maquiavel, segundo os comentadores de hoje: “O significado da palavra stato foi discutido em vasta literatura acadêmica. Em contraste com a opinião de Francesco Ercole, La politica di Machiavelli ( Rome: ARE, 1926), 123-42, Fredi Chiappelli afirma que ´no Principe,o genuino tratado político de Maquiavel, a palavra stato denota, com poucas exceções, a organização política do povo sobre um território independente da forma particular de governo ou regime —ou seja, a moderna noção abstrata de Estado; ver Studi sul linguaggio di Machiavelli ( Florence: Le Monnier, 1952), 59-68. Uma opinião oposta é sugerida por Jack H. Hexter, o qual sustenta que o Principe não contem a concepção do Estado como um corpo político abstrato que transcende os indivíduos que o compõe ou governam; cf. The Vision of Politics on the Eve of the Reformation: More, Machiavelli, and Seyssel ( New York: Basic Books, 1973), 150-78. Cf. também Quentin Skinner, "'The State'", in Terence Ball, James Farr, and Rusell L. Hanson (eds.) Political Innovation and Conceptual Change ( Cambridge: Cambridge University Press, 1989), 90-131.” Viroli, Machiavelli, nota 33, op. cit.
(18) Della ragion di Stato, Veneza, 1589.Cf a edição sob os cuidados de Chiara Continisio, Roma, Donzelli Editore, 1997. Cf. também M. Senellart, Machiavélisme et raison d´Etat, Paris, PUF, 1989.
(19) Sobre a história dessas aproximações entre Maquiavel e a Companhia de Jesus, leia-se Michel Leroy, Le Mythe Jésuite. De Béranger à Michelet. Paris, PUF, 1992. Também, Basançon, Alain: Les origines intellectuelles du léninisme. Paris, Calman Lévy, 1977.
(20) Roberto Romano : Brasil, Igreja contra Estado, SP, Kayrós, 1979.
(21) Roberto Romano. Conservadorismo romântico origem do totalitarismo. SP, Ed. Unesp 1997 (1a ed. SP, Brasiliense, 1981) e Roberto Romano, “O pensamento conservador” in O Caldeirão de Medéia, SP, Perspectiva, 2001, pp. 247 e ss.
(22) Cf. Watt, John A. : The Theory of Papal Monarchy in the Thirteenth Century. The contribution of the canonists. NY, Fordham University Press, 1965. Também Robinson, I.S. The Papacy, 1073-1198. Continuity and Innovation. NY, Cambridge University Press, 1993. Também Tellenbach, G. The Church in Western Europe from the tenth to the early twelfth century. NY, Cambridge, 1996. Cf. Roberto Romano “Igreja domesticadora de massas?” e “Lembra-te de que és homem: governantes e juízes no Policraticus de Jean Salisbury”, in O Caldeirão de Medéia. ed. cit.
(23) Cf. As teses desenvolvidas a partir de agora devem-se a Alexandre Matheron, especialista na filosofia política spinozana, em escrito longo e rigoroso coletado no livro de Christian Lazzeri e Dominique Reynié: La raison d´État, politique et rationalité (Paris, PUF, 1992).
(24) “Denique quia omnes homines, sive barbari sive culti sint, consuetudines ubique iungunt et statum aliquem civilem formant, ideo imperii causae et fundamenta naturalia non ex rationis documentis petenda, sed ex hominum communi natura seu conditione deducenda sunt, quod in sequenti capite facere constitui.”
(25) “Concludo itaque, communia illa pacis vitia, de quibus hic loquimur, nunquam directe, sed indirecte prohibenda esse, talia scilicet imperii fundamenta iaciendo, quibus fiat, ut plerique, non quidem sapienter vivere studeant (nam hoc impossibile est), sed ut iis ducantur affectibus, ex quibus reipublicae maior sit utilitas. Atque adeo huic rei maxime studendum, ut divites si non parci, avari tamen sint. Nam non dubium est, quin, si hic avaritiae affectus, qui universalis est et constans, gloriae cupidine foveatur, plerique rei suae sine ignominia augendae summum ponant studium, quo honores adipiscantur et summum dedecus vitent.”.
(26) “Unaquaeque res, quantum in se est, in suo esse perseverare conatur”. Ética, Tradução Aphhun, páginas 260-261 e portuguêsa, página 275.
(27) “Quicquid Corporis nostri agendi potentiam auget, vel minuit, juvat vel coercet, ejusdem rei idea Mentis nostrae cogitandi potentiam auget vel minuit, juvat vel coercet”.
(28) Escólio da proposição: “entendo por alegria a paixão pela qual a mente passa a uma perfeição maior, por tristeza a paixão pela qual a mente passa a uma perfeição menor.” (Aphhun, páginas 266-267 e seguintes ; portuguêsa página 278 e seguintes).
(29) Faço, nas passagens acima, uma paráfrase do próprio Spinoza. Cf. Apphun, páginas 162-163.
(30) Escólio: “Esta imitação (imitatio) das afecções, quando ocorre diante de uma tristeza, chama-se comiseração, mas quando diante de um desejo, torna-se emulação, que nada mais é do que o desejo de uma coisa, engendrado em nós por termos imaginado que outros seres similares a nós têm dela o desejo.”
(31) “ Hoc ius, quod multitudinis potentia definitur, imperium appellari solet. Atque hoc is absolute tenet, qui curam reipublicae ex communi consensu habet, nempe iura statuendi, interpretandi et abolendi, urbes muniendi, de bello et pace decernendi, etc. Quod si haec cura ad concilium pertineat, quod ex communi multitudine componitur, tum imperium democratia appellatur, si autem ex quibusdam tantum selectis, aristocratia, et si denique reipublicae cura et consequenter imperium penes unum sit, tum monarchia appellatur.”
(32) “Praeterea certum est, unumquemque malle regere, quam regi. “Nemo enim volens imperium alteri concedit(…) Ac proinde patet, quod multitudo integra nunquam ius suum in paucos aut unum transferet, si inter ipsam convenire possit, nec ex controversiis, quae plerumque in magnis conciliis excitantur, in seditiones ire. Atque adeo multitudo id libere tantummodo in regem transfert, quod absolute in potestate ipsa habere nequit, hoc est, controversiarum diremptionem et in decernendo expeditionem. Nam quod saepe etiam fit, ut rex belli causa eligatur, quia scilicet bellum a regibus multo felicius geritur, inscitia sane est, nimirum quod, ut bellum felicius gerant, in pace servire velint; si quidem pax eo in imperio potest concipi, cuius summa potestas sola belli causa in unum translata est, qui propterea virtutem suam et quid omnes in ipso uno habeant, maxime in bello ostendere potest; cum contra imperium democraticum hoc praecipuum habeat, quod eius virtus multo magis in pace, quam in bello valet. Sed quacumque de causa rex eligatur, ipse solus, ut iam diximus, quid imperio utile sit, scire nequit; sed ad hoc, ut in praeced. art. ostendimus, necesse est, ut plures cives consiliarios habeat…”
(33) TP, III/9 : “Tertio denique considerandum venit, ad civitatis ius ea minus pertinere, quae plurimi indignantur. Nam certum est, homines naturae ductu in unum conspirare, vel propter communem metum vel desiderio damnum aliquod commune ulciscendi; et quia ius civitatis communi multitudinis potentia definitur, certum est, potentiam civitatis et ius eatenus minui, quatenus ipsa causas praebet, ut plures in unum conspirent. Habet certe civitas quaedam sibi metuenda, et sicut unusquisque civis, sive homo in statu naturali, sic civitas eo minus sui iuris est, quo maiorem timendi causam habet”
(34) “[…] tradenda est via et methodus, qua res, quae sunt cognoscendae, tali cognitione cognoscamus. Quod ut fiat, venit prius considerandum, quod hic non dabitur inquisitio in infinitum ; scilicet ut inveniatur optima methodus verum investigandi, non opus est alia methodo, ut methodus veri investigandi investigetur ; et ut secunda methodus investigetur, non opus est alia tertia, et sic in infinitum. Tali enim modo nunquam ad veri cognitionem, imo ad nullam cognitionem perveniretur. Hoc vero eodem modo se habet, ac se habent instrumenta corporea, ubi eodem modo liceret argumentari. Nam ut ferrum cudatur, malleo opus est, et ut malleus habeatur, eum fieri necessum est ; ad quod alio malleo, aliisque instrumentis opus est, quae etiam ut habeantur, aliis opus erit instrumentis, et sic in infinitum ; et hoc modo frustra aliquis probare conaretur, homines nullam habere potestatem ferrum cudendi. Sed quemadmodum homines initio innatis instrumentis quaedam facillima, quamvis laboriose et imperfecte, facere quiverunt, iisque confectis alia difficiliora minori labore, et perfectius confecerunt, et sic gradatim ab operibus simplicissimis ad instrumenta, et ab instrumentis ad alia opera, et instrumenta pergendo eo pervenerunt, ut tot et tam difficilia parvo labore perficiant, sic etiam intellectus vi sua nativa facit sibi instrumenta intellectualia, quibus alias vires acquirit ad alia opera intellectualia, et ex iis operibus alia instrumenta seu potestatem ulterius investigandi ; et sic gradatim pergit, donec sapientiae culmen attingat.”
(35) Tratado Teológico-Político, Capítulo 17. Oeuvres complètes de Spinoza, Paris, Gallimard (La Pleiade), 1954. No caso desta citação, cf. p. 905.
(36) Para a história e os fundamentos gregos da igualdade, cf. Ada Neschke-Hentschke: Platonisme Politique et Droit Naturel. Contributions à une archéologie de la culture politique européenne. Louvain/Paris, Édtions de l ´Institut Supérieur de Philosophie, Université Louvain-la-Neuve, 1995.
(37) Cf. Carta a Jarig Jelles (02/06/1674). Ed. cit. p. 1286.
(38) “Spinoza considera cada indivíduo como tendo transferido todos o seu poder e portanto omne jus suum, à comunidade, a qual possui absoluto poder sobre todos os homens (Tratado Teológico-Político, capítulo 16, Tratado Político, capítulos 3 e 4). Mas a autoridade do Estado é limitada pelo menos pela lei natural com seu próprio poder. Não pode ser o caso realmente de nenhuma ordem, nem pode o dirigido realmente transferir tudo, porque ele permanece homem, um ser espitirual e moralmente livre. Mais especialmente, o indivíduo reserva para si mesmo o poder de pensar o que gosta e expressar suas opiniões oralmente ou por escrito. Mas onde o poder de Estado acaba, acaba também o seu direito; e a razão, que sempre considera seu próprio interesse, impele o Estado a limitar a si mesmo, para que ele não perca o seu poder, e o seu direito, devido à resistência. Nesta via o Estado consegue um conhecimento do ´ditado da razão´ —o seu verdadeiro objeto não é a dominação, mas a liberdade (Tratado Teológico-Político, capítulos 16, 17,).
(39) Este e outros importantes textos do autor podem ser encontrados no Foglio Spinoziano Cf. http://www.fogliospinoziano.it/articoli.htm
(40) Lucia Nocentini in http://www.fogliospinoziano.it/ethica_bull.htm. Retomo aqui, literalmente, os passos de meu artigo “A igualdade, considerações críticas”, publicado no Foglio Spinoziano e na Revista Brasileira de Direito Constitucional.
(41) Nocentini cita Matheron: “Nenhuma diferença, por conseguinte, entre as leis jurídicas e as leis físicas: umas e outras são as regras uniformes pelas quais se exprime a vida de uma essência individual (…) o imperium, não mais do que o homem, não é império num império; mas, como o homem, e como não importa qual ser, ele constitui uma totalidade fechada em si e dotada, por esta razão, de uma autonomia relativa (…) compreendemos, assim, as relações entretidas pelo indivíduo humano com o indivíduo Estado onde ele se itegra. Estas relações são duplas. De uma parte, os súditos são a causa imanente da sociedade política (…) Este movimento ascensional pode se efetuar mais ou menos bem, mas sua parada completa significaria a destruição do corpo social. Se o Estado existe, em definitivo, é apenas na medida em que os seus membros o desejam; que eles deixem de aceitá-lo, e logo ele desaparecerá. Mas de outro lado, o Estado, uma vez produzido, apresenta se aos súditos sob a forma da transcendência (…)Transcendência e imanência (…) devem achar um justo equilibrio. Tal é o papel das instituições (…) Um excesso de imanência nos conduziria ao estado de natureza. Um excessso de transcendência igualmente, pois ele significaria tirania, descontentamento e revolta”. Cfr. A. MATHERON, Individu et communnauté chez Spinoza, Paris, Les Editions de Minuit, 1969, pp. 348, 350. O debate sobre o “maquiavelismo” de Spinoza consome imensos rios de tinta. Para uma discussão recente, leia-se Paolo Cristofolini, 'Spinoza e l’acutissimo fiorentino' (2001) publicado na internet: http://www.fogliospinoziano.it/artic9b. Veja -se a consideração crítica deste trabalho em Wim Klever: “Imperium Aeternum. Spinoza‘s Critique of Machiavelli and it‘s source in Van den Enden”, mesmo endereço eletronico.
(42) Cf. Matheron A. op. cit. p. 143. As ilações que faço a seguir são retomadas totalmente deste comentador.
(43) Cf. Laux, Henri: Imagination et Religion chez Spinoza. La potentia dans l ´Histoire. Paris, Vrin, 1993.
(44) É banal entre os comentadores de Hobbes a análise centrada nesse ponto batido, muito batido na política do filósofo. No Brasil, leia-se o texto de Renato Janine Ribeiro, Ao leitor sem medo, SP. Brasiliense, 1984.
(45) Matheron, p. 145.
(46) Maria Luisa Ribeiro Ferreira, op. cit. p. 504.
(47) Idem, ibid. p. 517.
(48) Cf. Verniere, Paul. Spinoza et la pensée francaise avant la revolution, (Paris, PUF, 1954).
(49) Esta certeza foi enunciada de maneira peremptória por Jacques Maritain em sua obra maior intitulada Distinguer pour unir, les degrés du savoir. Sobre este eminente autor, cf. Roberto Romano, “Maritain filósofo dos matizes” in Corpo e Cristal, Marx romântico (RJ, Ed. Guanabara, 1987), pp. 141 e ss.
(50) Estudo há bom tempo esta doutrina hierárquica. Considero os seus detalhes desde a minha tese de doutoramento sobre a Igreja e a política (Cf. Roberto Romano, Brasil: Igreja contra Estado, SP, Kayrós Ed. 1979). Ainda julgo insuficientes os elementos teóricos para publicar um livro sobre o tema. Mas penso que ele é essencial para se entender os pressupostos da política católica, tanto no interior quanto no relacionamento da Igreja com a sociedade civil e política. Desde Lorenzo Valla, o estudo desse autor foi modificado, a partir do seu próprio nome. A partir das análises filológicas de Valla, a lenda que envolveu a suposta presença de Dionisio no areópago, quando Paulo de Tarso pregou aos incrédulos gregos o Cristo. Todo o tema é difícil e fascinante, mas não posso desenvolver, aqui, os seus meandros. Os leitores que desejem informações sobre o assunto, leiam os textos do próprio Dionísio. Uso para os fins deste trabalho a edição dirigida por Maurice de Gandillac, Oeuvres complètes du Pseudo-Denys, l´Aréopagite (Paris, Aubier, 1943), e também a edição magistral da Hierarquia Celeste (Cf. Roques, René, Heil, Günter, et Maurice Gandillac : Denys l ´Aréopagite, L´Hierarchie céleste, Paris, Cerf, 1958). Para uma síntese compreensiva do problema, cf. Paul Tillich : A History of Christian Thought. From its Judaic and Hellenistic Origins to Existentialism (NY, Touchstone Book, 1967).
(51) Ainda hoje um livro sugestivo é o escrito por Arthur O. Levejoy: The Great Chain of Being (Cambridge, Harvard University Press, 1936 e 1964). Para o assunto tratado neste ponto de minha exposição, cf. o capítulo III, “The chain of being and some internal conflicts in medieval thought”, pp. 67 e ss.
(52) Uma análise mais ampla desta problemática é feita por mim em trabalho já antigo : Cf. “Lux in Tenebris. Franciscanos e Dominicanos, utopia democrática”, in Lux in Tenebris. Meditações sobre Filosofia e Cultura. SãPaulo, Unicamp Ed., 1987, pp. 31 e ss.
(53) Cf. “Farinata e Cavalcante” in Mimesis. A representação da Realidade na Literatura Ocidental. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971, pp. 161-162.
(54) Cf. Burke, Peter : A fabricação do Rei. A construção da imagem pública de Luis XIV. (RJ, Zahar Ed., 1994).
(55) Cf. L´Ancien régime et la Révolution (Paris, Gallimard, 1967), páginas 77-78.
(56) Op.cit. páginas 78- 80.
(57) Op. cit. capítulo III: “Comment ce qu´on appelle aujourd´hui la tutelle administrative est une institution de l ´ancien régime”, página 110 e seguintes.
(58) Na Regência de Filipe d´Orleans, com o caixa vazio, o primeiro ministro nomeado em 1722, Cardeal Dubois, tentou todo tipo de artificio para encher os cofres reais. Entre outros, estavam as artimanhas ficanceiras de Law, que desejou instalar o monopólio das finanças e do comércio para o Estado, cujos lucros diminuiriam as dívidas reais. Em 1716, foi criado o Banco Geral (Banque Générale) com capital predominante do governo francês. Mais tarde, criou-se o Banco Real (Banque Royale), com notas garantidas pelo rei. Um empreendimentos de Law era a Companhia Perpétua das Indias (1719). Toda a sua operação dependia dos negócios da Louisiana, cuja força foi super-dimensionada por Law e por seus propagandistas. Com a especulação, as ações da companhia subiram ao máximo mas em 1720 houve a desconfiança do mercado, caindo as ações em 1720. O Estado quase faliu.
(59) Cf. Cassirer, Ernst: The Myth of the State (New Haven/London, Yale University Press, 1956), página 143.
(60) “Da servidão Humana, ou da força das afecções”.
(61) Cf. Louis, Pierre: Les Métaphores de Platon. (Rennes, Imprimeries Réunies, 1945), páginas 113 e seguintes. Todas as indicações que faço a seguir derivam desta fonte.
(62) Uso a tradução do Fedon proposta por Leon Robin: Oeuvres Complètes de Platon (Paris, Gallimard, Ed. Pléiade, 1950), Volume I, página 778.
(63) Sigo sempre o comentário de Pierre Louis, sem nada acrescentar nestes passos.
(64) Cf. Chantraine, P. : Dictionnaire étymologique de la langue grecque (Paris, Klinksieck, 1983), página 257.
(65) Cf. Benveniste, E. : Vocabulario de las instituciones indoeuropeas. (Madrid, Taurus, 1983), páginas 301 e 303.
(66) Cf. Goldschmidt, V. : Les dialogues de Platon. Structure et methode dialectique. (Paris, PUF, 1947), página 207.
(67) Cito segundo a tradução de A.D. Godley, na Loeb Classical Library: Herodotus (Cambridge, Harvard University Press, 1971), Volume III, páginas 66 e 67.
(68) Sigo a tradução de P. Shorey na Loeb Clasical Library, Plato in 12 volumes, The Republic, T.VI, II, páginas 68 a 71.
(69) Cito segundo a tradução de H. Martin: Le Timée de Platon (Paris, Vrin, 1981), págnas 82 a 85.
(70) Cf. Brisson, L. : Le Même et l ´Autre dans la structure ontologique du Timée de Platon (Paris, Klincksieck, 1974), página 31 e seguintes.
(71) “Plato´s doctrine of artistic imitation” in Vlastos, Gregory: Plato. A collection of critical Essays. Ethics, politics, and philosophy of art and religion. Volume 2, (Notre Dame, University Press, 1971), página 259 e seguintes.
(72) A operação mental cristã, baseada no platonismo médio (inaugurado no primeiro século antes de Cristo por Antíoco, e desenvolvido em sentido místico por Numenius), extrai certos elementos do texto platônico, deixando outros na sombra. No caso do Timeu, sobretudo de 28c, trecho que estamos apreciando, há um deslizamento semântico, quando se vai do texto platônico aos padres da Igreja. "Em Platão, o texto designa o Demiurgo, distinto do Bem. Ora, o médio platonismo identifica um e outro: o Deus criador é o Deus supremo". Clemente de Alexandria, padre apologeta, atribui ao filósofo grego a crença "na criação do mundo ex nihilo". Cito Jean Daniélou: Message évangélique et culture hellénistique. (Tournai: Desclée & Co., 1961), página 104 ss.
(73) “Devemos, na realidade, fazer descer até Aristóteles a assimilação do organismo a certa máquina (...) Aristóteles encontrou, na construção das máquinas de guerra, como as catapultas, a permissão de assimilar a movimentos mecânicos automáticos os movimentos dos animais. (...) Ele assimila efetivamente os órgãos do movimento animal aos `organa', ou seja, partes de máquinas de guerra, por exemplo, o braço de uma catapulta que vai lançar o projetil (...) Ele foi fiel, neste ponto, a Platão, o qual, no Timeu, definiu o movimento das vértebras como se fossem os de gonzos". Cf. Canguilhem, G. "Machine et organisme", in: La connaissance de la vie (Paris.Vrin, 1980) páginas 107-108.
(74) Henricus Monantholius: Aristotelis mechanicam Graeca emendata, latina facta, et comentariis illustrata (Paris, 1599), citado por Bredekamp, Horst: Nostalgia dell´antico e fascino della macchina. Il futuro della storia dell´arte. (Milano, Il Saggiatore, 1996), páginas 48 e 136.
(75) Taylor, A.E. : Plato, the man and his work. (NY, Meridian Books, 1957), página 41 e seguintes.
CURSO DE GRADUAÇÃO/UNICAMP. SEGUNDO SEMESTRE DE 2005
PROF. ROBERTO ROMANO
A condenação da mentira antes de Hobbes e muito antes dos pensadores do século 18 pode encontrar um modelo em Montaigne. Vejamos o Ensaio sobre os mentirosos. “Na verdade mentir é um vicio maldito. Somos homens e nos prendemos uns aos outros apenas pela palavra. Se conhecêssemos o horror e o peso da mentira, nós a puniríamos pelo fogo, mais justamente do que os demais crimes. (…) Se, como a verdade, a mentira só tivesse um rosto, estaríamos em melhores condições. Pois tomaríamos como certo o oposto do que diria o mentiroso. Mas o reverso da verdade tem mil figuras, e o seu campo é indefinido”.
Note-se que Montaigne insiste no fato de que a mentira é policromada, polifacetada, cambiante. A verdade, por sua vez, possui apenas uma face, uma cor (ou melhor, é transparente). Entre o cão que se conhece e um estranho, cuja linguagem ignoramos, o melhor é ficar com o cachorro adianta ainda Montaigne em outra passagem do Ensaio que acabamos de inspecionar. A palavra verdadeira é a base da vida em sociedade, sem ela, nos perdemos nas variantes e nos equívocos.
A mentira, não raro, esconde-se na obscuridade da escrita ou da fala. Assim, quando no século 18 Diderot e seus amigos empreendem criticar o pensamento tirânico ou demagógico, eles prestam muita atenção à clareza dos termos, seguindo a tradição filosófica que passou por Hobbes. Assim, no verbete “Clareza” diz-se que diversas causas prejudicam a referida clareza no discurso. Em primeiro lugar, um discurso é obscuro quando o seu tema está longe do alcance dos leitores ou dos ouvintes, despossuidos dos saberes básicos para uma correta compreensão. Assim, a filosofia é obscura para os que, dela, não têm o conhecimento preliminar. “Reclamar da obscuridade de semelhantes discursos é com frequência reclamar da própria ignorância”. Também os termos das artes e das ciências, são fonte de obscuridade, mesmo para leitores inteligentes. O jargão prejudica o entendimento. O pedantismo, para não falar em charlatanismo, dos especialistas conduz à obscuridade. A brevidade em demasia é fonte de obscuridade. O escritor que deseja clareza deve usar o espaço disponível para indicar os princípios, os resultados, os detalhes de um assunto. Pessoas muito eruditas tombam na obscuridade porque se recusam a explicitar todos os elementos de seu tema, que elas supõem conhecidos, ao leitor. A falta de método também acarreta obscuridade. A falta de clareza no discurso também recebe origem da falta de clareza na sua concepção, porque se fala de idéias não distintas e sem ordem. A falta de estilo também acarreta obscuridade discursiva. O exibicionismo do saber erudito, o desejo de mostrar grande espirito, traz obscuridade. Mas o principal é a união da verdade e da clareza: discursos clarissimos podem ser mentirosos, e discursos verdadeiros podem ser obscuros. Uma exame cautelo da lingua, da lógica, do estilo, etc., podem ajudar a comunicação clara entre as pessoas.
Se a mentira e a obscuridade devem ser curadas, o grande proveito de tal operação salutar segue para a sociedade e para a vida política e jurídica. É com esse ânimo que o verbete “Dissimulação” da Enciclopédia expressa o problema dos governos e dos particulares nos assuntos cotidianos e nas ações de Estado. A razão de Estado opera com o segredo obscuro e com a dissimulação. E o redator do verbete mostra a diferença entre “dissimular”, “esconder”, “enganar com disfarce”. Esconde-se por um segredo profundo, o que não se deseja manifestar. Dissimula-se por uma conduta reservada o que não se deseja que seja percebido. Se disfarça por aparências contrárias, o que se deseja afastar da penetração das pessoas. O homem escondido vigia a si mesmo para não se trair por indiscrição. O dissimulado, vigia os outros para não deixar que eles o conheçam. O disfarçado mostra-se como outro do que é realmente para retrucar. No caráter da pessoa que torna uma sociedade feliz encontra-se a franqueza e a sinceridade. “Os bons principes olharam a dissimulação como um mal necessário: os tiranos, como Tiberio, Luiz XI, etc., dela falam como se fosse de uma veirtude. Não há dúvida que o segredo é com frequência necessário contra a disposição dos que desejariam interromper nossos empreendimentos legitimos. Mas a necessária precaução seria incomparavelmente mais rara, só empresas que se pudessem confessar, sem nenhuma reprovação, fossem formadas. E os autores do verbete adiantam algumas regras no campo da dissimulação : 1) Não estimar o caráter dos que, sem escolha ou distinção, são reservados e secretos. 2) Só fazer segredo das coisas que merecem o segredo. 3) Agir de tal modo, que seja preciso o mínimo de segredo.
Diderot, no verbete “Mentira”, acrescenta alguns matizes na análise dessa forma de falar, escrever, portar-se. Se a mentira, os equivocos, as restrições mentais são odiosas, diz ele, “existem nos discursos falsidade inocentes, autorizadas ou exigidas pela prudência; pois se a palavra é o interprete do pensamento, não segue-se sempre que seja preciso dizer tudo o que se pensa. É, pelo contrário, certo que o uso desta faculdade deve ser submetido às luzes da reta razão, a quem pertence decidir quais coisas é preciso desvelar, ou não. Enfim, para sermos obrigados a declarar ingenuamente o que temos no espirito, é preciso que aqueles a quem falamos tenham o direito de conhecer os nossos pensamentos”. O exemplo fornecido logo a seguir no verbete é importante, tratando-se da razão de Estado, da mentira e da verdade. O rei Musladin Sadi condenou à morte um de seus escravos que, não percebendo nenhuma esperança de graça, começou a maldize-lo. Como o principe não entendia o dito pelo condenado, pediu explicações a um cortesão. Este, que tinha bom coração e estava disposto a salvar o culpado, respondeu: ´ Senhor, o miserável diz que o paraíso espera os que moderam a colera, e perdoam as faltas; e implora clemência´. O rei perdoou o escravo e lhe deu graça. Logo outro cortesão de máu carater, gritou que não cabia a um homem de sua condição mentir na presença do rei, e se voltando para o principe disse: ´Senhor, quero dizer a verdade; este infeliz proferiu contra o Senhor indignas maldições, e este nobre disse uma mentira formal`. O rei, percebendo o máu caráter de quem assim falava, respondeu: ´Pode ser; mas a sua mentira vale mais do que a sua verdade, porque ele tentou salvar um homem, enquanto você procurou perdê-lo. Ignora você esta sábia máxima, que a mentira que traz o bem, vale mais do que a verdade que produz o dano?”.
Retornemos a Hobbes. Nos Elements of law, ele usa os termos Sleight and strength, para definir o estado de natureza no trato dos homens uns com os outros. A dupla de palavras apresenta grande interesse na análise hobbesiana da vida humana no momento imediatamente anterior ao instante decisivo em que os indivíduos postos em multidão acertam as bases do Estado. ( ) Os humanos possuem a capacidade de enganar uns aos outros através de truques hábeis, no mesmo ato em que usam a força física. O Cambridge Advanced Learner´s Dictionary apresenta as seguintes explicações para sleight : “sleight of hand: speed and skill of the hand when performing tricks: Most of these conjuring tricks depend on sleight of hand.” E também “skilful hiding of the truth in order to gain an advantage: By some statistical sleight of hand the government have produced figures showing that unemployment has recently fallen.” Notemos que as duas definições entram perfeitamente no que afirmamos sobre a razão de Estado, um jogo desonesto vencido por truques e por embustes. Explica-se tal proximidade entre o momento imediatamente anterior à geração da república e o tempo em que ela já está constituida: tanto em relação à cidadania, no interior de suas fronteiras, quanto diante dos outros Estados, o soberano é impelido necessáriamente a agir de acordo com a simulação, a dissimulação, a mentira. O presditigitador e mágico que dirige o poder estatal deve ser mestre na arte de enganar, sobretudo pelo raciocínio. Nos aproximamos do sentido mais comum na cultura ocidental para designar, no plano do pensamento, a capacidade de ludibrio pelo raciocínio: em Platão e Aristóteles o truque lógico deve-se à destreza de um personagem antipático, o sofista. Este último usa os golpes de mão e as ambigüidades semânticas para enganar e para apoiar o raciocínio falacioso.
Aproximemos a lente desse panorama inaugural do Estado. Se no ato de gerar o Leviatã, aos indivíduos que pertencem à multidão fosse permitida a licença de enganar por meio de truques, jamais haveria segurança na república. E se fosse também permitido aos mesmos indivíduos usar no espaço coletivo os truques sofísticos, a insegurança permaneceria intocada. Mas se fosse proibido ao soberano o uso das simulações e dissimulações, zonas inteiras de poder seriam conhecidas pelos inimigos externos e utilizadas pelos cidadãos em vantagem própria, anulando as regras do pacto.
Estamos em pleno meio de um problema partilhado pelo século XVII filosófico e político, qual seja, o acesso à razão e a vitória sobre os engodos que só pode ser conseguida utilizando-se a mesma astúcia dos mágicos e sofistas. Leiamos as Cartas a Lucilius (CII) : o mote da missiva escrita por Seneca é a questão da fama após a morte do indivíduo. Lucilio começara o debate afirmando que “Nenhum bem consiste em coisas distintas e separadas; e a fama consiste em coisas assim”. Responde Seneca que certas questões lógicas são misturadas com questões éticas. É preciso analisar o problema lógicamente e também no plano ético. Questões lógicas ou éticas, todas elas têm como fim a conduta e foram inseridas sob o tópico apropriado. Seneca parte de uma descrição das coisas e afirma que existem corpos contínuos (um homem) e compostos (navios, casas, e tudo o que resulta quando são unidas partes separadas numa soma total). E existem corpos feitos de coisas distintas, nos quais cada membro permanece separado (exército, populaça, senado). As pessoas que integram esses últimos corpos são unidas em virtude da lei ou funções mas, por sua natureza, são distintas e individuais. Nada é um bem, se é composto de coisas distintas. Porque um bem singular deve ser verificado e controlado por uma alma singular. E a qualidade essencial de cada bem singular deve ser singular. Seneca já prevê as críticas à semelhante tese: “A nomeada (claritas) é apenas a opinião favorável dos homens bons. Porque a reputação não consiste nas observações de uma só pessoa e a má reputação não consiste na desaprovação de uma só pessoa, assim a boa fama não significa que agradamos a uma pessoa apenas. Para constituir uma boa fama é necessário o acordo de muitos homens distintos e respeitáveis. Mas isso resulta da decisão de um número, em outras palavras, de pessoas distintas. Assim, ela não é um bem. E vocês afirmam, novamente, que a fama é o louvor dado a um homem bom por homens bons. Louvor significa discurso, e discurso é elocução com um significado particular. E a elocução, ainda que venha dos lábios de homens bons, não é um bem si mesma. Porque todos os atos de um homem bom é necessariamente um bem; ele grita seu aplauso e ergue sua reprovação, mas não se pode dizer que gritar e erguer são bons —embora sua conduta inteira seja admirada ou receba elogios— e muitos aplaudiriam um espirro ou tosse. Logo, a fama não é um bem.”
Hobbes conhece os textos de Seneca, particularmente os relativos à moral. A fama conduz aos atos mais insensatos, visto que ela exige a boca e os ouvidos da multidão indiscreta, que aceita mentiras sem maiores análises e se deixa enganar pela retórica dos demagogos. Poder-se-ia dizer que Hobbes, então, valoriza uma virtude pública e privada, que recomenda o maior cuidado com as palavras e com as ambições dos que as usam em proveito próprio? Seria necessário buscar algum vinculo entre o pensamento hobbesiano e a prudência? Esta última virtude é tema de boa parte da filosofia anterior ao século 17, de Aristóteles até o Renascimento. ( ) Hobbes, no entanto, não segue a linha maior da prudência, a não ser nos escritos introdutórios da sua tradução de Tucídides e em outras obras menores. No Leviatã e no De corpore a prudência recebe tratamento negativo. Enquanto restrita ao plano da experiência, a prudência não possibilita a generalização cognitiva e não produz a medida universalmente válida do justo e do injusto. ( ) Nos Elements of law a prudência deixa de ser o eixo do pensamento político e dá lugar à força que inibe as paixões desagregadoras do soberano autorizado no pacto. ( ) A disciplina, então, se apresenta como o eixo da política, sobretudo no De cive : ad societatem homo aptus non natura; sed disciplina (I,2). A prudência, no entanto, ligada à noção de razão de Estado, aparece aqui e ali no mesmo De cive. Por exemplo, no mesmo livro Hobbes refere-se à possibilidade de os governantes conservarem e exercitarem a astúcia e a força (sleight or force). Vimos acima que nos Element of law, sleight é palavra usada em conjunto com o vocábulo strength, para definir o estado de natureza. Quando afirma, ainda no De cive, que existe uma Reason of City (Civitas, no latim), Hobbes ainda guarda o sentido dado à razão estatal no Renascimento e na retórica que defendia aquela política, tendo como núcleo a prudência. Daí o apelo ao segredo e aos espiões, notável no referido volume. Entre o segredo (a máxima obscuridade) e os espiões (encarregados de penetrar a obscuridade alheia) a prudência e a imprudência do soberano podem trazer segurança ou perigo para a Civitas. Os soberanos que usam sleight or force, permanecem no estado de natureza, e podem usar a força, a fraude, a mentira, a espionagem e não precisam manter a palavra, porque não existe nenhum pacto que una os Estados e, portanto, nenhum soberano que imponha uma lei obrigatória para todos os países.
Se no âmbito mundial a razão de Estado funciona, apesar da guerra permanente de todos os Estados contra todos, no plano interno, com o pacto, a transferência do poder mortal, não pode existir ambiguidade na lei e relações de força de cidadão a cidadão. Menos ainda, relação mentirosa ou de engodo entre eles. No Leviatã quase desaparecem as antigas formas de pensamento prudencial, ou seja, da razão de Estado. Se esta última opera com force and fraud, o uso de semelhantes técnicas de dominação entre cidadãos conduz à ruina da república. Assim, diz Hobbes, “every sovereign ought to cause justice to be taught, which, consisting in taking from no man what is his, is as much as to say, to cause men to be taught not to deprive their neighbours, by violence or fraud, of anything which by the sovereign authority is theirs”. ( ) Contra o uso da força e da fraude, no interior da república, o soberano deve providenciar para que o povo não seja ignorante “ou pouco informado das bases, e razões dos seus direitos essenciais; porque assim os homens são seduzidos fácilmente, e levados a resistir-lhe, quando a República deve exigir seu uso e exercício”. ( ) Em qualquer Estado, generaliza Hobbes, sem a obediência (que traz a concórdia ao povo) o povo mesmo é dissolvido em pouco tempo. E quem dissolve o povo? “Homens poderosos”, os quais “digerem com muita dificuldade tudo o que estabeleça um poder para controlar suas afecções”. Mas também os “Eruditos (Learned)” que também resistem ao poder que “descubra seus erros, e portanto dimunua a sua autoridade (Authority)”. Enquanto os primeiros, os poderosos, estão cheios de ambição de poder, e os letrados mergulham na ambição de autoridade, porque suas mentes estão abarrotadas de doutrinas mentirosas e fraudulentas, o “as mentes do povo comum, enquanto não forem tingidas pela sua dependência diante dos poderosos, ou rabiscada pelas opiniões dos doutos, são como papel limpo, própria para receber tudo o que a Autoridade Pública nelas imprimir”. ( )
E encontramos novamente a fábula de Medéia, narrada no De cive: Quem é desobediente e deseja reformar a República desse modo, na verdade a destrói “como as ensandecidas filhas de Peleu, na fábula, as quais desejando renovar a juventude do seu pai decrépito, por conselho de Medéia o cortaram em pedaços e o colocaram para ferver, sempre com suas estranhas ervas, mas não fizeram dele um homem novo. Este desejo de mudanças é como a desobediência do primeiro mandamento divino: porque Deus disse, Non habebis Deos alienos: Não terás deuses de outras nações´., e em outro lugar , em relação aos reis, que eles são deuses”. ( ) Quais são os “deuses” que não podem coexistir com o “deus mortal”, o Leviatã ? Os poderosos, os letrados, as cidades que pretendem possuir independência no interior da República. “Os que pretendem agir segundo a prudência política”, diz Hobbes, tendem a afirmar a “liberdade de disputar o poder absoluto”. Estes são os poderosos e populares. “A menos que a República (Commonwealth) tenha muito penhor de sua fidelidade, eles são uma doença muito perigosa; porque o povo, que poderia receber seu movimento da autoridade soberana, pela adulação (flattery) e pela rpeutação de um homem ambicioso, é arrancado de sua obediência às leis, para seguir um homem cujas virtudes e designios eles não conhecem. E isso é mais comumente perigoso num governo popular do que na monarquia, porque um exército possui maior força e número se pode facilmente fazer-se acreditar que eles são o povo. É assim que Julio Cesar, que subiu ao poder pelo povo e contra o senado, tendo ele mesmo vencido as facções de seu exercito, controlou o senado e o povo. E este modo de agir de homens ambiciosos é rebelião clara, e pode ser comparada aos efeitos da feitiçaria (witchcraft). Outra doença da República é a grandeza imoderada de uma cidade, quando ela pode fornecer para for a de seu próprio circuito
Another infirmity of a Commonwealth is the immoderate greatness of a town, when it is able to furnish out of its own circuit the number and expense of a great army; as also the great number of corporations, which are as it were many lesser Commonwealths in the bowels of a greater, like worms in the entrails of a natural man. To may be added, liberty of disputing against absolute power by pretenders to political prudence; which though bred for the most part in the lees of the people, yet animated by false doctrines are perpetually meddling with the fundamental laws, to the molestation of the Commonwealth, like the little worms which physicians call ascarides.
Montaigne, Essais I, IX “Des Menteurs”. Em nossos dias, embora os mentirosos e as mentiras tenham aumentado em escala ciclópica, os pensadores que se dedicam ao estudo do falso, deliberado ou não, não são muitos. E quase todos dependem dos clássicos e atingem, no máximo, Nietszche (aliás, pouco entendido sobretudo neste aspecto). Cf. entre os “recentíssimos”, Campbell, Jeremy: The Liars Tale. A history of Falsehood (New York, WW.Norton & Company, 2001).
“In this estate of man therefore, wherein all men are equal, and every man allowed to be his own judge, the fears they have one of another are equal, and every man's hopes consist in his own sleight and strength; and consequently when any man by his natural passion, is provoked to break these laws of nature, there is no security in any other man of his own defence but anticipation. And for this cause, every man's right (howsoever he be inclined to peace) of doing whatsoever seemeth good in his own eyes, remaineth with him still, as the necessary means of his preservation. And therefore till there be security amongst men for the. keeping of the law of nature one towards another, men are still in the estate of war, and nothing is unlawful to any man that tendeth to his own safety or commodity; and this safety and commodity consisteth in the mutual aid and help of one another, whereby also followeth the mutual fear of one another. "2": 2. It is a proverbial saying, inter arma silent leges”. Elements of law, I, XIX, 1-2.
Numa bibliografia imensa, cito apenas o texto de Pierre Aubenque, La prudence chez Aristote, (Paris, PUF, 1963). Os interessados poderão pesquisar o tema junto aos especialistas em Aristóteles.
Cf. Gianfranco Borrelli: Ragion di Stato e Leviatano. Conservazione e Scambio alle origini della modernità politica. (Bologna, Il Mulino, 1993), páginas 230 e seguintes.
“Pois vendo que as vontades da maioria dos homens são governadas apenas pelo medo, e que onde não existe poder coercitivo não existe medo; as vontades da maioria dos homens seguiriam suas paixões ambiciosas de prazer, avidez e semelhantes, para quebrar os seus pactos, quem desejasse guardá-las, seriam postos em liberdade, sem outra lei senão a que sai deles mesmos”. Elements of law, Parte II, Cap. 1. “Of the Requisites to the Constitution of a Commonwealth”.
Leviatã, cap. 30 : “Of the office of the sovereign representative”.
O mesmo cap. 30, na edição Macpherson, página 377.
Página 379.
Ed. Macpherson, página 380. Quem segue a tradução brasileira da Ed. Martin Claret, preste atenção porque esta última frase (and in another place concerning Kings, that they are Gods) falta alí. Citação do Salmo 81, 6 : Ego dixi : Dii estis, et filii Excelsi omnes. Na Biblia do Rei James I : “I have said, ye are Gods”. A frase hobbesiana radicaliza o Rei James I no seu livro On divine right of Kings (capítulo 20) : “The state of monarchy is the supremest thing upon earth; for kings are not only God's lieutenants upon earth, and sit upon God's throne, but even by God himself are called gods. There be three principal similitudes that illustrate the state of monarchy: one taken out of the word of God; and the two other out of the grounds of policy and philosophy. In the Scriptures kings are called gods, and so their power after a certain relation compared to the divine power. Kings are also compared to fathers of families: for a king is truly Parens patriae, the politique father of his people. And lastly, kings are compared to the head of this microcosm of the body of man. Kings are justly called gods, for that they exercise a manner or resemblance of divine power upon earth: for if you will consider the attributes to God, you shall see how they agree in the person of a king. God hath power to create or destrov make or unmake at his pleasure, to give life or send death, to judge all and to be judged nor accountable to none; to raise low things and to make high things low at his pleasure, and to God are both souls and body due. And the like power have kings: they make and unmake their subjects, thev have power of raising and casting down, of life and of death, judges over all their subjects and in all causes and yet accountable to none but God only. . . I conclude then this point touching the power of kings with this axiom of divinity, That as to dispute what God may do is blasphemy....so is it sedition in subjects to dispute what a king may do in the height of his power. But just kings will ever be willing to declare what they will do, if they will not incur the curse of God. I will not be content that my power be disputed upon; but I shall ever be willing to make the reason appear of all my doings, and rule my actions according to my laws. . . I would wish you to be careful to avoid three things in the matter of grievances: First, that you do not meddle with the main points of government; that is my craft . . . to meddle with that were to lesson me . . . I must not be taught my office.Secondly, I would not have you meddle with such ancient rights of mine as I have received from my predecessors” . Os interessados podem ler o livro de James I, (Basilikon Doron) onde são dados os argumentos sobre a proximidade entre Deus e o Rei. A versão do livro está no endereço: http://www.jesus-is-lord.com/kjdivine.htm . Em James I e Hobbes, a sequência do Salmo é “esquecida”: “ but ye shall die like men, and fall like one of the princes”. Cf. Roberto Romano, O Caldeirão de Medéia (SP, Perspectiva, 2001) páginas 338-339. “Quem recomenda que a lei deve governar parece recomendar que só Deus e a razão devem governar, mas ele também deveria acrescentar que se um homem governa, soma-se um animal também; porque o apetite é como um animal selvagem e a paixão deturpa o governo do melhor homem. Logo, a lei é razão sem desejo = ho men oun ton nomon keleuôn archein dokei keleuein archein ton theon kai ton noun monous, ho d' anthrôpon keleuôn prostithêsi kai thêrion: hê te gar epithumia toiouton, kai ho thumos archontas diastrephei kai tous aristous andras. dioper aneu orexeôs nous ho nomos estin”. Aristóteles, Politica, 3. 1287a, Site Perseus.
Diderot
O favor como técnica de controle e dominação encontra-se no plano mais amplo do Sobrinho de Rameau. Os fios que unem a sociedade em que Jean François se move, com suas cambalhotas para agradar os mestres e seus preferidos, foram tecidos na sociedade política conhecida como Ancien Régime. E o tempo da tecitura data, pelo menos, de Felipe o Belo. Mas ela foi acelerada no Renascimento. A ordem dos favores impera na corte e nos elos entre nobres importantes e outros, menos poderosos. Ela segura em redes complexas de nepotismo, apadrinhamentos, interesses, o rei a todos e a cada um dos súditos. Não por acaso, o título monárquico é o de Pai. Projeta-se na ordem pública o que se determina na vida familiar.
Como enuncia Joël Cornette ( ) “O reino é organizado como uma família mais ampla de início, na qual as ligações de sangue e proximidade são hegemônicas, onde o rei sempre é percebido sob os traços de pai benevolente, do pater familias, concedendo suas benesses aos seus e sabendo distinguir, entre seus próximos, os que as merecem. Henrique IV, chefe benfeitor de clã, permanece para sempre como o que fez dos franceses ‘irmãos ’, ‘primos’, ‘amigos’, um clã que tem sentido não quando ele está em guerra ou em paz, mas porque está reconciliado (...) Todas as famílias concomitantes e superpostas, de Versalhes até a mais humilde choupana, são dominadas pela família mística: o Pai, o Filho e o Rei da França. Pois a essência divina da monarquia, pensada, difundida, teorizada definitiva e eficazmente a partir da ressacralização de Henrique IV, confere a esta dimensão paterna da monarquia um valor sagrado. Segundo uma propaganda oficial, as famílias terrestres do reino francês apenas transcrevem a família celeste, dos santos, dos anjos, do povo de Deus.”
Ademais, o trabalho do rei é o de prover os seus próximos “construindo uma rede familiar e doméstica que assegure a boa marcha do governo. Para tanto, é preciso achar subsídios. Os monarcas mais atilados elaboraram, com seus conselheiros, sistemas que ligam o ‘doméstico ao administrativo’, a fidelidade à venalidade, o ‘serviço de sua pessoa na administração da coisa pública’. Assim a monarquia criou em permanência a estrutura clientelar com ramos horizontais no espaço geográfico, limitadas apenas pelas fronteiras , com implicações verticais na hierarquia social, descendo até os submetidos à talha e à corvéia”. ( )
A ascensão social e política é feita pelos grupos e indivíduos naquela imensa rede de favores instaurada pelo absolutismo. O rei precisa cooptar os nobres, estes precisam exibir poder ao rei. E ambos os lados precisam de operadores que permitam a fluidez dos interesses, a sua realização sempre dependente dos alvos concorrentes ou paralelos aos dos coletivos familiares ou de “amigos” que os mantinham. A política do “é dando que se recebe” não foi instaurada no Brasil, como se nota. A sociedade e o Estado absolutistas constituíam, diz um historiador, “redes de amizade, de primos, de camaradas de colégio e combate, companheirismo, afinidades diversas, encontros de vizinhos”. Elas eram, para um nobre, “uma rede de interdependência na qual ele se inseria desde o nascimento, onde se casava e que lhe permitia sustentar, ou aumentar, a reputação de sua casa. É um capital que em parte ele herdara de seus parentes, que deveria fazer frutificar, antes de o transmitir por sua vez aos filhos. O gosto das relações, o culto da amizade, contavam tanto quanto o sentido da honra e do devotamento”. ( )
O reino, grande família, era movido pelos alvos das famílias. As redes horizontais de parceria e cumplicidade buscavam, todas, ascender na escala do Estado. O meio era encontrar conexões em estratos cada vez mais altos de redes de interesse e favor, até atingir os arredores do trono. Assim, os elos de clientela e fidelidade se tornavam a cada momento mais amplos e complexos. Entre os termos que assinalam os pactos tácitos (o termo é posto no Sobrinho de Rameau) está o que enuncia que alguém “pertence” a um outro, é sua “criatura” ou seu “doméstico”. Todos estes termos servem, perfeitamente, para descrever Jean François e seus concorrentes na busca da ascensão e sobrevivência. Só que tudo mais degradado, mais vil, desprovido da ilusão nobre da honra, da glória, etc. ( )
Tais cadeias de solidariedade uniam três tipos de pessoas: o patrão, o cliente, e os “brokers” (os intermediários), ou seja, o corretor. A clientela é algo praticado desde os tempos de Roma. Deixemos um pouco os tempos absolutistas modernos e nos dobremos sobre o clientelismo em Roma. ( )
Como ainda no Antigo Regime, as relações políticas de Roma ocorrem nos círculos complexos das famílias. As coalisões são formadas na base familiar, com as gentes e as familiae. O consulado romano foi possível, com certa estabilidade, com fundamento no trato dos grupos familiares e de sua clientela. A prática da adoção de indivíduos por famílias é uma outra maneira de manter vínculos de força e de poderio político. O costume de adotar, mantido pela sociedade, foi posto em movimento pelos imperadores, mas a partir de uma prática jurídica anterior: as famílias em filho homem como herdeiro, adotavam alguém que passava a usar o seu nome, dando-lhe sobrevivência e coesão. Adotar era um meio de estabelecer alianças entre famílias. ( ) Os cargos maiores de Roma eram gratuitos, porque os seus ocupantes eram ricos e poderosos, não sendo próprio à sua dignidade receber para administrar. Receber salários para exercitar o governo é próprio de um regime que deseja fornecer livre acesso ao poder para todos os cidadãos. E Roma era uma aristocracia, não uma democracia. Mesmo sua república não era democrática. Assim, toda a eficácia política, guerreira ou econômica repousa sobre a influência de certos indivíduos de certas famílias no circulo social. Não existe matiz igualitário em Roma: ou a pessoa pertence à uma família poderosa, ou à uma família pobre. Há os que governam, uma elite, e a massa dos que obedecem. Trata-se da relação patres/plebs.
Dessa relação, conflitiva em toda a república e império romanos, surge uma prática de manipulação dominadora exemplar: o patronato e a clientela. Não se trata de algo inédito, inventado em Roma. Já na Grécia existia o patronato, sendo que um conservador como Fustel de Coulanges imagina ser ele “uma prática das mais conformes à natureza humana”. O próprio Fustel analisou tal costume na Gália e nos povos germânicos. ( ) Os habitantes das cidades conquistadas por Roma se tornavam clientes do general que os venceu, este recebe o título de patronus. Os escravos libertos por manumissio,( ) entravam para a clientela do patrono. Tais casos não dizem muito para a dominação política, pois os seus partícipes dominados eram escravos. Importante é o ato “pelo qual um cidadão livre se coloca sob a proteção de uma pessoa mais poderosa e mais influente, o seu patronus. Esta forma de clientela se distingue essencialmente da anterior, porque é constituída por uma adesão livremente contraída após entendimento estabelecido entre as duas partes, o que se chama fides.” A clientela é oferecida para todos os que não possuem a plena cidadania. Ela resulta de um pacto solene, no qual o patrão enuncia a fórmula : Ego in fidem te recipio. Ela não traz prejuízos à posição jurídica do cliente, ela é puramente moral, não cai no domínio público. Os clientes, embora não sejam patrícios, podem pertencer a todas as categorias sociais, desde que encontrem apoio de um mais poderoso. A clientela é hereditária, mas pode ser rompida, ou estabelecida com maior número de patronos. Aí, a conciliação da fides a um ou a outros, é mais complicada.
O cimento que faz a fides permanecer, sólida, é o fauor (favor). Favere assume o sentido “ser favorável”, na lingua comum e na política. Ao termo fauere corresponde fautor : “aquele que favorece”. Ele aparece em data mais avançada da república. Favor é o que sustenta o político nas eleições, com aprovação popular. Ele significa o próprio voto (favor) mas não a campanha, que tem por nome officium. O favor se acompanha de sinais externos, em especial de laude, gratulationes, plausus, clamor (a manifestação externa do fauor). Trata-se de um termo também usado no teatro. A partir do teatro, o termo pode ter sido aplicado à política. Pouco a pouco o termo passa a significar “popularidade”. Fauere, por sua vez, significa “trabalhar para o aumento da posição política de alguém”. Se o cliente tem o dever moral de sufragar nas eleições o nome de seu patrono, este último deve proteger o cliente. Mas como, na república, existe a ficção da soberania popular (a monarquia caíra com Tarquínio, o soberbo), o favor do voto tem como nome o eufêmico beneficium. Tal relação pode, se transformar em obsequium (indulgência, cumprimento, complacência), blanditiae (de blandus, lisonjeador, adulador, acariciador), ambitio (na república a busca dos candidatos por votos, para solicitar aos cidadãos individuais os seus votos por meios corretos e legais) . ( )
Cicero louva a amizade desinteressada, algo que só pode existir entre os boni viri, os integrantes do patronato. Ricos, eles não precisam de nada material para obter dos seus iguais. Mas, recorda Hellegouarc‘h, para o mesmo Cicero um dever dos amigos é ajudar o parceiro na carreira política. O comentador aponta para a contradição entre os princípios elevados da ética e as realidades da ordem prática. “Cicero esteve sempre entre as duas opções e nunca escolheu formalmente entre elas. Ele constata que a virtus não tem muito lugar na atividade pública quando a tomamos em sentido moral estrito e que é difícil acordar moral e política”. Assim, no ideário romano, permanece a amizade em sentido elevado, mas o que se pratica, de fato, é o interesse momentâneo, a amizade breuis et suffragatoria. As amicitiae “se constituem como elemento importante da política; elas são feitas e desfeitas segundo as circunstâncias e necessidades do momento; só o interesse comanda e o sentimento não tem muito a ver com elas. A influência de um personagem é de algum modo proporcional ao número de amigos que ele soube adquirir”. Na ausência de partidos organizados, “o político não tem outro recurso para expandir sua influência a não ser unir-se ao maior número de pessoas possível, as quais lhe trarão por sua vez apoio dos que lhes são apegados”. Há uma distinção, entretanto: os amici pertencem ao patronato, os inferiores formam a clientela. Tal é a teoria, como no caso da amizade em geral, como virtude moral, e como prática efetiva. Assim, era possível colocar no plano dos amigos, pessoas que o mais correto seria colocar no âmbito dos clientes. “Esta extensão súbita e diplomática do número de amigos devia ser particularmente importante na época de campanha eleitoral”. Assim, conclui Hellegouarc’h, “precisamos renunciar a toda distinção entre amicus e cliens. Embora na origem as duas palavras se apliquem a situações muito diferentes, elas se perverteram no uso e se tornaram intercambiáveis segundo as necessidades e as circunstâncias.” ( )
Segundo o Contrato Social, nas antigas repúblicas virtuosas, “cada um tinha vergonha de dar publicamente seu sufrágio a uma opinião injusta ou a um assunto indigno, mas quando o povo se corrompeu e seu voto foi comprado, foi conveniente que o segredo fosse instituído para conter os compradores pela desconfiança e fornecer aos salafrários (´fripons´) o meio de não serem traidores”. ( ) Ao comentar os comícios, Rousseau diz que as leis de eleições dos chefes não eram os únicos pontos submetidos ao seu julgamento. O povo romano, diz ele, tendo usurpado as mais importantes funções do governo, pode-se dizer que a sorte da Europa era regulada por aquelas assembléias. “Esta variedade de objetos dava lugar a diversas formas que tomavam tais assembléias, segundo as matéria sobre as quais ele deveria se pronunciar. Para julgar essas diversas formas, basta compará-las. Rômulo, ao instituir as curias, desejava conter o senado pelo povo e o povo pelo senado, dominando igualmente sobre todos. Ele deu, portanto, ao povo, assim, toda autoridade do número para equilibrar (balancer) a da potência e das riquezas que ele deixava aos patrícios. Mas, segundo o espírito da monarquia, ele no entanto deixou mais vantagem aos patrícios por influência de seus clientes na pluralidade dos votos. Esta instituição admirável dos patrões e clientes foi uma obra prima de política e humanidade, sem a qual o patriciado, tão contrário ao espírito da república, não teria podido subsistir. Roma apenas teve a honra de dar ao mundo este belo exemplo, do qual não resultará jamais abuso e que, no entanto, jamais foi seguido”. ( ) Quanto ao fato de que a clientela serviu aos patronos ricos, Rousseau tem plena razão histórica. Se tal invenção foi algo excelente, em termos políticos e de humanidade, pode-se imaginar se o filósofo ironizava cruelmente, ou se foi atacado, quando escrevia as linhas acima, por um súbito ataque de realismo. Como a segunda opção é improvável...
Voltemos ao Antigo Regime francês, espaço de clientela e de favores. Em troca da proteção e benesses recebidas, o cliente deve servir ao seu patrão “com docilidade e lealdade, ajudá-lo a conseguir seu alvo, por exemplo, lhe fornecendo informações, o servindo com a pena ou espada, adotando suas inclinações, ambições, e às vezes seguindo-o na adversidade”. O patrão “ajuda seu cliente, se for preciso o veste, o alimenta, hospeda, lhe procura emprego, empresta ou dá o dinheiro para comprar um cargo, o empurra na ascensão social, o defende contra seus adversários. As vezes ele organiza seu casamento, educa ou casa seus filhos. Tal patrão, se não for uma pessoa rica, pelo menos é alguém influente, capaz de intervir em favor de seu protegido o recomendando aos mais poderosos do que ele”. ( )
A ausência de reciprocidade traz ruptura, traição, acusações de ingratidão. Agora o terceiro elemento : o corretor, ou broker. Ele é uma espécie de patrão pela metade, que põe sua própria clientela para servir um outro, mais poderoso. Ele facilita as negociações. “O patrão principal precisa desses ‘cafetões’ –entremetteurs– numerosos e eficazes para ampliar sua influência, assegurar o apoio de meios ou redes que ele não pode abordar diretamente. O corretor tem sua vantagem em fazer frutificar seu próprio capital de relações, monetarizando em preço alto seu papel de mediação e buscando por sua vez assegurar para si mesmo o monopólio do mercadejo (courtage), o que o patrão nem sempre tem interesse em conceder”. ( )
Essas relações de favor e de influência são essenciais na sociedade do antigo regime. Elas permitem entender o funcionamento do poder num sistema estatal incompletamente institucionalizado, como a França do período, formando a “monarquia administrativa”. Note-se o leve tom de etnocentrismo na análise de Petitfils. A França “foi” assim no Antigo Regime. Outras culturas, “incompletamente institucionalizadas” de hoje, sofrem os mesmos males do clientelismo. É possível perguntar se na França e nos demais países “completamente institucionalizados”, o favor e as relações de clientelismo foram abolidas. O autor, na sua exposição, cita para os dias de agora François-Xavier Guerra, cuja tese de doutoramento defendida na França se intitula Le Mexique. De l ‘ancien régime à la révolution ( ) Ele também cita Steffen Schmidt (Friends, Followers and Factions: a reader in political Clientelism). ( ) Poder-se-ia pensar que as relações de favor do Antigo Regime seriam persistências anacrônicas do feudalismo.
Antes de François-Xavier Guerra discutir a ordem mexicana, no Brasil Maria Sylvia Carvalho Franco tematizou, para compreender a lógica que norteia a sociedade e a política nacional, as relações de favor, de “amizade” e de compadrio . Em Homens Livres na Ordem Escravocrata, a autora conceitualiza a partir de textos históricos e depoimentos, a rede de relações tecida entre poderosos fazendeiros, sitiantes mais pobres e os dominados no baixo da escala social. O grande proprietário, diz ela, manteve relações aparentemente horizontais com o sitiante. Ela começa pelo depoimento de um integrante de família rica em Resende, nascido em 1870. “Não havia desigualdade entre fazendeiros e sitiantes; havia mesmo amizade. Se um deles chegava à nossa porta, vinha para a mesa almoçar conosco”. ( ) Aqui temos a noção de amiticia, imperante na sociedade romana e que, nela, apresentava uma polissemia imensa, a ponto de se precisar suspender a busca de sua designação “correta”. A ambigüidade da palavra entra na prática do político romano, do nobre francês, do fazendeiro brasileiro. Como prova da “igualdade” com o sitiante, era dito que eles e grande proprietários eram compadres.
Assim como a amicitiae romana, ou do antigo regime, a prática do compadrio suspende, de maneira imaginária, a diferença de nível e de riqueza. A autora cita Antonio Cândido ( ) :“Os vínculos estabelecidos entre padrinho e afilhado eram tão ou mais fortes que os de consangüinidade : não apenas o padrinho era obrigado a tomar o lugar do pai, sempre que necessário, mas tinhas que ajudar seu afilhado em várias ocasiões (...) o afilhado, por sua vez, ajudava o padrinho em tudo o que este necessitava, e freqüentemente tomava o nome da família”. No compadrio, ressalta o fato de um dos lados, o mais poderoso, “se apresenta como um patrocínio do superior e uma decorrente submissão do inferior.”. A criança pobre deve ser “encaminhada na vida”, com ajuda do mais forte. A autora cita Coldman ( ) : “Como naturalmente o padrinho deseja cumprir sua promessa com a menor despesa possível, o que de melhor pode fazer senão prover o jovem, tão logo tenha idade adequada, com um emprego público? E se o governo não tem o suficiente número de cargos à sua disposição, como poderia a influência do Duque, Marquês, Barão, Comendador, ser mantida mais facilmente que criando novos cargos e novos funcionários?”. A autora lembra o que significa, no Brasil, o termo “apadrinhar”. Poderíamos dizer a mais, que em nossa terra, “quem tem padrinho, não morre pagão”, ou seja, sempre alcança os empregos públicos ou privados, quando funciona a rede de favores recíprocos.
“Ampliando-se as trocas do compadrio para situações sociais, compreende-se como deriva dele toda uma intrincada rede de dívidas e obrigações, infindáveis porque sempre renovadas em cada uma de suas amortizações, num processo que se regenera em cada um dos momentos em que se consome”. ( )
A igualdade fictícia, trazida pelos ritos sagrados e pela “amizade” interessada, mostra sua face de dominação em momentos de apuro financeiro. O patrono ajuda o sitiante, este devolve em apoio político. Diz um rico, em depoimento anotado pela autora: “se os sitiantes da redondeza estavam em dificuldades ou queriam comprar um pedaço de terra, emprestavam dinheiro de meu pai; em compensação, esta gente sempre o acompanhava, eram seus eleitores ou seus cabos, pois ele era o chefe conservador da zona (...) Não havia compra de voto. Não havia concorrência entre os chefes políticos: não adiantava, quem era conservador era conservador e quem era liberal era liberal”. Deduz a autora: “a dependência” em que os protegidos estavam, “tornava inelutável a fidelidade correspondente. Sua adesão em troca dos benefícios recebidos é tão automática, que nem sequer são tomadas medidas que assegurem seu voto; tampouco se cogita de providências para atrair eleitores cuja fidelidade está definida para com o lado contrário. Umas seriam desnecessárias, e outras inúteis”.
Presos à política local ou no máximo regional, os dominados não perceberam o alcance de eventos como a Independência do Brasil e similares. “Estado, na consciência desses homens se confundia com a pessoa do príncipe e governo se identificava com seus atos e decisões, ou com a de seus representantes”. Assim, a consciência política dos setores livres e pobres não vai além da pessoa que lidera o elo entre os dois extremos da cadeia de domínio. A visão institucional do Estado e de seus interesses nacionais ou internacionais falta a tais setores. Os nexos entre patrono e cliente são definidos: “a lealdade inclui o reconhecimento do benefício recebido, o sentimento de gratidão por ele, e o imperativo de sua retribuição equivalente”. Mas “o fabricar de lealdades e fidelidades através de um processo cumulativo de recíprocos encargos e favores promovia, sucessivamente, a eliminação completa da possibilidade de um existir autônomo”. O poder, então, é impossível de ser concebido “senão mediante o prisma formado pela encarnação do poder: este transfigura a realidade social, convertendo-a nas formas objetivadas da existência daquele que é ideado como superior, e plasma as categorias através das quais ela é conhecida, confinando-as a imagens que não podem transcender essa mesma situação vital particular, personificada e alheia”. Isto mostra o peso do comportamento mecanizado do dependente e sua incapacidade para apreender a organização e a dinâmica da política em nível institucional. Atitude similar, de “amizade” ocorre entre patronos e agregados. O morador ficava nas terras do patrono se fosse amigo. “Agregado ou camarada, a anulação de sua vontade se revela na simples incapacidade de tomar uma decisão autônoma”. Uma testemunha, no caso de rapto de jovem, diz que o réu “lhe fora pedir para ter guardada em sua casa a menor e ele respondera que não o podia fazer sem o consentimento de seu patrão, porque era agregado”. Sua recusa, adianta a autora, “tem a ver menos com o risco de transgredir a lei, que de incorrer na desaprovação do fazendeiro”.
O favor permeia, assim, os elos entre patronos e gente livre, mas pobre no Brasil. E se atentarmos para o fato de sermos uma sociedade desigual por excelência, a ficção da igualdade jurídica e política se esvai rapidamente. No mesmo passo, guardamos as práticas políticas do Antigo Regime, como por exemplo a diferenciação entre operadores do Estado e “pessoas comuns”, simples pagadores de impostos, sem maiores direitos e poderes. Os cargos dos “amigos” e apadrinhados continuam em uso, na troca de favores entre oligarcas que tentam se aproximar do poder, na corte. ( ) Os mesmos padrinhos tentam, por meio dos seus clientes, alicerçar alianças com seus pares oligárquicos, tudo segundo a receita absolutista.
As relações de amizade, no mundo moderno, seguem o padrão explicitado em Roma: amizade ligada a interesses de ascensão social ou política, breuis et suffragatoria. Voltemos ao Sobrinho de Rameau. Em primeiro lugar, ele cumpre o papel de broker entre personagens ricos e suas vítimas que devem sucumbir ao desejo “amoroso”. Mas ele, como diz um comentador, é apenas um “masca dinheiro, um pobre doador de lições, sem clientela e sem reputação” (Charles Asselineau, em prefácio ao Sobrinho de Rameau). ( ) Sem clientela e sem reputação, o Jean François serve apenas no âmbito interno de seu patrão, ele não possui a utilidade e o estatuto de um “amigo”. Seus ofícios entram no rol das coisas abjetas, como o de cativar mocinhas para a lubricidade de personagens ricos e inescrupulosos. ( )
Logo no início do texto, antes mesmo de dizer o nome do Sobrinho, Jean François, o autor diz que ele “tinha se introduzido, não sei como, em algumas casas honestas nas quais tinha seus talheres, mas à condição de não falar sem autorização. Ele se calava e comia com raiva”. Pouco depois, falando de seu tio músico, o sobrinho diz que ele “é um filósofo em sua espécie. Ele só pensa em si mesmo”. E gente assim, “não sabem o que significa ser cidadão, pai, mãe, irmão, parentes, amigo”. Jean François entra nas casas “honestas”, nelas come, mas não fala, ou seja, é destituído do elemento essencial da sociabilidade, a linguagem, onde se estabelecem os vínculos de amizade, parentesco, de política, etc. Já o filósofo, e seu tio é um, está liberado daqueles elos sociais. A receita de bem viver assumida neste ponto é a sabedoria de Rabelais cumprir o dever, sempre falar bem do prior, “deixar o mundo seguir segundo a sua fantasia”. As condições subalternas têm uma sabedoria : ou nada falar, ou falar bem dos patrões. Não existe ilusão de igualdade na perspectiva do Sobrinho. E o poder da fala se concentra na mentira dos poderosos : “eu estava um dia à mesa com um ministro do rei de França, que tem espirito para quatro; ele nos demonstrou claro como um e um fazem dois, que nada era mais útil aos povos do que a mentira, nada mais prejudicial do que a verdade”. Quem possui o poder de falar, mente, sobretudo se está no topo da hierarquia política. Estamos em plena sátira à razão de Estado, algo que suscita a ira diderotiana. Na raison d‘État se estabelece a heterogeneidade entre o mundo dos governados e o universo dos dirigentes. Como diz um comentador do problema, na aurora do Estado moderno “a verdade do Estado é mentira para o súdito. Não existe mais espaço político homogêneo da verdade; o adágio é invertido: não mais fiat veritas et pereat mundus, mas fiat mundus et pereat veritas. As artes de governar acompanham e ampliam um movimento político profundo, o da ruptura radical (…) que separa o soberano dos governados. O lugar do segredo como instituição política só é inteligível no horizonte desenhado por esta ruptura (…) à medida que se constitui o poder moderno. Segredo encontra sua origem no verbo latino secernere, que significa separar, apartar”. ( )
Diderot, numa Carta intitulada “Sobre o Exame do Ensaio sobre os Preconceitos”, escrito por Frederico da Prússia, o rei que iniciou sua carreira “filosófica” com um livro contra Maquiavel, defende o autor do Ensaio, D’ Holbach. Este, no seu escrito, aconselhava os príncipes a renunciar aos preconceitos da nobreza e da glória militar, abolir os privilégios reconhecendo o mérito verdadeiro realçado por uma educação pública de qualidade, e assegurando0 que deve-se dizer sempre a verdade ao povo ( ) Ora, Frederico é o rei que chegou a propor à Academia de Berlim , em 1777, “se pode ser útil enganar o povo ?”. ( ) No dia 23 de outubro de 1777, na sessão primeira da Academia de Berlim (Nouveaux Mémoires de l ‘Academie de Prusse, VIII, 46) Formey leu uma carta de Frederico na qual o rei perguntava “se é útil enganar o povo ?”. Em 1778 a Academia mudou a pergunta para “É útil para o povo ser enganado, seja que os induzamos em novos erros ou mantenhamos aqueles nos quais ele lavora ?”. Foram dadas 33 respostas, 20 pela negativa, 13 afirmativas, 4 foram tidas como boas para a primeira categoria, 7 para a segunda. Duas foram premiadas, a do alemão Becker na primeira categoria, a do matemático francês F. de Castillon na segunda. ( )
Segundo d’ Holbach, lido por Diderot, o homem ama a verdade. Diderot considera, como idéia favorita, que “não existe nenhum exemplo de que verdade tenha sido prejudicial nem para o presente, nem para o futuro” ( ) É o que o filósofo diz ao Sobrinho : “apesar do ministro sublime que citastes, acredito que se a mentira pode servir um momento, ela é necessariamente prejudicial em longo prazo, e que ao contrário a verdade serve necessariamente em longo prazo, embora ela possa prejudicar no momento”. Mesmo movimento no Sonho de D’ Alembert : “Bordeau: pensais que a mentira tem suas vantagens e a verdade os seus inconvenientes. Senhorita de Lespinasse –Sim. Bordeau : Eu também. Mas as vantagens da mentira duram um momento e as da verdade são eternas; mas as sequências incômodas da verdade, quando ela as tem, passam rápido, e as da mentira só acabam com ela. Examinai os efeitos da mentira na cabeça do homem e seus efeitos na sua conduta; na sua cabeça, ou a mentira se ligou de tal modo à verdade, e a cabeça é falsa; ou ela é bem e consequentemente ligada à mentiram e a cabeça é errônea. Ora, qual conduta poderíeis esperar de uma cabeça ou inconseqüente em seus raciocínios, ou consequente em seus erros ? –Lespinasse – O último desses vícios, menos desprezível, e talvez a ser mais temido do que o primeiro”. ( )
O verbete Raison d’ État da Encyclopédie determina os limites da verdade e da mentira do governante para com os governados: é preciso saber “se a raison d' état autoriza o soberano a fazer sofrer algum dano a um particular, quando se trata do bem do Estado”. É fácil responder: “se prestarmos atenção que, ao formar a sociedade, a intenção e a vontade de cada indivíduo deve ter sido sacrificar seus próprios interesses aos de todos, sem o que a sociedade não poderia subsistir. É certo que o todo é preferível à sua parte; entretanto nessas ocasiões, sempre incômodas, o soberano se recordará que deve uma justiça para todos os seus governados, dos quais ele é igualmente o pai; ele não dará por razões de Estado motivos frívolos ou corrompidos que o empenhariam para a satisfação de suas paixões pessoais ou as dos seus favoritos; mas ele gemerá diante da necessidade que o obriga a sacrificar alguns dos membros para a salvação real de toda a sociedade”. A mentira é o alicerce de todas as religiões, sobretudo do cristianismo (verbete cristianismo, XIV, 145). Montaigne, que é considerado por Diderot, é por ele condenado por considerar que existe mentira útil (Carta a Falconet, setembro de 1766).
Quanto à política do favor, o próprio Diderot dela não escapava na vida real. Basta recordar suas relações com Catarina 2, e outros elos sociais e políticos que lhe renderam bons recursos financeiros. Um personagem que aparece no Sobrinho, no entanto, mostra plenamente a efetividade do clientelismo e dos patrocínios políticos.
Trata-se de Palissot de Montenoi (1730-1814). Diderot o descreve como cínico, parasita, enganador. Em primeiro lugar, ele se instala no círculo “devoto” na corte do rei Stanislas da Polônia. Alí, encontra “proteção” em todos os sentidos. Frederico da Prússia, sendo péssimo escritor mas adulado por intelectuais, o conde de Stainville, mais tarde Duque de Choiseul e primeiro ministro, o aluga, ou aluga sua pena para criticar Frederico. Mais tarde, Palissot se beneficia dos favores de Choiseul, em 1755 ele consegue a Receita Geral dos Tabacos de Avinhão. Vítima de um desonesto, o mesmo Choiseul lhe perdoa uma dívida. Quando Diderot estava no máximo de tensão, pois periclitava a Enciclopédia, ele escreve as “Cartinhas sobre os grandes filósofos”, onde opõe Locke, Condillac, Voltaire aos enciclopedistas, sobretudo Diderot. Palissot, adulador de Luis XV e Luis XVI, adulará a Revolução, na sua parte mais extremista. Recebe uma cadeira no Conselho dos Anciãos e depois um cargo de administrador da Biblioteca Mazarino. ( )
“Antiga política” a que vigorou na Idade Média, edificada com os frangalhos do pensamento grego e romano. No século 12 o debate ocorre em relação às virtudes políticas. Apenas no século 13 os fragmentos do saber antigo começam a a ser unidos de modo coerente, definindo-se as condições intelectuais para o Renascimento. Tal aglomerado de idéias, que dificilmente poder-se-ia intitular como sistema une-se às formas de pensamento que surgem nas cidades livres, os municípios que se tornaram praticamente autônomas em toda a Europa mas sobretudo na Itália onde chegaram a se determinar como repúblicas (formadas nos séculos 11 e 12). ( )
Municípios : Roma, foedus, cai o império romano do Ocidente, feudalismo, anarquia, cidades municípios em luta contra a Igreja, os nobres, o imperador. Elas perdem sua autonomia e sua independência com a centralização do Estado. Na Itália e na Alemanha, apenas no século 19 o poder central conseguiu abolir a independência daqueles antigos municípios romanos. ( ) No momento em que as cidades republica se firmam, três são as correntes que orientam a lingua política: a tradição das virtudes (magnificamente representadas na Alegoria do Bom Governo), o aristotelismo, o direito romano. As cidades da Liguria, Lombardia, Emilia, Toscana, seguem a forma de governo no qual os cidadãos não obedecem príncipes mas apenas a senadores eleitos por eles. Além disso, os cargos tinham duração limitada, os Consules eram trocados a cada ano. A “ideologia” ciceroniana e o direito romano formavam o ideário das republicas indicadas. O maior cargo de autoridade era o Podestà, ou Potestà, que possuía poder judiciário, militar, administrativo e decisão na diplomacia. Mas seu estatuto era de eleito limitado pelos estatutos da cidade. Ele não tinha poder legislativo e, no fim do mandato, prestava contas ao Conselho dos Síndicos sobre como foram mobilizados por ele os recursos públicos e as pessoas a ele submetidas.
Tal princípio tem sua origem remota na chamada dokimasia (δοκιμασία) ( ) grega: antes e depois do mandato o dirigente devia ser examinado, quando suas contas eram aprovadas, ou não. Temos aí as bases da accountability democrática, princípio expulso da cena pública, liminarmente, pela razão de Estado, desde o século 17 até os nossos dias. Contra a razão mencionada se ergueram as revoluções inglesa, norte-americana, francesa. Do fracasso, desvio ou retrocesso dessas revoluções, renasceu a razão de Estado no século 19 e, depois, no século 20. Na Revolução Francesa, a confiança nas virtudes republicanas, com o Termidor, foi recusada como resquício subjetivo que não garantia a “governabilidade” contra os povos submetidos pela polícia ou exércitos, sobretudo após o domínio de Napoleão.
A seleção, nos escritos roussoístas, de escritos e sentidos, deu-nos algumas versões mentirosas sobre o pensador. E isto não foi obra do acaso. Com o golpe do Termidor, a Revolução Francesa deixou o campo dos valores e passou ao plano mentirosamente mais sólido do interesse econômico e social como base da política. As representações intelectuais do século 18, incluindo as de Rousseau, as de Diderot e mesmo as de um aristocrata como Voltaire, insistiam na virtude cidadã como base do governo não tirânico. Esta doutrina foi reforçada no período jacobino, sobretudo sob Robespierre. Com o golpe do Termidor, ela foi afastada na teoria e na prática políticas.
Comenta Alain Badiou num texto luminoso: “o ponto central é que ao princípio da Virtude se substituiu o princípio do interesse. O termidoriano exemplar (…) é certamente Boissy d’ Anglas. Seu grande texto canônico é o discurso do 5 Messidor ano 3. Citemos: ‘Devemos ser governados pelos melhores (…) ora, com poucas exceções, só encontrareis semelhantes homens entre os que, tendo uma propriedade, são apegados ao país que a contém, às leis que a protegem, à tranqüilidade que a conserva’.”. A virtude, comenta Badiou, “é uma prescrição subjetiva incondicionada, que não remete para qualquer determinação objetiva. É por este motivo que Boissy d’ Anglas a recusa. Não se exigirá do dirigente que ele seja um político virtuoso, mas que ele seja um representante governamental dos ‘melhores’. Estes não constituem uma determinação subjetiva. É uma categoria definível condicionada absolutamente pela propriedade. As três razões evocadas por Boissy d’ Anglas para entregar o Estado aos ‘melhores’ são essenciais e tiveram grande futuro: —para um termidoriano, o país não é, como para o patriota jacobino, o lugar possível das virtudes republicanas. Ele é o que contém uma propriedade. O país é uma objetividade econômica. —Para um termidoriano, a lei não é como para o jacobino, a máxima derivada do nexo entre princípios e situação. Ela é o que protege, e singularmente o que protege a propriedade. Assim, sua universalidade é totalmente secundária. Conta a função. —Para um termidoriano, a insurreição não poderia ser, como o é para o jacobino quando a universalidade dos princípios é pisoteada, o mais sagrado dos deveres. Pois a reivindicação principal e legítima do proprietário é a tranqüilidade. Encontramos, assim, o tripé fundamental de uma concepção objetiva do país, de uma concepção conservadora da lei, e de uma concepção securitária das situações. Uma primeira descrição do conceito de termidoriano nele vê a nuvem do objetivismo, do status quo ‘natural’ e da seguridade”. ( )
Justo porque o princípio objetivo impera a partir do Termidor e as noções de justiça, valor, virtude, são esvaziadas ao máximo, dando-se preferência à propriedade; porque não é mais permitido mudar a política sem a licença do mercado, o poder passa a desempenhar o papel de protetor da propriedade —velha tese de Locke—( ) contra os que não podem se encontrar no rol dos “melhores”. Não é preciso consultar os autores liberais do período, ou mesmo o que sobrou dos que defendiam o jacobinismo, para perceber que a garantia da propriedade deu-se com a mais dura violência. Termidoriano foi o império e termidoriana a restauração monárquica. Em ambos os períodos, o elemento “objetivo” invadiu a política e a cultura, deixando para os indivíduos apenas os devaneios românticos e a sensibilidade exacerbada. ( )
A passagem do “subjetivo” (as virtudes) para o “objetivo” marca o realismo ou razão de Estado. A política deixa de ser assunto da vontade, do querer coletivo ou individual, e se transforma em algo exterior aos planos dos homens, com estatuto “natural”. Quando o realista age, ele se ancora nas “leis da objetividade”, como se o Estado e a vida social seriam apenas uma réplica mais complexa dos mundo natural. Assim, os valores como a virtude deixam de ter sentido, eles são mais representações Ideeles do que realidades empíricas ou ideais. É como se o mundo político estivesse submetido às determinações expostas na Crítica da Razão Pura, deixando para o campo da Razão Prática o vazio metafísico. Quem se curva ao mundo político tal como ele “é” apenas “obedece leis objetivas” e quem tenta transformar as relações corrompidas é apenas um sonhador, nada mais.
Algo similar ocorreu no início do século 14, quando a maioria das repúblicas mudam a sua forma de governo em proveito de um signore ou família, com os príncipes. Azzo VII se torna principe de Ferrara a partir do cargo de podestà. Ele fez o Conselho Comunal prometer que, na sua morte, seria reconhecido seu sobrinho, Obizzo, Signore de Ferrara. Este foi aclamado Signore com o poder de governar segundo sua vontade. Em todas as antigas repúblicas, a mudança foi mais ou menos difícil e controvertida. Algumas cidades como Bolonha e Gênova alternaram república e principado. Outras, como Florença e Siena resistiram como repúblicas e caíram sob o domínio principesco apenas no século XVI.
O ideal virtuoso e republicano, a “política”, tem sua base estratégica em Macróbio, no comentário ao ciceroniano Sonho de Scipião (parte da República escrita por Cicero) ( ). Naquele sonhos os políticos virtuosos são premiados quando morrem, com a felicidade eterna. O essencial guardado pelos republicanos : “nada do que ocorre na terra é mais agradável ao Deus supremo que governa todo o cosmos do que o estabelecimento de associações e federações de homens unidos por princípios de justiça (iure sociati) que chamamos comunidades (civitates), Os governantes e protetores delas (rectores et servatores) dela vêm e para e para ela retornam após sua morte” (Comentário do Sonho de Scipião). A virtude garante a felicidade do governante. A equação é platônica. O político prudente, segundo Macróbio, ordena seus atos pela razão, desejando o que é reto, justo. Este político permite a felicidade coletiva.
Seria Maquiavel o inverso dos ideais elaborados por Cicero? Segundo seus críticos do século XVI e XVII ele é o corruptor das verdadeiras políticas e modificou a mais nobre arte humana, transformando-a em instrumento de servidão. Segundo Inocent Gentillet, ele inventou máximas totalmente “malvadas (meschantes) e sobre elas construiu uma ciência política ainda mais tirânica”(Discours sur les moyens de bien gouverner et maintenir en bonne paix un royaume ou autre principauté, citado por Viroli).
As virtudes integram os princípios ciceronianos da política. Se a justiça não assegura a todos o que lhes cabe, some a sociedade pela ação de sentimentos baixos como a inveja e a sedição. Para que exista justiça é preciso que a virtude impere nos governantes e nos governados. Seria Maquiavel inimigo da justiça, amigo das sedições ? Segundo James Harrington (Oceana, 1656) ele encobriu idéias republicanas sob a capa do elogio da dissimulação e ferocidade principescas. Harrington distingue duas espécies de prudência: o governo de jure, com justiça e obediência à razão, e o governo onde “alguns poucos homens sujeitam uma cidade ou nação e governam segundo seus (ou seu) interesse privado”. Este é o governo segundo os homens e não segundo as leis.
Viroli, que sigo ainda aqui, nota um pensamento de Hannah Arendt segundo o qual “Maquiavel é o único teórico político pós clássico que fez um esforço extraordinário para ‘restaurar a política na sua dignidade antiga’”. Outros comentadores, como Hans Baron, comparam o autor e o cidadão republicano ao autor de O Príncipe. Note-se uma peculiaridade: naquele texto não usa o termo “político” e nem seus equivalentes. Para esta constatação, Viroli é devedor de Dolf Sternberger. ( ) Segundo Viroli, não existia mais terreno para se falar em política, dada a nova lingua que estava sendo forjada e imposta praticamente, a da tirânica razão de Estado. Este juízo de Viroli pode ser discutido. Assim, outros autores, partindo também da constatação de Sternberger indicam um outra caminho. Segundo Giovanni Giorgini, ( )Viroli tem razão, mas é preciso qualificar seu enunciado. O Príncipe trata do “grau zero” da política, a situação na qual é “preciso instalar as condições para a possibilidade da política, criando ex novo ou salvando a comunidade política. Maquiavel aprendeu muito bem a lição de Tucídides (a soteria poleos é a mais importante consideração para um estadista) e também a lição do pensamento político romano ( salus reipublicae suprema lex esto).”. Assim, o Príncipe deveria ser lido como “uma variação do tema sobre o status necessitatis, a condição extrema e excepcional na vida de uma comunidade política (...) O príncipe, especialmente o novo, é com frequência forçado a agir contra a fé, a caridade, a humanidade, a religião, para preservar o Estado, citando Maquiavel na sua famosa frase, ele não deve separar-se do bem, se pode, mas estar pronto para o mal, se forçado. (...) O mal é especialmente necessário quando h]a corrupção no Estado ou quando a comunidade política enfrenta a destruição que vem de fora. E existe corrupção quando as leis favorecem apenas um segmento da comunidade e favorece a ambição dos poderosos. Em tal situação o vocabulário da política é pervertido: homens perniciosos são ditos industriosos no mesmo tempo em que bons cidadãos são tido como loucos”. Temos aí, novamente, a tese da “purga” invertida indicada por Platão, no seu retrato da tirania.
Notadas as divergências dos comentários, devemos ressaltar que, para Viroli, o vocabulário político anterior se justificaria, no entanto, nas cidades republicanas. O assunto de Maquiavel, no Príncipe, é o Estado do príncipe e, como tal, estado algo a ser preservado e dirigido. Viroli cita Maquiavel quando este diz o seguinte : “deixarei o raciocínio (ragionare) das repúblicas, porque em outra ocasião arrazoei muito. Trataremos apenas do principado (...) e discutirei como estes principados são passíveis de governar e manter”. Maquiavel, em Istorie Fiorentini fala de Cosimo, segundo o qual não é possível manter Estados com rosários (paternostri). Cosimo pensa no seu Estado, o dos Medici, não no poder soberano da comunidade política de Florença. Outro ditado da nova política ilustra a diferença entre Estado republicano e Estado de alguém: “é melhor uma cidade arruinada do que perdida”. Tal ditado expõe muito corretamente a política do Papa Julio 2, quando invadiu Bologna pretextando restaurar as antigas franquias daquela cidade. A sátira de Erasmo contra o pontífice é virulenta. ( ) Cosimo defende o seu stato e para isso exilou, confiscou, etc. Os cidadãos que não obedeciam não eram inimigos da república, mas do seu Estado. Ele premiou os amigos e partidários, como é evidenciado por Platão.
Segundo Viroli, Maquiavel, à semelhança dos humanistas do Quatrocentto, não fala da arte do Estado (na qual o Príncipe se baseia) como sinônimo do antigo vivere politico porque, para ele, “stato” não era apenas outro termo para republica, mas uma forma específica de organização que exclui a tirania e o governo despótico, sendo incompatível com o governo de alguém. Se um cidadão ou partido domina os demais acima das leis e acima dos magistrados, desaparece a república. Tres tipos de Estado, como se nota a partir do Principe: a) stato del Turco, despótico; b) stato di Francia (reino moderado); c) Stati qui sono consueti a vivere con le loro leggi e in libertà, repúblicas.
Maquiavel, assim, não usa o termo ‘político’ porque no Príncipe não existe política no sentido republicano. Ele escreve sobre a arte do Estado, a de preservar ou reforças o estado de alguém. O debate sobre o governo tirânico no qual a polis “pertence” a alguém e o governo político onde todos, governantes e governados, obedecem a Lei, é antigo como a filosofia. Em Platão, Aristóteles, etc. existem notas estratégicas sobre o tema.
Marcello Gigante, em Nomos Basileus ( ) apresenta um tratamento clássico do tema. Como ele mesmo diz, o assunto toca fundo no problema da justiça e da injustiça, “quanto no problema da legitimidade e da injustiça”. E também na questão da legitimidade da violência no mundo dos violentos. Hoje, adianta ele, “se pratica a violência em nome do ‘direito’ do punho, descoberta antiga do homem ainda deseducado. Mas tal ‘direito’ não tem raiz divina, nem o homem conseguiria codificá-lo. Hoje o interesse econômico elevou a nomos novíssimo uma história inglória, com a violência do mais forte sobre os mais fracos. Sobram apenas as teorias ‘intimistas’ do desfalecimento da consciência moral, e cuja ação inclui os procedimentos tortuosos e de bajulação”. Gigante escreve logo após a IIa Guerra Mundial, com o fascismo vencido, bem como o nazismo. O estalinismo estava no auge. A pergunta sobre o político, o republicano, o justo, permanece, bem como a questão dos saber se obedecemos leis ou somos servos de outros homens. Aqui, poderemos recordar as invectivas de Etienne de la Boétie, no Discurso da Servidão Voluntária. Somos cidadãos dignos deste nome, ou apenas objeto do poder?
Em Nomos Basileus temos exibidos os elos entre moral, força e direito no pensamento grego, de Homero a Platão. Nos poemas épicos, Zeus garante a diké (a lei), mas o termo nomos aparece apenas no composto eunomia (em antítese à hybris, OD. XVII, 487). Hesíodo fala de nomos genericamente como norma de vida: Zeus determinou um nomos para os animais (mas sem diké) e outro para os homens, e tal nomos é fundido na diké, contraposta à Bia, a violência física, a pura força. (“For the son of Cronos has ordained this law for men, that fishes and beasts and winged fowls should devour one another, for right is not in them; but to mankind he gave right which proves [280] far the best. For whoever knows the right and is ready to speak it, far-seeing Zeus gives him prosperity; but whoever deliberately lies in his witness and foreswears himself, and so hurts Justice and sins beyond repair, that man's generation is left obscure thereafter”. Trab. Dias, 276-280, Perseus Project).
A primeira vez em que a idéia de que a violência pode se harmonizar com a lei encontra-se em Solon, quando ele defende sua reforma. Ele afirma: “com o império do nomos, conciliando violência e justiça, cumpri esta obra”. O sintagma Nomos Basileus se encontra em Píndaro, que recorda como Hércules se apoderou das vacas de Gerion com a força. Mas a própria violência pode ser justa, se imposta pelo Nomos soberano. Nomos é a vontade de Deus. Mesmo perplexos, devemos nos inclinar diante do Nomos que autoriza a violência (como a de Hércules contra Gerion). Heródoto (III, 38) cita o poeta Píndaro ao narrar que Dario perguntou aos Callati (tribo indiana) e aos gregos sobre os funerais. Os indianos comiam os cadáveres dos genitores, viam como sacrilégio cremá-los. Gregos os cremavam e jamais aceitariam comê-los.
Heródoto: “Tais são, pois, as tradições e me parece que Píndaro tinha bem dito ao afirmar que o Nomos é o senhor do mundo”. O sentido dado por Heródoto é relativista mas, segundo Gigante, “as tradições de um povo têm, para ele, o valor de uma norma que ninguém deve violentar”. Demarato teria previsto que os espartanos não cederiam a Xerxes e o combateriam até a morte “porque acima deles está, soberana, a lei”. Segundo Gigante, no pensamento arcaico não existe conflito entre nomos e physis, “o predomínio da divindade é nomos e physis ao mesmo tempo, é lei santa e violenta, ao mesmo tempo”. (Gigante, p. 12). O Nomos basileus preside deuses e homens.
Quando, mais tarde, se distingue outra lei escrita (humana) e outra não escrita (divina) já se nota que a unidade arcaica do nomos foi violada. o que torna problemático o convívio político e social; a ética também se torna relativística. Este é o momento da sofística, com a “descoberta” do direito do mais forte, do nomos physeos. Antes, o direito do mais forte tinha uma só fonte: o divino, como em Píndaro. Os sofistas concedem ao direito do mais forte o fim terrestre e materialista do sympheron, o útil individual. Em Tucídides, Platão, Eurípedes, há o retorno da antiga raiz universal de lei fundamental. Daí a luta contra os sofistas e a tirania, com a unidade do direito e da ética. É o que se chamou, ao longo da Idade Média e no início da Renascença, “política”.
O imaginário medieval sobre o tempo e o eterno é transposto para os programas políticos. De um lado, os católicos da Europa que enxergam na razão de Estado o “inferno”, unindo semelhante doutrina a Maquiavel, e de outro os protestantes que, também vendo na razão de Estado um elemento pecaminoso, atribuem aos católicos todo maquiavelismo. Enfim, temos os que na França são chamados de “políticos”, dispostos a ultrapassar os vetos religiosos para a imposição do Estado sob comando central, do soberano monarca. Começo nosso exame com um autor protestante e republicano do século 17 revolucionário, John Milton, justamente no monumento poético e político denominado O Paraíso Perdido. Todo o poema pode ser lido como uma alegoria da ordem governamental, na passagem das repúblicas para o poder monárquico. Satã contesta a sucessão ao trono do Eterno pelo Filho, considera injusta e não justificada a escolha arbitrária da segunda pessoa da Trindade, em seu detrimento. A partir daí, comanda uma rebelião que mimetiza (apenas mimetiza) os traços republicanos e igualitários do seu movimento. Na verdade, seu programa é tirânico porque o poder seria exercido por ele, em seu nome. O Estado celeste ainda teria um dono, seria de alguém. Nos entrechos da saga luciferina encontramos elementos das doutrinas reais ou fictícias atribuídas a Maquiavel. ( )
Existe hoje, entre os comentadores, quase consenso sobre os elos entre Milton e Maquiavel, em termos culturais. Milton, ao começar seus trabalhos já encontra vários “Maquiavéis” : o amoral, o político teórico, o diabólico do teatro, o satanás dos teólogos, o campeão das virtudes republicanas. O Paraíso Perdido recolhe fragmentos de tais tradições múltiplas mas o poema, sem dúvida, toca essencialmente no problema da sociedade ideal. Recordemos que um dos veios essenciais do protestantismo encontra-se no pensamento de Santo Agostinho e na sua separação rigorosa entre a civitas celeste e a terrestre. A primeira, eterna, serve como belo modelo, impossível de ser alcançado dentro do tempo e do espaço; a segunda é mostra da nossa degradação após o pecado. Em nosso mundo, podemos ansiar pelo paraíso perdido, mas apenas a passagem ao Eterno, pela graça divina, poderemos encontrar a paz e a felicidade. Este ponto ajudou e muito os protestantes reformadores a desconfiar das instituições eclesiásticas visíveis (logo, ligadas ao espaço e ao tempo) e nas autoridades da Igreja e do Estado. Milton segue a tradição protestante, evocando a passagem do Eterno, após a Queda, como melancólica perda de toda felicidade.
Seria possível conciliar os clássicos do pensamento antigo e o cristianismo? A pergunta que teve resposta negativa em Tertuliano (leia-se novamente o Apologeticum) e positiva em muitos padres da Igreja como São Justino, na corrente neo-platônica, ou nos que seguiram o caminho de utilizar pensamentos estoicos como base de sua compreensão do mundo físico e moral ( ) ainda hoje suscita debates no mundo religioso. A posição católica tradicional pensa responder de modo positivo à pergunta. Os escritos de Santo Tomás de Aquino, com forte presença de elementos aristotélicos mas também neo-platônicos, como no caso de Dionisio Areopagita, mostram este encaminhamento positivo. E surgem resultados estratégicos, como o poema de Dante, a Divina Comédia. Alí ocorre o diálogo tenso que se completa, de lado a lado, na cultura cristã e na antiguidade representada por Virgílio.
Além desse ponto, notemos que Milton também enfrenta, na condição de pensador da Reforma, o problema do elo entre indivíduos e comunidade política. Recordemos, novamente, que a Reforma se dirigiu contra o princípio da autoridade visível eclesiástica, liberando assim o indivíduo dos laços comunitários e o entregando à uma solidão fundamental diante de Deus e da humanidade. O vínculo entre indivíduo e Igreja (que reverbera nos tratos do indivíduo com o Estado) situa-se na mais íntima questão do liberalismo e do republicanismo moderno. Quem desejar maiores detalhes sobre o ponto, consulte o clássico escrito de J. G. Fichte, Considerações sobre a Revolução Francesa ( ) Se não mais existe uma Igreja visível, dado o predomínio da Igreja celeste, e se o Estado por sua vez não recebe mais legitimidade do poder religioso, o único fundamento da obediência e confiança no poder público encontra-se na vontade e na consciência, invisível e autônoma, dos indivíduos. Contra tal doutrina se ergueu Hegel e o pensamento moderno. Mas sempre que se fala em liberalismo, deve-se pensar no marco trazido por Fichte, na trilha de Kant.
Voltemos a Dante, um poeta e pensador que defende a independência do poder terreno diante do religioso. ( ) Dante encontra, diante de si, as mesmas aporias ainda hoje não resolvidas, entre o indivíduo e o comunitário, entre o pensamento cristão e o paganismo. Sua síntese é uma resposta provisória, sempre ameaçada pelos integrismos e pela razão de Estado. Indico, para análise, o texto de Erich Auerbach, “Farinata e Cavalcante” ( ). No poeta, diz Auerbach, “a figura humana se impõe de maneira mais forte, concreta e peculiar do que, por exemplo, na poesia antiga. Pois da autoconsumação que compreende toda a vida passada, tanto objetivamente quanto na memória, faz parte de um desenvolvimento histórico individual, uma história, em cada caso individual, de um devir cujo resultado está diante de nós como coisa pronta, mas cujos estágios são apresentados porém, em muitos casos, pormenorizadamente”. Nos tres reinos, existem indivíduos concretos em situação concreta, para usar a frase de Marx na Ideologia Alemã. O Inferno reflete, anamorfóticamente, o Paraíso. Recordemos a alegoria do Bom Governo.
Milton procurou ver o instante inicial da vida humana em sociedade, a Queda que faz irromper o tempo, a corrupção e a opacidade na mente e no corpo humano. Dante exibe o que pode se tornar o homem por suas virtudes ou vícios, paixões e dignidade. Nos dois casos, os poetas individualizam os méritos e as culpas, mas em sentidos diversos: Dante projeta indivíduos concretos, históricos (até papas simoníacos) para o Além. Milton mostra como caímos do Além para o tempo e o espaço, como perdemos e nos perdemos do Eterno. Em Milton não temos os Farinata nem os Cavalcante, nem toda a multidão de indivíduos com nome de família, de cidade, etc. Mas Adão, Eva, os anjos e, sobretudo Satã, têm traços individualizantes marcados. Eles não se perdem em coletivos abstratos, mas têm vida, idiossincrasias.
Maquiavel trata dos mesmos problemas no Príncipe e na Primeira Década de Tito Lívio. Milton deliberadamente evoca o Príncipe na sua pintura de Satã. Deste modo, ele vai contra Maquiavel e, de certo modo, contra Dante e Tomás de Aquino (não esqueçamos o peso de Lutero e de Calvino no entrecho). Para os Reformadores, que seguem o apóstolo Paulo, a sabedoria pagã é loucura diante de Deus. Para Dante e Aquino impera o enunciado de que “gratia non tollit naturam, sed perficit”. Ou seja, no plano da natureza (o dos pagãos) existem possibilidades de salvação e, mesmo, de inspiração para a vida cristã. Se Milton recusa a tradição católica, na qual não se estabelece uma ruptura absoluta entre natureza e Além, pelo menos não uma ruptura sem remédio, ele, no entanto, move o quadro do inferno do poder.
Já no livro primeiro do PP, Satã exibe os traços do Príncipe: impetuoso, confiante em si mesmo, corajoso e tortuoso. Recordemos que no capítulo 18 do Príncipe o governante deve saber usar a fera dentro de si, sendo ao mesmo tempo leão e raposa, segundo as circunstâncias. No capítulo 25, Maquiavel critica a tendência à rigidez de comportamento, do governante que não sabe se desviar de suas inclinações. Então é elogiado quem sabe mudar sua natureza segundo a contingência, ou seja, a Fortuna. Para ele, a virtù é o talento para agir que se alia à prudência. Assim, Satã é ao mesmo tempo maquiavélico e não maquiavélico. Seu discurso nos dois primeiros livros do PP evoca os princípios da força e da astúcia. Entre muitas passagens, os versos 645 do livro I: “Nossa melhor parte consiste/ em operar com desígnios ocultos por fraude ou astúcia/ o que a força não consegue” ( ). Mas surge um problema: Satã é inflexível e imprudente, o que não corresponde às receita de poder apresentadas no Príncipe. Aqui, Milton força um lado do pensamento maquiavélico, o republicano segundo o qual os principados são, na verdade, fracos pois abolem a força que reside na soberania popular. Satã possui a impetuosidade indicada por Maquiavel para que se vença a Fortuna pois esta, como toda mulher é melhor dominada pela força (Cap. 25 Principe). Mas coragem não é o único requisito, pois é preciso sabedoria. sempre recordando que a politica, como diria Bismarck (repetido por um ex-presidente brasileiro) é a arte do possível. Maquiavel não elogia os que, por princípio, perdem o principado. O elogio de Maquiavel também se amplia para as inovações, mas com prudência, porque ao inovar um governante pode abrir a comporta para um oceano de contingências, fora de seu controle. Donde a lição com um oxímoro : a “inovação estável” que exige clarividência e coragem ao mesmo tempo. No mesmo capítulo 25, a Fortuna é comparada a um rio violento que só pode ser detido por diques, desde que ele seja visto com previsão prudente, que se baseia no domínio do passado e do presente, orientando em parte o futuro.
O oceano de contingências que segue a rebelião de Satã mostra inovação imprudente o que é uma fratura na sua virtù. Ele admite sua imprudência ao confessar para Belzebu que tinha menosprezado o poder divina em armas (I, 93-94). No inferno, ele continua inflexível, ou imprudente. Ora, o ensino de Maquiavel é que importa mudar o pensamento segundo as circunstâncias externas. Satã está tão petrificado em seus pensamentos sobre si mesmo que não percebe a radical mudança em seu estatuto. Ele se endurece na força, um perigo contra o qual adverte Maquiavel. Como, devido ao automatismo, os governantes tendem a repetir tudo o que lhes trouxe sucesso, eles perdem a habilidade de inovar e se tornam vítimas da Fortuna, que sempre cria desafios novos (Principe, 25). Satã não endurece por suas vitórias, mas pelo seu fracasso, à semelhança do Faraó, cujo coração vira pedra mais dura a cada nova praga divina. Maquiavel ensina se dobrar diante do poder de fato e de sua vitória. Satã não se dobra diante da vitória divina, mostrando cegueira política. Satã se ilude no presente e no passado. Ele passa a acreditar, como se fosse verdade, que as forças lideradas por ele “abalaram o trono divino” e que Deus mesmo “duvidou de seu império” (PP, I, 105). Ele acredita ter adquirido clarividência com os fatos que testemunhou e praticou. Mas, na verdade, nada aprendeu, porque insiste em combater um poder invencível. Ele se imagina livre para inovar seu futuro, mas é escravo de sua própria natureza. Aqui temos a recordação da República platônica. Nela, nos livros 8 e 9, Sócrates mostra que a personalidade dos tiranos - indefesa diante dos seus próprios desejos, isolado dos outros, miserável. O erotismo de seu próprio ser, puro desejo, nunca pode ser satisfeito, porque é insaciável. Na mística, sabemos, o elo entre Deus e criatura é de ordem absoluta, insaciável na terra, só completa no Eterno, quando toda a beatitude será, como diz o Apocalipse, grátis : δωρεάν (acusativo, como advérbio : graciosamente, sem uma causa, livremente). “Et spiritus, et sponsa dicunt: Veni. Et qui audit, dicat: Veni. Et qui sitit, veniat: et qui vult, accipiat aquam vitæ, gratis” (Apocalipse, 22, 17)
No Príncipe, um enunciado que escandalizou muitos que o leram, foi a recomendação para que o governante esteja apto a fazer o mal. Satã atende ao requisito : “Fazer o que é da boa vontade nunca será nosso labor, / Mas sempre fazer o mal é a nossa delícia,/ pois é contra à sua Alta vontade/ Contra a qual resistimos”. (PP, I, 159-62). Sua busca é o do interesse pessoal, acima de tudo : “viveremos neste vasto recesso,/ Livres, e não prestando contas a ninguém”(PP, II, 253-56). “Free, and to none accountable”. Tal é a divisa do absolutismo da monarquia moderna, absolutismo que jamais foi aceito pela Igreja católica e que, entre protestantes, significava um excesso das prerrogativas do governo civil.
Segundo leitores protestantes e católicos, Maquiavel incentivaria o mal no mundo, em vez de combatê-lo. Leo Strauss não foi o primeiro, nem será o ultimo a identificar maquiavelismo e política da perversão. ( ) Pouco importa que outros leitores, também agudos, digam que Maquiavel sublinha que o mal deve ser feito, segundo o preceito da salvação do povo, “segundo a necessidade”. Seu uso do mal seria pragmático. Já o de Satã é pouco maquiavélico, porque absoluto, auto-destrutivo para seu reino. Ele é fixo em demasia, quando é preciso, para salvar o povo, que os principes ou o povo sejam abertos a inovações. O povo é mais facilmente adaptado para enfrentar novos desafios, tal é a lição posta nos Discorsi (livro III). Em texto político essencial, Milton afirma que as comunidades são de modo inerente mais estáveis do que as monarquias. (The readie and easie way) ( ) . “A realeza foi considerada mais segura e durável, porque o rei e, na maior parte o seu Conselho, não muda durante a sua vida: mas uma comunidade é imortal; e, portanto, ela é mais firme, segura, e muito acima da Fortuna. Porque a morte de um rei causa com frequência muitas alterações perigosas; mas a morte agora e então de um senador não é sentida; a maior parte do corpo senatorial continua e permanece nas grandes e nobres comunidades, como se eles fossem eternos”.
Maquiavel prefere os governos mistos porque eles reúnem as habilidades do “um”, “dos poucos”, “dos muitos” conforme surgem as dificuldades. Naquele regime, o misto, os cidadãos constroem o Estado e, por sua vez, cada cidadão é nutrido pelo todo. A virtude cívica se fortalece com o uso e desaparece com o desuso. Uma pequena nota: a combinação dos três elementos é um axioma dos pensadores contra revolucionários do século 19, contra as teses republicanas ao modo de Maquiavel e das Luzes. Segundo eles, a Igreja é o modelo de poder, tanto civil quanto religioso, porque nela se encontram o um, os poucos, os muitos. Ela é ao mesmo tempo monárquica, aristocrática, democrática.
Milton, como Maquiavel, via nos seus compatriotas gente corrompida, efeminada, indigna da liberdade republicana. Os ingleses de seu tempo seriam “escravos por natureza, animais vagabundos e sem palavra; inaptos para aquela liberdade pela qual eles clamam com barulho, mas aptos a serem reconduzidos rumo à sua velha servidão, como uma espécie de clamorosas e briguentas brutas ( ...) que não sabem como usar a liberdade pela qual lutam”(Eikonoclates, XXVII).
Uma leitura interessante dos poemas miltonianos encontra-se em Christopher Hill, historiador inglês cujos conhecimentos da História de sua terra é dos mais amplos e profundos. ( ) Particularmente no capítulo intitulado “A queda do homem”, encontramos a exegese política do PP e de outros poemas. Trata-se, segundo Hill, de uma crítica virulenta aos revolucionários que, na busca de mudar o mundo da razão de Estado e da monarquia, tombam nas tentações do poder, ou seja, nas tentações da razão de Estado, pioradas pelo orgulho, ganância material, etc. ( ).
Precisamos voltar ao pensamento medieval, com a noção da hierarquia celeste que serve de modelo para a terrestre e política. Repercutem em Tomás de Aquino os escritos de Dionísio, o pseudo-Areopagita, sempre pelo filtro de Agostinho: “um soldado está sujeito ao seu rei e ao seu chefe de exército; em sua vontade ele pode buscar o bem de seu chefe, e não o de seu rei, ou o contrário. Mas se o chefe recusa a ordem do rei, a vontade do soldado será boa se recusar a vontade do chefe em favor da real; ela será ao contrário má, se obedece a do chefe contra a do rei, pois a ordem de um princípio inferior depende da ordem do princípio superior.” As substâncias separadas, adianta Aquino, “não são apenas ordenadas em relação a Deus, mas umas em relação às outras, da primeiro até a última”. (Summa contra gentiles).
O universo inteiro segue, dos anjos aos governantes, a ordem hierárquica essencial. “A bondade da criação não seria perfeita sem uma hierarquia dos bens segundo a qual alguns seres são melhores que os demais; sem isto todos os graus do bem não seriam realizados e nenhuma criatura seria semelhante a Deus por sua preeminência sobre as outras. Assim a bondade última dos seres desapareceria com a ordem feita de distinção e disparidade; bem mais a supressão da desigualdade dos seres arrastaria a supressão de sua multiplicidade: um é o efeito melhor do que o outro pelas próprias diferenças que distinguem os seres uns dos outros, como o vivente e o inanimado e o racional do não racional”. Esta escala cósmica e ontológica (sobremodo axiológica) continua na soberania política: “a perfeição para todo governo é prover os seus súditos no que diz respeito à sua natureza, tal é a noção mesma de justiça nos governos. Do mesmo modo, pois, que para um chefe da cidade opor-se — se não for apenas de maneira monentânea em função de certa necessidade —a que os súditos cumpram sua tarefa , seria contrário ao sentido de um governo humano, do mesmo modo a sua natureza seria oposta ao sentido do governo divino.”
Aquino, com base na doutrina da hierarquia celeste, escreveu minuciosas observações sobre o livro de Jó. As mais relevadoras, no vínculo entre poder e orgulho, encontram-se em notas sobre os derradeiros versículos do poema. Diz Tomás: “após o Senhor descrever as particularidades do diabo sob a imagem do elefante, o maior dos animais terrestres, ele o descreve na figura do Leviatã, ou da baleia que é o maior animal marinho”. O poder do Leviatã não pode ser evitado ao modo humano, pela lisonja ou ameaças. Assim, “o diabo não teme o homem”. A potência de Satan é imensa. E Aquino enfrenta, ao seu modo, o problema arcaico da teodicéia: Deus não é cruel por ter suscitado o poder demoníaco. “Por tê-lo suscitado não sou cruel”. A onipotência divina não poupará o poderoso Leviatã : “todas as coisas sob o céu são minhas”.
Aquino segue para as linhas finais: “Nenhuma potência sobre a terra é-lhe comparável. Ele foi feito para não temer ninguém. Ele vê grande em tudo; ele mesmo é o rei de todos os filhos do orgulho”. A versão latina, utilizada pelo doutor da Igreja, é a da Vulgata, a mesma que suscitou o imaginário hobbesiano sobre o poder terrestre: non est super terram potestas quae comparetur ei, qui factus est ut nullum timeret. Omne sublime videt : ipse est rex super universos filios superbiae.( )
Ao comentar este passo, o filósofo cristão ressalta a incomparável e indizível força do Altíssimo, infinitamente superior à do Leviatã. Quando o diabo for vencido, “os anjos do Senhor temerão admirando o poder divino; mas nessa admiração muitos efeitos da virtude divina são-nos conhecidos e (o autor do livro de Jó, RR) introduz aqui ”e o terror os purificará “; com efeito, como diz Dionísio no capítulo 6 dos Nomes divinos (na verdade, trata-se do tratado sobre as Hierarquias Celestes, RR), os anjos são ditos purificados não de uma impureza, mas da ignorância; como toda criatura corporal, se comparada aos santos anjos, é pouca coisa, não se indica por aí que os anjos celestes estão muito espantados com o cetáceo corporal, a menos que talvez se enxergue homens nestes santos anjos; os anjos de que tratamos assistem a decadência de Satan, o Leviatã espiritual que foi transido pela justiça divina quando caiu do céu pelo pecado, então os anjos admiraram a majestade divina e se purificaram ao separar-se de sua companhia”.
Finaliza Aquino : “…o intento do demônio é agarrar tudo o que é sublime. E como essas coisas são próprias do orgulho (…) o diabo não só em si mesmo é orgulhoso, mas ultrapassa todo o mundo em sua soberba e mostra-se como fonte de orgulho para os outros, (…) ele mesmo é rei de todos os filhos do orgulho, ou seja, dos escravos do orgulho e que o tomam por guia”. Que lições Job (e cada ser humano após ele) tira da parábola do Leviatã? Responde Aquino: “o que mais deveria ser temido por Jó é que o diabo pedisse para lhe tentar, levando-o ao orgulho e ao seu reino; ser-lhe-ia necessário evitar as disposições e as palavras que respiram orgulho”.
Satan quer agarrar tudo o que é sublime. E como essas coisas são próprias do orgulho (…) o diabo não só em si mesmo é orgulhoso, mas ultrapassa todo o mundo em sua soberba e mostra-se como fonte de orgulho para os outros, (…) ele mesmo é rei de todos os filhos do orgulho, ou seja, dos escravos do orgulho e que o tomam por guia”. Que lições Job (e cada ser humano após ele) tira da parábola do Leviatã? Responde Aquino: “o que mais deveria ser temido por Jó é que o diabo pedisse para lhe tentar, levando-o ao orgulho e ao seu reino; ser-lhe-ia necessário evitar as disposições e as palavras que respiram orgulho”.
Apesar dos muitos choques entre o ensino católico, representado por Tomás de Aquino e as doutrinas protestantes —na interpretação da origem do mal e do poder mundano— existe pouca discrepância nas duas percepções sobre a rebelião de Lúcifer. Tudo o que enunciei sobre o comentário tomista foi assumido nas várias igrejas e seitas reformadas. Mesmo autores que ajudaram poderosamente a separar o Estado de seus fundamentos religiosos, como Francis Bacon, usam o símile angélico para expor os nexos entre conhecimento e poder político. “O desejo de poder em excesso causou a queda dos anjos; o desejo de saber em excesso causou a queda do homem”. Essa fórmula adquire um significado grave se aproximada do aforismo baconiano célebre: knowledge and power meet in one. Sim, desde que limites sejam respeitados.
As achegas anteriores permitem-nos visualizar o maior poema cristão sobre o poder e o conhecimento, após o Inferno dantesco. Refiro-me ao Paraíso Perdido. Milton constrói a sua trama e mantém a espinha dorsal da hierarquia, herança do neo-platonismo, certamente de Proclus, mas com muita segurança também de Dionísio, o pseudo-Areopagita. Sem ela, fica sem nenhum sentido cada passo do imenso drama cósmico desenvolvido de modo épico. Sobre Milton, tudo foi dito e tudo ainda resta a dizer. Saliento apenas o aspecto da soberba que marca, no caminho dos versos, a Queda satânica e o campo da política humana. Como sublime artesão do verso, Milton exercita um imaginário que vai além dos textos e dos motivos encontrados na vasta história do cristianismo ou da cultura judaica e grega que o moldaram. Assim, não se recobrem totalmente os personagens angélicos e suas atribuições, em Dionísio Areopagita e no poeta inglês. Na hierarquia celeste, os anjos ocupam os lugares mais próximos do Altíssimo, idéia ampliada por Milton com todos os recursos culturais a seu dispôr.
A soberba une-se de imediato à política angélica no Paraíso Perdido. Lúcifer, o glorioso, desejou “ombrear com Deus, se Deus se lhe opusesse” e “do Onipotente contra o Império e trono/Fez audaz e ímpia guerra”. Sua marca, desde então, encontra-se na “Soberba,
empedernida, ódio constante”. Na queda, ele traz o sinal do medo, algo próximo em demasia ao exercício político: “De sua coma fúlgido privado; Ou quando posto por detrás da lua, /E envolto no pavor de escuro eclipse,/Desastroso crepúsculo derrama/Pela metade do orbe, e os reis consterna/Em seu poder temendo algum desfalque./Obscurecido, mesmo assim fulgura/Mais que os outros arcanjos, seus consócios;/Mas dos raios profundas cicatrizes/Aram-lhe o rosto macerado, aonde/Mil cuidados contínuos se aposentam/Sob o ouropel de intrépida coragem/De ultriz tenção, de refletido orgulho”. Nas suas falas aos dirigidos, anjos de escalão menor na via ascendente dos seres, o monarca do inferno é soberbo orador, em todos os sentidos. Domina a retórica com maestria e nela exibe sua plena arrogância. Diante do silêncio temeroso do exército maligno, que teme assaltar o trono divino, “Com orgulho monárquico se expressa : ´Dos céus prole sublime, empíreos tronos, /Sois intrépidos, sim! mas não estranho/Que hoje o silêncio e hesitação vos prendam./ É dilatado e aspérrimo o caminho/ Que à luz do Empíreo vai das trevas do Orco”. As indicações do orgulho luciferino são múltiplas, ao longo do poema. Todas conduzem ao mesmo ponto : “Guerrear nos Céus, dos Céus o Rei supremo,/ De lá me arrojam a ambição, o orgulho,/ Mas…ai de mim! por quê ? Justo e benigno, / De tal retribuição credor não era,/Ele que o ser me deu, que nessa altura/Me colocou imerso em brilho, em glória”.
No sistema doutrinário de John Milton, a recta ratio encarna-se na pessoa do Cristo, sinômino de harmonia e de paz, enquanto Satan é a razão que delira e arma laços para os demais seres. Como diz um comentador, “Cristo é o Logos da cristandade neo-platônica e o agente executivo de Deus, ao mesmo tempo abolindo a rebelião e criando o universo e o homem de acordo com a sua ´grande Idéia`” (Bush, D., 1977: 167). Assim, o sistema do mundo e do poder exigem a soberania da razão e da vontade racional sobre as paixões, sobretudo contra a libido dominandi. A grande raiz de todos os males sociais ou éticos encontra-se no orgulho. O mesmo comentador chega a enunciar que “o orgulho e a presunção constituem o tema inteiro de Milton”. Para tudo resumir, “o orgulho que aspira para além dos limites e das necessidades humanas, o desejo de poder pelo conhecimento é o motivo que se encontra em toda a tentação de Eva por Satan”. Deste modo, Milton teria diagnosticado, na pessoa de Lúcifer, os males todos de nossa modernidade, com o naturalismo, o liberalismo sem peias, o orgulho irreligioso. Ele também mostrou “a vontade de potência, pública e privada, a presunção intelectual, o desejo egoista, buscando seus fins pelo uso da força e da fraude e destruindo a ordem divina e natural no mundo e na alma”. (Id. Ibid., 171-174)
Um trecho do poema suscita debates acalorados entre os comentadores. Trata-se dos versos onde Cristo se dirige à primeira pessoa da Trindade dizendo: “Omnipotente Pai, razão te assiste/Para te rires de teus vãos contrários/E seguro tratares com desprezo/Seus tumultos e ardis, inúteis, fátuos.” O riso divino não é novidade alguma na época. Recordemos Pascal: na célebre 11ª Carta a um Provincial encontra-se toda uma teologia do riso contra a presunção tola e orgulhosa dos homens. Segundo Pascal, a própria divindade criou o riso para colocar Adão no seu devido lugar: “nas primeiras palavras ditas por Deus ao homem após a Queda, encontra-se uma caçoada e uma ironia picante (…) pois seguindo-se a desobediência de Adão (…) parece pelas Escrituras que Deus, em castigo, tornou-o sujeito à morte e após tê-lo reduzido à miserável condição devida ao pecado, riu-se dele (…) com palavras de brincadeira, `Eis que o homem tornou-se um de nós`. Ironia cruel e sensível pela qual Deus o espetou vivamente”. Deste modo, o riso foi merecido pelo homem, a quem Pascal nomeia, em italiano, ridicolosissimo eroe !.
O riso divino levanta a questão: todo o Paraíso Perdido armaria uma enorme comédia na qual anjos e homens seriam apenas e tão-somente heróis superlativamente ridículos? Esta possibilidade não é alheia à cultura ocidental anterior a Milton. Nas Leis, Platão pede que imaginemos seres vivos, como nós, espécies de marionetes fabricadas pelos deuses: “fomos produzidos para o seu divertimento, ou para um fim sério? Não o sabemos.”. E. Curtius lembra que Lutero usou, para designar a justificação, o termo Spiel Gottes quando se trata dos homens. Se tragédia ou comédia, não está ao alcance do homem decidir o sentido último da existência. Robert Burton, a grande fonte moderna sobre a melancolia, ao falar dos demônios, lembra o dito platônico: ludus deorum sumus. (Burton, R., 2001: 326)
É possível enxergar no Paraíso Perdido as duas faces, a cômica e a trágica. O melhor seria percebê-lo como terrível tragicomédia35 na qual o sentido existencial se perde ou se ganha, conforme a situação do sujeito. C.S. Lewis, em ensaio clássico sobre o Satan de Milton afirma o primeiro traço —o ridículo— como chave hermenêutica. Razão em demasia conduz à loucura. É assim que Lúcifer —o ente em cuja consciência mais se depositou a luz da razão— ensandeceu por completo. Sua razão é louca. Este é o significado da epígrafe de seu texto, posta por Lewis: …le genti dolorosi/ C´hanno perduto il ben de l ´intelleto. (Dante).
Essa lembrança do verso dantesco, devida a C.S. Lewis, tem enormes razões históricas atrás de si, sobretudo no campo da medicina imediatamente anterior ao poema de Milton. Ao estudar a prática terapêutica do século 16, Jean Ceard discute os nexos entre melancolia e influência diabólica. O melancólico é triste como Lúcifer, mas “se o diabo pode teoricamente nos aplicar mil doenças, ele no entanto tem predileção pelas que ofendem o cérebro e os nervos”. Se perseguirmos esta via, o demônio de Milton experimenta o seu próprio mal, pois é melancólico e perdeu o siso. Ceard lista os acometidos pela enfermidade na Bíblia, sobretudo nos escritos cristãos. Ali encontramos um lunático epiléptico (Mateus, 17, 14 ss), um maníaco licântropo (Lucas, 8, 27 ss), um outro doente de “convulsão da espinha” (Lucas, 13, ss). O diabo prefere “as doenças de nervos e do cérebro, o que deve nos alertar para certo número de representações pouco conscientes e incompletamente formuladas”.
Desde remotas épocas a forma literária em O Paraíso Perdido confunde os analistas. Juizos categóricos conduzem a recusas e a teses problemáticas, como a de Hegel: “Milton parece, tendo-se em conta a sua época, um modelo digno de admiração, seja pela cultura reunida por meio do estudo da antiguidade, seja pela correta elegância da expressão. Ele, no entanto, é absolutamente inferior a Dante na profundidade de conteúdo, na energia, na originalidade da invenção e fatura e particularmente pela objetividade épica. De fato, de um lado o conflito e a catástrofe do Paraíso Perdido pende para um caráter dramático, de outro (…) a tendência lírica e didascalico-moral constitui um traço peculiar de se afastar muito do assunto, no que diz respeito à forma original”. Cf. GWF Hegel, Estetica, Trad. N. Merker e n. Vaccaro, (Milano, Eunaudi, 1976, T. 2), p. 1241. Os “defeitos” encontrados por Hegel são pequenos, se o diagnóstico do filósofo é comparado a outras exegeses.
Fernel, para quem a loucura, fruto do jogo dos humores, consiste na “depravação do funcionamento da faculdade principal da alma que reside na substância cerebral como em seu domicílio” e cujo nome latino é desipientia e os gregos são paraphrosyne e paranóia, ou seja, mentis alienatio. A melancolia ao mesmo tempo provoca e destrói o intelecto, “ela é o seu aliado mais eficaz e seu inimigo mais terrível” (Ceard). Segundo Jean Taxil, outro médico da época, “os corpos que o diabo possui interiormente são melancólicos, pois é o humor a verdadeira sede, no qual o diabo se apraz, e do qual ele produz tão estranhos efeitos”. O próprio diabo é melancólico e o poder diabólico é coberto pelo manto da melancolia...
1 La monarchie, entre Renaissance et Révolution, 1515-1792, Histoire de la France Politique-2, (Paris, Seuil, 2000), página 518.
2 Cornette, op. cit. página 519.
3 Petitfils, Jean/Christian : Louis XIV (Paris, Perrin, 2002), página 49.
4 Petitfils, op. cit. página 50. Daqui para a frente, será feita uma paráfrase deste livro, salvo quando indicado explícitamente, as idéias e análises são dele.
5 Usarei o rigoroso livro de Hellegouarc’h , J.: Le vocabulaire latin des relations et des partis sous la République (Paris, Les Belles Lettres, 1963).
6 Hellegouarc’h, op. cit. página 13.
7 Cf. Coulanges, Fustel : Histoire des institutions politiques de l ‘ancienne France, vol. V, Les origines du système féodal (Paris, Hachette, 1907), página 193. Hellegouarc ’h, página 17.
8 Existem tres formas legais de libertação dos escravos: a per vindictam, que imita as legis actiones, e as formalidades da reivindicação entram nas mesmas formulas requeridas para os bens móveis ou imóveis. Escravo e dono comparecem diante do praetor. O dono, livre, pede a liberdade do escravo. O dono toca o escravo com uma vara (vindicta ou fistuca) dizendo: “Quero que este homem fique livre segundo o jure Quiritium (acessível apenas aos cidadãos de Roma, oposto ao direito acessível a todos, o dominium ex jure gentium)”. O magistrado pode exercer tal ato, em maior ou menor grau de sua jurisdição. Depois o escravo pode ser livre pelo censo: no censo, o dono diz que ele é livre. E finalmente, por testamento. (Cf. Manumissio, no Dicionário de Saglio e Daremberg.
9 Toda a passagem acima é extraída de Hellegouarc ‘h. op. cot. cf. páginas 178-179.
10 Hellegouarc’h, op. cit. páginas 48- 56. O autor desenvolve um estudo longo e minucioso de todas as palavras ligadas à amiticia, desde o termo comites (os acompanhantes e auxiliares de um político), de onde vem comitê em nossa lingua, até necessitudo, que permeia relações prática e de favor, unida à familiaritas.
11 Contrat social, Livro IV, capítulo IV. In Oeuvres complètes, Paris, L´Intégrale, 1971, T. 2, p.570.
12 Cf. Du Contrat Social ou Principes du Droit Politique (Paris, Bureaux de la Publication, 1865), página 163.
13 Petitfils, op. cit. página 50.
14 idem, ibid. página 51.
15 (Paris, Harmattan).
16 Berkeley, 1977. Poderiam ser acrescentados pelo autor outros títulos como Clapham, Christopher : Private Patronage and Public Power: political clientelism in the modern State (London, France Pinter, 1982) e também Einsentadt, S.N. e L. Roniger: Patrons, Clients, and Friends: interpersonal relations and the structure of trust in society (Cambridge, University Press, 1984). E também Boissevain, Jeremy: Friends of friends: networks, manipulators and coalitions (Oxford, Basil Blackwell, 1974).
17 Homens Livres ... (São Paulo, IEB, 1969), página 80.
18 Antonio Cândido de Mello e Souza: “The brazilian family” in A. Marchand e I. Lynn Smith, Brazil portrait of half a continent (New York, Dryden Press, 1951), página 289.
19 Coldman, John: Them months in Brazil (Edinburgh, R. Grant & Son, MDCCCLXX), página 52.
20 Carvalho Franco, op. cit. página 81.
21 13/04/2011 13:40 : “Não concursados dominam 30% dos cargos de confiança no governo” O retrato da máquina pública no início do governo Dilma Rousseff revela a existência de 6.689 funcionários não concursados nos cargos de confiança da Presidência e dos ministérios - o equivalente a quase um terço do total de postos preenchidos por nomeações. Destes, quase 500 estão nas duas faixas salariais mais altas do funcionalismo. Dilma herdou da gestão Luiz Inácio Lula da Silva uma estrutura burocrática que permite a nomeação de cerca de 21,7 mil pessoas para cargos de confiança - os chamados DAS, exercidos por quem tem função de chefia ou direção e pela elite dos assessores da presidente, de ministros e de secretários. Em fevereiro deste ano, 31% desses cargos eram ocupados por não concursados, e 64% por servidores de carreira, segundo dados do Portal da Transparência do governo federal. Há ainda uma pequena parcela de servidores cedidos por órgãos de outras esferas - do Legislativo, de governos estaduais e de prefeituras municipais, por exemplo.” Cada Minuto, Alagoas. 15/02/2009 - 09h01 E na Folha On Line : “Cargos de confiança crescem 32% no país em cinco anos”. “Os cargos de confiança em Estados, municípios e no governo federal aumentaram 32% em cinco anos, saltando de 470 mil no início de 2004, para 621 mil pessoas agora (...) Os dados oficiais sobre as administrações diretas foram compilados pela Folha. Os cargos de confiança são os chamados comissionados, que podem ser ocupados por servidores de carreira ou por pessoas de fora do serviço público. A fatia ocupada pelos comissionados no total de servidores na ativa também aumentou nos últimos cinco anos. Nos Estados, a fatia aumentou de 5% para 6% -- eram 115 mil em 2004 contra 158,8 mil agora (alta de 37,4%). No caso dos municípios, os comissionados passaram de 7,9% do total de servidores em 2004 para 8,8% em 2008. No governo federal, os cargos de confiança passaram de 17.609, no começo de 2004, para 20.656 (subida de 17,3%). O crescimento do total de civis ativos foi de 7,67%, chegando 537,4 mil, segundo o Planejamento. A fatia ocupada pelos comissionados oscilou de 3,5% para 3,8%.”
22 (Paris, Poulet/ Malassis Ed., 1862), página IV.
23 Para análises do personagem encarnado no “pobre diabo”, nas quais inclusive são feitas críticas ao radicalismo de Diderot na caracterização de seus inimigos jornalistas naquela categoria, cf. Duranton, Henri (org) : Le pauvre Diable. Destins de l ‘homme de lettres au XVIIIe siècle, Colloque international Saint-Étienne/2005 (Publications de l ’Université de Saint- Étienne, 2006). Jean Sgard nota, naquele volume, na pagina 62, que os “grandes senhores ou financistas asseguram para si uma clientela de artistas e de escritores que contribuem para seu estatuto e sua glória”. Não é este o caso de Jean François.
24 Cf. Jean-Pierre Chrétien-Goni: “Institutio Arcanae”, in Lazzeri, Christian e Reynié, Dominique: Le pouvoir de la raison d´état. Paris, PUF, 1992, p. 137.
25 Cf. Versini, L. : Introduction à la Lettre de M. Denis Diderot sur l ‘Examen de l ’Essai sur les préjugés in Oeuvres,T. III (Paris, Robert Laffont, 1995), página 163.
26 Cf. Hegel, G.W. F. : Principes de la philosophie du droit (Paris, Vrin, 1975), § 317, página 319 (Trad. Robert Derathé).
27 Cf. Le Neveu de Rameau, Jean Fabre (Genève, Droz, 1977), nota 33, páginas 128-129,
28 Diderot, Lettre...página 167.
29 Rêve de D’ Alembert, in Oeuvres, T. I, (Paris, Robert Laffont, 1994), página 665.
30 Fabre, páginas 145-149.
31 Viroli, Maurizio: From Politics to reason of State (Cambridge, Univ. Press, 1992). Grande parte das próximas análises são definidas a partir do livro indicado.
32 Para a noção de “município” cf. Le Dictionnaire des Antiquités Grecques et Romaines de Daremberg et Saglio in http://dagr.univ-tlse2.fr/sdx/dagr/index.xsp o verbete “Municipium”, com todas as suas dificuldades.
33 Cf. Harry Thurston Peck, Harpers Dictionary of Classical Antiquities, 1898, in Perseus Project : http://www.perseus.tufts.edu/ “(δοκιμασία). The name used at Athens to denote the process of ascertaining the capacity of the citizens for the exercise of public rights and duties. If, for instance, a young citizen was to be admitted among the Ephebi (q.v.), he was examined in an assembly of his district to find out whether he was descended on both sides from Athenian citizens, and whether he possessed the physical capacity for military service. All officials, too—even the members of the Senate—had to submit to an examination before entering upon their office. The purpose of this was to ascertain, not their actual capacity for the post, which was presupposed in all candidates, but their descent from Athenian citizens, their life and character, and (in the case of some offices which involved the administration of large sums) even the amount of their property. The examination was carried on in public by the archons in the presence of the Senate, and any one present had the right to raise objections. If such objections were held to be valid the candidate was rejected; but he had the right to appeal to the decision of a court, which would take cognizance of the matter in judicial form. On the other hand, if he were accepted, any one who thought his claims insufficient had the right of instituting judicial proceedings against him. If the decision was adverse he would lose his office, and was further liable to punishment varying according to the offence charged against him—which might be, for instance, that of unlawfully assuming the rights of a citizen. A speaker in a public assembly might thus be brought before a court by any citizen, for no one not possessed of the full right of citizenship could legally address the people. The question might thus be raised whether the orator were not actually atimos, or guilty of an offence which involved atimia (q. v.)". Para uma análise da atimia, cf Roberto Romano : "Homossexualidade, Metafísica e Morte. A honra masculina e o Direito de Matar.” in rOBERTO rOMANOSILVA'S bLOG.
34 Cf. Alain Badiou, “Qu´est-ce qu ´un thermidorien?” in Kintzler, Catherine et Rizk, Hadi: La république et la terreur. Paris, Kimé, 1995, pp. 56-57.
35 Cf. Maria Sylvia Carvalho Franco, “All the world was America”, Revista USP, dossier liberalismo.
36 I Colóquio Rousseau “Rousseau, verdades e mentiras” Faculdade de Ciências e Letras - UNESP – Araraquara . Conferência de Abertura Prof. Dr. Roberto Romano UNICAMP, publicado no volume Rousseau, verdades e mentiras.
37 Texto que pode ser lido em COMMENTAIRE DU SONGE DE SCIPION , LIVRE PREMIER Oeuvre numérisée par Marc Szwajcer in http://remacle.org/bloodwolf/erudits/macrobe/scipion1.htm
38 Dolf Sternberger, Machiavellis ‘Prince’ und der Begriff des Politischen (Wiesbaden, Steiner Ed., 1974) 35.
39 The Place of the Tyrant in Machiavelli’s Political Thought and the Literary Genre of the Prince, The Italian Academy for Advanced Studies at Columbia University Lunch Seminar, 18 February 2004 (PDF) in academiccommons.columbia.edu/download/.../paper_sp04_Giorgini.pdf
40 Ela pode ser lida em português, em site protestante é verdade, no seguinte endereço : http://solascriptura-tt.org/Seitas/Romanismo/DialogoPapaJuliusExclususESaoPedro-Erasmo.htm
Alí também pode ser notada a razão de Estado, mas vivida e aplicada no campo da razão da Igreja. Erasmo avança crítica que antecedem de maneira clara o conteúdo da Lenda do Grande Inquisidor.
41 Napoli, Glaux Ed., 1956)
42 Um texto interessante, e que será acompanhado por mim, é o de Riebling, Barbara: “Milton on Machiavelli: Representations of the State in 'Paradise Lost.'” in Renaissance Quarterly. Volume: 49, 3, 1996, páginas 573ss.
43 Um livro a ser lido com interesse é o de Spanneut, M. : L ‘ stoicisme des pères de l ’Église, de Clement de Rome à Clement d’Alexandrie (Paris, Seuil, 1957),
44 Existe tradução francêsa : Considérations sur la Révolution Française (Paris, Payot, 1974). Ver sobretudo o capítulo sobre a Igreja e a Revolução.
45 cf. Kantorowicks, Ernst: The King’ s two bodies, Princeton, New Jersey, 1970). Sobretudo o capítulo sobre Dante e o homem como centro político.
46 Mimesis, Ed. Perspectiva, 1973.
47 Paradise Lost, Edited by Scott Elledge (NY, W.W. Norton & Company, 1975), página 24.
48 Cf. Strauss, Leo: Thoughts on Machiavelli (Univ. Chicago Press, 1978).
49 The readie and easie way to establish a free Commonwealth, 1660 in John Milton Select Prose (Penguin, 1974), página 327 e seguintes.
50 Cf. Milton and the English Revolution (Middlesex, Penguin, 1979).
51 Analiso o problema do poder e do orgulho em artigo intitulado “Os laços do orgulho, reflexões sobre a política e o mal” editado pela Revista Unimontes Científica (http://www.ruc.unimontes.br/index.php/unicientifica/article/view/101).
52 Tomás de Aquino : Job, un homme pour notre temps. (Paris, Tequi Ed. , 1982).
53 A Septuaginta usa o termo Basileus para indicar o Leviatã, o rei dos orgulhosos. Cf. Septuaginta, Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 1979, p. 842. A tradução de Lutero une o fato régio e a animalidade do poder: “…er ist König über alle stolzen Tiere”. (…ele é o rei de todas as feras arrogantes”) Cf. Lutherbibel erklärt, Stuttgart, Deutsche Bibelgellschaft, 1987, p. 816. Na Bíblia do Rei Tiago 1 da Inglaterra, o enunciado diz “He beholdeth all high things; he is a king over all the children of pride”. Cf. The New Scofield Reference Bible, Authorized King James Version, NY, Oxford University Press, 1967, p. 599.
54 Cf. Francis Bacon: “Of Goodness & Goodness of Nature” : “The desire of power in excess, caused the angels to fall; the desire of knowledge in excess, caused man to fall: but in charity there is no excess; neither can angel, nor man, come in dan ger by it. The inclination to goodness, is imprinted deeply in the nature of man; insomuch, that if it issue not towards men, it will take unto other living creatures”. Cf. Francis Bacon, The Moral and Historical Works, London, George Bell & sons, 1874, p. 33. Uso como texto base a edição de Scott Elledge: John Milton, Paradise Lost (NY/London, W.W. Norton & Company, 1975). Será também utilizada por mim a tradução de A.J. Lima Leitão, O Paraíso Perdido (BH/RJ, Villa Rica Ed., 1994). Para uma exposição autorizada sobre o tema, cf. West, Robert West: Milton and the Angels. Athens: University of Georgia Press, 1955.
Diderot
Roberto Romano.
Ao analisar a Divina Comédia, especialmente as passagens sobre o Purgatório, Erich Auerbach (1) afirma que aos habitantes daquele lugar, como têm a alma separada dos corpos, Dante concede um corpo espectral tornando-os reconhecíveis para que posssam se exprimir e sofrer (2) A relação dos referidos entes com a vida terrena limita-se à memória. O poeta acrescenta que eles possuem conhecimentos do passado e do futuro, os quais ultrapassam as medidas terrenas. Todos enxergam com nitidez como se fossem hipermétropes. Acontecimentos ocorridos na terra num passado longinquo estão ao seu alcance. Eles podem predizer o futuro mas permanecem cegos para o presente terreno, pois vivem uma experiência parada no tempo. Os mortos estão privados do presente terreno e das suas mudanças, mas a memória e a participação no mesmo mundo é imaginada por Dante de tal modo, que a paisagem do além está cheia dele. Existem filósofos que vivem como se estivessem no purgatório dantesco, porque exibem visão aguda, conhecimento do passado e do porvir, mas seu juízo sobre o presente em que vivem é quase nulo.
Diderot parece integrar o número daqueles autores. Ele abriu caminhos para o pensamento filosófico, político, científico e artístico no século 18. Seu diagnóstico do mesmo século, no entanto, deixa muitas sombras para a crítica. Quase todos os testemunhos severos do pensador sobre seus dias vieram a lume post mortem. É o caso, em especial, do Sobrinho de Rameau. Os manuscritos sobre o Projeto de uma Constituição, acerba crítica do pretenso “despotismo esclarecido” de Catarina 2 mostram o quanto era violenta a inconformidade que residia na mente diderotiana em relação aos usos e costumes políticos contemporâneos. Mas é sobretudo no relacionamento entre ética e estética que os textos diderotianos mostram sombras espessas. Defensor da liberdade e das procedimentos técnicos em todas as áreas do espírito, ele ajudou muito na tarefa emancipatória da modernidade. Mas a sua apologia das artes foi definida por valores transcendentes ao campo artístico, a ele impondo amarras que não lhe cabem. “O sestro de Horácio era versejar, o meu, moralizar”. A frase diz bem o problema herdado pelos comentadores de Diderot: sua idéia da arte, liberadora tendo-se em conta os costumes do século 18, é marcada por preocupações de ordem ética. Não estaria aí uma pista para se entender os ideários do século 19 e 20 que pretenderam domesticar a estética em prol das “sãs doutrinas” ? Para efetivar um juízo seguro sobre tal ponto é preciso um trabalho amplo e objetivo de cotejo dos textos e da vida cultural moderna. Existem tentativas ligadas a fases posteriores da história europeia, nas quais elos são estabelecidos, por exemplo, entre doutrinas políticas e visões estéticas. Os escritos de Paul Benichou, como o fundamental Le temps des prophètes, doctrines de l ´âge romantique, entram nesta linha de pesquisa. No caso do século 18 e principalmente de Denis Diderot, existem os materiais no canteiro de obras, mas poucos trabalhos analisaram sistemáticamente a importância da hegemonia ética sobre as reflexões estéticas do enciclopedista.
Um traço do pensamento diderotiano encontra-se na tentativa, só prosseguida com intensidade igual ou superior no romantismo do século 19, de encontrar conexões entre os sentidos humanos, o que Diderot chama de “tradução” na tarefa de buscar atalhos entre as artes, as ciências, as técnicas. A Encyclopédie traz os materiais para semelhante tarefa. Em textos de crítica literária ou sobre a pintura, a música, a poesia, Diderot apresenta muitas pistas, mas é necessário, evidentemente, indicar as fontes inglêsas e francêsas —além das gregas antigas e romanas— da tarefa empreendida pelo filósofo. Não é possível esquecer John Locke e Berkeley, que deram tanto a base epistemológica quanto o aguilhão a ser vencido para que o pensamento diderotiano se explicitasse. Também não é possível olvidar Condillac, sobretudo o do Ensaio sobre os conhecimentos humanos. Importa, no entanto, sublinhar a exploração da sinestesia, algo que se encontra entre o sonho e o delírio —e por tal motivo, apreciado pelos românticos— para se compreender o quanto importa, na ética e na estética formuladas por Diderot, a tentativa de abrir passagens entre os sentidos e as artes, como pressuposto da reforma da sociedade e do Estado.
Herder fez notar que os sentidos, cada um deles, “tem a sua linguagem específica, os seus sinais, os seus tipos e esquemas. E com eles, também um diferente potencial de conhecimentos e mobilização afetiva. Cada sentido tem a sua ontologia específica. Sendo o mais universal e o mais amplo, a vista tem limites, pois depende das condições da luz e da visibilidade. Mas onde falha a luz e a visão, ainda resta lugar para outras modalidades da percepção humana”. (3) Tal doutrina deve-se a Diderot. O pressuposto da pesquisa com base visual era a permanência do objeto verdadeiro. Diderot recusa ao mesmo tempo o símile optico para o conhecimento e a idéia de ordem para o mundo físico e humano. O caos é anterior e sucede a todo conhecimento. (4) “O universo” diz R. Nicklaus ao comentar a atitude filosófica diderotiana, “desde toda a eternidade toma formas diferentes num devir incessante sem começo nem fim, enquanto nosso mundo finito segue lenta mas inelutavelmente rumo ao seu próprio fim numa ‘depuração geral’”. (5) A partir da Carta sobre os cegos e da Carta sobre os surdos e mudos não existe supremacia dos olhos, os demais sentidos não imitam a vista. É preciso a tradução de um sentido para outro.
Seguidor de Francis Bacon, Diderot assume a idéia do pensador inglês segundo a qual a visão sinótica em ciência é modificável pelo trabalho do pesquisador. A comunicação entre os sentidos corresponde a uma arte. A sua junção permite dizer que não há mais a idéia de espaço único, mas pelo menos de cinco espaços: o optico, o tátil, o sonoro, o cinésico, o olfativo. Cada um deles possui estrutura própria e descontínua em relação a todos os demais. Só a tradução de uns aos outros permitiria captar a simultâneidade entre nós e nós mesmos, entre nós e os demais seres humanos. “Nossa alma é um quadro que se move, segundo o qual nós pintamos sem cessar…o pincel executa em longo prazo o que o olho do pintor abarca num só golpe”. Torna-se preciso “tatear” a alteridade a ser conhecida sob pena de reduzí-la ao idiotismo do sujeito ou de uma função subjetiva posta arbitráriamente como superior (é o caso do imperialismo do olhar, na tradição metafísica) às demais. O próprio sujeito é uma reunião instável de sentidos : “todos os nossos órgãos são apenas animais distintos que a lei da continuidade mantém numa simpatia, numa unidade, numa identidade geral”. O eu, segundo Diderot, “resulta da memória, a qual liga um indivíduo à sequência de suas sensações”. A ciência e a cultura, assim, tornam-se mais árduas, mais exigentes, mais incertas. Não é mais possível aceitar a suposta harmonia, ou o cosmos. O conhecimento pode ser atingido, mas o dogmatismo é refutado na sua raíz. (6)
Cito Laurent Versini, o editor abalizado das obras diderotianas, que analisa o tema indicado acima. Como são constituidos o nosso conhecimento dos objetos e a linguagem? “A partir das percepções simultâneas ou sinestesias. Como o artista poderia expôr essas percepções simultâneas? Ele deve ser ao mesmo tempo pintor, músico e poeta, e jogar com as correspondências e sinestesias como um simbolista. O pintor, condenado ao instantâneo, é o primeiro distanciado, mesmo se escolhe bem o seu ‘momento’. O poeta, que pode desenrolar todo um fresco no tempo, sai vencedor do confronto, idéia que sempre atormentou Diderot, quando ele quis muito honestamente homenagear os pintores nos Salões”. Mas o enciclopedista não desistiu também, nunca, de encontrar analogias que permitissem “reunir as belezas comuns da poesia, da pintura e da música”.
Tal procura o levou a examinar projetos como o do Padre Castel, com o invento do cravo ocular em cujas teclas seriam executadas sinfonias coloridas. Além de mergulhar nos mais obscuros campos da raison d´État e da ética, Diderot dedicou seu tempo à busca da beleza na literatura e nas artes. O pensador desempenhou um papel essencial na história crítica da arte. (7) É claro que ele teve antecessores imediatos como Roger de Piles, do qual conheceu o Abrégé de la vie des peintres (1699) e o Cours de peinture par principes (1708). Nos escritos sobre os Salões, Diderot apoiou-se em Charles Lebrun (8). Consultando-se o livro fundamental de Lebrun, Expressions des passions de l ´âme (1727) (9) é possível notar a relevância dada ao rosto humano, seguindo Lebrun explicitamente André Alciati (10) e Giambattista Della Porta (11). Pela escolha dos autores, pode-se aventar a hipótese de que Diderot busca na pintura a passagem do mundo interior das paixões para a visibilidade representada artísticamente. Como indica Laurent Versini, Diderot conhece, além de livros sobre a referida arte, obras importantes sobre as técnicas antigas e modernas como as seguintes: Laocoonte, o Gladiador que morre, o Hércules de Farnesio, a Venus de Médicis, etc. Tais modelos, copiados milhares de vezes com menor ou maior perícia no mundo artístico e comercial que reproduzia originais, encontram- se na memória de Diderot. Além disso, ele viu quadros da Renascença e do século XVII nas coleções do Duque de Orleans (Palais-Royal) e de outros colecionadores, entre os quais o barão d´Holbach. Como grande parte dos pensadores europeus, ele sempre desejou viajar pela Itália, mas não conseguiu. À semelhança de Imanuel Kant, compensou a falha com livros que descrevem aquele país, por exemplo a Description de l ´Italie do padre Richard (1760). (12) Quando esteve na Russia, Diderot passou por Leyde onde viu, maravilhado, os quadros de Rembrandt. E também esteve no Hermitage. Assim, sua pena fez um apanhado considerável de informações técnicas que lhe serviram bastante quando descreveu quadros de excelente, média ou medíocre qualidade. Com isso, ele penetrou a cultura mais ampla e o campo pictórico que determinaram a Europa do século dezoito, tempo em que Rafael torna-se um paradigma, seguido de Rubens, de La Sueur (assuntos religiosos), Tenier para a pintura de gênero e de Lorrain, Vernet, Robert. Aqueles modelos alarmam, como diz Versini, “os pigmeus” da época diderotiana. Como todo serviço em estado inicial, Diderot começou sua empreitada no mundo da pintura de maneira frouxa. Em 1767, no entanto, apresentou um balanço profundo e extenso daquele ofício na França. O método diderotiano de trabalho reúne técnica e estética e com ele se inicia a união, na crítica, de arte e literatura tal como exercida por escritores como Baudelaire (13) e os irmãos Goncourt. (14) A exemplo de seus adversários, Fréron em especial, (15) Diderot trabalhou como jornalista que remete textos (16 ) para um periódico, com o alvo de informar o leitor. Desse modo, ele forneceu elevação ao jornalismo, afastou-o das práticas cotidianas (libelos, crônicas da corte, sensacionalismos, notícias das bolsas, etc.).
Diderot, bem antes dos Salões, se interessa pelas artes plásticas. Como lembra Pierre Lepape, desde 1758 ele compreendeu as dificuldades da tarefa que reside em entender a pintura. Contra os dilentantes literários que julgavam os quadros com soberana ignorância, ele diz que tais críticos nada sabem “do desenho, das luzes, das cores, nem da harmonia total, nem das pinceladas…”. Como é o seu procedimento habitual, o teórico vai “ao encontro dos pintores, com eles discute os problemas de estética e de técnica”. (16) Os seus comentários mais célebres, os Salões, foram escritos a pedido de Grimm, que mantinha a Correspondência Literária, jornal cujos leitores eram os poderosos europeus (reis, nobres, ricos). Diderot precisava descrever fielmente o que via nos quadros para atrair a atenção dos distantes “observadores” para os procedimentos, os assuntos, a maestria ou ineficácia dos artistas, etc. Já ao dirigir a Encyclopédie ele mergulhara no aprendizado trazido pelos métodos de pintura ao frequentar os próprios artesãos (o que ele fez com quase todos os verbetes que editou ou redigiu). No artigo de sua lavra sobre a composição, pode-se encontrar algumas das bases programáticas dos Salões.
Vejamos o que ele entende por composição na Enciclopédia. (17) Em primeiro lugar, trata-se de uma parcela da arte que representa na tela um assunto qualquer, da maneira mais vantajosa. “Vantagem” aqui significa “emprego eficaz segundo os fins da pintura” e não o jeito de agradar os olhos do observador ou requerer dispêndio monetário do seu bolso. A composição exige que se conheça bem, seja na história ou no interior da natureza, ou ainda na imaginação, tudo o que supõe o assunto. Não basta conhecer, é preciso possuir o gênio (génie) que usa tais dados com o gosto conveniente. Conhecimento e gênio não dispensam a disciplina e o hábito do trabalho duro. Tais são as condições subjetivas para o trabalho artístico. Um quadro bem composto é “um todo fechado num só ponto de vista, no qual as partes concorrem para o mesmo fim e formam por sua correspondência mútua um conjunto tão real, quanto os dos membros num corpo animal, de modo que um pedaço de pintura feito por um grande número de pinceladas ao acaso, sem proporção, sem inteligência ou unidade, não merece o nome de verdadeira composição, tanto quanto estudos esparsos de pernas, nariz, olhos, na mesma cartolina, não merecem o nome de retrato ou mesmo de figura humana”. Os termos desse trecho denunciam, em alguém cujo apelido é Tonpla, Platão invertido, a leitura direta do filósofo grego.
Mas se Diderot conhece os Diálogos na ponta da lingua, ele inverte em sentido materialista as teses platônicas. A figura do corpo indicada acima é extraída do Fedro (238a) e nela faz-se referência ao discurso “que deve ser constituido como um ser vivo, com um corpo próprio, de tal modo que não lhe falte cabeça ou pés, mas possua um meio e extremidades em relação umas com as outras partes, redigidas para um todo”.(18) Não apenas no caso da pintura ou da escrita o preceito platônico é seguido por Diderot. Ele o assume, como sagaz leitor da República, no ordenamento político: o Estado deve ser um todo cujos membros devem ser harmonizados de modo vital : “se o corpo é bem composto, se os seus membros são bons, honestos e bravos cidadãos, patriotas zelosos, homens justos e esclarecidos, que bela coisa é aquele corpo!”. (19) O bom, próprio da ética, encontra-se com o belo, mais apropriado à estética. Ambos são requisitos do convívio entre os seres humanos. Como enuncia Jacques Chouillet: “por mecânico que seja o ´corpo social´, por corpórea que seja a sociedade humana, ela sempre será resolvida numa soma de vontades livres, que o filósofo materialista e determinista que se chama Diderot considera como o último resíduo definível do fenômeno humano”. (20 ) Platão indica o discurso e a grafia, Diderot aponta para a pintura, numa sequência que une, ainda no espírito platônico, a grafia enquanto escrita e arte pictórica. (21) Mas também é clara a presença da Epistola aos Pisões.(22) Diderot a adapta mas não esquece o símile entre pintura e poesia, essencial no texto horaciano. (23 ) É o que afirma o mesmo Diderot logo a seguir: “o pintor é sujeito em sua composição às mesmas leis que o poeta na sua”. A observação das três unidades (ação, lugar, tempo) não é menos essencial na pintura histórica do que na poesia dramática.
A lei da composição é mais vaga em gêneros de pintura diferentes da histórica, a esta última deve-se ater o crítico. E Diderot indica que a unidade do tempo representa uma exigência mais severa para o pintor do que para o poeta. “Concede-se vinte e quatro horas ao último. Ele pode, sem pecar contra a verossimilhança, reunir num intervalo de três horas que dura uma representação, todos os acontecimentos que puderem se suceder naturalmente no espaço de um dia. Mas o pintor possui apenas um instante quase indivisível. É a este instante que todos os movimentos da composição devem se relacionar: entre os movimentos, se noto alguns do instante que precede e do instante que segue, a lei da unidade de tempo é transgredida. No momento em que Calcas levanta o cutelo sobre o peito de Ifigênia, o horror, a compaixão, a dor, devem mostrar-se no mais alto grau nos rostos dos assistentes; Clitemnestra furiosa jogar-se-á sobre o altar, e se esforçará, apesar dos braços dos soldados que a reterão, por puxar a mão de Calcas e se colocar entre sua filha e ele; Agamenon terá a cabeça coberta pelo seu manto.”
É possível distinguir em cada ato uma pletora de instantes diferentes, entre os quais haveria pouca habilidade em não escolher o mais atraente. Trata-se, segundo a natureza do assunto, do instante mais patético, alegre ou cômico. “A menos que leis particulares não ordenem de outro modo e que não se reaveja do lado do efeito das côres, das sombras e das luzes, da disposição geral das figuras, o que se perde do lado da escolha do instante e das circunstâncias próprias à ação.” Ou então, diz ainda Diderot, que não se acredite em submeter o próprio gosto e gênio a certa puerilidade nacional, que não se honre muito frequentemente com o nome de delicadeza de gosto. “Quantas vezes a delicadeza, que não permite ao infeliz Filotecto berrar na entrada da sua caverna, baniu objetos interessantes da pintura!” enuncia Diderot. Cada instante tem suas vantagens e desvantagens. Um deles escolhido, todo o resto é dado. “Prodico supõe que Hercules em sua juventude, após a derrota do javali de Erimanto, foi acolhido num lugar solitário da floresta pela deusa da glória e pela dos prazeres, que o disputaram entre sí: quantos instantes diferentes esta fábula moral não ofereceria ao pintor que a escolhesse como assunto? Seria possível compor com eles uma galeria. Há o instante em que o herói é acolhido pelas deusas, o instante em que faz-se ouvir a voz do prazer, o instante em que a honra fala ao seu coração, aquele em que ele balança em si mesmo a razão da honra e do prazer, o instante em que a glória o toma e o outro, no qual ele decidiu-se inteiramente por ela.” Ao aspecto das deusas ele deve ter sido tomado de admiração e surpresa: terno com a voz do prazer, inflamando-se com a da honra. No instante em que balança suas vantagens, é sonhador, incerto, suspenso. “À medida que o combate interior aumenta e que o momento do sacrifício se aproxima, a tristeza, a agitação, o tormento, as angústias, tomam conta dele, e premitur ratione animus, vincique laborat” (24) E prossegue Diderot : “O pintor sem gosto ao ponto de tomar o instante em que Hercules decidiu-se inteiramente pela glória, abandonaria todo o sublime desta fábula e seria obrigado a dar uma face aflita à deusa do prazer que teria perdido sua causa, o que é contrário ao seu caráter. A escolha de um instante proibe ao pintor todas as vantagens dos outros. Quando Calcas enfiar o cutelo sagrado no peito de Ifigênia, sua mãe deve desmaiar. Os esforços que ela faria para deter o golpe pertencem a um instante passado. Voltar para ele um minuto significa pecar tão pesadamente quanto antecipar mil anos no futuro. Existem no entanto ocasiões em que a presença de um instante não é incompatível com os traços de um instante passado: lágrimas de dor cobrem por vezes um rosto do qual a alegria começa e se assenhorear. “Um pintor hábil colhe um rosto no instante da passagem da alma de uma paixão a outra, e faz uma obra prima. Tal é Maria de Medicis na galeria do Luxemburgo, Rubens a pinta de um jeito que a alegria de ter posto um filho ao mundo não apagou a impressão das dores do parto. Dessas duas paixões contrárias, uma está presente, a outra ausente”.
A fluidez do tempo é o grande obstáculo a ser dominado pelo pintor. “É raro que nossa alma esteja numa base firme e determinada, e como nela ocorre quase sempre um combate de diferentes interesses opostos, não basta saber exprimir uma paixão simples. Todos os instantes delicados perdem-se para quem que não conduz seu talento até lá: não sairão de seu pincel nenhuma dessas figuras que nunca se viu e nas quais percebe-se sem cessar novas finezas à medida que as observamos: seus caracteres serão decididos em demasia para dar tal prazer, eles tocarão mais no primeiro golpe de vista, mas eles lembrarão menos.” A unidade da ação liga-se ao tempo: abarcar dois instantes é pintar simultâneamente um mesmo fato sob dois pontos diferentes de vista. (24) Esta falta é menos sensível, mas no fundo mais pesada do que a duplicidade de assunto. “Duas ações unidas, ou mesmo separadas, podem ocorrer ao mesmo tempo num mesmo lugar. Mas a presença de dois instantes diferentes implica contradição no mesmo fato. A menos que se queira considerar um e outro caso como a representação de duas ações diferentes numa só tela. Os nossos poetas que não sentem possuir gênio bastante para tirar cinco atos interessantes de um assunto simples fundem várias ações numa só, abundam em episódios, e tornam pesadas suas peças na mesma proporção de sua esterilidade. Pintores caem às vezes no mesmo defeito. Não se nega que uma ação principal traga outras, acidentais. Mas é preciso que estas últimas sejam de circunstâncias essenciais à precedente. É preciso que exista ligação e subordinção entre e que o espectador nunca esteja perplexo. Variem o massacre dos Inocentes tanto quanto lhes aprouver. Mas que em qualquer lugar da tela eu lance os olhos e encontre tal massacre. Seus episódios ou me prenderão ao assunto, ou dele me afastarão. E o último desses efeitos é sempre um vício. A lei da unidade da ação é ainda mais severa para o pintor do que para o poeta. Um bom quadro fornecerá algum assunto, ou mesmo uma cena dramática. E um drama apenas pode fornecer matéria para cem quadros diferentes.”
A unidade de lugar, segundo Diderot, é mais estrita num sentido — menos em outro— para o pintor do que para o poeta. A cena é mais extensa em pintura, mas ela é mais una do que em poesia. “O poeta, não restrito a um instante indivisivel como o pintor, passeia sucessivamente o ouvinte de um apartamento a outro, enquanto o pintor se coloca num vestíbulo, numa sala, sob um pórtico, numa relva. E de lá não sai. Ele pode, com a perspectiva, aumentar seu teatro tanto quanto julgar apropriado, mas sua decoração permanece. Ele não muda.” Como o leitor percebe, acompanho o texto diderotiano sem acréscimos. O escrito é demasiado eloqüente e não precisa de comentários em tais pontos.
Sigamos para a subordinação das figuras, que devem se fazer notar segundo o interesse que devemos ter por elas. Existem lugares relativos às circuntâncias da ação, elas devem ocupar naturalmente tais lugares ou deles se afasta. Cada figura precisa ser animada pela paixão e pelo grau de paixão conveniente ao seu caráter. E se uma delas fala, as outras devem escutar. Muitos interlocutores ao mesmo tempo fazem má impressão num quadro, tanto quanto numa reunião social. “Como tudo é igualmente perfeito na natureza, num pedaço perfeito de pintura todas as partes devem ser igualmente cuidadas e só chamar a atenção pela sua maior ou menor importância. Se tivessemos diante de nós o sacrifício de Abraão, o arbusto e o bode não teriam menos verdade do que o sacrificador e seu filho. Todos devem ser igualmente verdadeiros na tela sem termer que os os objetos subalternos sejam façam negligenciar os importantes. Eles não produzem tais efeitos na natureza, por que os produziriam na imitação artística?” Ornamentos, roupas, etc. Não se recomenda o bastante a sobriedade e a conveniência nos ornamentos. “Há em pintura, como em poesia, uma fecundidade infeliz. Se deve ser pintada uma manjedoura, por que apoiá-la contra as ruinas de um grande edificio e erguer colunas num lugar que só posso supor usando conjecturas forçadas? O preceito de embelezar a natureza estragou tantos quadros ! Não se busque embelezar a natureza ! Deve ser escolhida a que convem ao pintor, este deve trazê-la aos olhos escrupulosamente. As roupas devem ser conformes à história antiga e moderna, e não se coloque, numa paixão, judeus com chapéus cheios de plumas.”
As regras gerais da composição são quase invariáveis e as da prática, na pintura, não as podem alterar. Como o escritor narra um fato histórico como poeta ou historiador, um pintor dele faz um assunto de quadro histórico ou poético. No primeiro caso, parece que todos os seres imaginários, todas as qualidades metafísicas personificadas devem ser banidas. A história quer mais a verdade. Não existe um desses desvios nas batalhas de Alexandre. Parece que no segundo caso só deve ser pemitido personificar as que sempre o foram, a menos que se deseje expandir uma obscuridade profunda em assunto bem claro. Não admiro a alegoria de Rubens do parto da rainha como as apoteoses de Henrique: sempre achei que o primeiro desses objetos exigia toda a verdade histórica e o segundo todo o maravilhoso da poesia. Sempre o leitor deve ser advertido que todas essas linhas saem diretamente do texto diderotiano citado. Nada acrescento a elas.
“Uma composição pode ser facilmente rica em figuras e pobre de idéias, uma outra excitará muitas idéias, ou inculcará fortemente uma só, e só terá uma figura. O quanto a representação de um anacoreta ou filósofo absorto numa profunda meditação, não acrescentará à pintura de um isolamento? Parece que um isolamento não exige ninguém. No entanto, ele será bem maior se nela for colocado um ser pensante. Se o pintor faz cair uma torrente das montanhas, e se ele deseja nos espantar, deve imitar Homero colocando um pastor na montanha, que escuta amedrontado o barulho. Pintores devem ler os grandes poetas e recipocramente os poetas precisam ver os trabalhos dos grandes pintores. Os primeiros ganharão em gosto, em idéias, em elevação. Os segundos, exatidão e verdade. Quantos quadros poéticos admirados fariam sentir o seu absurdo se fossem pintados ?” (26)
O pintor que ama o simples, “o verdadeiro, o grande, apegar-se-á particularmente a Homero e a Platão. Nada direi de Homero, ninguém ignora até onde este poeta levou a imitação da natureza. Platão é menos conhecido neste aspecto, mas ouso, no entanto, assegurar que ele não perde para Homero. Quase todas os inícios de seus diálogos são obras primas de verdade pitoresca. E mesmo durante o diálogo elas são encontradas. Tomarei apenas um exemplo, do Banquete. Este, visto comumente como uma cadeia de hinos ao Amor, cantados por uma companhia (troupe, o termo é teatral, RR) de filósofos, é uma das apologias mais delicadas de Sócrates. Sabe-se em demasia a crítica injusta à qual suas ligações estreitas com Alcibiades o haviam exposto. O crime imputado a ele era de natureza tal que a apologia tornava-se uma injúria. E Platão cuida para que ela não seja o assunto principal de seu diálogo. Ele reúne filósofos num banquete e os faz cantar o Amor. A refeição e o hino acabavam quando se ouve um grande barulho no vestíbulo. As portas se abrem e vê-se Alcibíades coroado de hera e cercado por uma companhia (troupe, mesma observação acima, RR) de instrumentistas. Platão lhe supõe esta gota de vinho que aumenta a alegria e dispõe à indiscreção. Entra Alcibíades e divide sua coroa em dias, coloca uma em sua cabeça e a outra em Sócrates. Informado do assunto, fica sabendo que os filósofos cantaram o triunfo do Amor. Ele canta sua derrota pela Sabedoria, ou os esforços inúteis que fez para corromper Sócrates. Este relato é conduzido com tamanha arte, que nele se percebe apenas um jovem libertino que fala por embriaguez, e que acusa a si mesmo sem misericórdia de ter os desejos mais corrpmpidos e o deboche mais vergonhoso. Mas fica no fundo da alma a impressão, sem que em nenhum momento se suspeite, que Sócrates é inocente e que ele é bem feliz de ser inocente porque Alcibíades, teimoso por seus próprios encantos, não deixou de notar ainda a sua força, desvelando seus efeitos perniciosos nos sábios de Atenas. Que pintura seria a entrada de Alcibíades e seu cortejo no meio dos filósofos! Ele não seria menos interessante e digno das pinceladas de Rafael ou de Vanloo, do que a representação desta assembléia de homens veneráveis arrastados pela eloquência e os encantos do jovem libertino, pendentes ab ore loquentis ?”(27)
A passagem do teatro à pintura é sublinhada por Diderot, sobretudo quando se trata de Platão e da figura maior dos Diálogos. O enciclopedista e dramaturgo é obcecado pela morte de Sócrates. A peça La mort de Socrate, apresentada na Comédie Française em 1763 é tributária de Diderot, como observam análises da Correspondance littéraire (01/06/1792 e 15/05/1763). Os textos diderotianos não se cansam de jungir arte pictórica e teatro. (28) Assim este trecho citado por Jean Seznec: “se o espectador (…) encontra-se no teatro como se estivesse diante de uma tela, onde quadros diversos surgiriam sucessivamente (…) haveria um patético na cena, como ocorre com a filha e a mulher de Eudamidas no quadro de Poussin?” (29) A resposta é positiva. Diderot refere-se à pintura Testament d´Eudamidas, no qual via o máximo do sublime em pintura. Aquele grupo de mulher e filha é especialmente mencionado no Salão de 1767. O verbete “composição” é fruto de um trabalho inicial. Mas se atentarmos para os escritos posteriores, sobretudo os publicados após a morte de Diderot, notamos que eles respondem integralmente às exigências postas na Encyclopédie. A questão do tempo e do espaço, aliada à diversidade dos instantes e das paixões humanas. Quem ousaria negar que o Sobrinho de Rameau, além de ser uma peça teatral fantástica é uma sequência de quadros, os mais estritamente obedientes às determinações da unidade de tempo, espaço e de assunto? O tempo: meia hora de conversa entre o vagabundo genial e o filósofo. O espaço: o jardim de Port-Royal. Os assuntos amplos e diversificados obedecem as unidades de sentido a cada movimento. O texto segue os preceitos platônicos, pois se trata de um organismo vivo. Son pittor anch´io, a Diderot pode ser atribuido este mote comum para designar o modo pelo qual ele “pinta” seus romances, sobretudo A Religiosa. (30) Como indica um comentador, naquele romance “as cenas de quadro e de pantomima são perfeitamente integradas na estrutura narrativa e psicológica do romance”. Suzanne Simonin “aproxima explícitamente sua descrição da pintura, conhecida pelo seu correspondente, o marquês de Croismare” (31) Simonin usa o termo “pintar” para a sua descrição dos conventos em que viveu e para cenas isoladas que retrata: “A cena que acabei de pintar foi seguida de um grande número de outras semelhantes que negligencio…Vós, que bem conheceis a pintura, eu vos asseguro, senhor marquês, que era um quadro muito agradável de se ver” (32)
O romance inteiro, como boa parte dos escritos literários diderotianos (não raro, filosóficos) opera com o sentido polissêmico da grafia, tal como indiquei acima para os vínculos entre ele e Platão. Mais, além da unidade entre pintura e escrita, o enciclopedista integra a fábrica dos poemas e o teatro. É como se o grito, son pittor anch ´io presidisse a sua produção imagética, nela colocando a idéia a serviço da arte. Na Religiosa, cuja marcha é entremeada de quadros movidos pelas paixões, cada pintura exibe os elementos patéticos na biografia de Simonin, apresentados por ela aos seus juízes ou possíveis libertadores. “Os sofrimentos que os quadros expõem são parte de um sofrimento mais amplo (ou Paixão) que constituem a narrativa. Como as imagens que convidam os cristãos a jorrar lágrimas diante das várias estações da Paixão do Salvador, os quadros da Religiosa pedem ao leitor que se comova pelas lágrimas e sofrimentos de uma vítima inocente, e que das lágrimas passe à ação. Em cada um dos quadros, o leitor é apresentado à uma visão espantosa. Em cada uma das vezes, é como se Suzanne tivesse dito, ´Voilà!´[literalmente, ´olha aqui!´] ´Observe, e veja meus sofrimentos´. Na retórica clássica esta figura era chamada hypotiposis”. (33)
Num acesso de gosto duvidoso, comum entre cultores de Rousseau, Claude Levi-Strauss caçoa de Diderot e da predileção que o enciclopedista apresenta pelas pinturas em movimento. Ao comentar o problema do contínuo e do discreto na filosofia e na estética, diz o antropólogo sobre o verbete Composição: “Sendo a pintura permanente, ela só o é num estado instantâneo e só pode, afirma Diderot, oferecer da natureza quadros discontínuos: ‘multiplicai o quanto quiserdes essas figuras, haverá interrupção’”. Assim, diz Strauss, “a pintura remete a um problema filosófico mais geral que já surgira na teoria dos números :”como medir toda quantidade continua por uma quatidade discreta?”. Segundo o Diderot citado por Strauss, a lingua traz situação análoga pois existem “expressões dos matizes delicados que permanecem nessariamente indeterminados”. Assim, o enciclopedista parou o seu projeto de transmitir os conhecimentos, “pela impossibilidade de tornar toda a lingua inteligível” (Diderot). Ao inverso do que se passa na pintura, a lingua apresenta um meio termo, pois as raízes revelam uma continuidade entre palavras discretas de natureza igual, sendo estados intermediários análogos aos que a pintura é incapaz de representar. A invariância permitiria superar a antinomia do contínuo e do discreto. Mas Diderot não segue por semelhante via. Esperar-se-ia que ele “se interrogasse sobre a noção de invariância aplicada ao problema próprio da pintura. Em vez disso, parece admitir que os quadros de Greuze já o resolveram : ´é a coisa como deve ter ocorrido´, grita ele no Salão de 1759 sobre o quadro L´Accordée de village. Mas em parte alguma parece que ele buscou, no estilo e nos princípios da composição de Greuze, a consistência da invariância. De fato, o entusiasmo de Diderot por Greuze deve-se a outras considerações.”. Note-se o tom e o jeito: a repetição do termo “parece” é sintomática no crítico. Parece que Diderot deveria ser orientado pelas preocupações de…Strauss.
E agora vem a melhor parte. O problema da invariância irresolvido por Diderot, seria “comparável ao sentido em seu tempo, mesmo pelos amadores da mais bela pintura (Diderot não admirava Chardin?), diante da invenção do cinema. Greuze também inventou algo: representar o instante por meios tão realistas e tão detalhados que eles fornecem, mesmo devido ao tempo requerido para os inspecionar, uma ilusória duração. Richardson já o tinha feito em literatura, bastava transpor: ´o mundo em que vivemos é o lugar da cena; o fundo de seu drama é verdadeiro; seus personagens têm toda a realidade possível; seus caracteres são tomados no meio da sociedade; seus incidentes estão nos costumes de todas as nações bem governadas […] Sem esta arte, minh´alma se dobrando dificilmente em viezes quiméricos, a ilusão seria apenas momentânea e a impressão fraca e passageira”. O que Diderot admira em Richardson e em Greuze, pensa Strauss, seria “exatamente o que será pedido mais tarde à arte cinematográfica: ´os relâmpagos das paixões com frequência feriram vossos ouvidos; mas estais bem longe de conhecer tudo o que há de secreto nos seus acentos e em suas expressões. Nenhum deles deixa de ter a sua fisionomia; todas essas fisionomias se sucedem num rosto, sem que ele deixe de ser o mesmo; e a arte do grande poeta e do grande pintor está em nos mostrar uma circunstância fugitiva que nos havia escapado´. Não seria possível descrever melhor o que pedimos ao ‘gros plan’. E é este o lado ‘western’ antes da letra que cativa Diderot em Joseph Vernet: ´com uma arte infinita, misturar o movimento e o repouso, o dia e as trevas, o silêncio e o ruído`. A história da arte, por vezes, segue o ritmo do acordeão. Com suas “demoras necessárias´, Richardson ampliou inicialmente a literatura que o cinema instantâneo de Greuze comprimirá nos quadros (mas muito longos para serem descritos, ver os Salões). Por sua vez, o cinema que opera por meio de imagens, como a pintura, os ampliará aos multiplicá-los na duração, como o faz a literatura com as palavras”. (34 )
Nas críticas endereçadas por Levi-Strauss a Diderot não é possível silenciar que o acusador se esquece fácilmente do episódio que envergonha a França, terra da cultura e das Luzes ( se desconsiderarmos o desastre do Estado que se traduziu em Vichy) quando foi apresentada ao público A Religiosa de Jacques Rivette. Em 1959 o cineasta imagina o filme com base no romance diderotiano, auxiliado por Jean Gruault. Em maio de 1962, o primeiro cenário é entregue à Comissão de Controle, orgão do Estado francês. A pré-censura pronuncia-se desfavorável ao empreendimento. Em 1963 dá-se uma adaptação teatral do texto, dirigida por Rivette e Gruault, no Studio Saint-Elysées, com ajuda de Jean-Luc Godard e Antoine Bourseiller. O fracasso comercial da peça, somado à extrema rapidez na montagem, evita maiores escândalos. Ainda em 1963 o cenário se modifica, acrescido de um prefácio explicativo, mais a história da Abadia de Longchamp e um sermão de Bourdalue sobre os deveres paternos. Todo o material é novamente submetido ao controle da Comissão mencionada, que atenua o risco de uma proibição. A filmagem demora dois anos por dificuldades técnicas. Rivette escreve e organiza os Cahiers du cinéma. Em 1965, o Centro Nacional de Cinematografia, na pessoa de um burocrata, responde ao diretor sobre a licença: “Creio dever vos convidar à consideração das reservas formuladas sobre o contexto geral do filme A Religiosa, seus temas e seus principais personagens”. Em outubro do mesmo ano, ocorre uma entrevista do presidente do Conselho Nacional de Cinematografia com Georges Beauregard, o produtor do filme. Tudo entravado na pátria da cultura livre…
E surgem os primeiros abaixo-assinados dos pais, clientes das escolas dirigidas pelas Irmãs do Convento des Oiseaux, alertadas pela Central Católica de Cinema. A presidente da União das Superioras Maiores da França escreve para Alain Peyrefitte, Ministro da Informação. Na carta pode-se ler que 120 mil religiosas francêsas estão inquietas pela ameaça de um filme “blasfemo, o qual desonra as religiosas”. Em 15/11/1965, o Ministro responde (faltam três semanas para a eleição presidencial….) o seguinte :”Faço questão de dizer, no que me diz respeito, que partilho totalmente os sentimentos que vos animam…Também asseguro que não hesitarei em utilizar a plenitude dos meus poderes”. O filme deve ser filmado no mesmo período dessa correspondência e campanha. Rivette escolhe a Abadia de Fontevrault, com a permissão da Comissão das Belas Artes. Mas além do ministro da Informação, Marjean Foyer da Justiça não deseja confusões com as forças religiosas. Negada a locação, o diretor filma em Avignon, na Cartuxa de Villeneuve, onde o deputado-prefeito é socialista. Caindo Peyrefitte e trocado por Yvon Bourges, o trabalho é aprovado pela Comissão de Controle (composta por 23 membros, 7 do Ministério, 7 do cinema, 5 sociólogos e juízes, 3 representantes da Associação das Famílias). Quatorze daqueles seres humanos votam “sim”, oito definem-se pelo “não”, um se abstém. Mas a saga continua. Em maio de 1966 o ministro convoca novamente a Comissão de Controle, chamando para ela Maurice Grimand, diretor da Sûreté Nationale para explicar os perigos que a projeção do filme ocasionaria à ordem pública. Votam os seres humanos novamente, resultando em 12 votos pelo “sim”, 8 pelo “não”, e três abstenções… Aí surge uma decisão sublime, em termos de hipocrisia neo-colonialista e censória. O filme é proibido nos países “de missão” (Vietnam, Laos, Cambógia, Madagascar, Síria, Líbano e na Africa em geral). Embora sob perigo, o “adulto” francês poderia assistir a blasfêmia rivetto- diderotiana, já as crianças do Terceiro Mundo… Talvez percebendo o ridículo ou o trágico da ordem anterior, a Comissão de Controle (consultiva) decide-se pela proibição total para adultos francêses e crianças colonizadas, decisão assumida em 31/03/1966.
Em 2 de abril de 1966, o Le Monde traz a notícia, com um comentário de Jean de Baroncelli. Como sempre ocorre na França, país de fina tradição cultural, surge um debate apaixonado e o dossier sobre o caso. Em 05 de abril dá-se a entrevista coletiva do cineasta e do produtor. Circula certo Manifesto dos 1789 (alusão transparente) contra a proibição. Em 14 de abril a medida é discutida pela Assembléia Nacional. Ainda no dia 30 o ministro a explica aos parlamentares. E no dia 6 de maio…o filme é apresentado no Festival de Cannes. Em novembro de 1967, é liberado em Paris.
Vejamos os argumentos das partes envolvidas. Os pais religiosos afirmam que o filme “desfigura as religiosas, antigas educadoras de nossas mães e de nossas esposas e filhos”. Ele seria “um sucesso artístico, sem obscenidades. Não se trata tanto de imagens, mas de um espírito fundamentalmente perverso, o qual desnatura e caricaturiza os valores religiosos”. O governo, por sua vez, pretende, nas palavras de seus funcionários, proteger as religiosas contra a difamação (lei de 1881 sobre a liberdade de imprensa). Na polêmica surge a palavra dos católicos contra a censura, poucos mas bastante representantivos do pensamento religioso aberto para o mundo mais amplo do que as sacristias. Nomes? O padre Oraison, Claude Mauriac, Irmã Marie Yvonne…
Jean-Luc Godard expressa a indignação contra o veto, de maneira digna de um homem das Luzes. Em carta a André Malraux, o chama de “Ministro da Kultura” (Nouvel Observateur, 06/04/1966). E afirma na referida missiva: “Já estava meio cansado de procurá-lo, pedindo-lhe que intercedesse junto aos seus amigos Roger Frey e Georges Pompidou para conseguir o perdão de um filme condenado à morte pela censura, esta Gestapo do espírito. Mas Deus do céu, eu não pensava fazê-lo por seu irmão, Diderot, um jornalista escritor, como você, e sua ´Religiosa´ minha irmã, isto é, um cidadão francês que pede apenas ao Pai que proteja a sua independência (…) Nada espantoso que você não reconheça mais a minha voz quando falo sobre a proibição de Suzanne Simonin, a religiosa de Diderot, sobre assassinato. Não. Nada espantoso nesta covardia profunda. Você faz como a avestruz com as suas memórias interiores. Como você poderia me escutar, André Malraux, se eu telefono do estrangeiro, de um país distante, a França livre?”. E Rivette, em artigo na revista Cinématographe afirma: “desde, digamos, Citizen Kane, os cineastas não podem mais manter uma relação de ingenuidade diante da literatura, sobretudo a grande literatura romanesca do século 19”. E nos Cahiers du Cinéma, diz ele : “a idéia inicial de A Religiosa era um jogo de palavras, era fazer um filme ´celular´, pois era sobre as celas das boas irmãs”. (35 )
Notas
(1) Cf. “Farinata e Cavalcante” in Mimesis, a representação da realidade na literatura ocidental (São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971), em especial as p.
162-165.
(2) “Ora, se innanzi a me nulla s´aombra,/non ti maravigliar più che de´cieli/che l ´uno all´altro raggio no ingombra. /A sofferir tormenti e caldi e geli/simili corpi la virtù dispone/che, come fa, no vuol ch´anoi si sveli.” Cf. La Divina Commedia, “Purgatorio” ( 3, 31ss), a cura de Natalino Sapegno (Firenze, La Nuova Italia Ed., 1956), p.25.
(3) Citado por Leonel Ribeiro dos Santos, Metáforas da Razão, ou economia do pensar kantiano (Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1994), p. 514.
(4) Cf. Crocker, L. Diderot’s Chaotic Order. Approach to a synthesis (Princeton,University Press)1974. E também Maria Laura Magalhães Gomes: “Diderot e o sentido político da educação matemática”, in Revista Brasileira de História da Educação. Número 7, jan/juin 2004, p. 75 e seguintes.
(5) Citado em Romano, Roberto: “Marx e a tradução”, in Armando Boito e outros (Ed.) : A obra teórica de Marx, atualidade, problemas e interpretações (Campinas, Cemarx-IFCH-Xamã Ed.) 2002, segunda edição, p. 46 e seguintes.
(6) Diderot citado por Romano, Roberto : “Marx e a tradução”, ed. cit. p. 46 – 47.
(7) Cf. Versini, Laurent : “Introdução” à seleção dos Salões in Diderot, oeuvres, T. IV, Esthétique- Théatre (Paris, Robert Laffont, 1996), páginas 7 e 8 e p. 171 ss. Farei uso constante daquela excelente análise ao longo deste texto.
(8) Cf. Romano, Roberto: Silêncio e Ruído, a sátira em Denis Diderot (São Paulo, Unicamp Ed. 1997), página 82, nota 3.
(9) Re-editado em 1990: Paris, Aux Amateurs de Livres Ed.
(10) Toutes les emblèmes (1558-1564). Há edição recente em espanhol: Alciato. Emblemas. Manuel Montero e Mario Soria (ed.). Madrid, Ed. Nacional, 1975).
(11) De humane physiognomia (1586). Della Porta dedicou-se à criptografia e à optica, além da fisiognomia, arte de “conhecer” as pessoas pelos traços da face.
(12) Description historique et critique de l ´Italie ou nouveaux mémoires sur l´état actuel de son Gouvernement, des Sciences, des Arts, du Commerce, de la Population & de l ´histoire naturelle. Nouvelle Édition (Paris, Delalain, MDCCLXX). Uso o texto editado eletrônicamente pela Biblioteca Nacional de França (Coleção Gallica).
(13) Cf. “Critique d´Art” in Oeuvres complètes (Paris, Robert Laffont, 1980), p. 603 e ss. Gita May, Diderot et Baudelaire: critiques d'art (Paris/ Genève, Minard/Droz, 1957), p. 109 e 120. Hiddleston, J. A. : Baudelaire and the Art of Memory (Gloucestershire, Clarendon Press, 1999) recorda que o Salon de 1845, como aliás é bem notado pela crítica, retoma o modelo dos Salões diderotianos.Cf. Hiddleston, p. 262.
(14) Os quais reconhecem a presença de Diderot no campo da literatura e da crítica de arte. “Imagino Fragonard saído da mesma forma que Diderot. Nos dois, o mesmo fogo, mesmo brilho. Uma página de Fragonard é como uma pintura de Diderot. (…) quadros de família, enternecimento da natureza, liberdade de um conto livre. Os dois usufruindo da forma precisa, absoluta, do pensamento e da linha. Diderot, conversador sublime maior do que escritor; Fragonard, mais desenhista que pintor. Homens do primeiro movimento, do pensamento jogado totalmente vivo e nascendo diante dos olhos ou da idéia”. Cf. Journal. Mémoires de la Vie litteraire, I (1851-1865) (Paris, Robert Laffont, 1989), p. 494
(15) Cf. Balcou, J. : Le dossier Fréron. Correspondances et documents (Genève, Droz, 1975).
(16) Pierre Lepape: Diderot (Paris, Flammarion, 1991) p.234
(17) Para uma análise ampla das técnicas usadas por Diderot na Encyclopédie, cf. Marie Leca-tsiomis, Écrire l’Encyclopédie. Diderot : de l’usage des dictionnaires à la grammaire philosophique, Oxford, Voltaire Foundation, SVEC, 375, 1999.
(18) Cf. Phaedrus 264 c in Plato I (London, Harvard University Press, 1983) Loeb Classical Library, Trad. Fowler H.N. ). Página 528.
(19) Diderot, Denis: Mémoires pour Catherine II, citado por Anthony Strugnell: Diderot´ s politics. A Study of the Evolution of Diderot´s Political Tought After The Encyclopédie. (The Hague, Martinus Nijhoff, 1973), p. 137.
(20) Chouillet, Jacques : Diderot, poète de l ´énergie (Paris, PUF, 1984), p. 299.
(21) Maria Sylvia Carvalho Franco, em trabalhos inéditos sobre a Filosofia grega e o Renascimento, elaborou longamente este aspecto do pensamento ocidental. Os manuscritos da autora, aos quais tive acesso, trazem os nexos entre a imagem e a escrita, sobretudo no pensamento platônico e nos seus seguidores da Renascença inglêsa e italiana. Os referidos manuscritos estão em fase de finalização e breve serão publicados pela Editora Perspectiva de São Paulo.
(22) “Humano capiti ceruicem pictor equinam/ iungere si uelit et uarias inducere plumas/ undique conlatis membris, ut turpiter atrum /desinat in piscem mulier formosa superne, /spectatum admissi risum teneatis, amici? /Credite, Pisones, isti tabulae fore librum /persimilem, cuius, uelut aegri somnia, uanae /fingentur species, ut nec pes nec caput uni /reddatur formae. Pictoribus atque poetis / quidlibet audendi semper fuit aequa potestas.” “De arte poetica” in Le Opere di Quinto Orazio Flacco, a cura di Tito Colamarino e Domenico Bo (Torino, UTET, 1978), p.534
(23) “Ut pictura poesis”. O dito célebre, conhecido desde Simonides de Cós, é lembrado por Diderot. Mais estratégico, no entanto, nos seus textos, é o conjunto de enunciados que seguem na pena de Horácio: “Existem quadros que golpeiam mais tua atenção, se observados mais de perto e outros, se vistos de um pouco longe. Um ama a penumbra, o outro, que não teme o olhar aguçado de um conhecedor, quer ser posto em plena luz. Este agradou uma vez apenas, e aquela agradará mesmo que revisto dez vezes.”. Horácio, op. cit. p. 556-557.
(24) Aules Persius Flaccus : Saturarum liber, V. “E premido pela razão, luta para se deixar vencer”.
(25) Para uma análise aproximada desses problemas, cf. Hayes, Julie C. : “Sequence and Simultaneity in Diderot's Promenade Vernet and Leçons de clavecin”. Eighteenth-Century Studies (The Johns Hopkins University Press) V. 29, Número 3, 1996, pp. 291-305.
(26) Diderot não segue o dito horaciano sem críticas. “Tous nos petits littérateurs (…) repètent tous les jours le seul hemistiche d´Horace qu´ils sachent: ´Ut pictura poesis erit´. Mas, segue Diderot, “Ut poesis pictura non erit” (Cf. Oeuvres complètes de Diderot por Assezat J. e Tourneux, M. (ed.) (Paris, Garnier, 1875-1877), T. XII, 123-4 e XI, 107). O enunciado horaciano não pode ser assumido literalmente. O problema fora sentido no Renascimento, como diz Robert J. Clemens : “The catch phrase, ut pictura poesis, (…) was taken up and exploited uncritically, with painting and poetry becoming not only sisters, but twin sisters. Only in 1666 did Le Moine De l'art des devises recall Da Vinci and twice point out that emblems or paintings differ from poems in that the sense of the former may be grasped in a moment rather than during a slower unfolding. Yet the Renaissance assembled every possible argument to identify the poetic and pictorial endeavors, which finally led Lessing to assemble every possible counterargument and write the Laokoön. Another catch phrase rooted in the minds of Renaissance humanists was that aphorism attributed by Plutarch to Simonides to the effect that painting is mute poetry and poetry a speaking picture. This phrase held a particular meaning to the emblematists, and they echoed it willingly. Henry Hawkins urged the readers of the Devout Heart, his version of Etienne Luzvic's French emblem book, "If you eye wel and marke these silent Poesies, give ear to these speaking pictures." Remarking on a meaning he read into an emblem of Vaenius, Le Roy de Gomberville qualifies, "Si j'entends bien son langage muet." Barthélemy Aneau tells us that he decided to help the Lyonese printer Bonhomme make use of some plates lying about the print shop: "Alors je estimant que sans cause n'avoient esté faites, je luy promis que de muetes et mortes, je les rendrois parlantes et vives, leur inspirant âme par vive poésie." William Camden quotes the statement of Simonides and judges the pictorial element as dominant in the device and rebus." Cf. Picta Poesis: Literary and Humanistic Theory in Renaissance Emblem Books (Roma, Edizioni di storia e letteratura, 1960), p. 174-175.
(27) Virgilio, Eneida, IV, 79: “Suspensos aos lábios do orador”. Esta apreciação do texto platônico como peça teatral pode ser acrescida pelo uso frequente, por Diderot, de Luciano de Samosata, cuja letra diáfana conduz a sátira e o debate moral até o limite do insuportável. Em Silêncio e Ruído, a sátira em Denis Diderot (Campinas, Ed. Unicamp, 1997) analisei o nexo entre os escritos diderotianos e os textos lucianescos. Na época em que o livro foi publicado eu não tinha em mãos o clássico de Jay Chapman. Ali constatei o quanto ele é importante para a análise conjunta de Luciano, Platão, Diderot. Por exemplo: “The reader of Lucian's dialogue on 'The Household Philosopher' should turn to Diderot's essay called 'Le Neveu de Rameau,'(…). In it Diderot describes his conversations with a needy adventurer, a little brother to the rich, whom he has met occasionally in the public gardens, and who describes his own functions, methods, passions, and ideals as a diner-out, music-master, entertainer, and slave in the houses of the great. Diderot makes no reference to antiquity, yet his essay brings out a very striking resemblance between the social systems of Rome under the Cæsars and of France under Louis XIV and Louis XV. Though Diderot has no ferocity and is tiresome, he has a power of his own which competes with Lucian. One feels, after reading 'Le Neveu de Rameau,' that the art, the morality, the music, the architecture, the manners, the ideals, the unconscious superfine degradations of the age of Louis XV have been poured into our understanding. We need no other commentary, no other indoctrination, no better psychological analysis of that age than we have here in the rambling talk of this talented, disillusioned, tatter-brained, middleaged, sycophant.”. Cf. Lucian, Plato and Greek Morals (Houghton, Mifflin Company, 1931), p. 73-74.
(28) Cf. Scott, B. : “Strategies of happiness. Painting and Stage in Diderot”, French Forum, v. 29, 2004.
(29) Seznec, Jean: Essais sur Diderot et l ´antiquité (Oxford, Clarendon Press, 1957), p. 123, nota 65.
(30) La Religieuse, segundo Diderot, é “a contrapartida de Jacques le Fataliste. Ele é pleno de quadros patéticos. Ele é muito interessante e todo o interesse é reunido na personagem que fala. Estou bem seguro de que ele afligirá mais aos vossos leitores do Jacques os fez rir; donde poderia ocorrer que eles desejassem mais cedo o seu final. Ele é intitulado A Religiosa; e não creio que jamais se tenha escrito sátira mais amedrontadora dos conventos. É um texto para ser folheada ininterruptamente pelos pintores; e se a vaidade não se opusesse, sua verdadeira epígrafe seria a seguinte: Son pittor anch ´io”. Carta a Meister (27/09/1780), in Versini, L. : Correspondance de Diderot (Paris, Robert Laffont, 1997), p. 1309. Cf. Proust Jacques: «La fête chez Rousseau et chez Diderot» (1970), in l'Objet et le le texte. Pour une poétique de la prose française du XVIII siècle (Genève, Droz, 1980). Segundo Proust, Diderot extrai de Richardson o dom de fazer ver, e recomenda a leitura do mesmo Richardson aos pintores e poetas. Para se entender a suposta epígrafe que Diderot daria à Religiosa, Proust indica o Salão de 1759 no qual Diderot mostra detestar Os Cartuxos em Meditação de Jeannet, O quadro “não traz nada do silêncio, nada do selvagem, nada que lembre a justiça divina, nenhuma idéia, nenhuma adoração profunda, nenhum recolhimento interior, nenhum terror, nenhum extase” (p. 150).
(31) Cf. Strugnell, Anthony: “La voix du sage dans l´Histoire des Deux Indes”, in Colloque du Bicentenaire 2-5 septembre, 1984. Textes réunis par Peter France et Anthony Strugnell (Edimburgh, University Press, 1985), p. 36.
(32) La Religieuse, Ed. Pléiade, p. 354 e 359. Cf. Kofman, Sarah: Séductions. De Sartre a Heraclite (Paris, Galilée, 1990), p. 18.
(33) Cf. Caplan, Jay: Framed Narratives. Diderot´s genealogy of beholder (Minneapolis, University of Minnesota Press, 1985), p. 49. Jay cita Dumarsais- Fontanier : “A hypotipose é palavra grega que significa imagem, quadro. É quando nas descrições pinta-se os quais dos quais se fala, como se o tivessesmos atualmente diante dos olhos” Les tropes (Genève, Slatkine Reprints, 1967), volume 1, p. 151.
(34) “En lisant Diderot”, in Regarder, écouter, lire (Paris, Plon, 1993), p. 74–76. Sartre recusou o estruturalismo porque aquele movimento aposentou o sujeito (segundo Levi-Strauss, os seus pressupostos antropológicos estariam norteados por um “transcendental sem sujeito transcendental”) e porque ele teria posto peso demasiado na sincronia, contra a diacronia do pensamento dialético. E para dramatizar sua recusa, disse que se recusava voltar à lanterna mágica, depois da invenção do cinema. Com bastante atraso, Strauss devolve a pelota e aplica sua verve para desqualificar Diderot, visto por muitos comentadores como uma espécie de João Batista de Kant e do sujeito transcendental (ainda recentemente, cf. Paolo Quintili). O tema exposto por Diderot, Sartre e pelo próprio Levi-Strauss, encontra-se nas águas mais profundas da filosofia ocidental, no problema cujos icones maiores são Heráclito e Parmênides. A filosofia, tal como é conhecida, não conseguiu e não conseguirá sem duras penas “resolver” aqueles reptos à inteligência humana. Cobrar a solução apenas de Diderot, dele caçoando como o faz Strauss, é prova de percepção distoricida pelo sectarismo filosófico. Tais questões nunca foram endereçadas por ele a…Rousseau. Et pour cause….
(35)Todo este comentário sobre A Religiosa de Rivette e as controvérsias surgidas quando ele chegou ao público é extraído do artigo de Jean-Claude Bonnet, ”Revoir la Religieuse” in Proust, Jacques e Fontenay, E. de : Interpreter Diderot aujourd´hui, Colloque de Cerisy (Paris, Le Sycomore, 1984), p. 59 e seguintes.
II Congresso Estadual dos Magistrados de Pernambuco.
Dr. Roberto Romano da Silva
Unicamp.
Ementa
O longo texto que segue tem um núcleo lógico concomitante a um outro núcleo, o histórico. Segundo o plano lógico, a independência dos juízes depende da real isonomia dos poderes no Estado. No plano histórico, a nossa gênese enquanto Estado exigiu a diminuição do Legislativo e do Judiciário perante o poder Moderador que controlava o Executivo no Império e cujas prerrogativas passaram ao governo, na República. Resulta a enorme concentração de poderes nas mãos do Executivo federal e a não menos considerável concentração de recursos (financeiros, jurídicos, militares e policiais) no Executivo, em detrimento dos demais poderes. O presidencialismo imperial obstaculiza a democracia, a eficácia das políticas públicas, o desenvolvimento da cidadania na luta pelos direitos. Sem a luta pela isonomia dos poderes e sem o ajuste de contas com a história política nacional, dificilmente teremos o sonhado e pleno Estado de direito federal e, portanto, plena independência para o judiciário. Muitos juízes, com heroísmo silencioso, agem de modo independente. Mas é preciso que o coletivo federal e estadual judiciário tenham independência e respondam sempre à cidadania, com a mais acurada accountability, sem nenhuma interferencia dos outros poderes e sem servir, por sua vez, como legitimador de atentados ao direito e à lei pelos demais poderes. O texto traça uma rápida crônica do poder absoluto para indicar o quanto o nosso Estado ainda possui traços dessa tendência, em especial no Executivo. E termina com algumas questões espinhosas, mas necessárias, sobre as últimas medidas políticas estatais relativas ao Judiciário.
O tema é a independência dos juízes segundo a filosofia. Permitam-me, antes de expor um assunto com tamanhas pretensões, partir do campo oposto ao ideal referido. Refiro-me à burocracia que ameaça indivíduos e grupos do presente e do futuro, com a falta de independência, algo que já ocorreu à humanidade no século XX. É conhecida a tese weberiana, muito próxima do pensamento romântico, de que nos tempos modernos a política, a economia e a religião perderam todo encanto. O sagrado desaparecido teve como sucessores mecanismos que arrancaram dos indivíduos liberdade, força volitiva, pensamento autônomo. A burocracia, “máquina sem vida, é espírito coagulado. E só porque é isto, ela tem o poder de forçar os indivíduos a servi-la e determinar o curso cotidiano de seu trabalho vital (…) Como espírito coagulado aquela máquina viva representa a organização burocrática com sua especialização do trabalho profissional aprendido, sua delimitação das competências, seus regulamentos e relações de obediência hierarquicamente graduados. Unida à máquina morta, a viva trabalha para forçar a jaula (Gehäuse) daquela servidão do futuro a que talvez os homens se vejam obrigados a submeter-se impotentes, como os felás do antigo Egito”. ( )
Se as pessoas comuns seguem dominadas pelas formas burocráticas, também os legisladores e governantes tombam na malhas tecida pela racionalidade dos escritórios. O segredo é renitente prerrogativa da raison d´État ( ) Os justificadores da burocracia a defendem com fanatismo e brandem o “segredo do cargo”. Se a burocracia enfrenta um Parlamento, luta com instinto seguro contra os ensaios ali realizados para abolir o segredo do cargo com meios próprios e conhecimentos especiais. “Um Parlamento mal informado e, portanto, sem poder, é naturalmente melhor acolhido pela burocracia (…) Inclusive o monarca absoluto, e de certo modo ele justamente, percebe a si mesmo quase sempre impotente diante do superior conhecimento burocrático especializado”. ( )
Se aquela rede controla governantes e legisladores, também os juízes caem em suas teias. “Só a burocratização do Estado e do direito reconhece em geral a definitiva possibilidade de rigorosa distinção conceitual entre uma ordem jurídica ´objetiva´ e direitos ´subjetivos´ dos indivíduos garantidos por eles, bem como a separação entre o direito ´público´, ligado às relações entre autoridades e ´súditos´, e o direito ´privado´que regula as relações dos indivíduos dominados entre sí. A burocratização pressupõe a separação abstrata entre o ´Estado´, enquanto sustento abstrato dos direitos de mando e criador das ´normas jurídicas´ e todas as ´atribuições´pessoais dos indivíduos”. ( ) Nas formas burocráticas oficiais existe a perpetuidade do cargo, que não significa a sua posse. Quando no campo judicial são dadas garantias aos juízes e demais funcionários da justiça, contra a destituição ou remoção arbitrárias, tais medidas visam principalmente oferecer “segurança com vistas ao cumprimento rigorosamente objetivo e isento de toda consideração pessoal, o dever específico imposto pelo cargo correspondente. A proporção da ´independência´ outorgada por aquela garantia jurídica na burocracia não causa o incremento da estima ´convencional´— estamental— do funcionário assim garantido (…) O funcionário administrativo, em todos os casos, pode ser despedido com mais facilidade do que o juiz ´independente´”. A independência dos juízes, na hierarquia burocrática, resulta na despersonalização de sua individualidade. Os sistemas burocráticos de poder, mesmo no campo legal, não operam segundo as particularidades subjetivas dos integrantes, das partes à defesa, desta à promotoria, chegando ao juiz.
A independência diante dos antigos poderes garante, paradoxalmente, a mecanização do juiz. Este não mais depende de um soberano definido, indivíduo ou coletividade (rei, papa, aristocracia ou povo), pois a independência diante de pessoas de carne e osso é paga pela inserção na máquina de controle geral. Não espanta que um inimigo conservador da burocracia moderna, Carl Schmitt, assim descreva as operações dos juízes no regime nazista : “legislação, administração e justiça funcionavam, graças a novas simplificações e acelerações do processo, com obstáculos sempre menores, como aparelhos de comando”. Isto levou o mesmo Schmitt a discutir a fieira de tribunais revolucionários ou conservadores de exceção e a repetir a queixa do padre Laberthonnière: “Eu não julgo a vítima, apenas os juízes !”. ( ) A independência dos juízes é tema que exige cautela. Quando se trata de arrefecer o autoritarismo de governantes e legisladores, aquele ideal pode ser visto como incremento de liberdade para os magistrados, em proveito da coletividade. Mas, se ao deixar a dependência anterior o juiz cai na rede burocrática impessoal que o controla externa e internamente, sua independência pode resume-se a um pesadelo político.
Como tentativa de chegar à independência do juiz, tomo Francis Bacon, autor que mais atiladamente adiantou os nexos entre saberes e poder no mundo moderno, conhecido pelo aforismo knowledge and power meet in one. Em países como os EUA e Brasil de hoje, os juízes dizem a última palavra na exegese das leis e da Constituição. Desconhecemos apelo para algum tribunal acima do Supremo. Vigora entre nós, pelo menos em princípio, a autonomia dos poderes, o que faz dos juízes um coletivo que interpreta a lei. O mesmo não ocorre na Inglaterra. Alí, apesar da ampla autonomia dos juízes, as decisões recebem a supervisão do soberano poder legislativo. ( ) Os dois sistemas possuem fundamentos comuns, apesar das diferenças, pois a sua base filosófica enuncia que as pessoas têm direitos anteriores ao Estado e o poder político foi instituido para proteger tais direitos. Como as garantias daqueles direitos são frágeis ( ), o necessário governo é posto pelos indivíduos particulares, unidos para proteger seu corpo e alma.
O modelo inglês enfatiza o governo soberano unitário e nele, para proteção dos indivíduos, o poder deve ser forte porque grupos privados podem conspirar para extrair a vida e a liberdade alheias. A divisão do Estado incentivaria uma parcela social a resistir ao esforços das outras para viver em comunidade política. Os juízes não podem ser totalmente independentes, com a palavra absoluta. Quando eles não agem em harmonia com o todo estatal ou social, apelo deve ser feito ao poder soberano, antes o rei e hoje no Parlamento. O medo trazido pela separação do poder é que ela impeça a defesa dos direitos. O judiciário “responde ao poder encarregado, em último gráu, de garantir os direitos”, sendo o Legislativo o mais próximo da vontade popular. A supremacia pertence ao Parlamento, não ao Judiciário.
No outro lado, o que defende a supremacia do judiciário quando se trata de defender o direito, busca-se impedir que a maioria tiranize a minoria. A constituição escrita unida à separação dos poderes, impede que partes do Estado assumam poderes desproporcionais aos das outras. O sistema inglês, embora acentue a supremacia do Legislativo, garante os juízes na decisão dos casos, pelo menos até o apelo final, permite que eles apliquem leis antigas. Neste plano, a responsabilidade derradeira pela proteção dos direitos pertence ao Parlamento que faz as leis e subordina os juízes. No sistema oposto a autoridade é dividida e concede aos juízes papel especial de impor limites às formas governamentais.
E aqui entra Francis Bacon, entusiasta do procedimento inglês, tendo como discípulo aproximadamente fiel o também filósofo Thomas Hobbes. Bacon subordina, de modo formal, os juizes ao poder soberano, embora lhes atribua importante papel no governo. Papel relevante, sim, mas que eles devem desempenhar calma e indiretamente. Bacon parte de uma tese moderna: os indivíduos possuem alvos privados e o governo deve proteger tanto o seu corpo quanto as suas finalidades. Sem o soberano, eles caem na violência ilimitada. As barreiras contra as ambições particulares são produzidas artificialmente pelo Estado. Segundo Bacon o poder estatal deve ser forte e uno e, portanto, soberano. A unidade é condição do poder, pois um Estado dividido não pode se responsabilizar em caso de fracasso na conciliação dos contraditórios fins privados. Poder único não significa poder monárquico, visto que Bacon indica o soberano como força que pode residir num indivíduo ou numa assembléia. Para ele, os juízes exercem sua autoridade no Estado, mas não de modo a enfraquecer a unidade do poder público. Eles devem ser “leões sob o trono” na expressão usada no ensaio “Sobre a judicatura”. Mas se estão sob o trono, nem por isso perdem a essência leonina. Ao garantir a aplicação da lei, agir como intermediários entre o poder soberano e os indivíduos privados, esclarecer antigas leis, os juízes excercem grande poder no Estado e na sociedade.
Os juízes, afirma Bacon ( ) devem recordar que seu ofício é jus dicere e não jus dare. Interpretar a lei e não fazer a lei. Eles devem ser mais ilustrados que inteligentes, mais respeitáveis do que plausíveis e mais desconfiados do que confidentes. O dever maior do juiz é suprimir a força e a fraude, pois a força é mais perniciosa quando aberta e a fraude quando oculta e disfarçada. Os juízes devem se acautelar contra as construções teóricas sistemáticas e inferências, porque não existe tortura pior do que a tortura das leis. Sobretudo no campo penal, eles devem ter cuidado. Paciência e gravidade nas audiências são necessárias, o juiz que fala em demasia não é um címbalo bem ajustado. São quatro as partes do juiz na audiência : dirigir tudo para a obtenção de evidências enquanto modera a extensão, a repetição, a impertinência da fala. Recapitular, selecionar, e citar os pontos materiais, do que foi dito. E dar a lei ou a sentença. Tudo o que estiver além disso é demasiado e procede da glória, do comichão de falar, da impaciência em ouvir, da memória curta, ou falta de atenção.
Bacon afirma que os juízes, embora não tenham lugar sobre o trono, devem manter o essencial da soberania, segundo a raison d´État. Eles devem “recordar a conclusão das Doze Tábuas Romanas, o preceito de que Salus populi suprema lex e saber que as leis, exceto quando voltadas para aquele fim, são capciosas, oráculos pouco inspiradores. Logo, é bom para o Estado que os reis e estamentos consultem com frequência os juízes. E que os juízes consultem com o rei e estamentos com a mesma frequência. A primeira ocasião, quando se trata de lei que interfira nos assuntos de Estado. E a segunda, quando há alguma análise a ser feita no Estado em matéria de lei. Porque muitas vezes as coisas conduzidas a juízo devem ser ligadas ao meum e tuum, quando a razão e a consequência interessa ao Estado. Assunto de Estado não são apenas as partes da soberania, mas tudo o que introduz alguma alteração considerável, ou precedente perigoso, ou se relaciona com uma grande parte do povo. Não se considere que as leis e a política (policy) se opõem. Elas são como os espíritos e tendões: uma se move com a outra. “Os juízes devem ignorar o seu próprio direito, ao ponto de pensar que nada sobrou para eles, como a principal parte do seu ofício, um uso sábio e aplicação das leis. Porque eles precisam recordar o Apóstolo quando disse de uma lei maior dos que as deles : Nos scimus quia lex bona est, modo quis ea utatur legitime (sabemos que a lei é boa, desde que usada por alguém com legitimidade)”. ( )
Os juízes garantem a obediência às leis. Mas são limitados pelo soberano. O que é a “lei do soberano”? A resposta mais direta encontra-se em Hobbes, secretário de Bacon e tradutor para o latim dos Ensaios. “Lex est mandatum ejus personae, sive hominis sive curiae, cujos praeceptum continet obedientiae rationem”. ( ) Desnecessário dizer a importância dessa tese hobbesiana para se pensar a difícil independência dos juízes. Enquanto “a lei natural é imediata em nós, pois conhecemos o mandamento divino em nossa razão, a lei civil é mediada pelo conjunto de regras com as quais a comunidade, por escrito ou oralmente, ou qualquer outro sinal adequado (signum idoneum) de sua vontade, comanda o uso da vontade para distinguir o certo do errado, o contrário à regra do que não é contrário”. ( ) Só a Commonwealth pode editar leis civis. O soberano é o único legislador, não submetido às mesmas leis civis. Essa tese é de Bacon, para quem a lei depende do soberano, posição contraria à de Coke para quem a Common Law é suprema. O longo tratamento da lei é feito por Bacon no tratado De Dignitate et augmentis scientiarum. No Livro VIII ele escreve sobre a raison d´État e cita Maquiavel, com atilada análise da política exterior no comércio e demais segmentos estratégicos. No título I do Terceiro capítulo do mesmo Livro VIII (“A certeza é a primeira dignidade das leis”) afirma-se: “a melhor lei é a que deixa pouco à disposição do juiz”. A incerteza da lei vem sobremodo de sua forma ambigüa. Se a melhor lei é a que deixa pouco ao juiz, “o melhor juiz é o que menos deixa à sua própria vontade”. Importa deixar clara a gênese da lei. Em toda sociedade civil há uma autoridade legislativa como “absoluto poder (summa potestas) que faz e revoga a lei”. ( )
Bacon ocupou cargos no Estado e na justiça inglêsa. Foi Solicitor General (1607), Attorney General (1613), Lord Keeper (1617) e Lord Chancellor (1618). Sua atividade constante, no entanto, consistiu em aproximar o rei do parlamento, “duas bases e princípios deste Estado (…) que não se anulam, mas se fortalecem e mantêm um ao outro”. Mas ora ele dá um peso maior a um, ora a outro elemento. O rei possui prerrogativas “mediatamente devido às leis, mas imediatamente de Deus” e não pode ser censurado por nenhum juiz, por estar além de toda jurisdição. Mas, como o seu oficio é preservar o público, espera-se que ele não desobedeça a lei. Um bom rei governa com a lei. Embora “legibus solutus, seus atos e garantias são limitados pela lei”. ( ) Bacon defendeu os privilégios dos Comuns em 1593, e por isto a carreira foi-lhe subtraida sob Elizabeth II. O trato com James foi mais balanceado, embora o soberano insistisse num absolutismo extremo que o colocando-se como vice-deus. A confiança de Bacon no Parlamento foi recompensada. Em 1614 os Comuns decidiram que nenhum Attorney General teria lugar na Casa das Leis, mas fizeram exceção para Bacon. ( )
Chegamos aos juízes em Hobbes. É essencial recordar que para o filósofo a soberania bane da ordem pública os juízos com origem privada, pois eles geram a polêmica. Não existe medida comum para o juízo moral e indivíduos diferentes percebem as coisas de modo diferente, desenvolvem diferentes paixões. Ninguém concorda sobre o bem e o mal, certo ou errado, justo ou injusto. E o juízo de cada um tende a se ampliar ao infinito, na medida mesma do desejo que desconhece limites (pleonexia). A guerra universal não é apenas física, mas psicológica porque inveja e ódio campeiam e cada pessoa julga-se mais esperta do que a outra. Paixões diversas e igualdade no poder mortífero levam à miséria. É impossível arrancar a força física dos homens, mas factível obrigá-los a abdicar da exteriorização de sua opinião privada. Todos devem renunciar ao “direito” de impor o juízo próprio aos demais. Visto que todos a partir da natureza possuem um direito igual, cada um pode entrar no pacto. E todos submetem-se ao juízo de um árbitro. Só o soberano guarda o direito natural e usa sem restrições a força física e o juízo próprio. ( [15])
O soberano concentra o poder de julgar em todas as matérias, nas leis, na administração, nos tribunais, guerra ou paz, controla a religião, decide o bom e o ruim. Este é o pressuposto para colocar limites nos desejos infinitos dos cidadãos. Como todos abrem mão do juízo privado, nada sobra para o direito de resistência que nele reside. Entre o real como o vemos e como ele existe ocorrem diferenças por construírmos um mundo pela imaginação que, por sua vez, é movida pelos nervos. O intelecto não possui perfeito conhecimento dos demais homens. Estratégico nos indivíduos “não é a verdade mas a imagem que faz a paixão. A tragédia afeta mesmo o assassino, quando bem desempenhada” (The Elements of Law). Paixão e imagem trazem rebeliões. O uso correto das palavras não consiste na verdade, mas serve para evitar ambigüidades nocivas. A distinção entre o nosso interior e o mundo externo acentua a ausência de medida comum de bem e mal. Os indivíduos discordam sobre o certo e o errado e são incompetentes para emitir tais juízos. “Os homens, veementemente amorosos de suas próprias novas opiniões (as mais absurdas) e decididos com obstinação a mantê-las, deram às opiniões o reverenciado nome de consciência, como se julgassem ilegal mudá-las ou falar contra elas”.
Os homens fundamentam seus atos em raciocínios, concebem “a consequência dos nomes de todas as partes para o nome da totalidade, ou dos nomes da totalidade e de uma parte para o nome da outra parte (…) E os juristas somam leis e fatos para descobrir o certo e o errado na ação dos homens privados”. Todo homem pode errar no cálculo, o que não quer dizer que inexista o bom juízo. “Ao surgirem controvérsias sobre um cálculo as partes precisam, por mútuo acordo (by their own accord) recorrer à razão certa de um árbitro ou juiz, a cuja sentença se submetem (…) Quando os que se julgam mais sábios do que todos os demais gritam e exigem uma razão certa para juiz, só procuram garantir que as coisas sejam asseguradas não pela razão dos outros homens, mas pela sua. É tão intolerável agir assim na sociedade dos homens como no jogo, escolhido o trunfo, usar como trunfo em todas as outras ocasiões a série de que se tem mais cartas na mão.” ( )
Hobbes afasta a fraude no “jogo” da sociedade civil, mas em proveito do soberano não preso a regras. Os particulares não têm mais direito (pois assumiram o pacto) de viver segundo a fraude. O soberano, cuja função é salvar o povo, não sofre esta limitação. O jogo opera com a inteligência e a imaginação dos indivíduos. Na sociedade civil, se todos jogarem sem regras, desaparece o jogo e nenhum jogador parte da igualdade das chances porque o truque se esconde e não se indica quem o usa (caso contrário, ele se transforma em guerra). O jogador sem regras usa o segredo, a simulação e a dissimulação. Ele finge seguir as regras, mas guarda para si mesmo o fato de que as desrespeita, simula aceitá-las, dissimula truques. O jogador comum opera com a imaginação e a discreção: ele deseja ganhar, imagina-se no instante em que vence (pode imaginar os frutos do ganho como riquezas, amores, etc) e ao mesmo tempo não pode revelar as cartas. O soberano não segue regras (não é jogador) e usa a discreção, a imaginação, a simulação e a dissimulação. Ele opera em pleno direito natural.
A imaginação indiscreta não é força. Quem usa o intelecto para o jogo exerce deliberada dissipação da mente (mind). Na ordem familiar são permitidos jogos com os sons e palavras equívocas pelos significados, com a desregrada sequência da imaginação (Fancy). Mas tal jogo é proibido no sermão ou diante de pessoas desconhecidas ou às quais deve-se reverência. A discreção traz as regras do trato que determinam a loucura (brilhante, pouco importa) de uns e a lucidez de outros. É possível ser discreto, mas perverso. “Caso à prudência se acrescente o uso de meios injustos ou desonestos, como os que os homens são levados a usar por medo e necessidade, temos a perversa sapiência (Crooked Wisdome) a que se chama astúcia (Craft) um sinal de pusilanimidade. A magnanimidade é o desprezo dos expedientes injustos ou desonestos, enquanto a Versutia —astúcia, sutileza— consiste em afastar um perigo ou incômodo presente mediante um maior ainda, como roubar uma pessoa para pagar a outra, esperteza de vistas curtas”.
Como fazer todos os jogadores seguirem as regras, sem truques? “As leis da natureza, justiça, equidade, modéstia, benevolência, fazer aos outros o que gostaríamos que eles nos fizessem sem o terror de algum poder (…), são contrárias às nossas paixões naturais, estas nos empurram para a parcialidade, orgulho, vingança e que tais. E pactos sem a espada, são apenas palavras (Covenants, without Sword, are but Words) e não possuem nenhuma força (strength) para assegurar um homem”.
O terror do poder dita as regras do jogo político e as impõe para todos e para cada um. A lei não é conselho, mas ordem do poder soberano, regra para uso e distinção do bem e do mal e do que é contrário ou não à regra (Rule). As leis são interpretadas pelo soberano e apenas por ele, ou pelos que ele designa para a tarefa de julgar. Elas não são julgadas pelos particulares. Quando o juízo privado pretende mudar as leis e o poder público, age tendo em vista a “consciência”. assume o papel de estraçalhador da Commonwealth. No De cive (capítulo 12) lemos que “muitos homens, que mesmo sendo bem apegados à sociedade civil, fazem por carência de saber (knowledge) inclinar a mente dos súditos à sedição, quando ensinam, aos jovens, a doutrina conforme às suas opiniões nas escolas, e ao povo todo nos seus púlpitos. Os que desejam levar aquela disposição aos atos, colocam todo o seu esforço nisso: primeiro, eles juntam todos os doentiamente afetados na facção e na conspiração; depois, eles mesmos buscam ter a maior força na facção. Eles os colocam na facção enquanto fazem de si mesmos os relatores e intérpretes dos conselhos e ações do homem individual, e nomeiam as pessoas e lugares para reunião e para deliberar sobre as coisas nas quais o governo atual deve ser reformado, segundo deve parecer melhor aos seus interesses. O alvo é fazer deles mesmos os que governam a facção e a facção deve ser tolhida por uma outra facção; ou seja, eles devem ter suas reuniões secretas em separado, apenas com poucas pessoas, reuniões nas quais eles podem ordenar o que devem a seguir propor numa Assembléia Geral, e por quem, e sobre quais assuntos e em que ordem cada um deverá falar, e como eles atrairão os mais poderosos e populares dentre os homens para a facção de seu lado. E quando eles conseguem grande o bastante, a qual podem dirigir (rule) pela sua eloquencia, eles a mobilizam para administrar os negócios. E assim, às vezes eles oprimem a sociedade (Commomwealth) quando não existe outra facção maior para se opor a eles; mas na maioria das vezes eles conseguem fazer aquilo e começam uma guerra civil. Porque a Loucura e a eloquência concorrem para a subversão do governo, de maneira igual à das filhas de Pélias, rei da Tessália, que conspiraram com Medéia contra seu pai. Elas iam restaurar o ancião decrépito em sua juventude, por conselho de Medéia cortaram-no em pedaços e o colocaram para ferver; em vão esperando o momento em que ele viveria novamente. Assim o povo comum em sua loucura, como as filhas de Pelias, desejando renovar o governo antigo, é conduzido pela eloquência de homens ambiciosos, como se tivessem enfeitiçados por Medéia; divididos em facções eles consomem em chamas em vez de reformar o governo”. ( )
“É preciso obedecer mais a Deus do que aos homens” ? ( ) A questão é impertinente porque as leis não governam consciências, mas regem palavras e atos. A Biblia ensina a obedecer o soberano “em todas as coisas”. O dilema (obedecer Deus ou obedecer o soberano) é desconhecido entre Judeus, Gregos, Romanos e gentios. Naqueles povos, as leis civis definiam o justo e o virtuoso e o culto externo a Deus. Os católicos têm essa dificuldade porque exigem para a autoridade religiosa poderes acima do civil. Quanto aos atos, a paz só é conseguida quando eles são regulados. Caso contrário, persiste a divisão no Estado devido à “liberdade” de consciência. Ser papista, luterano, calvinista, arminiano, como no passado paulistas, apolineanos, cefasianos não impede a obediência à ordem pública. “Paulo mostra que as questões trazidas pelos raciocínios humanos (human ratiocination) são perigosas para a vida cristã. No mundo civil quem resiste a um rei porque duvida de seu título ou porque é dominado pelas paixões, merece punição.Sendo a consciência apenas “opinião” ela não deve ela ser abolida, mas restrita no espaço público, que não pode ser uma soma heteróclita de opiniões, mas resultado de uma só “opinião” racional.
O debate sobre o destino post-mortem deve ser afastado das leis que regem o corpo social. Segundo Pierre Bayle “o sumário do Leviatã é que sem a paz não existe segurança no Estado e a paz não subsiste sem comando e o comando sem armas; as armas nada valem se não forem postas nas mãos de uma pessoa; o medo das armas não conduz à paz os impulsionados a combater por um mal ainda mais terrível do que a morte, isto é, pelas dissenções sobre as coisas necessárias à salvação eterna”. ( ) O Estado possui uma potência que chega ao nível espiritual, sempre que se trata da república. No pacto, o indivíduo aliena o direito de agredir os demais. O soberano, no entanto, choca-se com algumas barreiras para a sua soberania. Em termos lógicos: se todos abrem mãos de seu direito natural para afastar a morte, não tem sentido o Estado exigir contra eles o direito de vida e morte. A segurança é inalienável.
Ferdinand Tönnies ( ) editor e estudioso de Hobbes, contrário ao saber político e social mecânicos do Leviatã (Tönnies pertence à sociologia romântica) define dois modêlos contrários de ordem social, incluindo a pública. A sociedade é mecânica enquanto a comunidade é organismo vivo. “A distância que vai de uma ferramenta artificial ou a determinada máquina construída para certos fins, até um sistema orgânico ou a alguns orgãos concretos de um corpo animal, é a que vai de um conglomerado de vontade —vontade sobreposta— a um conglomerado de vontade vontade essencial”. Como indica Georg Lukács, “Tönnies pinta a sociedade com as cores da filosofia do direito de Hobbes, onde cada um é inimigo do outro e apenas a lei pode assegurar uma ordem externa.” ( )
A noção de poder, em Hobbes, não se desvincula da linguagem. Yves Charles Zarka chega a afirmar que a sua doutrina não se liga “tanto à física, mas à semiologia”. ( ) Fala, gestos, escrita sujeitam-se à ambigüidade e ao equívoco. A lógica fornece princípios do correto emprego das denominações. A pacificação requer uma lingua na qual os equívocos sejam atenuados. A lingua, antes embebida nas paixões, com o estado de natureza, no Estado é a única forma passível de uso científico com a proposição, porque afirma e nega, possibilita o juízo sobre o falso e o verdadeiro. “Quando um homem raciocina a partir de princípios indubitáveis por experiência, todos os engodos dos sentidos e equivocos de palavras evitados, a conclusão feita por ele concorda com a reta razão. Mas quando da conclusão ele pode, por bom raciocínio, derivar algo que contradiga qualquer verdade evidente, concluiu contra a razão e tal conclusão é absurda.” Dos absurdos nascem os fanatismos religiosos e políticos. No trato comum, são usados nomes extraídos da ignorância coletiva e na fala então importa, para que eles sejam lembrados, a coerência de uma concepção para outra. Mas se as palavras ajudam a memória, a comunicação e a vida em comum, elas podem transformar o convívio num inferno. Pelas palavras e raciocínios ultrapassamos as feras. Elas desconhecem o verdadeiro e o falso e não possuem juízo, não multiplicam uma não verdade por outra, como fazem os homens.
As paixões iniciam todos os movimentos voluntários e da fala. Querendo mostrar aos outros o saber, opiniões, concepções e desejos, e para isso inventado a linguagem, os homens transferem todo o discurso mental às palavras. E a ratio torna-se oratio “porque na maioria dos homens o costume tem um poder tão grande que se a mente sugere uma palavra inicial, o resto delas segue-se pelo habito e a mente não as acompanha. É o que ocorre entre os mendigos quando rezam seu paternoster. Eles unem tais palavras e de tal modo, como aprenderam com suas babás, companhias ou seus professores, e não têm imagens ou concepções na mente para responder às palavras que enunciam.” ( )
As palavras, quando se trata de uma lei, precisam ser entendidas por todos os que a devem acolher. Como seguir uma ordem quando ela foi emitida em lingua obscura, acessível apenas aos juristas ? Não basta o juiz entender as partes: é preciso que ele sempre se faça entender. ( ) Para que se obedeça é obrigatório que a lei seja promulgada em lingua conhecida por ele. Urge que a pessoa saiba as penalidades a que se submeterá e se defenda em lingua acessível ao juiz e aos concidadãos. Se os últimos o compreendem, mesmo o juiz parcial terá trabalho para impôr uma sentença errônea.
O juiz pode errar quando interpreta a lei. Logo, ele deve estudar a equidade. “Por exemplo, é contra a lei da natureza punir o inocente; e inocente é o absolvido judicialmente, reconhecido inocente pelo juiz. Coloque agora o seguinte caso: um homem é acusado de crime capital e face ao poder e a malícia de algum inimigo, a corrupção freqüente e parcialidade dos juízes, foge com medo, é pego e conduzido a um julgamento e como não tinha culpa, é absolvido mas condenado a perder seus bens; esta é uma condenação manifesta do inocente. Não há lugar do mundo em que isso poderia ser uma interpretação da lei da natureza, ou transformado em lei pelas sentenças dos juízes precedentes que fizeram o mesmo. Porque o primeiro que julgou, o fez injustamente; nenhuma injustiça pode ser modelo de juízo para os juizes subsequentes. Uma lei escrita pode proibir os homens inocentes de voar e eles podem ser punidos por voar; mas que voar por medo de injúria seja tomado por presunção de culpa, depois que alguém já foi absolvido judicialmente do crime, é contrário à natureza da presunção, que não tem lugar depois que o juízo foi dado”.
Hobbes distingue o cavilador e o intérprete. Um cavilador traz outros, ao infinito. Mas deve existir um intérprete, o juiz ordinário, que também interpreta as leis não escritas. As sentenças desse juiz não podem obrigar outros juizes “porque um juiz pode errar até na interpretação das leis escritas; mas nenhum erro de um juiz subordinado pode mudar a lei, a qual é a sentença geral do soberano”. Quais as condições para que o juiz seja intérprete das leis? Entendimento reto da principal lei da natureza, a equidade, que não depende das leituras de outros homens, mas da bondade da razão natural própria. Segundo: desprezo de bens desnecessário e promoções. Terceiro, ser capaz de num julgamento retirar de si todo medo, ira, ódio, amor e compaixão. E finalmente, paciência para ouvir, atenção diligente na escuta, memória para reter as peças, aplicação ao que ele tiver ouvido. A razão, que chega à equidade, deve afastar ou controlar as paixões mais notórias do trato entre as pessoas. Hobbes acentua a ambição como algo que não deve integrar a alma do juiz. Tanto, ou mais do que as outras paixões, a fome de bens ou cargos tolda o juízo, torna a mente fechada para as evidências e para a fala das testemunhas, do réu, da outra parte.
No Leviatã, a mente apaixonada curva-se à fantasmagoria que ela própria gera, tendo como objeto os demais seres humanos. É o reino da mentira. O Behemoth traz a seguinte afirmação : “Um Estado pode constranger à obediência, mas não convence ninguém de erro, nem altera as mentes dos que acreditam possuir a melhor razão. A supressão da doutrina não une mas exaspera, aumenta a malícia e o poder dos que nela acreditam” ( ) “Porque as palavras não são isentas de jurisdição?”. Hobbes une as falas sediciosas à atividade rebelde, particularmente na análise da autoridade espiritual que tenta controlar a soberania civil”. ( ) Tais falsos mestres são os agentes do “Reino das Trevas”, em contraste com a luz da verdadeira religião e do entendimento. “Em particular, os pregadores sediciosos do Evangelho interpretam a Escritura para provar, acima de tudo, que sua igreja é o reino de Deus. Consequentemente, as pessoas que eles enganam obedecem tais mestres mais do que aos soberanos civís.” ( )
Além dos mentirosos pregadores que desejam impor a soberania de seu grupo, seitas ou igrejas, sobre todos os demais cidadãos, Hobbes refere-se no Leviatã às Histórias ou Ficções das pessoas galantes. Este é um lugar comum da filosofia contra os historiadores e os poetas. A condenação da mentira é velha como a filosofia, ou ainda mais arcaica. ( ) Se é preciso impedir a fraude, o truque, para conseguir a estrita obediência às leis urge que o soberano impeça a difusão de mentiras, o refinamento na arte de escrever com duplicidade. O Estado deve banir, com os mentirosos habituais, os que trapaceiam no jogo político de maneira eficaz, pois eles modificam o sentido das palavras e das frases. Proibidas as armas físicas, é preciso cuidar das espirituais, começando com as exercidas na lingua.
A polissemia atropela a obediência, enquanto a mentira é truque insidioso que reintroduz a ferocidade recíproca. Nos Elements of law os termos Sleight and strength são usados para definir o estado de natureza no trato dos homens. A dupla de palavras apresenta grande interesse na análise hobbesiana da existência antes que a multidão se transformasse em Estado. ( ) Os humanos, mesmo depois do pacto, enganam-se mutuamente com truques hábeis de linguagem, no mesmo instante em que desobedecem a lei e tentam usar a força física. ( ) Como o pacto não é obedecido por todos os indivíduos, sendo motivo de queixa contra os atos ilegais dos que, na república, são importantes e ricos, o soberano é impelido a agir de acordo com a simulação, a dissimulação e a mentira. Ele é presditigitador e mágico, mestre na arte de enganar, sobretudo pelo raciocínio. Aproximemos a lente do panorama inaugural do Estado. Se na gênese do Estado à multidão fosse permitida a licença de enganar por meio de truques, jamais haveria segurança coletiva. E se fosse permitido aos indivíduos os truques sofísticos no espaço público, permaneceria a insegurança. Mas se fosse proibido ao soberano o uso das simulações e dissimulações, zonas inteiras de poder seriam conhecidas pelos inimigos externos e utilizadas pelos cidadãos ambiciosos de vantagem própria, o que anularia as regras do pacto.
Surge o problema por excelência do pensamento filosófico e político: o acesso à razão e a vitória sobre os engodos de outros Estados e dos particulares. Hobbes conhece os textos de Seneca. A fama conduz aos atos mais insensatos, pois exige a boca e os ouvidos da multidão que se deixa enganar pelos demagogos. ( ) No Leviatã e no De corpore, por ser restrita à experiência a prudente sabedoria não possibilita a generalização cognitiva, não produz a medida universalmente válida do justo e do injusto. ( ) Nos Elements of law a prudência dá lugar à força que inibe as paixões desagregadoras dos particulares, força usada pelo soberano autorizado no pacto. ( [33]) A disciplina se apresenta como o eixo político no De cive : ad societatem homo aptus non natura; sed disciplina (I,2). A prudência, ligada à razão de Estado, aparece aqui e ali no De cive. No mesmo livro Hobbes diz que os governantes conservam a astúcia e a força (sleight or force). Vimos que nos Element of law, sleight é palavra usada com o vocábulo strength, para definir o estado de natureza.
Quando afirma no De cive uma Reason of City (Civitas, no latim), Hobbes guarda o sentido renascentista dado à razão estatal, tendo como núcleo a prudência. Daí o apelo, notável no referido volume, ao segredo e aos espiões. Entre o segredo (a máxima obscuridade) e os espiões (encarregados de penetrar a obscuridade alheia) a prudência do soberano traz segurança para a Civitas. Os soberanos que usam sleight or force, permanecem no estado de natureza e podem usar a força, a fraude, a mentira, a espionagem, não precisam manter a palavra porque não existe nenhum pacto que una os Estados, nenhum soberano que imponha uma lei obrigatória para todos.
Se no âmbito mundial opera a razão de Estado em guerra permanente, no plano interno a transferência do poder mortal não pode deixar ambiguidade na lei, Nas relações de cidadão a cidadão a mentira ou engodo deve ser reprimida. No Leviatã quase desaparecem as antigas formas de pensamento prudencial, ou seja, da razão de Estado. Se esta última opera com force and fraud, o uso de semelhantes técnicas de dominação entre cidadãos conduziria à ruina da república. ( ) Contra o uso da força e da fraude, no interior da república, o soberano deve providenciar para que o povo não seja ignorante “ou pouco informado das bases, e razões dos seus direitos essenciais; porque assim os homens são seduzidos fácilmente, e levados a resistir-lhe, quando a República deve exigir seu uso e exercício”. ( ) Em qualquer Estado, generaliza Hobbes, sem a obediência o povo é dissolvido por “homens poderosos que digerem com muita dificuldade tudo o que estabeleça um poder para controlar suas afecções”. Os “eruditos também resistem ao poder que descubra seus erros, e diminua a sua autoridade (Authority)”. Enquanto os poderosos, estão cheios de ambição de poder e os letrados mergulham na ambição de autoridade, porque suas mentes estão abarrotadas de doutrinas mentirosas e fraudulentas, “as mentes do povo comum, enquanto não forem tingidas pela sua dependência diante dos poderosos, ou rabiscada pelas opiniões dos doutos, são como papel limpo, apropriadas para receber tudo o que a Autoridade Pública nelas imprimir”. ( [36])
E encontramos novamente a fábula de Medéia : o desobediente deseja reformar a República, mas a destrói “como as ensandecidas filhas de Peleu, na fábula, as quais desejando renovar a juventude do seu pai decrépito, por conselho de Medéia o cortaram em pedaços e o colocaram para ferver, sempre com suas estranhas ervas, mas não fizeram dele um homem novo. Este desejo de mudanças é como a desobediência do primeiro mandamento divino: porque Deus disse, Non habebis Deos alienos: Não terás deuses de outras nações´., e em outro lugar , em relação aos reis, que eles são deuses”. ( [37]) Quais “deuses” não podem coexistir com o “deus mortal”, o Leviatã ? Os poderosos, os letrados, as cidades que pretendem possuir independência na República. “Os que pretendem agir segundo a prudência política”, diz Hobbes, tendem a afirmar a “liberdade de disputar o poder absoluto”. Estes são os poderosos e populares. “A menos que a República (Commonwealth) tenha muito penhor de sua fidelidade, eles são uma doença muito perigosa; porque o povo, que poderia receber seu movimento da autoridade soberana, pela adulação (flattery) e pela reputação de um homem ambicioso, é arrancado de sua obediência às leis para seguir um homem cujas virtudes e designios eles não conhecem. E isso é mais comumente perigoso num governo popular do que na monarquia, porque um exército com possui maior força e número pode facilmente fazer acreditar que eles são o povo. É assim que Julio Cesar, que subiu ao poder pelo povo e contra o senado, tendo ele mesmo vencido as facções de seu exercito, controlou o senado e o povo. E este modo de agir de homens ambiciosos é rebelião clara, e pode ser comparada aos efeitos da feitiçaria (witchcraft). Outra doença da República é “a grandeza imoderada de uma cidade, quando ela pode fornecer para fora de seu próprio circuito o número e a despesa de um grande exército, como também doentio pode ser o número de corporações, que nos intestinos da república são como vermes nas entranhas de um homem natural. E devemos acrescentar a liberdade de disputa contra o poder absoluto conduzida pelos campeões da prudência política, os quais alimentados na maior parte na laia do povo, e animados por doutrinas falsas, sempre dão palpites sobre as leis fundamentais e molestam a república, como vermezinhos chamados ascarídeos pelos médicos”. ( [38])
Embora Hobbes acelere a secularização do poder, é preciso sublinhar que de James I até o Leviatã um ponto permanece intocado, exasperando-se mesmo após a Revolução Puritana : o soberano não deve satisfações aos parlamentos, aos juízes, aos súditos. Esta tese foi combatida desde longa data na Inglaterra, sendo que no tempo de Bacon e de Hobbes Edward Coke defendeu a independência dos juizes, contra a Igreja Anglicana e contra o rei James I. Ao replicar ao rei que defendia suas prerrogativas contra “os advogados” Coke chegou a afirmar que o soberano “não foi educado no conhecimento das leis da Inglaterra”. James I, mais do que ofendido, afirmou que se Coke tivesse razão, ele deveria estar sob a lei, “ traição evidente”. E o governante cita Bracton : “Rex non debet esse sub homine sed apud Deo et lege”. O autor do Basilicon Doron e do tratado The True Law of Free Monarchies or the Mutual Duty Betwist aa Free King and His Subjects, escrevera que “um bom rei enquadra todas as suas ações segundo a lei; mas ele prende-se a ela, só pela sua boa vontade e para dar exemplo aos súditos. Ele é o senhor sobre todas as pessoas, tem poder de vida e morte. Embora um principe justo não tire a vida de nenhum súdito sem uma lei clara, a mesma lei com a qual ele tira a vida é feita por ele mesmo or seus predecessores”. Além de pai do seu povo, o rei, segundo Jaime, seria o professor universal, pois os súditos são fracos e ignorantes. E assim, ele é em tudo independente do judiciário: “A ruindade de um rei nunca pode fazê-lo ser julgado pelos juízes que ele próprio ordenou”.
Na fala ao Parlamento de 1616, ele proclama que “os reis são justamente chamados deuses; pois eles exercem um modo de semelhança do Divino poder sobre a terra. Porque se forem considerados os atributos de Deus, ve-se o quanto eles concordam com a pessoa de um rei. Deus tem poder de criar ou destruir, fazer ou desfazer ao seu arbitrio, dar vida ou enviar a morte, a todos julgar e a ninguém prestar contas (to be accountable). O mesmo poder possuem os reis. Eles fazem e desfazem seus súditos; têm poder de erguer e abaixar; de vida e morte; julga acima de todos os súditos em todos os casos e só deve prestar contas a Deus (yet accountable to none but God). Eles têm o poder de exaltar as coisas pequenas e rebaixar as altas e fazer de seus súditos como fazem os jogadores com as peças de xadres”. Ainda em 1616 o monarca assim se dirigiu aos juízes da Star Chamber: “não usurpem a prerrogativa da Coroa. Se aparecer uma questão ligada à minha prerrogativa ou mistério do Estado, trato que não lhes diz respeito, consultem o rei ou o seu conselho, ou ambos; porque tais matérias são transcendentes. As prerrogativas absolutas da Coroa não é assunto para a lingua de um advogado, nem é legal disputar sobre elas”. Coke em companhia de outros juristas foi preso na Torre de Londres por nove meses, devido à resistência à referidas prerrogativas. Não é por acaso que James I evocou Bracton para afiançar o seu poder. Mas dele fez uma leitura unilateral ao acentuar o seu mando em trato com o ser divino. ( [39])
Bracton ( [40]), em vez de garantir um poder sobrenatural absoluto do rei, recolhe o debate sobre as bases pelas quais os dirigidos devem e podem obedecer aos reis e magistrados. Em seu tempo a adesão à ordem legal imposta pelo governante e aprovada pela Igreja, era exigi a imitação do Cristo. Essa foi a maneira pela qual Bracton resolveu o problema do governante acima e abaixo da lei. A solução evidentemente passou pela teologia, no processo analógico. A Virgem é ao mesmo tempo mãe e filha de Deus (Nata nati, mater patris). No De legibus et consuetudinibus Angliae Bracton então o ponto: “o poder do rei refere-se à geração da lei e não à injúria. Como ele é auctor iuris, uma oportunidade para a iniuria não pode nascer no mesmo lugar onde nascem as leis”. ( [41]) Gerador da Lei, o rei define-se como o seu intérprete maior. “O rei é filho da lei, mas torna-se pai da lei” e sua legitimidade requer a base teológica. “O rei”, afirma Bracton, “não tem outro poder, desde que ele é o vigário de Deus e seu ministro na terra, exceto isto apenas, que ele deriva da lei”.
E mais: “o próprio rei deve estar, não sob o homem, mas sob Deus e sob a lei, porque a lei faz o rei…Porque não existe rei onde domina a vontade arbitrária e não a lei. Ele deve estar sob a lei porque é vigário de Deus, o que fica evidente pela similitude com Jesus Cristo em cujo nome ele governa sobre a terra”. Cristo, embora Deus, pagou impostos a Cesar e colocou-se sob a lei enquanto homem. O rei, como Jesus, é servus legis e dominus regis. Mas ele só é vicarius Dei quando fiel intérprete da lei, a ela submetendo-se como o Cristo. Aí ele pode ser elevado acima da lei e se torna legislador (auctor iuris) mas de acordo com a lei. Se o círculo do rei como maior et minor se ipso se quebrar e se desaparecer a interpretação correta da lei, o governante tomba na situação de puro tirano. Em termos teológicos Bracton chega à solução : o rei é semelhante a Deus (sobre a lei) quando julga, legisla e interpreta a lei. Ele é sob a lei porque a ela se submete. O nexo entre rei e Deus prolonga o mandamento de que Nullum tempus currit contra regem (o tempo não corre contra o rei), o que implica no enunciado de que Longa possessio parit ius (a longa possessão gera o direito). Tudo o que se liga aos bona publica é integrado no registro a-temporal e são res quasi sacrae. Na teologia jurídica os Bona patrimonialia Christi et fisci comparantur (pode-se comparar os bens patrimoniais do Cristo e do fisco). Cristo e Fisco tornam-se comparáveis quanto à inalienabilidade e à prescrição. O sacratissimus fiscus torna-se alma do Estado. Como Cristo, Fiscus ubique praesens.
Vimos acima Jaime I afirmar o “mistério do Estado”. O segredo, no entanto, não pode ser atribuído apenas à instituição estatal. Antigo na história —Simmel diz que ele “é uma das maiores conquistas da humanidade” ( [42]) — o sigilo atingiu pleno sentido político na vida moderna. A sua prática passou das corporações aos setores administrativos, aperfeiçoando-se ao máximo. Os momentos decisivos do Estado moderno, a sua inauguração enquanto poder secular e sem a tutela religiosa, se inicia com a necessidade urgente de saber sobre o que e sobre quem reinava o principe.
No início do Estado moderno a legitimidade do governante ainda reside no divino. ( [43]) Mas a razão de Estado afasta os conceitos teológico-politicos e assume a linguagem do interesse de Estado. Neste processo, juristas e teólogos como Botero, em resposta ao desafios de Maquiavel, definem o uso legítimo dos poderes tendo como alvo manter e expandir os bens públicos. ( [44]) A nova razão de Estado incorpora o segredo para garantir o gabinete real, lugar onde não são admitidos os homens comuns. Aceito com reservas pela Igreja, o segredo é a marca dominante do Estado laico. Se o secretário (a origem do termo é marcada pela própria palavra do segredo) e o governante devem ocultar tudo o que for possível aos que não têm acesso aos gabinetes eles, no entanto, devem descobrir tudo o que estiver para além das fronteiras de seu Estado e na mente e no coração dos dirigidos.
Do gabinete onde se oculta, o príncipe nota o que para a maioria dos cidadãos passa desapercebido. Este ideal do governo que tudo enxerga, tudo ouve, tudo alcança, é a base histórica dos atuais serviços de informação. O governante acumula segredos e deseja os súditos sejam exposto a uma luz perene. Desse modo se estabelece a heterogeneidade entre governados e dirigentes. Na aurora dos tempos modernos “a verdade do Estado é mentira para o súdito. Não existe mais espaço político homogêneo da verdade; o adágio é invertido: não mais fiat veritas et pereat mundus, mas fiat mundus et pereat veritas. As artes de governar acompanham e ampliam um movimento político profundo, o da ruptura radical (…) que separa o soberano dos governados. O lugar do segredo como instituição política só é inteligível no horizonte desenhado por esta ruptura (…) à medida que se constitui o poder moderno. Segredo encontra sua origem no verbo latino secernere, que significa separar, apartar”. ( )
No mesmo período surgem as guerras de religião ocasionadas pela Reforma. As revoltas alemãs e francêsas (a barbárie da Noite de São Bartolomeu), atingem a Inglaterra. Para espanto do clero e da aristocracia, as massas populares aprenderam a desobedecer as ordens dos príncipes. A antiga imagem do povo se exaspera. É conhecido o texto de Etienne de La Boétie, O Discurso da Servidão Voluntária. ( ) Pouco se analisou o importante escrito do mesmo autor intitulado Mémoires de nos troubles sur l´Édit de janvier 1562. ( ) Devido às lutas religiosas na Guiana, a corte envia o magistrado aos locais para analisar e depois escrever um texto com sugestões políticas e jurídicas. É clara a cautela de La Boétie frente ao povo. Seria preciso impedir que o populacho tivesse ilusões de poder. Nas guerras religiosas que espalham “um ódio e maldade quase universais entre os súditos do rei” o pior é que “o povo se acostuma a uma irreverência para com o magistrado e com o tempo aprende a desobedecer voluntariamente deixando-se conduzir pelas iscas da liberdade, ou melhor, licença, que é o mais doce e agradável veneno do mundo. Isto ocorre porque o elemento popular, tendo sabido que não é obrigado a obedecer ao príncipe natural no relativo à religião, faz péssimo uso dessa regra, a qual, por si mesma, não é má, e dela tira uma falsa consequência, a de que só é preciso obedecer os superiores nas coisas boas por si mesmas, e se atribue o juízo sobre o que é bom ou ruim. Ele chega afinal à idéia de que não existe outra lei senão a sua consciência, ou seja, na maior parte, a persuasão de seu espirito e suas fantasias (…) nada é mais justo nem mais conforme às leis do que a consciência de um homem religioso temente a Deus, probo e prudente, nada é mais louco, mais tolo e mais monstruoso do que a consciência e a superstição da massa indiscreta”. ( ) E arremata: “O povo não tem meios de julgar, porque é desprovido do que fornece ou confirma um bom julgamento, as letras, os discursos e a experiência. Como não pode julgar, ele acredita em outrem. Ora, é comum que a multidão creia mais nas pessoas do que nas coisas, e que ela seja mais persuadida pela autoridade de quem fala do que pelas razões que se enuncia”.
Gabriel Naudé fala do segredo e da desconfiança universal que obrigam o governante a se preservar “dos engodos, ruindades, surprêsas desagradáveis” quando a massa está inquieta. Na crise de legitimidade é preciso cautela contra o animal de muitas cabeças, “vagabundo, errante, louco, embriagado, sem conduta, sem espírito nem julgamento….a turba e laia popular joguete dos agitadores: oradores, pregadores, falsos profetas, impostores, políticos astutos, sediciosos, rebeldes, despeitados, supersticiosos”. ( )
Assim, os teóricos da soberania popular não conseguiram audiência nas cortes e parlamentos aristocráticos. A universitas, communitas ou corpus, o povo reunido com majestade, toda essa constelação conceitual sofreu críticas desde os seus momentos iniciais. De outro lado, os que defenderam personalidade jurídica para o povo, tomaram cuidado para que a soberania popular não fosse absorvida pelos representantes. ( ) “Já no final do século 13 a doutrina filosófica do Estado definiu o axioma de que o fundamento jurídico de todo governo reside na submissão voluntária e contratual das comunidades governadas. E foi declarado que por um principio de direito natural ao povo e apenas a ele, cabia colocar-se como chefe (…) do poder estatal. Althusius afirma ser impossivel diminuir a soberania popular com base no contrato”. ( ). O povo seria o summus magistratus.
É contra a massa popular que os autores favoráveis à monarquia de direito divino se colocaram na Inglaterra do século 17. As convulsões sociais e políticas que reuniram todos os prismas da vida capitalista triunfante ergueram a força popular traduzida em facções, dos Levellers aos Diggers, mesclando religião e imperativos democráticos. Quando a cabeça de Carlos I foi cortada, rompe-se o laço entre o corpo do Rei e a divindade, toma novo sentido o princípio da accountability, exigência que segue a fé pública. John Milton expressa o princípio: “Se o rei ou magistrado provam ser infiéis aos seus compromissos, o povo é liberto de sua palavra”. Estas frases postas em The Tenure of Kings and Magistrates ( ) definem a nova legitimidade. O summus magistratus popular exige responsabilidade dos que agem em seu nome.
Milton retoma os democratas inglêses. Não por acaso tais enunciados foram recolhidos pelo inimigo da democracia no período, Thomas Edwards, num catálogo de “heresias” que tinham a pena de morte como castigo. O erro dos democratas, diz Edward, reside em afirmar que “ o poder supremo só pertence à Casa dos Comuns, porque só ela é escolhida pelo povo. O estado universal, o corpo do povo comum é o soberano terrestre, o senhor, rei e criador do rei, dos parlamentos, e todos os ministros da justiça. Majestade indeclinável e realidade residem de modo inerente no estado universal; e o rei, parlamentos, etc., são as suas meras criaturas que devem prestar contas a eles, os quais deles dispõem a seu arbitrio; o povo pode pedir de volta e reassumir seu poder, questioná-los, e colocar outros em seu lugar” (eu sublinho, RR) ( ) Thomas Edwards era um acadêmico de primeira plana e seus enunciados baseiam-se em fontes (sobretudo delações) e documentos. Se consultarmos historiadores da política inglêsa no período, confirma-se a veracidade dos enunciados atribuidos por Edwards aos democratas. ( )
As teses democráticas inglêsas repercutiram pela Europa inteira a partir do período. As Luzes francêsas foram uma imensa tradução para o continente do pensamento produzido na Inglaterra desde o século 16 ( ). “Não existe verdadeiro soberano a não ser a nação; não pode existir verdadeiro legislador, a não ser o povo; é raro que o povo se submeta sinceramente a leis impostas; ele as amará, as respeitará, obedecerá, as defenderá como sua obra própria se é delas o autor (…) A primeira linha de um código bem feito deve ligar o soberano; ele deve começar assim : `Nós, o povo (início da Constituição norte-americana : We the People…RR) ( ) e nós, soberano desse povo, juramos conjuntamente essas leis pelas quais seremos igualmente julgados; e se ocorrer a nós, soberano, a intenção de mudá-las ou infringi-las, como inimigo de nosso povo, é justo que que o povo seja desligado do juramento de fidelidade, que ele nos processe, nos deponha e mesmo nos condene à morte se o caso exige; esta é a primeira lei de nosso código. Desgraça ao soberano que despreza a lei, desgraça ao povo que suporta o desprezo em relação à lei”. ( )
Robert Derathé registra que essa tese, com fortes conseqüências na feitura das leis, não existe nos países que hoje se julgam democráticos. Neles, "é raro que uma lei possa ser votada sem o assentimento do governo". Como educar a cidadania para que ela exerça o poder soberano, sem cair nas mãos dos demagogos? Apenas depois de 1791, por exemplo, Robespierre assumiu a soberania popular. No discurso Sobre a Constituição (10/05/1793) ele toca a aporia ainda hoje irresolvida: "Dar ao governo a força necessária para que os cidadãos respeitem sempre os direitos dos cidadãos; e fazer isto de tal modo que o governo nunca possa violar os mesmos direitos". O governo, continua, "é instituído para fazer a vontade geral respeitada. Mas os governantes possuem uma vontade particular: e toda vontade particular tenta dominar a outra". Qualquer constituição deveria "defender a liberdade pública e individual contra o próprio governo". A solidez de uma Constituição se baseia "na bondade dos costumes, no conhecimento e no sentido profundo dos sagrados direitos do homem". Tangido pelas massas os jacobinos encaram o problema do governo comum e suas diferenças com o governo revolucionário. O governo revolucionário extrai legitimidade da "mais santa dentre as leis, a salvação do povo" e da necessidade. Governo revolucionário não significa "anarquia nem desordem. O seu fim é, pelo contrário, reprimir as duas coisas, para conduzir ao domínio das leis (...) quanto maior o seu poder, quanto mais sua ação é livre e rápida, tanto mais é necessária a boa fé para dirigí-lo". A mudança de "soberania popular" para "ditadura" é clara. A última salva o povo. ( )
E se os ditadores usufruírem o poder para si apenas? A resposta de Robespierre desalenta: o ditador deve ser virtuoso. Na Convenção jacobina o governo, para "instituir" a República torna-se "superior" à população. Mas os sans culotte, nas Assembléias Populares, insistiam na idéia e na prática da soberania do povo e na demissão sumária dos deputados ("mandatários"), juízes e demais servidores públicos. Em 1º de setembro de 1792, a seção "Poissonière" declara: "considerando que o povo soberano tem o direito de prescrever aos seus mandatários a via a ser seguida para agir conforme a sua vontade", os nomes dos deputados deveriam ser discutidos, aprovados ou reprovados pelas Assembléias primárias. A Assembleia Geral do "Marché-des-Innocents" decide em 25 de agosto de 1792" que os deputados serão demissíveis por vontade de seu Departamento, bem como "todos os funcionários públicos".
Os enciclopedistas e seus discípulos como Condorcet, tinham se preocupado com a formação intelectual das massas populares, conditio sine qua non da ordem democrática moderna. Democracia exige eleições. Mas estas podem deseducar o povo e os escrutínios trazem respostas incertas ou enganosas, perigo pressentido por Condorcet. Mesmo no Estado democrático “o poder se imiscui na operação eleitoral e a influencia: ele deseja demais uma ´representação´ favorável. E três “imagens” são misturadas nas eleições : a real, se a palavra tem sentido, a normativa ou potencial, porque se trata se conseguir uma direção no futuro, e a desejada e querida, porque os manipuladores tendem a se perpetuar nos cargos e tentam desregular os indicadores(…) os modos de escrutínio contam mais do que o resultado final, pois ele depende deles”. ( [59])
O rei, na instauração do Estado, foi conduzido ao segredo. O soberano popular segue o mesmo rumo quando sua prerrogativa se manifesta na hora do voto. Alí, supostamente, reina o segredo. Todos conhecem a passagem de Montesquieu no Espírito das Leis, mas a cito: “A lei que fixa a maneira de conceder os bilhetes dos sufrágios é ainda uma lei fundamental na democracia. É uma grande questão se os votos devem ser públicos ou secretos. Cicero escreve que as leis que os tornaram secretos nos últimos tempos da república foram uma das grandes causas de sua queda (…) Sem dúvida, quando o povo vota, o voto deve ser público e deve ser visto como lei fundamental da democracia. É preciso que o povinho (´petit peuple´) seja esclarecido pelos principais e contido pela gravidade de certos personagens”. ( ) Rousseau comenta o segredo deseducador do voto. Nas antigas repúblicas virtuosas “cada um tinha vergonha de dar publicamente seu sufrágio a uma opinião injusta ou assunto indigno, mas quando o povo se corrompeu e seu voto foi comprado, foi conveniente que o segredo fosse instituido para conter os compradores pela desconfiança e fornecer aos salafrários (´fripons´) o meio de não serem traidores”. ( ) Condorcet foi contrário ao voto secreto. Mas seus motivos diferem dos enunciados por Montesquieu e Rousseau. Ele é o autor de projetos de educação popular e conhece os problemas matemáticos suscitados nas eleições. Dos votos tudo pode sair, inclusive servidão. Ele mostra como o voto simples (sim e não) traz o arbitrário quando se trata de decidir entre diferentes programas ou pelo menos três candidatos. Este é o sentido do “paradoxo de Condorcet”, atualização do “paradoxo de Bordas”. Com este escrutinio tem-se a maior probabilidade de transformar a maioria em minoria, e vice versa. “É possível, se houver apenas três candidatos, que um entre eles tenha mais votos do que os dois outros e que, entretanto, um desses últimos, o que teve menor número de votos, seja olhado pela pluralidade como superior a cada um dos seus concorrentes”. Após demorada análise matemática, ele enuncia que numa eleição assim, o mais contestado pode ser eleito, enquanto o melhor, na hipótese de um escrutínio plunominal, eliminado. ( ) O paradoxo de Condorcet é estudado ainda em nossos dias. ( )
As multidões não foram ensinadas ao voto segundo o cálculo das probabilidades. No Termidor, a massa popular perdeu a soberania e foi substituida pelos proprietários, seguindo a receita de Boissy d´Anglas em discurso de 5 Messidor, ano 3: "Devemos ser governados pelos melhores (...) ora, com poucas exceções, só podemos encontrar semelhantes homens entre os que, possuindo uma propriedade, são apegados ao país que a contém, às leis que a protegem, à tranqüilidade que a conserva". Para o termidoriano, a lei não é máxima derivada do nexo entre princípios e situação. Somem as exigências do povo, a accountability e a destituição do governante. Com Napoleão e sua ditadura, imenso maquinismo operado pelo segredo, foram dadas as condições para o fim da doutrina sobre a soberania popular direta.
Chegamos ao período do pensamento conservador, no qual o Brasil passa a representar uma entidade estatal independe no planeta. Ele recebeu muito alimento dessa época e tendência política em sua forma jurídica. "A soberania de direito", afirma Donoso Cortés, "é una e indivisível. Se ela é própria do homem, ela não pertence a Deus. Se localizada na sociedade, não existe no céu. A soberania popular é ateísmo e se o ateísmo pode introduzir-se na filosofia sem transformar o mundo, ele não pode introduzir-se na sociedade sem feri-la com a paralisação e a morte. O soberano possui a onipotência social. Todos os direitos são seus, porque se houvesse um só direito que não estivesse nele, não seria onipotente e, não o sendo, não seria soberano. Pela mesma razão, todas as obrigações estão fora dele, porque, se ele tivesse alguma obrigação a cumprir, seria súdito. Soberano é o que manda [eu sublinho, RR], súdito o que obedece. O soberano tem direitos e o súdito, obrigações. O princípio da soberania popular é ateu e tirânico, porque onde há um súdito que não possui direitos e um soberano que não tem obrigações há tirania". ( ) Donoso aponta o Leviatã como a muralha contra a soberania popular. A soberania de direito divino conhecia limites, "mas a definida por Hobbes nega toda limitação para si mesma. Segundo ele, Deus não existe e o povo, desde o instante em que abre mão de seus direitos, faz-se escravo. Inflexivelmente lógico, Hobbes nega ao povo o direito de resistência à opressão, mesmo a mais delirante e absurda" ( )
As massas "carecem de unidade, de previsão, de concerto, só a iminência do perigo pode obrigá-las a se reagrupar ao redor de uma bandeira. Quando passa o perigo, decai o entusiasmo, a unidade conjuntural formada pelo entusiasmo se atenua e se fraciona [...] Quando se extingue o entusiasmo, o povo deixa de ser uma realidade para ser apenas um nome sonoro. Na sociedade, então, só existem interesses que se combatem, princípios que lutam entre si, ambições que se excluem e individualidades que se chocam". ( ) O povo é fugaz e não garante a soberania. Sem esta última não existe poder, desaparecem os vínculos sociais. Para o pensamento conservador, a soberania popular é o perigo do liberalismo e das Luzes. "Em geral os povos recusam o poder que lhes é pedido e confirmam o poder que lhes é tomado. Todo poder ditatorial ou real que só busque apoio nas classes acomodadas é um poder perdido". Quem deseja pautar o poder através da Constituição é fraco. "O governo das classes vencidas é o constitucional, o das vencedoras foi, é, será perpetuamente a monarquia civil ou a ditadura militar. Nunca os povos obedeceram gostosamente alguém que não fosse um ditador ou rei absoluto".
A soberania popular é afastada também por De Bonald : "O direito do povo a governar a si próprio é um desafio contra toda verdade. A verdade é que o povo tem o direito de ser governado" ( [67]). Edmund Burke enuncia o princípio segundo o qual o povo não é soberano porque o governo difere de um problema aritmético. "Foi dito que 24 milhões devem prevalecer sobre 200 mil. Verdade, se a Constituição de um reino fosse um problema aritmético. [...] A vontade de muitos, e seu interesse, devem diferir com freqüência, e uma grande vontade será a diferença quando eles, os muitos, fazem uma escolha ruim" ( )
"Sendo o homem necessariamente associado e necessariamente governado, sua vontade não conta para nada no estabelecimento do governo [eu sublinho, RR]; pois, uma vez que os povos não têm escolha e que a soberania não resulta diretamente da natureza humana, os soberanos não existem pela graça dos povos, a soberania não sendo a resultante de sua vontade, tanto quanto a própria sociedade". Não existe soberano sem povo, assevera De Maistre, nem povo sem soberano. Mas o povo tem dívidas para com o soberano, "deve-lhe a existência social e todos os bens que dela resultam. O príncipe só deve ao povo um brilho ilusório que nada possui em comum com a felicidade e que dela o exclui mesmo quase para sempre". Não existe soberania limitada, ou do povo. Existe soberania legítima ou não. "Dirão alguns: a soberania na `Inglaterra é limitada', Nada é mais falso. Apenas a realeza é limitada naquela ilha célebre. Ora, a realeza não é toda a soberania, pelo menos teoricamente. Quando os três poderes que, na Inglaterra, constituem a soberania, concordam, o que podem eles? É preciso responder, com Blackstone: TUDO. E o que se pode contra eles? NADA" ( ).
"Desde 1848 a doutrina do direito público tornou-se positiva escondendo nesta palavra o seu embaraço: ou funda todo poder, mediante as mais diversas reconstruções, sobre o `poder constituinte' do povo: isto é, no lugar da idéia monárquica de legitimidade entra a democrática. Neste ponto é incalculável na sua relevância o fato de que um dos maiores representantes do pensamento decisionista e filósofo do Estado católico, consciente de modo extremamente radical da essência metafísica de toda política, Donoso Cortés, diante da revolução de 1848, pudesse compreender que a época do realismo tive chegado ao fim. Não existe mais realismo, porque o rei não existe mais. Sequer existe uma legitimidade em sentido tradicional. Logo, só resta um resultado: a ditadura. É o mesmo resultado a que Hobbes chegou, procedendo na base da mesma conseqüência do pensamento decisionista, embora misturado com uma espécie de relativismo matemático. `Auctoritas, non veritas facit legem'". ( )
Schmitt capta com lógica extrema a passagem da soberania no Estado, os princípios teológicos com origem em Bracton, o seu esvaziamento nas doutrinas modernas e o contra-ataque do pensamento conservador. Mas é preciso introduzir o Brasil nessa longa história. Importa sublinhar o estraçalhamento da soberania do povo e mesmo o regime da representação daquela soberania. Nos momentos de nossa Independência as teses dominantes eram contrárias à soberania popular e, se esta não fosse apresentada pelos “demagogos”, a sua versão atenuada, a representativa. Surgimos no universo internacional enquanto pais livre, batizados nas águas do conservadorismo contra-revolucionário.
A historiografia conservadora notou no Brasil uma invenção eficaz para afastar o perigo da soberania popular e mesmo da representação política. A Revolução Francêsa tendo sido um episódio sangrento de anarquia e ditadura, o poder que a sucedeu após o Termidor e que acabou nas mãos do imperialismo napoleônico, seguiu de um ponto ao outro dos setores estatais. Se a Assembleia foi tão exclusiva no processo revolucionário que acabou instaurando uma ditadura “virtuosa”, o poder Executivo tornou-se um centro ditatorial com o regime instaurado pelo Corso ordenando tudo burocraticamente em escala hierárquica do alto à base do Estado. Entre os dois poderes, o judiciário não consegue manter a sua independência. Urge resolver o problema da harmonia entre os três poderes, antes enfeixados nas mãos do rei ou do parlamento. Na gênese do Estado brasileiro imaginou-se resolver o conflito e, ao mesmo tempo, as ameaças do que ocorreu nas revoluções inglêsa, norte-americana, francêsa: a instituição do poder moderador cumpre esse papel.
Escutemos o conservador Guizot: ( ) “o mais simples bom senso reconhece que a soberania de direito, completa e permanente, não pode pertencer a ninguém; que toda atribuição de soberania de direito à uma força humana qualquer, é radicalmente falsa e perigosa. Donde a necessidade da limitação de todos os poderes, quaisquer que sejam seus nomes e formas; daí a radical ilegitimidade de todo poder absoluto qualquer que seja a sua origem, conquista, herança ou eleição. Pode-se discutir os melhores meios de procurar o soberano de direito; eles variam segundo os tempos e os lugares; mas em nenhum lugar, em nenhum tempo, nenhum poder poderia ser o possuidor independente dessa soberania. Posto esse princípio, não é menos certo que a realeza, em todos os sistemas que ela é considerada, apresenta-se como a personificação do soberano de direito. Escutai o sistema teocrático: ele vos dirá que os reis são a imagem de Deus na terra, o que não quer dizer nada mais do eles personificam a justiça soberana, verdade, bondade. Perguntai aos jurisconsultos: eles responderão que o rei é a lei viva; o que significa ainda que o rei personifica o direito soberano, a lei justa, que ele tem o direito de governar a sociedade. Interrogai a própria realeza no sistema de monarquia pura: ela dirá que personifica o Estado, o interesse geral. Em toda aliança ou situação considerada, ela sempre tem a pretensão de representar, reproduzir o direito soberano, o único capaz de governar a sociedade legitimamente. Nada nisso espanta. Quais são as marcas do soberano de direito, as marcas de sua natureza própria? Para começar, ele é único; porque só existe uma verdade, uma justiça, só existe um soberano de direito. Ele é o mais permanente, sempre o mesmo: a verdade não muda. Posto numa situação superior, estranha a todas as vicissitudes, a todas as possibilidades desse mundo; eles está no mundo, de certo modo, apenas como espectador e como juiz : este é o seu papel. Pois bem! Senhores, estas marcas racionais, naturais no soberano de direito, a realiza as reproduz exteriormente na forma mais sensível, que dela parece a mais fiel imagem. Abri o livro em que o Sr. Benjamin Constante tão enegenhosamente representou a realeza como um poder neutro, um poder moderador, elevado acima dos acidentes, das lutas sociais, e que só intervem nas grandes crises. Esta não seria por assim dizer, a atitude do soberano de direito no governo das coisas humanas ? É preciso que haja nesta idéia algo muito próprio a mover os espíritos, pois ela passou com uma rapidez singular dos livros para os fatos. Um soberano dela fez, na constituição do Brasil, a base de seu trono; a realeza é representada como poder moderador elevado acima dos poderes ativos, com espectador e juiz”.
A formulação liberal do próprio Benjamin Constant procurava impor limites à soberania popular, mas trazia também a preocupação de estabelecer os limites dos poderes e garantir a sua harmoniosa relação. Neutro, o poder moderador seria o apanágio da realeza ( ), os ministros seriam responsáveis pelo governo e os legisladores não seriam pagos. O julgamento pelo juri seria a norma e haveria liberdade de imprensa. Qual a base para a recusa da soberania popular? Ela é encontrada, em Constant, no texto sobre a diferença da liberdade entre os povos antigos e modernos. A primeira encontra-se na democracia direta assumida em Atenas, cujos males eram a guerra perene e a escravidão como seu resultado. Nada que já não esteja em Tucídides. A segunda, encontra-se no comércio, “que inspira nos homens o amor pela independência individual: atende as suas necessidades, satisfaz os seus desejos, sem intervenção da autoridade”. Assim, o Estado deve ser contido em limites quando se trata da vida econômica, pois “sempre que o governo tomar conta dos nossos negócios, o fazem de modo pior e de maneira mais cara”. Não devemos nos colocar nos assuntos de Estado, enquanto este último não deve se intrometer em nossos assuntos particulares. A liberdade moderna reside “no gozo tranqüilo da independência individual”. ( )
Erra todo aquele que desconhece limites para o exercício de qualquer poder. “Quando se estabelece que a soberania popular é ilimitada, cria-se e se deixa ao acaso na sociedade um gráu de poder muito amplo e que se torna um mal, não importa em quais mãos esteja. Entregue-o a um, vários, todos, e o mal será o mesmo (…) a soberania só existe num modo limitado. Onde começa a independência e a existência individual começa, termina a jurisdição da soberania”. O mercado liberta e a vida privada deve ser o refúgio do indivíduo. Pela via oposta encontra-se em Constant o elogio hobbesiano do indivíduo limitado ao particular, sem exteriozações de suas certezas no plano público. A soberania popular entra no erro democrático: “A sociedade não pode exceder a sua competência sem tornar-se usurpadora, a maioria não pode fazer o mesmo sem tornar-se facciosa”. O Contrado Social representa “o mais terrível instrumento auxiliar de todo tipo de despotismo”. Crime é crime, pouco importa a fonte de poder alegada por quem o comete: indivíduo, partido, nação. ( )
Toda a crítica de Constant a Hobbes, no tocante à soberania, vem do termo “absoluto” : “ve-se claramente que o caráter absoluto dado por Hobbes à soberania do povo, é a base de todo seu sistema (…) a palavra ´absoluto´ desnatura toda a questão e nos arrasta para uma nova série de consequências; é o ponto onde o escritor deixa o caminho da verdade para seguir rumo ao sofisma ao fim que ele havia proposto a si mesmo. (…) Com a palavra ´absoluto´ nem a liberdade (…) nem o repouso nem a felicidade são possíveis em nenhuma instituição. O governo popular é apenas uma tirania convulsiva, o governo monárquico apenas um despotismo concentrado”.
Face à tese da soberania absoluta, pensa Constant, Rousseau foi tomado de terror diante daquele “poder monstruoso, e não encontrou preservativo contra o perigo inseparável de uma semelhante soberania, a não ser um expediente que tornava impossível o seu exercício. Ele declarou que a soberania não pode ser alienada, delegada, representada. Era declarar em outros termos que ela não pode ser exercida; era anular de fato o princípio proclamado”. E criticando a idéia de “absoluto” na soberania, mesmo popular, diz Constant : “O povo, segundo Rousseau, é soberano num aspecto, súdito noutro. Mas na prática os dois aspectos se confundem. É fácil para a autoridade oprimir o povo como súdito, para forçá-lo a manifestar como soberano a vontade que ela lhe prescreve”. ( )
Encontra-se nesse exato ponto a justificativa do Poder Moderador no pensamento de Benjamin Constant. Trata-se de idear os limites dos três poderes, impedindo a hipertrofia de um deles como ocorreu na ditadura napoleônica, em nome do Executivo, e da ditadura jacobina, em nome do Legislativo. Ambos seguiram a tendência ao absolutismo, o que, segundo Constant, é idêntido a despotismo sem barreiras.
Voltemos ao momento anterior ao de Constant, a gênese da Revolução Francêsa. Ela derrubou um sistema de privilégios na condução do Estado, sistema que abarcava do rei à noblesse de robe. Destruir todo esse edifício e substituí-lo por um poder público distinto da situação social foi tarefa gigantesca. Pergunta: qual a natureza do regime novo? No antigo, a administração dependia do rei. Só com o tempo, mesmo curto, a legitimidade dos poderes passaram do rei aos representantes eleitos. A burocracia do antigo regime, produzida em séculos de controle do Estado pelo rei e seus funcionários, perdeu a hegemonia estratégica em função do Legislativo eleito e, antes da república, do Conselho Real. De fato, ocorria uma forte tensão entre as duas fontes de legitimidade estatal. A monarquia não pode mais definir-se como o depósito da soberania estatal, combinando o legislativo, o executivo, o judiciário. A nação, pelo Legislativo, faria as leis, a serem executadas pelo governo. Logo foi preciso estabelecer a separação dos poderes, na Constituição. A Assembléia Nacional desejou manter a monarquia, mas sem as prerrogativas antigas e sem que o clero e a nobreza mantivessem os velhos privilégios (venalidade dos cargos, privilegios dos nobres, justiça arbitrária, administração idem). Todos esses pontos são sintetizados na separação dos poderes. Na verdade, a Assembléia Nacional atenuou ao máximo os poderes que lhe faziam sombra, na guerra, nas finanças, na justiça, etc. Os meios para esse controle dependia da correta intelecção dos papéis e cargos. O de rei, pelo menos até a proclamação da república, era claro. O de ministro, nem tanto. Daí a restrição dos seus poderes e a instauração da responsabilidade perante o Legislativo. Eles poderiam ser impedidos por iniciativa da Assembléia e processados na Alta Corte especial. A mediação dessa Corte atrapalhou bastante o controle dos ministros pelos deputados. A separação de poderes assim feita, deixou os ministros sem legitimidade, porque eles não respondiam perante a Assembléia. Como não podiam controlar com eficácia os ministros, os deputados passaram a desconfiar de todo o ministério, produzindo um vazio na administração. Surge uma burocracia nova, distinta da que operava no Executivo e dependente do Legislativo. Com a ditadura, essas falhas pioraram e o Estado não conseguiu manter o ritmo das mudanças na ordem política de legitimação. O golpe de Estado que produziu a diatdura comissária não resolveu a luta entre os poderes, com resultados desastrosos. ( )
“Nunca deveis esquecer, em toda posição que vos coloquem minha política e o interesse de meu império, que vossos primeiros deveres são para comigo, os segundos para com a França; todos os outros deveres, mesmo para com os povos que poderei vos confiar, vêm depois”. ( ) Ao dirigir-se desse modo ao sobrinho, filho de seu irmão Louis Bonaparte destinado a ser o Grão Duque de Berg, o imperador retomou a tradição absolutista cujo símbolo maior na França foi Luis XIV, com o dito “L´État c´est moi”. Vimos a relevância do pensamento absolutista para a questão da soberania e para a aplicação e leitura das leis. Sabemos que após Napoleão surgiram Egocratas no Estado, especialmente no século XX, com o culto da personalidade nos regimes nazista, stalinista, fascista. ( ) Uma testemunha arguta do período napoleônico e do governo Imperial é Madame de Sataël, pessoa próxima ao Antigo Regime, por seu pai, e ao liberalismo de Benjamin Constant. No capítulo sobre as leis e a administração napoleônicas ela pergunta : “ é possível falar de legislação num país onde a vontade de um só homem decidia tudo; onde este homem, rápido e agitado com as ondas do mar durante a tempestade, não podia sequer suportar a barreira de sua própria vontade, se lhe opusessem a de ontem, quando ele desejava mudar o amanhã ?”. O arbitrio do “grande homem” definia o plano político, econômico, jurídico e bélico da França. Uma anedota contada pela autora é interessante. Um conselheiro disse a Napoleão que não autoriza determinado ato, que beneficiava o ditador. “Ora bem!” responde o Corso, “O Código Napoleão foi feito para a salvação do povo, e se tal salvação exige outras medidas , é preciso tomá-las”.
Dois instrumentos juridicos foram usados pelo poder imperial: leis e decretos. Leis eram emanadas de um simulacro de legislativo, mas eram os decretos ditados pelo governante, discutidos no seu Conselho, a ação efetiva da autoridade. Quanto aos tribunais, o Código manteve o juri, definido pela Assembléia Constituinte. Mas os avanços nos procedimentos eram compensados, em favor do regime, por cortes especiais, comissões militares que julgavam delitos políticos, que resultavam em execuções sumárias. E aqueles tribunais condenavam pessoas por acusações anônimas, não raro sem relação direta com assuntos políticos. “Bonaparte não permitiu uma só vez que um acusado recorresse de condenação por delito político à decisão do juri”. Os poderes eram unidos, sob o comando do imperador : “era difícil distinguir a legislação da administração (…) pois ambas dependiam da autoridade suprema”.
O centralismo garantiu o mando despótico : “Todas as autoridades locais, nas províncias, foram gradativamente suprimidas ou anuladas”. O trabalho da polícia, com delações e torturas, produziu um monstro que, finalmente, voltou-se contra os partidários do imperador destronado. A ideologia do imperador, em relação aos cidadãos particulares, era clara e distinta: eles deveriam, como exige Hobbes, que eles fiquem no plano privado e “adquiram sempre mais dinheiro”. Enquanto isto, os que mandam no Estado devem adquirir “sempre mais poder”. A ditadura militar e burocrática imposta pela “alma do mundo”( ) resume-se no dito do próprio imperador: Les Français sont des machines nerveuses. Máquinas: servem como instrumentos ou partes de instrumentos para ampliar o poder do Estado e de seus mestre. Nervosas: vivas como as forças naturais, numa simbiose sempre desejada pelos que desconhecem limites entre técnica e natureza. Napoleão toma como positivo o que, logo após, no romantismo, é indicado como um pesadelo terrível, a partir de Mary Shelley e o Frankenstein.
Após essa passagem pelo poder napolêonico fica bem clara a intenção de Benjamin Constant ao sugerir o Poder Moderador como preventivo de tiranias. De um lado, ele limitaria as formas soberanas ligadas ao povo, sobretudo o despotismo do Legislativo. De outro, ele limitaria as pretensões do Executivo, garantindo o Judiciário. ( ) Evidentemente, as críticas aos abusos de poder descem nas noites dos tempos. No período absolutista, as denúncias contra tais abusos surgiram entre os puritanos e seus herdeiros, na América ou na França. No caso de Benjamin Constant, no entando, existem antecedentes no instante em que a Revolução Francêsa e a ditadura do Legislativo chega à sua crise de morte. Como é o caso de Sieyès, para quem “ os poderes ilimitados são um monstro em política (…) a soberania do povo não é ilimitada”. ( ) O termodoriano por excelência, Boissy d´Anglas, retoma a norma hobbesiana, levando o cidadão particular ao plano estritamente produtivo, econômico, dele afastando as tarefas de governo. Assim, não se pode arrancar à atividade econômica “homens que melhor serviriam seu país pela atividade assídua em vez de vãs declamações e debates superficiais”. ( ) D´Anglas, na verdade, com o Termidor, seleciona “os melhores” para dirigir o Estado, os “possuindo uma propriedade são apegados ao país que a contem, às leis que a protegem, à tranqüilidade que a conserva”. ( )
Benjamin não foi termidoriano nem aceitaria in totum as teses enunciadas por Boissy d´Anglas. Mas soube notar os excessos de poder de um setor do Estado e procurou definir o controle dos três poderes por intermédio do Poder Moderador, indicado como tarefa do rei. "Para que não se abuse do poder, é preciso que pela disposição das coisas o poder detenha o poder”. O sistema das balanças, no seu pensamento, opera na estrutura do Estado. O Legislativo seria bicameral, incluindo uma Casa dos Pares. Posteriormente ele divide o poder entre Legislativo e Judiciário, composto de juízes inamovíveis de ofício. Ideou, para corrigir a concentração do poder, o sistema de poderes e direitos departamentais e dos municípios. O rei como "poder neutro” segue nessa orientação geral.
No Brasil, a concepção de Constant seguiu para um rumo inesperado. Vimos o elogio do uso da idéia de Poder Moderador em nosso país por Guizot. Há um evidente desvio do conceito na pena de Guizot no relativo ao conceito. Constant define aquele poder como neutro, o que significa que ele serve para coordenar os três poderes, sem neles interferir “do alto”. A mesma operação de hierarquizar os quatro poderes foi seguida no Brasil com a Constituição de 1824. A tendência centralizadora do poder real já fora iniciada em Portugal no século 18, com as reformas pombalinas. “As concepções de poder político, sociedade e Estado são assim formuladas em torno da noção de império civil, com fins de legitimar a monarquia portuguesa e consubstanciar projetos de atuação política”. ( )
Com as invasões napoleônicas de 1808 e a vinda da Casa Real para o Brasil, compõe-se uma Corte no Rio onde se integram a nobreza, burocratas de alto escalão, serviçais e negociantes. No projeto idealizado, continua a noção de império português, com sede no Brasil. A cidadania foi entendida nos parâmetros da antiga metrópole: o “povo” era a aristocracia, os “homens bons” (ricos proprietários) sem sangue judeu. A representação “popular” faz-se por petições, dando-se o direito de voto sem que os cidadãos tivessem presença ativa na esfera pública. Outro projeto é mais radical, pois admite a presença cidadã na vida pública, define autonomia para o Brasil. Nos dois projetos, cidadão é título que não cabe aos escravos, evidentemente, nem aos homens livres e pobres (“gente ordinária de veste”).
O debate sobre a cidadania surge em 1821 na Assembléia do Rio de Janeiro, na eleição de representantes provinciais para a Assembléia de Lisboa, para redigir a Constituição portuguesa. O debate conduziu ao inesperado questionamento da autoridade de João VI. Proposto um projeto de governo representativo, visto pelos governantes como ligado “à força incontrolável da multidão”, sobretudo num reino onde a enorma quantidade de escravos era perene ameaça (a revolta do Haiti em 1810 era um presságio).
A imensa dimensão do território brasileiro, as revoltas que se esboçavam, o exemplo dos países visinhos que se tornaram republicas de tamanho inferior ao do Brasil, a memória da Revolução Francêsa, as doutrinas de Benjamin Constant, todo esse amalgama de idéias, medos, repressão, definiu o momento inaugural do Estado independente que assumiu a forma de Império. Os que desejam um poder representativo e constitucional conseguem em 1822 a convocação da Assembléia. Mas no país surge dois projetos não sintonizados e conflitantes : o da monarquia soberana, de São Paulo sob liderança de José Bonifácio e o de um governo constitucional (Rio de Janeiro, liderado por José Clemente da Cunha). Quando Pedro I é aclamado, José Clemente afirma o princípio da soberania popular enquanto Bonifácio enfatiza a supremacia do Imperador.
Vence provisoriamente o primeiro projeto, sendo o império civil instituido por direito divino. Os defensores do segundo plano são perseguidos mas não deixam de conseguir a consideração, nos trabalhos da Constituinte, de suas idéias. Desse modo, o novo governo admitiria a liberdade política, mas sob a égide do poder supremo, definido pela pessoa do imperador. Em 1823, José J. Carneiro de Camposao discutir a sanção do soberano apresenta a idéia do Poder Moderador. Exclusivo, aquele poder permite ao imperador controlar os demais poderes. A Constituição de 1824 incorpora o quarto poder e o amplia, pois ele pode dissolver a Câmara de Deputados, afastar juízes suspeitos, etc. Tal poder foi alegado sempre que se tratava, no parecer dos governantes, da Salvação do Estado. No mesmo plano, é restrita a autonomia do judiciário. Desse modo, o Poder Moderador torna-se supremo no Estado, acima dos três outros poderes.
A predominância do poder moderador sobre os demais manteve-se durante o império, incluindo o tempo de regência, quando o país passou por rebeliões sufocadas manu militari de Norte a Sul. Somadas as suspensões dos direitos e a permanente supremacia do imperador, tem-se como resultado uma difícil e quase improvável democratização do Estado. O permanente estado de rebelião e as necessidades do poder central, definem o império como excessivamente preso ao modelo de concentração de poderes, o que molesta ainda em nossos dias o país, com o tipo de federação na qual os Estados possuem realmente pouca autonomia, sobretudo em matéria fiscal. ( [86]) Com o fim do império, os positivistas tentaram acabar de vez com as forças liberais, com o conceito de ditadura, que acentua e mantem a preponderância do executivo sobre o Legislativo, concentrando o poder diretor numa única pessoa. Falar em Legislativo, nesta doutrina, é impreciso e mesmo errôneo, visto que a Assembléia teria função fiscal : aprovar o orçamento do Estado. ( ) Em toda a república as prerrogativas do Poder Moderador foram incorporadas, silenciosamente, à Presidência do país. Com elas, a permanente pretensão dos ocupantes daquele cargo a assumir, como imperadores temporários, a preeminência e a intervenção nos demais poderes. Esse ponto permite indicar que o Estado é regido por força de pressupostos autoritários que, inclusive, produziram em plano mundial algumas lições de moderno despotismo.
Não por acaso, Carl Schmitt refere-se ao Poder Moderador brasileiro em O protetor da Constituição. Alí, o jurista defende, como em outros trabalhos, que apenas o Reichspräsident pode defender a Constituição em tempo de crise. O tema gira ao redor do Artigo 48 da Constituição de Weimar. ( ) Ao fazer seu apelo aos poderes do Protetor da Constituição, Schmitt nega que o judiciário pode exercer aquele papel, porque judiciário é idêntico a normas e age post factum, sempre atrasado na correção dos desvios e fraturas institucionais. Para remediar aquelas situações, apenas o Reichpräsident poderia ser movido, legal e constitucionalmente. Como é habitual, Schmitt afasta o judiciário e, ao mesmo tempo, o próprio Legislativo naqueles transes. Como diz Hans Kelsen, Schmitt reduz toda a Constituição de Weimar ao artigo 48. ( ) Se, como diz Schmitt, “a independência é a necessidade primeira para um protetor da Constituição” e se os juizes ou deputados não podem cumprir aquele mister, segue-se que eles não são independentes, ou independentes o bastante para garantir o Estado. Desse modo, ele retira dos demais poderes a possibilidade de controlar e limitar o Protetor em seu poder excepcional. O estudo desse caso, importante na história dos poderes soberanos e a conexão teórica entre o que se passou na Alemanha e no Estado brasileiro pode resultar em esclarecimentos sobre o nosso centralismo excessivo, a nossa quase inexistente federação, os excessivos poderes da presidência do Brasil. ( )
O Poder Moderador antes da República era vitalicio e hereditário. Uma presidência imperial limitada por quatro anos, sofre necessariamente a tentação de pressionar o Legislativo para que este último faça ou aprove leis favoráveis ao programa e pretensões presidenciais. De modo idêntico, as pressões sobre o judiciário para que reconheça a legitimidade das mesmas leis.
Dificilmente o nosso Estado e a sociedade entrariam na qualificação de formas democráticas. É preciso apurar, hoje, as noções de democracia, federalismo, sociedade civil etc., se quisermos pensar o mundo brasileiro. O nosso modo de unir os Estados tem pouco de “federalismo” e muito de Império. Tomemos a indicação da jurista Anna Gamper que analisa as formas federativas para apontar as fraturas no projeto da União Européia : “Por unanimidade, as definições de federalismo reconhecem o fundamento da palavra latina foedus que significa “pacto”. Todas as teorias concordam que federalismo é um princípio que se aplica ao sistema que consiste em pelo menos duas partes constituintes, não totalmente independetes que, juntas, formam o sistema como um todo. O federalismo, pois, combina o princípio da unidade e da diversidade (concordantia discors). As partes constituintes devem ter poderes próprios e devem ser admitidas a participar do nível federal.”.( [91]) Da definição escolhida pela autora, tomemos a parte onde ela afirma a exigência sine qua non que declara o seguinte : “as unidades constituintes devem ter poderes próprios”. Desde a Independência, o Poder Central brasileiro monopoliza todas as prerrogativas do Estado e não as partilha com os demais entes, supostamente unidos hoje por laços de federação. Se em nosso caso foedus significasse “pacto”, teríamos gráus crescentes de autonomia, dos municípios ao Poder Central.
Como o Império herdou as terras coloniais portuguêsas, para ele o mais urgente era garantir as fronteiras do enorme país e impedir a secessão das províncias. Nesse fito, a repressão militar foi a tônica, o que se tornou dramático durante a Regência, quando várias unidades levantaram-se em busca não de autonomia, mas de plena soberania. A história do Brasil, desde aquela época até 1932 (Revolução Constitucionalista de São Paulo), tem sido a cronica de um controle férreo das Províncias, depois Estados, pelo Poder Central. É como se cada Estado, sobretudo os que se levantaram em armas (Rio Grande do Sul, Pernambuco, Pará, Bahia, São Paulo, para recordar apenas alguns deles) fosse submetido à invasão permanente dos que dirigem o todo nacional. Resulta que a nossa “Federação” concede pouquíssima autonomia aos Estados e Municípios, em todos os planos da vida política, econômica, etc.
A partir de Brasilia, regras uniformes determinam até os detalhes da ordem nacional, desconhecem deliberadamente as diferenças regionais, culturais, geográficas, etc. Do Oiapoque ao Chui, há uma uniformização gigantesca que obriga cada uma das regiões a se pautar pelo tempo longo da enorme burocracia federal, perdendo tempo precioso para o experimento e modificações das políticas públicas em plano particularizado. Enquanto em outras Federações, como o norte-americana (e apesar do grande centralismo daquele país) vigoram leis diversas em termos penais, educacionais, tecnológicos, etc., no Brasil a mão de ferro do Estado central controla, dirige, pune e premia os Estados, segundo sustentem os interesses dos ocupantes temporários da Presidência. Nesse controle, as oligarquias regionais surgem como operadores de face dupla : servem para trazer os planos do Poder Central aos Estados e para levar ao mesmo Poder as aspirações de Estados e Municipios. O lugar onde as negociações entre os dois níveis (Central e Estadual) ocorrem, normalmente é o Congresso. Alí, Presidência e Ministérios buscam apoio aos seus planos, inclusive e sobretudo, de leis. É impossível conseguir recursos orçamentários, por exemplo, sem as “negociações” e nelas o modus operandi identifica-se ao conhecido “é dando que se recebe”. Assim, os planos federais de inclusão social e democratização societária patinam na enorme generalidade do “grande Brasil”, enquanto as unidades aguardam as “providências” de uma burocracia pesada, incapaz de entender os vários ritmos e formas de vida e pensamento regionais.
Nos impostos, a concentração irracional de poderes deixa Estados e municípios sempre à mingua de recursos. Verbas provenientes de impostos ou a eles ligadas, como no caso das exportações, não são repassadas às unidades ou não são repassadas em tempo certo, permanecendo nas mãos dos Ministérios Economicos. Governadores e prefeitos são reduzidos à quase mendicância junto ao Poder Central. Não ignoro as dificuldades gigantescas, se quisermos modificar esta forma de relacionamento federativo em nosso país. Valho-me novamente da jurista Anna Gomper : “A economia política do federalismo e o federalismo fiscal tornaram-se um dos mais extensos e difíceis campos interdisciplinares da pesquisa dobre o federalismo, onde os conceitos de asimetria, competição e co-operação desempenham papel importante. Também é o campo em que os níveis inferiores que não participam do sistema, como os municípios, são admitidos excepcionalmente a entrar na arena como ´partes terceiras’. As relações financeiras entre a unidade central e as partes mais baixas e as terceiras partes são de suma importância para o sistema como um todo. A estabilidade financeira e a igualização, bem como a cooperação entre as partes da base são obrigatórias para um efetivo sistema federal. A distribuição das competências não é completa se não existem regras que dividem os poderes financeiros entre o poder central e as unidades constituintes. Se as partes constituintes que precisam de recursos para financiar suas responsabilidades as recebem sobretudo de subsídios que são a elas alocados pela unidade central (e devem ser acompanhados por certas condições que restringem seu poder de gasto) o arranjo fiscal parecerá um sistema de Estado não federal e não tanto um Estado federal que pressupões teóricamente gráus de autonomia financeira das partes constituintes, isto é, o poder de arrecadar taxas e gastar orçamentos próprios”. É praticamente impossível chegar à democratização da sociedade sem a efetiva federalização do Brasil. Um dia antes da escolha de Aldo Rebelo para a presidência da Câmara dos Deputados, assistimos a enésima caminhada de prefeitos do país inteiro rumo ao Congresso para reclamar recursos, autonomia, modificações em leis eleitorais e de estruturas municipais. Naquela tarde, como em muitas outras ocasiões, os prefeitos foram tratado como estranhos no Parlamento Federal, o que gerou um conflito só resolvido com o emprego da força física pela segurança da Casa das Leis. Enquanto tal situação permanecer assim, a fábrica das manobras corruptas (nas duas pontas, nos municípios e na capital da República) estará em pleno funcionamento.
Termino essa parte de minhas considerações citando o longo mas relevante texto de um jurista que muito se preocupa com a forma democrática e republicana do nosso país.
“A Constituição dos Estados Unidos criou o regime presidencial; nós engendramos o presidencialismo, que é a sua perversão máxima. Lá, o equilíbrio dos Poderes republicanos funciona harmoniosamente, num engenhoso mecanismo de checks and balances que faz inveja aos mais competentes relojoeiros. Aqui, a hipertrofia dos poderes presidenciais gerou um monstro macrocefálico, cujos membros são todos absorvidos pela cabeça. Para sermos justos, porém, é preciso reconhecer que essa aberração institucional não surgiu com a república, pois ela já estava presente e atuante durante todo o período imperial. O que se fez tão só, com a derrubada da monarquia, foi uma adaptação semântica: passamos do império autêntico ao presidencialismo imperial. Na obra clássica em que fez o panegírico do pai, Joaquim Nabuco apenas uma vez permitiu-se censurá-lo. Foi a propósito de uma Circular de 7 de fevereiro de 1856, pela qual o velho Senador, em sua qualidade de Ministro da Justiça, entendeu de ditar regras de julgamento aos magistrados. "É o traço saliente do nosso sistema político", escreveu Joaquim Nabuco, "essa onipotência do Executivo, de fato o Poder único do regime". "Apesar de todo o antogonismo de muitas de suas idéias com esse sistema, principalmente em matéria de garantias individuais e apesar da guerra que moveu à invasão francesa do contencioso administrativo, (Nabuco pai) foi um dos fundadores da onipotência do governo, convertido em última instância dos poderes públicos".
A República acentuou a onipotência do Chefe do Poder Executivo, “ao cobri-la com o manto da irresponsabilidade, que a Constituição de 1824 reservava ao Imperador. (…) Atualmente, o Presidente da República não se limita a exercer um poder absoluto no ramo executivo do Estado: ele é também legislador, e dos mais prolíficos. O volume de medidas provisórias editadas e reeditadas, a maior parte delas sem a menor relevância ou urgência, já ultrapassa largamente o número de leis votadas pelo Congresso Nacional, desde a promulgação da Constituição. Para a convalidação espúria desse abuso, concorreu decisivamente a mais alta Corte de Justiça do País. Neste período crespuscular do Estado de Direito, o Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é ´a guarda da Constituição´ (art. 102), tem transigido com todos os desvios, relevado todas as arbitrariedades, admitido todas as prevaricações. A pá de cal na indispensável independência do Supremo Tribunal Federal para custodiar a inviolabilidade da Constituição foi lançada com a Emenda Constitucional nº 3, de 1993, instituindo a "ação declaratória de constitucionalidade" (art. 102 - I, a). O judicial control, sem sombra de dúvida a maior criação constitucional dos norte-americanos, surgiu como instrumento de defesa dos direitos individuais contra o mais nocivo dos abusos políticos, aquele que associa Legislativo e Executivo na comum infringência da Constituição. No sistema presidencial de governo, com efeito, a lei não é apenas o ato do Poder Legislativo: ela conta também, necessariamente, com a aprovação do Executivo, que tem o poder de vetá-la. Quando o Presidente da República sanciona uma lei inconstitucional, ele se acumplicia com o legislador na violação da Carta Magna. Ora, a ação declaratória de constitucionalidade´ veio subverter inteiramente os termos dessa equação política. Ela não é uma defesa da cidadania contra o abuso governamental, mas, bem ao contrário, uma proteção antecipada do Governo contra as demandas que os cidadãos possam ajuizar para defesa de seus direitos. É uma espécie de bill de indenidade que o Judiciário outorga aos demais Poderes, um nihil obstat legitimador da ação governamental, antes que os cidadãos tenham tempo de reclamar contra ela. Por isso mesmo, o processo dessa aberrante demanda é sui generis: não há contraditório, porque não há lide. Em se tratando de argüição de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, o Procurador-Geral da República deve ser previamente ouvido, e o Advogado-Geral da União defende o ato ou o texto impugnado (art. 103, §§ 1º e 3º). Mas no processo da ação declaratória de constitucionalidade, os autores agem sem contraditório: o Governo tem as mãos livres para demandar, sem que ninguém defenda os interesses dos governados. Por força desse vicioso mecanismo, a nossa Corte Suprema deixa de ser um tribunal, para se tornar um órgão oficial de consulta. Troca a posição de guarda da Constituição pela de colaborador do Governo”. ( )
Termino aqui. Para refletir sobre a independência dos juízes, iniciei o trabalho acentuando o começo do Estado moderno com as teorias absolutistas, tanto religiosas quanto laicas, tanto as de James I quanto as de Hobbes e assemelhados. Alí, o juiz único é o soberano e os juízes são por ele controlados. Legislador, Executor e Juiz, o soberano não pode aceitar nenhuma independência dos tribunais inferiores. Esta diretiva foi questionada nas revoluções do século 17 da Inglaterra e do século 18 na América do Norte e na França. Mas sobretudo no último país a Revolução, ao desembocar na ditadura e no Terror, permitiu o retorno do absolutismo com o poder imperial napoleônico. Não é preciso recordar que nesses regimes o juiz não é independente, pelo contrário. No Brasil, com a tentativa de impedir aqui os “excessos” do liberalismo e, mesmo, da soberania popular, foi produzido um Estado dirigido no cimo por um soberano que detinha o poder de intervir nos demais poderes, o que impedia a autonomia do judiciário. Com a república, o centralismo e o papel eminente do Chefe de Estado o conduz a exercer poderes imperiais, o que não raro atenua a autonomia dos demais poderes, incluindo o judiciário. Como um juiz individual, como a categoria dos juízes pode julgar de modo independente, se o Estado brasileiro não pratica de fato a autonomia dos poderes e se o “imperador” que sobrevive no cargo presidencial consegue, nos tribunais supremos, decisões que atentam contra o magistrado comum? Sei bem que medidas como o Conselho Nacional de Justiça é festejado entre os juizes. Sei bem que a sumula vinculante possui forte apoio entre eles. Mas pergunto como cidadão que estuda a burocracia no mundo e no Brasil : tais medidas constituem avanços sem óbices do Estado rumo à democracia e ao direito, ou também traduzem aspirações da Presidência da República na perene tentativa aplainar a sua via e se garantir, sempre mais, como poder superior aos demais? O Conselho de Justiça não implica em nenhuma ordem de negociação política passível de ser orientada pelos Executivos estaduais (ligados a oligarquias e segmentos poderosos do mercado e da política) e pelo Executivo nacional, cujos vínculos com o Parlamento ainda se encontram no tristemente famoso “é dando que se recebe”? Não seria necessário vigiar com constante cautela os processos de escolha dos que têm assento no Conselho referido? Um tal Conselho pode ser de fato eficaz na democratização do Judiciário se o Executiva continua a possuir hegemonia no Estado, com pretensões sem limites? E afinal, o princípio da accountability, mesmo que imposto ao judiciário, quem garante que ele será assumido pelo governo central? Em país onde o segredo passa, muito facilmente, pela espionagem dos cidadãos e das instituições e no qual as práticas do SNI ainda existem no cotidiano, como praticar em um poder apenas a máxima transparência? E note-se que sou um crítico do segredo em todos os setores da vida estatal. Se um poder se abre à inspeção da cidadania, excelente. Mas e se o mais forte dos poderes, o que detêm a chave dos cofres e as armas, a propaganda e a espionagem oficial, o que enceta convênios com orgãos repressivos de todos os países, mantem uma política de sigilo (inclusive em documentação histórica de épocas ditatorias, de tal modo que é mais fácil ler os textos de nosso pretérito hediondo em Londres, Paris ou nos EUA do que em nossos arquivos), é prudente abrir os procedimentos do judiciário, sem cautelas? Lembremos que mesmo no absolutismo de Bacon os juízes, embora sob o trono do rei, eram leões. A democratização sem maiores cautelas não significaria arrancar as garras dos leões, encerrando a sua domesticação iniciada no Império e na república, em especial nas ditaduras que tomaram boa parte do século XX brasileiro? São questões que não julgo ociosas, porque da resposta sobre a isonomia dos poderes reside a outra, sobre a independência dos juízes.
Enquanto existirem no Executivo as pretensões de manter a Constituição sob sua tutela, não teremos Estado de direito garantido entre nós. “O Estado de direito é bem traduzido pela réplica celebre do moleiro de Potsdam (…) Es gibt noch Richter in Berlin”. Nem Frederico II conseguiu se opor ao direito de propriedade do moleiro, mesmo que o seu moinho fosse barulhento e incomodasse o soberano no castelo de Sans souci. Isto é o Estado de direito. E nada mais.” Creio que o Estado de direito é algo mais, que me perdoe a parlamentar belga que emitiu as considerações citadas.Mas deixemos a Belgica e olhemos nossa pátria. Apesar de todas as pressões, os tribunais de base permitiram e permitem que os cidadãos afirmem aos presidentes, a todos os presidentes da república, “existem juízes no Brasil”. Esperemos que essa realidade se expanda para o alto, de modo que possamos dizer, com o mesmo júbilo do cidadão germânico : “Existem juízes em Brasilia”. Esta, por enquanto, é a única esperança de que os presidentes não continuarão a usurpar a alma de nossa Carta Magna.
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Sobre o conceito de Ditadura.
Roberto Romano
A ditadura é invenção romana, como também o município. A palavra “município” teve duas acepções diferentes em Roma. De modo geral o vocábulo foi usado para designar uma cidade de constituição romana na Itália e nas províncias, em oposição a Roma. Mas ele também foi usado para designar um direito público, categoria especial das cidades itálicas e provinciais. Município deriva de municeps, como principium deriva de princeps. No início, municipes não eram eleitores nem elegíveis. Municipium na Lei Julia designa exclusivamente as cidades itálicas. No império, o termo é empregado para designar as cidades itálicas e as provinciais. Nos inícios do Estado romano municipium já se emprega não no sentido comum de cidade, mas para designar uma condição de direito público. Municipes são os habitantes itálicos que, sem serem romanos, têm direitos de gestão própria e são assimilados aos romanos nas munera publica, sem o direito de votar e ser votados para os cargos mais importantes de Roma. Eles teriam uma espécie de “naturalização incompleta”: serviam nas legiões romanas e não como os socii, foederati nos corpos auxiliares armados. E pagavam impostos nas mesmas condições dos romanos.
Considerada a desconfiança diante dos estrangeiro, o estatuto de municipe era uma deferência romana para com os habitantes sem cidadania. Dessa condição, muitos municipes seguiam para adquirir a cidؐadania plena. Quanto à administração, a condição de cada municipio era regulamentada pelo Senado ou pelo povo romano, sendo que a autonomia poderia ser concedida ou retirada, conforme o jogo político e militar. Municipios leais mantiveram sua condição. Quando sem autonomia, as cidades eram privadas de assembléia popular, de senado, de magistrados, sendo administradas pelos praefecti, delegados do povo romano, ou pelo pretor. Assim, elas tinham o nome de praefecturae. Os habitantes das praefecturae não perdiam sua qualidade de cidadãos de Roma, mas a coletividade deixava de ser, administrativamente, independentes e com vida própria. Ela era sujeita ao Senado e ao povo de Roma. Em geral os poderes públicos municipais se compunham de 1) dos comícios 2) senado 3) Magistrados. À diferença das coloniae, que de fato ou por ficção derivavam da própria Roma, os municipes tinham ainda suas raizes em seu próprio passado longinqüo. Esta dimensão dupla (pertencer a Roma e pertencer a si mesmo, ao seu próprio pretérito) é única no mundo antigo. Só Roma a conheceu. Na Grécia ela foi ignorada. Roma antecipou a noção de um Estado não confundido com uma cidade, mas congregando multiplas cidades controladas pelo poder romano. A hegemonia de Roma administra um agregado de comunidades urbanas subordinadas, mas com vida própria e valores idem. Assim, existiram municipios em toda a Europa romana até a queda do Império.
Roma usava dois métodos para com as cidades italianas. O primeiro é a sua extinção pura e simples como entidades autônomas, sua anexação. O segundo era a federalização. O foedus que liga as urbes a Roma se diferencia em várias categorias. As mais favorecidas eram as cidades que eram tratadas em pé de igualdade e com Roma concluiram um foedus aequum (Nápoles, entre outras) e na Grécia Heracleia da qual Cicero menciona o foedus aequissimum, ou singulare. Aquelas coletividades guardam seus direitos, incluindo a cunhagem de moeda, as instituições, magistraturas, tribunais, etc. Quando instalados em Roma, os seus cidadãos podem pedir cidadania. Depois dessas, vem as que tiveram um foedus non aequuum. As cidades não guardam autonomia devido ao artigo da lei romana segundo o qual o povo romano conserva a majestade. (Cicero, Pro Balbo). E depois dessas, as cidades nas quais o pacto federativo era mais de clientela, protetorado, a maioria das coletividades entram nesse caso. Em todos os casos, no entanto, a federação é bastante falha, visto que se impunha a superioridade militar de Roma nos quesitos de ordem externa ou interna. (1) Essa marca do Estado romano está presente na ditadura e no império, e perdura até a queda, tanto no Ocidente quanto no Oriente.
A mesma ausência de “município”, na Grécia, ocorre para a ditadura. A palavra é ignorada em grego, salvo como tradução literal do termo romano. É preciso notar que desde a época mais recuada são bem conhecidas as formas de poder pessoal, uma das notas da ditadura. O termo “tirano”, não presente na Ilíada, enuncia um poder com as marcas de pessoalidade. “Ter muitos chefes nada vale; que um só seja o chefe, que um só seja o rei”. Como os gregos são conhecidos pelo paradoxo, na mesma Ilíada é dito que em situações críticas vale mais que sejam dois e não um só a assumir o comando. (2) Na Grécia arcaica (até o final do século VI AC) existiram chefes nomeados vitaliciamente ou por tempo limitado, tendo em vista resolver crises. Tais líderes eram chamado aisymnetas (comandantes) que dispunham de poderes excepcionais, espécies de tiranos eleitos e acusados de agir com arbítrio e injustiça. O nome de basileus era dado ao rei, o qual detinha maior ou menor força, de acordo com as cidades.
O tirano de início é um basileus, o que possui amplos poderes, mas nem por isso visto como usurpador ou bandido. A evolução deste sentido ao de péssimo governante é feita em pouco tempo. Os primeiros usos do título de tirano com conotação negativa (algo debatido até hoje, se mesmo negativa ou não) vem de Arquíloco, datado hoje como do século VII em vez do século VIII, num poema mal conservado (Fragmento 15, da edição de Lasserre-Bonnard, Ed. Les Belles Lettres). (3) Os séculos VI e VII são férteis em governos tirânicos e populares, contrários ao poder nobre. Por volta de 430, na peça Édipo Tirano, Sófocles não emprega ainda o termo no sentido totalmente pejorativo. Em Heródoto, na segunda metade do século V, temos a questão da tirania. O historiador relata um debate sobre o poder efetivado na corte persa. Com a morte de Cambyses, sete nobres discutem o regime a estabelecer. Com a vitória da monarquia, ela é entregue a Darius. Mas são discutidas a monarquia, a aristocracia e o regime popular, com seus pró e seus contra. (Heródoto, III, 80ss). () O adversário da monarquia diz que a pessoa nela investida não precisa prestar contas a ninguém e se torna próspera e orgulhosa, abusa do poder e ordena execuções sem julgamento, usa as propriedades dos governados segundo seu capricho, viola as leis e a moral. O poder absoluto leva à tirania, máxima injustiça. O regime adequado seria a democracia, na qual os integrantes política recebem tratamento isonômico. (4) Contra semelhante requisitório, o defensor do poder absoluto diz que se o titular é bom, tal governo é o mais adequado. Ele é mais eficaz porque nele o segredo de Estado tem mais garantias (o seu titular é um só). Solon recusa a tirania que lhe foi ofertada, a considera ausência da lei, injustiça. A tirania, no seu entender, é como uma praça forte que protege, mas aprisiona quem a comanda. Solon aceitou ser árbitro por tempo limitado. (5)
Em Esquilo a tirania se identifica parcialmente à barbárie dos persas vencidos em Salamina (Os Persas, 480) ou dos egipcios (As Suplicantes, 472). Prometeu encadeado é o campeão da humanidade por lutar contra Zeus, tirano que impõe sua vontade arbitrária. Em Sete contra Tebas, o rei é legítimo, mas ele, Eteócles, deseja guardar o poder por tempo maior do que o legal e não pretende ceder o comando ao seu irmão, conforme a alternância prevista em termos jurídicos. A imaginação teatral, ligada ao fato tirânico, se radicaliza com Eurípides (As Fenícias) o qual coloca na boca de Eteócles a confissão do ardor pelo poder exclusivo : “Subiria aos astros, o lugar onde eles se elevam ao céu, desceria à terra, se fosse capaz, para manter em minhas mãos o poder soberano, a maior divindade”. E adiante: “Se é preciso ser criminoso, que seja pelo poder soberano, o mais belo motivo dos crimes”. (As Fenícias, 504, 524). (6)
Se não existe ditadura na Grécia, é possível enunciar que a noção e a prática da tirania se aproxima daquele conceito. A questão do tempo de mandato, a substituição da realeza pela magistratura que não presta contas, como o rei, é imposta por um golpe de força ou astúcia, diminui a sua legitimidade. Um exemplo modelar da tirania ilegítima, desenhado por Platão na República, se tornou o grande paradigma da tirania até os nossos dias. Trata-se do anel de Giges, o pastor lídio. É bom recordar que a primeira notação sobre tirania, como foi enunciado acima, é de Arquíloco. E tal notação é referida a Giges. “Um dia, durante violenta tempestade acompanhada de abalo sísmico o solo fendeu-se e formou-se um precipício perto do local onde apascentava o seu rebanho. Cheio de assombro Giges desceu ao fundo do abismo e, entre outras maravilhas que a fábula enumera, surgiu um cavalo de bronze, oco, perfurado com pequenas aberturas; tendo-se debruçado sobre uma, percebeu dentro um cadáver de estatura maior, parece, que a de um homem, e que trazia na mão um anel de ouro, do qual ele se apoderou (…). Ora à reunião habitual dos pastores que se realizava cada mês para informar o rei do estado de seus rebanhos, ele compareceu com o anel no dedo. Tendo tomado assento no meio dos outros, voltou por acaso o engaste do anel para o interior da mão; imediatamente tornou-se invisível ) aos seus vizinhos, que começaram a falar dele como se tivesse partido. Espantado (7), ele manejou de novo o anel com hesitação, voltou o engaste para fora e, assim fazendo, tornou a ficar visível. Dando-se conta do fato, repetiu a experiência para verificar se o anel possuía realmente semelhante poder, o mesmo prodígio reproduziu-se: virando o engaste para dentro, ficava invisível; para fora, visível. Desde que se certificou disso, agiu de modo a figurar entre os mensageiros que se dirigiam para junto do rei. Chegando ao palácio, seduziu a rainha, tramou com ela a morte do rei, matou-o e obteve assim o poder.”. (8)
A história narrada no interior da República marca os lados da visibilidade e da invisibilidade do poder e da justiça. Na divisão dos campos opostos ocorre a maravilha, o espanto. Todos os elementos narrados pelo escritor Platão no personagem Giges, encontram-se na história dos golpes de Estado e das ditaduras, após o final da república romana e o nascimento do império. Até os nossos dias, os mais importantes pensadores políticos se aplicam a captar os sentidos da história de Giges, entre eles, o republicano Jean-Jacques Rousseau. (9) Entre a modernidade e os tempos antigos, o cristianismo apurou a noção de tirania. (10)
Na experiência grega, além da história de Giges, o tirano é chamado lobo sanguinário por Platão (11) que prevê a sua morte nas mãos dos adversários. Aristóteles define o tirano como pernicioso ao coletivo. (12) Cicero discute a tirania, e afirma que o tirano gera ódio e sempre acaba morto de maneira violenta. (13) O escritor discute o peso do tiranicídio, em relação aos valores éticos : “Com frequência as circunstâncias tornam o que se costuma considerar torpe, como não torpe. Existe crime maior do que matar um homem, ou um amigo? No entanto, seria mesmo um criminoso quem matou um tirano, mesmo sendo ele amigo? Tal não é a opinião do povo romano. Entre as belas ações, ele considera aquele ato como o mais belo” (14) Pode ser encontrada em Seneca uma atitude próxima. “Se a cura (do tirano) é desesperada, com um só gesto farei um ato benemérito para todos e de restituição, para ele. Para naturezas como a sua, deixar a vida é o único remédio, a melhor escolha é ir embora, quando não é mais possível voltar a si mesmo”. (15)
O Novo Testamento, por sua vez, segue a linha do Velho, proíbe o assassinato. E São Paulo é explícito no que se refere aos governantes. “Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores(ἐξουσίαις, potestatibus): porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade, resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação. Porque os magistrados não são para temor (φόβος) quando se faz o bem, e, sim, quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem, e terás louvor dela; visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal. É necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa do temor da punição, mas também por dever de consciência. Por esse motivo também pagais tributos: porque são ministros de Deus, atendendo constantemente a este serviço. Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra” (Romanos, 13: 1-7).
O termo ἐξουσίαις, cuja tradução para o latim é potestatibus, tem o significado do sublime (Omnis anima potestatibus sublimioribus subdita sit) o que gera medo (φόβος) pela sua própria magnitude e transcendência, ultrapassa os limites dos homens finitos : poder, no sentido exato, só o divino (οὐ γὰρ ἔστιν ἐξουσία εἰ μὴ ὑπὸ θεοῦ; non est enim potestas nisi a Deo). Temos a reiteração da temática, já trazida no livro de Jó (16) da incomensurabilidade entre poder divino e humano, de onde nasce o símile do Leviatã. Tomás de Aquino fala, a propósito, do Leviatã como “excesso de grandeza”, o que vai além de todo poderio ou astúcia humanos. (17)
Lutero, para falar do medo trazido pela justiça divina, usa o termo Furcht (terror, pavor). A versão inglêsa do Rei Tiago traz claramente o vocábulo terror. A palavra latina é aparentemente mais branda: timor. Cicero afirma que o medo é política ruim, pois instaura a tirania. No caso de Paulo, o sublime divino é fonte do medo e as autoridades trazem o medo aos homens que optam pelo mal, nada podem contra os que agem bem.
Padres da Igreja, como Tertuliano e Lactâncio escrevem que embora o tirano seja detestável a sua punição é reservada a Deus, e apenas a Ele. O cristão deve morrer pela sua causa e não matar (Vincimus, cum occidimur, Apologeticum). Finalmente : Orate (…) pro regibus et pro principibus et potestatibus, ut omnia tranquilla sint vobis! (18) Mesma atitude na Cidade de Deus. Mas Agostinho introduz algumas concessões no tocante ao tiranicídio. Uma autoridade pública, face à maldade do culpado, pode matar. Não convêm aos particulares exercer tal decisão e ato. Se não é conveniente, não significa no entanto não ser possível ou justificável. Se Deus manda uma pessoa privada matar o péssimo dirigente, ela deve obedecer.
O grande nome das doutrinas eclesiásticas, quando se trata do tiranicídio, é João de Salisbury. O seu monumento sobre o problema é o Policraticus (1159). No livro 3, capítulo 15 daquele tratado, o autor se ocupa com o tirano por usurpação que tomou o poder por astúcia e violência. “Devemos viver de um modo com o amigo, de outro com o tirano. De qualquer modo, não convêm adular o amigo, mas é lícito acariciar (mulcere) (19) as orelhas do tirano. Pois é permitido lisonjear a quem é permitido matar. Não apenas é lícito matar o tirano como é eqüitativo e justo. Quem toma o gládio é digno de matar pelo gládio. Mas por ´tomar´ se entenda : quem o usurpa por sua própria temeridade ou recebe de seu senhor o poder de o utilizar. Quem recebe de Deus o poder conserva as leis, é servidor da justiça e do direito. Quem o usurpa rebaixa os direitos, submete as leis à sua vontade”. Não só o tirano usurpador pode ser morto, mas também o legítimo cujo exercício vai contra a lei e a justiça. O tirano “oprime o povo de modo violento (…) a lei é dom divino, forma de equidade e justiça, imagem da vontade divina, guardiã da salvação, fortaleza dos povos, regra das magistraturas, exclusão e termo dos vícios, pena contra a violência e toda injustiça (…) O príncipe combate pelas leis e pela liberdade do povo, o tirano acha que nada se faz se não se rejeita as leis e não se leva o povo à servidão. O principe é imagem da divindade mas o tirano figura a força contrária, a perversidade diabólica”. No capítulo 20 do Policraticus, Salisbury narra os tiranicídios bíblicos. Integram sua lista os reis legítimos como Joram e Ocosias, bem como César e demais imperadores romanos. O governante é tirânico? Deve ser morto. Ao violar as leis divinas ele se torna culpado de lesa majestade divina. “Dos crimes de lesa majestade nenhum é mais grave do que o cometido contra o próprio corpo da justiça”. Retornamos ao início dessas considerações, com o preceito paulíneo da obediência à autoridade. A mais sublime dentre todas as autoridades é Deus. Ferir a lei de morte é tentar assassinar o divino. Não existe crime pior. (20)
Em Tomás de Aquino nota-se forte hesitação no tratamento do tiranicídio. No Segundo livro dos Comentários sobre as Sentenças de Pedro Lombardo (entre 1254 e 1256), os tiranos de usurpação podem ser mortos. O mesmo não é dito sobre os de exercício. Ninguém é obrigado a obedecê-los, e mesmo é preciso não acatar suas ordens em algumas ocasiões. Em geral, no entanto, deve-se obedecer o governante. O referido dever é “causado pela ordem de comissão, que tem uma virtude obrigatória, não apenas no plano temporal mas também no espiritual, em consciência como diz o Apóstolo (Romanos, 13), segundo o qual a comissão desce de Deus (…) logo segundo o que é de Deus, obedecer a tais prepostos é dever do cristão, mesmo que a comissão, ela mesma, não seja de Deus”.
Se o rei é um comissário divino, deve ser obedecido. (21) A idéia do comissariato será substituída na modernidade por símiles como o empregado por Blaise Pascal na Carta sobre a Condição dos Grandes. Os príncipes e dirigentes são como o náufrago que aparece nas praias de uma ilha distante. Ele se parece com o príncipe efetivo, mas não é ele. Assim, precisa agir como se fosse legítimo, mas sabe que a qualquer instante o soberano real pode surgir. (22) Segundo Aquino, o comissário pode abusar de sua missão de duas maneiras: fazer o contrário do que ela autoriza (exemplo, um pecado) ou obrigar os dirigidos à prática de algo alheio à sua comissão (exemplo, querer impostos indevidos). O governado pode obedecer, ou não. Se o tirano insiste os cristãos devem sofrer o martírio, mas nada é dito sobre matar o governante injusto.
Já no Regime dos Príncipes, escrito entre 1265 e 1266 (do qual com alguma certeza os livros primeiro e segundo são do filósofo, incluindo o capítulo quarto) a doutrina do tiranicídio é mais clara (ela é exposta no primeiro). Alí desaparece a distinção entre as tiranias (usurpação e exercício) e Aquino retoma Aristóteles : “Como o regime do rei é o melhor, o regime do tirano é o pior”. E logo após : “Um regime torna-se injusto se, ao desprezar o bem comum da multidão, busca o bem privado do governante. Por tal motivo, quanto mais um regime se afasta do bem comum, mais ele é injusto (…) Na tirania, se afasta mais do bem comum, pois nela se procura o bem de um só, logo o regime do tirano é o mais injusto”. (Capítulo 3). Com base em Aristóteles, mas também por recolher alguma lembrança do injusto platônico, Aquino diz que o tirano é como o lobo que não garante a segurança dos governados e persegue os bons cidadãos, favorece as quadrilhas reunidas para delinqüir, impede a amizade, propicia a discórdia. Ele em nada difere de uma fera. Si (…) regimen iniustum per unum tantum fiat qui sua commoda ex regimine quaerat, non autem bonum multitudinis sibi subiectae, talis rector tyrannus vocatur, nomine a fortitudine derivato, quia scilicet per potentiam opprimit, non per iustitiam regit: unde et apud antiquos potentes quique tyranni vocabantur .“ Se (…) o regime é exercido injustamente por um homem só e ao governar ele busca ganho para si mesmo e não o bem da comunidade a ele sujeita, tal dirigente é chamado tirano que significa ‘força’ porque ele oprime com poder, e não governa com justiça”. (23) Aquino, neste passo, cita Isidoro de Sevilha (Etymologiae 9:3, PL 82:344), cuja etimologia não é correta.
Tomás de Aquino possui dois pilares, em sua discussão teórica sobre a ordem pública. O primeiro é Dionísio, o Pseudo-Areopagita, o segundo é Isidoro de Sevilha. Aquino expõe a noção do universo como imensa hierarquia verticalizada que desce do Senhor, atravessa os arcanjos e anjos, chega aos sacerdotes e passa aos leigos poderosos para atingir os ínfimos da natura, define a doutrina cósmica e cívica, espinha dorsal do catolicismo religioso e político.(24) Essa doutrina tem origem neo-platônica, em Dionisio o pseudo-areopagita. Deus encontra- se além de todos os nossos sentidos e apenas pelos intermediários entre Ele e nós recebemos as suas bençãos. A hierarquia encontra-se na mais funda determinação do ser. É o que diz o teólogo e filósofo Paul Tillich, ao citar em Dionísio o “sistema sagrado onde os graus referem-se ao saber e à eficácia”. E arremata o pensador : “Isto caracteriza todo o pensamento católico em grande extensão; ele não é apenas ontológico, mas também epistemológico; existem graus não apenas no ser, mas também no conhecimento”.(25) Há, neste sentido, uma via para cima e uma via para baixo da escala e cada ente encontra-se num lugar certo e determinado desde sempre. Deus está além de todos os nomes que a teologia lhe atribui, além do espírito, além do Bem, numa “indizível obscuridade”. Dada esta transcendência absoluta, a hierarquia celeste é a emanação de sua luz. Quanto mais próxima d´Ele, mais a entidade se ilumina, quanto mais distante, mais escura. Os homens não podem perceber a luz divina, porque ela é tão intensa que os cega. Assim, os intermediários angélicos são o caminho para o fulgor Eterno. A Igreja Católica exibe na sua forma de governo e de pensamento social este imaginário metafísico.() É impossível quebrar a escala hierárquica dos anjos aos homens. Trata-se de responder à pergunta central de todo pensamento político sobre a teodicéia: “Porque, se Deus fez todas as coisas, ele não as fez todas iguais?”. Agostinho apresentou a sua fórmula: non essent omnia, si essent aequalia (se todas as coisas fossem iguais, nada seriam). Cada coisa ocupa um lugar na escada dos seres, da mais humilde à excelsa. () A queda do arcanjo luminoso apenas destrói na aparência, jamais na essência, a ordem universal. Lúcifer engana-se e procura enganar os homens sobre o poder divino.
Há um heliotropismo essencial no pensamento católico onde a hierarquia insere-se com perfeição. Embora cada ser tenha o seu lugar natural, os homens possuem o livre arbítrio (algo que trouxe lutas penosas para a Igreja, desde Agostinho até Jansenius e Pascal). Assim, retoma-se na Igreja a tese de Platão de que “o divino não é culpado” pelos nossos males. O mal não pode ser atribuído ao Absoluto. “Deus”, afirma Tomás de Aquino, “não quer que se faça o mal, nem quer que não se faça; o que Ele quer é permitir que se faça, e isto é bom” (Summa Theologia, 1 q. 19 a 9). O espelho terrestre foi embaçado pelo hálito pestilento do mal, mas pode ser limpo e resplandecer novamente. A criaturas atingem a perfeição no campo iluminado pelo brilho divino. No capítulo sobre a luz e a visão dos homens, Aquino refuta o símile entre os últimos e o morcego “que não pode ver o mais visível, o Sol, por causa precisamente do excesso de luz”. Os homens não nasceram para a lamentável escuridão e seu alvo é a perfeita alegria da vista: “como a suprema felicidade do homem consiste na mais elevada de suas operações, a do intelecto, se este nunca pudesse ver a essência divina, segue-se que o homem nunca alcançaria a felicidade, ou que esta é algo distinto de Deus, o que se opõe à fé (…) uma coisa é tanto mais perfeita, quanto mais se une ao princípio”. Assim, “os bem aventurados vêem a essência divina” (Summa 1 q. 12 a 1).
Mas como pode o homem unir-se ao divino? Os anjos e a sua hierarquia, espelhada na hierarquia eclesiástica, dão a primeira resposta. A segunda (a que trouxe maiores violências no debate cristão, sobretudo entre os jansenistas e calvinistas) é explicitada por Tomás de Aquino: “é indispensável que, em virtude da Graça, seja-lhe concedido o poder intelectual e este acréscimo de poder é o que chamamos iluminação do intelecto, bem como chamamos luz ao objeto inteligível. Esta é a luz de que fala o Apocalipse referindo-se à sociedade dos bem aventurados que vêem a Deus, que a claridade de Deus a ilumina e graças a esta luz se fazem deiformes, isto é, semelhantes a Deus (idest Deo similes)” (Summa, 1 q. 12 a 5). Os entes humanos, pela Graça, tornam-se iguais a Deus na contemplação beatífica, na transcendência eterna.() A igualdade entre eles não é possível, visto que em cada um dos indivíduos humanos há uma relação especial com Deus mediata pela cooperação de cada um deles com a Graça divina, o que indica uma proximidade maior ou menor entre a consciência e Deus. () Para que possa existir visão divina, a luz deve ser percebida segundo graus, não de imediato. A doutrina sobre o poder político exige a tese dos graus de visibilidade contemplativa, o que prepara o óbice maior que se instala entre o pensamento católico e as modernas idéias democráticas sobre a igualdade, onde o divino transcendente é posto fora do trato político ou, como dizia Laplace a Napoleão Bonaparte quando este ao folhear o texto sobre a Mecânica Celeste, perguntou ao cientista sobre Deus: “Je n’ ai pas eu besoin de cette hypothèse”.
O segundo pilar do pensamento político de Aquino, se deixarmos de lado os seus maiores apoios, Aristóteles e Platão, é Isidoro de Sevilha, sobretudo quando se trata da análise da lei e da tirania. O debate sobre a lei é feito a partir das Etimologias (2:10; 5:3, PL 82: 130 e 5:21, PL 82:203). () A lei é fundamentada na razão e composta não tendo em vista a vantagem privada mas o bem comum dos cidadãos. O alvo final da vida humana é a felicidade, ou beatitude, a lei deve satisfazer o bem dos indivíduos tendo em vista o bem comum, no Estado. A passagem fundamenta-se também em Aristóteles (Ética, V, 7: 8, 1151a 16) () e (Física 2: 9, 200a 22). ()
Qual deve ser o legislador ? O povo ou homens superiores? Para o debate, Aquino cita Isodoro, ainda nas Etimologias (5:10, PL 82:200) : “lei é um ordenamento do povo pelo qual algo é sancionado pelos de alto nascimento em conjunção com os comuns”. Todos possuem a lei em si mesmos e todos têm interesse na lei. Mas as pessoas privadas não podem compelir as demais à virtude, tal poder está presente na comunidade ou na pessoa cujo dever é aplicar punições e, portanto, a lei pertence a ela apenas. Ademais, a promulgação da lei é essencial na ordem pública? Sim, responde Aquino, porque os não presentes no ato da instauração legal têm obrigação de saber a lei. Quando a lei é promulgada por escrito, é como se ela tivesse sua promulgação refeita no passado, no presente e no futuro, de modo contínuo. É por tal motivo que Isidoro diz que “a lei deriva de ‘ler’(legendo) porque ela é escrita” (Etimologias 2: 10, PL 82:130). Se alguns homens são inclinados para este ou aquele modo de ser e desejam honras, riquezas, prazeres, como definir a lei da natureza, visto que Isidoro indica que “o direito natural (ius naturale) é comum a todas as nacões” ? (Etimologias 5:4, PL 82:199). Assim como a verdade é a mesma em todos os homens mas não é igualmente conhecida por todos, também a lei da natureza é idêntica para todos, mas é recebida e praticada de modos diversos.
Qual o alvo das leis? Segundo Isidoro, citado por Aquino, “as leis foram feitas para que a audácia humana pudesse ser colocada em limites pelo medo delas, para que a inocência fosse protegida no meio dos desordeiros, e que o pavor da punição restringisse os perversos de produzir danos” (Etimologias 5:20, PL: 82:202). Neste passo, Aquino cita com maior vigor Aristóteles, quando se trata do papel punitivo das leis. “Como o Filósofo diz na Retórica 1 ( 1:1, 1354a31), ‘é melhor que todas as coisas sejam reguladas por lei do que deixadas à decisão dos juízes’e isto por três razões. Primeira, porque é mais fácil encontrar poucos homens sábios capazes de encontrar leis sábias do que os muitos para julgar cada caso individual corretamente. Segundo porque os que estabelecem leis devotam muito tempo ao que faz a lei enquanto o juizo de cada caso singular deve ser dado logo que o caso ocorre; mas é mais fácil para o homem ver o que é direito tomando em consideração muitos exemplos, em vez de um só caso. Terceiro, porque os legisladores julgam termos em geral, com o futuro em mente, mas os juízes o fazem em relação ao presente, tratam com o que pode afetá-los pelo amor ou ódio ou ambição de algum tipo, e assim seu julgamento pode ser distorcido. Dado que a ‘lei animada’ dos juizes não se encontra em muitos homens, e porque ela pode ser distorcida, foi preciso, sempre que possível, que a lei determinasse como deveria ser o julgamento, e para muito poucas matérias se confiasse na decisão dos homens”. O direito positivo deve ser contrastado com o natural, como diz Isidoro (Etimologias, 5:4, PL 82:199).
Aquino se dirige ao próprio conceito de lei, enunciado por Isidoro, se perguntando se é apropriada descrição da lei inscrita nas Etimologias. Citação de Isidoro : “a lei deve ser franca, justa, possível, seguir a natureza e o costume da terra, capaz de ser aplicada em tempo e espaço determinados, necessária, útil, expressa com clareza, que ela não contenha alguma provisão temível pela sua obscuridade; seja composta não para vantagem privada, mas para o benefício dos cidadãos”(Etimologias, 5: 21, PL 82: 203). Aquino explica cada um dos termos expressos por Isidoro, inclusive a idéia de que o homem é útil para o homem, base da política. ()
O autor da Summa se dirige, então ao problema da tirania e dos outros regimes. A lei humana pode ser dividida segundo as formas de governo. Aquino cita Aristóteles na Política (3: 5, 1279a26) e divide os regimes em monarquia, aristocracia, oligarquia, democracia, e “também existe a tirania, inteiramente corrompida e à qual nenhum tipo de lei corresponde”. Tudo o que existe por força de um fim deve necessáriamente ser adaptado ao citado fim. Sendo o fim da lei o bem comum, “porque, como diz Isidoro, ‘a lei não deve ser composta para vantagem privada mas para o benefício comum dos cidadãos’( Etimologias, 2:10, 5: 21, PL 82: 131, 203), ela deve se adaptar ao bem comum. Se a lei é injusta, no entanto, “a ordem divinamente ordenada dos poderes não se aplica, e portanto um homem não é obrigado a obedecer a lei em tais casos, se pode resistir (resistere) , assim o fazendo sem escândalo ou alarma pior”.
Se possível, no entanto, é melhor tolerar o tirano. Caso os revoltados fracassem, ele pode se tornar ainda mais feroz. Mesmo se a tirania é insuportável não vale a pena o tiranicídio. O remédio aceito pelo doutor da Igreja é a revolta regulada por representantes legítimos do povo. “Parece que se deva proceder contra a selvageria dos tiranos, não pela presunção privada de alguns, mas por autoridade pública” como uma assembléia do povo ou como o Senado romano, que destituirá o tirano. Segundo a Suma Teológica é preciso obedecer as autoridades, quando ocorrem abusos que trazem rebeliões. Ao retomar Aristóteles e dizer que a “tirania é ordenada para o bem próprio do governante, com prejuízo da multidão” (IIa II ae, q. 42) ele condena a sedição como oposta à justiça e ao bem comum. Ora, o regime tirânico não é justo, pois não se ordena ao bem comum, mas ao proveito do dirigente. Logo, “a derrubada desse regime não tem o caráter de sedição”. () A sedição pode não ser pecado. E matar o tirano? Na questão 64, artigo 2 da Suma ao discutir se é lícito matar bandidos, ele afirma com apoio em Êxodo, 22 que “não suportarás que os bandidos vivam”. Assim, “se algum homem é perigoso para a comunidade e seu corruptor por causa de algum pecado, que seja morto elogiadamente e com vantagem, para que o bem comum seja conservado. Com efeito, pequena porção de fermento corrompe toda a massa”.
Uma pessoa privada pode matar o bandido? Responde o santo: “é licito matar um malfeitor, na medida em que o ato é ordenado para a salvação da comunidade; como pertence ao médico arrancar o membro apodrecido, quando foi-lhe confiada a saúde do corpo inteiro. O cuidado do bem comum e confiado aos notáveis com autoridade pública. E apenas a eles é confiado matar os malfeitores, não às pessoas privadas”. No final, chega-se à sugestão, não dita explicitamente pelo autor, de que as pessoas privadas podem matar o malfeitor e o tirano, desde que receba uma ordem divina, a missão, tal como ela se apresenta à sua consciência.
Bartolo da Sassoferrato (1314-1357?) professor de direito em Pisa (entre 1339-1350) se ocupa dos tiranos que assolam as cidades italianas, cujos regimes republicanos deslizam para o despotismo oligarquico ou individual. Hodie Italia est tota plena tyrannis, diz ele no De regiminis civitatis. () Bartolo foi dos primeiros a sistematizar o campo do direito público nas cidades, o que lhe permitiu uma vista sinoptica da ordem jurídica e política. Ao mesmo tempo, teve conhecimento direto dos problemas mais amplos da Europa, por ter sido embaixador de Perugia junto a Carlos 4º.
Bartolo, como Aquino, distingue duas formas de tirania. A primeira, por defectu tituli, por problemas de origem na legitimidade. A segunda, tem a indicação de Ex parte exercitii, o desempenho no cargo. O pensador usa os sinais fornecidos por Plutarco para o reconhecimento do tirano. Este último assassina os melhores homens da cidade e chega a matar seus parentes mais próximos, impede os estudos e os sábios, proíbe reuniões particulares, semeia espiões entre a cidadania, empobrece os contribuintes para que eles fiquem ocupados com dívidas, guerreia o países estrangeiros, é mantido por um grupo de mercenários, adere a um partido político e inviabiliza os demais. (De Tyrannia, capitulo 8º).
Segundo Bartolo, o tirano pode ser responsabilizado pelos ordenamentos legais do Império, passível de ser punido com penas previstas no direito romano. Quem divide a cidade, por exemplo, pode ser castigado com a Lex Julia Majestatis () e assim por diante. Se o imperador não pune o tirano, os magistrados da cidade podem processá-lo e chegar à sua condenação por exílio ou morte. Mas o escritor não autoriza as pessoas privadas a cometer o tiranicídio.
No século 14 o Concílio de Constança foi encarregado de várias tarefas espinhosas, entre elas, a de resolver o cisma papal e o problema da sede pontifícia em Avinhão, analisar as doutrinas de João Wyclif, Jan Hus e sectários. O Concilio condenou o assassinato do tirano devido ao caso do Duque de Orleans (23/11/1407). O confesso mandante do crime, João Sem Medo, queria se desembaraçar do concorrente no Conselho de Estado. Defendido pelo causídico João Pequeno em 08/03/1408, seu pleito se baseia nos seguintes pontos : é lícito matar o tirano, e louvável. O Duque de Orleans era um tirano, amigo do diabo e de feiticeiros, a diaba Venus o presenteou com um talismã para se fazer amar por ele, etc. () Além de tudo o defunto era desleal, traidor, inimigo do povo. Assim, foi lícito matar o tirano. O assassino foi absolvido, os honorários de João Pequeno dobrados.
Quando o novo duque de Orleans entra em Paris e João Sem Medo precisa fugir, o chanceler Gerson de Notre Dame denuncia as teses de João Pequeno. Em 30/11/ 1413 uma espécie de concilio jurídico e teológico extraiu da defesa feita por João Pequeno nove proposições erradas. Finalmente, o tribunal condenou a sua apologia do tiranicídio, em nome do arcebispo de Paris e do Inquisidor da Fé. João Pequeno apela ao papa João 23º. Este submeteu o apelo ao Concilio de Constança. Assim, o processo sobre o tiranicídio adquire estatuto próximo ao da heresia de Hus. O Concilio condena as primeiras teses de Pequeno, selecionadas por Gerson, em especial a que enunciava ser lícito matar o tirano sem esperar sentença ou mandato judicial.
Roland Mousnier resume do seguinte modo as teses jurídicas e religiosas sobre o tiranicídio : () “Nenhum particular pode, por seu movimento próprio e sem juízo prévio por magistrado competente matar o tirano de exercício ou o de usurpação. Mas Deus sempre pode, ao seu arbítrio, confiar a um homem privado a missão de executar o tirano e por tal mandato o escolhido por Deus tem o dever de cumprir sem que exista julgamento e sem por isso se transformar em assassino. Contra os tiranos de usurpação a revolta é permitida sem que se possa qualificar os atos como sedição. Mas quanto ao tirano de exercício apenas os magistrados ou depositários legítimos da autoridade pública, príncipes, senhores, governos, representantes dos povos consultados, podem se rebelar, recusar obediência, pegar em armas, deter o governante, o julgar e depor, exilar, condenar à morte quando necessário. Contra o usurpador, que gera a guerra civil, todo cidadão pode se levantar numa guerra justa”. ()
Na Renascença os tiranicidas têm melhor imprensa. () Maquiavel (), Erasmo, com seu lamento : O Brutorum genus jam olim extinctum.() As advertências contra a tirania encontram-se espalhadas pelos textos erasmianos. Por exemplo, no tratado sobre a Educação do Príncipe Cristão. Após descrever a pintura do bom governante o autor se refere à “terrível fera, repulsiva besta, formada por um dragão, lobo, leão, serpente, urso, e monstros semelhantes; com seiscentos olhos espalhados sobre seu corpo, dentes por toda parte, temível em todos os seus ângulos, com anzóis em todas as suas unhas; nunca satisfeita a sua fome, nutrido por entranhas de seres humanos e pelo sangue dos homens; nunca adormecida, sempre ameaçadora para a vida e os bens dos cidadãos; perigosa para todos, especialmente para os bons; um tipo de maldição fatal para o mundo inteiro, sobre ela, todos os interessados pelo bem estar político tem sentimentos de execração e de ódio. Tal fera não pode ser limitada devido à sua monstruosidade e não pode ser derrubada devido ao desastre que tal ato traria para a cidade, porque sua malícia se fortalece com armas e riqueza. Esta é a pintura do tirano, nada pior pode ser descrito. Monstros desse genero foram Cláudio e Calígula. Os mitos nos poetas também mostram Busiris, Penteu, Midas, cujos nomes hoje são objeto de ódio para toda a raça humana”. ()
Lutero, adversário do tomismo em todos os assuntos, () interdita o tiranicídio, sobretudo se praticado por um particular. Calvino, na Instituição Cristã (tanto na de 1541 quanto em 1560) () define: como todo poder vem de Deus é preciso obedecer a autoridade civil, mesmo tirânica. O pensador não distingue entre tirania por usurpação e por exercício. “Conhecemos por suas palavras a grande obediência exigida por Nosso Senhor para que este tirano perverso e cruel (Nabucodonosor) fosse honrado, não por outra razão, mas porque ele possuía o reino. Aquela posse apenas mostrava que ele tinha sido posto no trono por ordem de Deus e por tal ordem, elevado à majestade real, que não é lícito violar”. Calvino cita o livro de Jó (28) e relembra Davi que recusa atentar contra Saul, tirano mas ungido pelo Senhor. O cristão, diante de um tirano, deve examinar sua própria consciência, para ver os pecados pelos quais Deus assim o castiga. Se o príncipe deseja impor algo contrário à lei divina, no entanto, é preciso resistir até o martírio. “São Pedro nos ensina que é ´preciso mais obedecer a Deus do que aos homens´, mesmo com o risco de morte”. As pessoas privadas não podem se levantar, salvo se recebem missão especial de Deus, contra o tirano. “Algumas vezes Ele suscita manifestamente alguns de seus servidores e os arma com o seu mandamento, para punir uma dominação injusta e livrar da calamidade o povo iniquamente afligido.” O assassino, mesmo que não tenha consciência de alguma tarefa religiosa e possua outros alvos pessoais, pode servir de instrumento divino.
Chegamos ao calvinismo político que afasta todas as dúvidas quando se trata do reino francês, dividido entre papistas e huguenotes, nomes insultuosos que sempre aparecem nas guerras civis ou religiosas. Em 1573 na luta religiosa que estraçalhou a França surge o libelo O direito dos magistrados sobre seus súditos. () Pouco antes, em 1572, ocorrera a noite de São Bartolomeu. Em 1584 sobe ao trono um protestante, o Bourbon Henrique de Navarra, com o título de Henrique 4º. O Direito dos magistrados, apresenta a situação da desobediência quando esta passa de passiva a ativa, quando o poder contradiz os mandamentos divinos. O metron da ordem política só pode ser o divino, jamais humano, porque “nenhuma vontade a não ser a divina é perpétua e imutável, regra de toda justiça”. O tom platônico desse enunciado mostra que ele pode ser incluído na linha de Agostinho e não na vertente tomista.
Mas o escrito dá um passo a mais e sanciona as doutrinas sobre o tiranicídio. Ele autoriza o particular à execução do governante tirânico e inimigo das ordens divinas, caso os magistrados deixem de cumprir seu dever. Há um contrato entre povo e soberano. Como o Estado está acima do soberano a soberania não lhe cabe totalmente. Ele depende dos magistrados comuns que não “dependem propriamente do soberano, mas da soberania” a quem o rei presta um juramento de fidelidade. “É evidente que existe uma obrigação mútua entre o rei e os funcionários (officiers) de um reino, segundo a qual o seu governo não é posto nas mãos reais, mas apenas o soberano grau deste governo, como também os funcionários (officiers) tem, cada um, parte segundo o seu grau”.() O rei é um magistrado, como os demais, apenas o seu posto está acima dos outros. Os magistrados inferiores, quando o superior tomba em tirania, têm o dever de salvaguardar as leis. “Eles são obrigados (mesmo com uso de armas, se possível) de se levantar contra uma tirania manifesta, para a salvação dos que são postos sob sua guarda, até uma comum deliberação dos Estados”. Como afirma Roland Mousnier, isto vai muito além de Calvino.
Se há contrato, este se baseia no direito natural e divino, e não pode ser quebrado pelas partes. O tirano rompe o contrato, o que lhe retira a garantia no governo. O povo, portador da soberania, merece sempre a resposta certa ao quesito da responsabilidade do governante face ao contrato fundamental. Se rompe o contrato, o príncipe torna-se tirano e pode ser destituído ou morto.
Outro documento relevante dos monarcômacos franceses é o livro Vindiciae contra tyrannos, surgido em 1581 de maneira anônima. Ele foi atribuído a Teodoro de Beza, François Hotman, Buchanan, Hubert Languet. Sua importância foi enorme, tanto na França quanto na Europa. Mas não vai muito além do que aparece no Direito dos Magistrados. Ele avança, no entanto, no campo do contrato. Da Biblia é extraída a noção de um duplo contrato. Em primeiro, o contrato entre povo e rei, Deus garante este acordo, pois o povo é o propriedade divina. Depois, um segundo contrato entre rei e povo, para que o último obedeça bem se for bem dirigido. Daí nascem os direitos populares para exigir prestação de contas do rei, lhe resistir, depor. Depois, o livro inova no que se relaciona ao direito de resistência. Se o povo aprova o tirano que ignora a lei e a desrespeita, uma cidade apenas, um só magistrado, um só par do reino tem o direito de se levantar contra a tirania. A verdade não é quantitativa, um só pode ter razão contra muitos, estar no legítimo direito contra muitos, estar com a verdade contra muitos, e ser o único a defender a liberdade e a fé, contra muitos. Em plano ordinário, no entanto, não cabe ao particular exercer a vingança, a menos que Deus ordene sua missão.
João Althusius, em 1603, na Politica methodice digesta segue o plano geral da Vindiciae contra tyrannos. Temos nesse ponto um elemento estratégico de ordem jurídica, a suposta ou efetiva personalidade soberana do povo, com a idéia do contrato pelo qual o mesmo povo entrega o seu poder originário ao governante. Para a famosa transferência de poder, no entanto, o povo deveria possuir uma “subjetividade” comum. Se tal asserção for verdadeira, o povo jamais transfere totalmente seu direito ao dirigente, ele guarda para si a maiestas. Mesmo os defensores do absolutismo guardam a noção de que existe um contrato a ser cumprido pelo povo. Se o povo é cobrado pelo contrato, é porque ele teria alguma personalidade original. A personalidade do povo só poderia ser coletiva, o que traz problemas para a própria noção de persona capaz de decisões e de responsabilidade. O costume, trazido do direito romano, de chamar o povo de universitas, communitas, corpus, para explicar a personalidade popular como uma unidade incorporada, foi assumida pelos monarcômacos, como na Vindiciae contra tyrannos e nos textos de Althusius.
Althusius não pode aceitar as teses dos escritores católicos, como aliás nenhum de seus pares protestantes, de uma personalidade coletiva superior e anterior, ontológica e lógicamente, aos indivíduos. Tal é o ponto grave dos monarcômacos. Como vimos, embora neguem às pessoas privadas o direito de executar o tirano, quase sempre chegam ao indivíduo ou grupo que, por ordem expressa de Deus, podem justiçar o péssimo governante. Além disso, como também vimos, o indivíduo, em casos excepcionais, tem maior acesso ao verdadeiro do que a massa. Se a lógica aqui presente for levada ao máximo (e nas guerras ou revoluções do tempo ocorreu tal fato) os direitos coletivos são os direitos dos indivíduos somados. Althusius pensa numa conexão social, numa “parceria” dos indivíduos, que gera o Estado. Temos a noção de uma consociatio, corpus symbioticum. De modo artificioso retorna o peso do coletivo sobre os átomos sociais, a autoridade da comunhão política sobre os seus integrantes.
Importa insistir sobre a visão da soberania popular em autores protestantes como Althusius, que no mesmo ato se liga ao campo do federalismo. Dos indivíduos aos Estado e deste às federações, existem graus de autonomia e dignidade, sempre com o instrumento da consociatio. A sua política pode ser dita uma teoria rigorosa de muitas associações. Todas as instâncias sociais, no entender do escritor, surgem de associações. Dentre elas, são indicadas cinco species consociationis : a família, a de camaradagem (Genossenschaft), a comunidade local (Gemeinde), a província e o Estado. Cada uma das superiores resulta das inferiores e são elas, não os indivíduos diretamente, que entram no contrato que gera as mais elevadas. Elas possuem um direito que vai além dos indivíduos, direitos que não podem ser violados tanto pelas associações superiores, quanto pelos próprios grupos inferiores ou individualidades. Se tal é o ponto, é possível aceitar que um grupo ou indivíduo, sem licença das respectivas associações (inferiores ou superiores) decrete que tal instância é tirânica e mate os seus titulares? () Se uma instância associada, ou grupo ou indivíduo no seu interior, abusa de suas prerrogativas, nota-se que a qualificação de “tirania” lhe cabe. Mas o indivíduo privado ou grupo que se arroga a executar uma justiça não escrita, e matar quem imagina (ou de fato é) tirânico, não é também algo contra o direito e tirânico?
No capítulo 38 da Politica Althusius analisa os abusos do poder estatal, a tirania e os meios para afastar semelhantes males. Como defensor das associações, ele sublinha a soberania popular como algo inalienável e reforça o veto contra toda e qualquer tentativa de subtraí-la aos seus legítimo proprietários. Tirano, para ele, em sentido rigoroso, o governante legítimo que viola o direito e trai seu dever. Assim, retoma a distinção já mencionada entre tyrannus absque titulo e tyrannus quoad exercitium. Só que para ele o pretenso tyrannus quoad exercitium é apenas e simplesmente o inimigo público. E aí temos a concessão de Althusius às doutrinas anteriores, protestantes e católicas, sobre o tiranicídio: qualquer particular tem o direito de executar a sentença contra o tirano. (Cf. Politica, § 27).
Quem é o verdadeiro tirano? O que “violando tanto a palavra quanto o juramento, começa a abalar as bases e afrouxar os laços do corpo associado da comunidade. O tirano pode ser um monarca ou poliarca que, em decorrência da avareza, soberba ou perfídia, extingue ou destrói os bens máximos da comunidade, quais sejam, sua paz, virtude, ordem, lei e nobreza”. () Com tais critério, Althusius fixa o jus resistentiae et exauctorationis, contra o tirano. Tal direito resulta de doze princípios, extraídos da essência do contrato, do ofício e do mandato, do conceito de soberania popular, do direito natural e da palavra divina (§§ 28-43), da história civil e religiosa (§§44-45). O referido direito é atribuído ao povo apenas, coletivamente, e em seu nome, aos Eforos. Os privados cidadãos têm direito apenas à resistência passiva e, caso exista ameaça direta contra suas vidas, bens, liberdades, o direito de legítima defesa concedido pelo direito natural (§§ 65.68). () Os Eforos, coletivamente, têm a prerrogativa (caso verifiquem um comportamento tirânico) de advertir o governante pacificamente. Caso ele não se emende, eles podem cassar o seu mandato com violência ou mesmo condenar a morte. (§§ 53-64). Em caso de evidente tirania, as associações podem romper o contrato e se retirar das entidades federadas (§§ 42-52). ()
O ponto crucial do problema inteiro gira ao redor do estatuto da indivíduo no campo coletivo. Quais os limites do primeiro e do segundo? Quem é fonte dos direitos e da ação política? Quando a tirania do Todo suscita a resistência legítima ? Todas essas questões, suscitadas pelos monarcômacos protestantes, são refletidas de maneira inversa nos monarcômacos do catolicismo. O ponto mais grave, no meu entender, reside na tese de que não raro os átomos sociais e políticos, os indivíduos, podem estar na posse do direito efetivo, quando a maioria se deixa controlar por tiranias mentirosas e anti- jurídicas. Basta recordar os totalitarismos do século 20 : quem tinha razão e estava na verdade, as massas animalizadas pela propaganda nazista, estalinista, fascista, ou os poucos cidadãos que aceitaram ir para a morte, sem disto precisar por eram “arianos” ou porque simplesmente poderiam calar e cooperar com o Estado?
Para os monarcômacos católicos tirano é todo governante que não aceita os ditames da Igreja no campo da soberania, da ética, da ordem pública. Se abrirmos os textos dos monarcômacos do catolicismo, veremos que a grande maioria fazem epikéia do 5 mandamento, “não matarás”. Se é legítimo matar o invasor de sua pátria, um bandido que penetra sua casa, é permitido matar o tirano de usurpação , pois o que ele faz contra a república é uma guerra injusta e fora da lei. Assim, todo cidadão, parte da autoridade coletiva, pode executar o governante tirânico.
Manuel de Sá, jesuíta, nos Aphorismi confessiorum (1593) aprovado pela Faculdade de Teologia de Paris em 1609, diz que o governante tirânico de “uma senhoria justamente adquirida não pode ser dela despojado, a não ser por um julgamento público, sentença pronunciada. Daí, cada um pode ser o executor. Ele também pode ser deposto pelo povo, mesmo se este último jurou obediência perpétua caso, advertido, ele não se corrija. Mas todo membro do povo pode matar quem ocupa tiranicamente o poder, se não há outro remédio, pois ele é o inimigo público (publicus hostis)”. João Mariana, no De rege et regis institutione (1598) pergunta se é lícito matar o tirano. Sua resposta é uma longa discussão escolástica pelo sim e pelo não, ressaltando o sim em caso de atentado à religião.
Outro monarcômaco relevante é Georg Buchanan (1506-1582). Em 1549 o autor foi preso pela Inquisição de Portugal, pelo seu ensino considerado herético na Universidade de Coimbra. Após abjurar sua pretensa heresia, ele é solto e retorna para a França. O De Iure Regni apud Scotos Dialogus (1579), põe os fundamento da responsabilização (accountability) dos governantes face aos governados e da lei e desenvolve a doutrina da soberania popular, o que exige a tese da resistência legal aos tirano. Ele foi peça central na queda de Maria, rainha da Escócia (1567) e se tornou tutor de Tiago 6º da Escócia, futuro Tiago 1º da Inglaterra). Buchanan, pode-se dizer, foi dos primeiros a usar a retórica na tarefa pouco nobre de aniquilar os inimigos políticos. Foi o que ele fez com Maria, a quem acusou de assassina, adúltera, tirana prostituta. no libelo intitulado Detectio Mariae Reginae Scotorum (1571) () e desenvolvido mais amplamente na história da Escócia por ele publicada : Rerum Scoticarum Historia (1582).
No De Jure Regni apud Scotos, aparece o elemento causador do tiranicídio : a opressão do povo e sua revolta. () As fontes de Buchanan encontram-se em Erasmo, Aristóteles, Cícero. O núcleo do diálogo é a diferença entre monarquia e tirania, com a tese da superioridade do povo face aos dois tipos de poder. Para tal tarefa, o autor assume a famosa narrativa das origens, encontrada em Platão, nos estoicos e usada em grande quantidade no século 18, em especial por Rousseau. Ninguém pode dizer que tal narrativa pretende ser efetivamente histórica. Ela é uma idéia diretora para explicar, com algum fundamento racional, o sentido da vida humana em coletividade. Os homens, diz o autor, viviam de modo selvagem e bruto, isolados em cavernas. O sentimento da utilidade e o instinto social os aproximou. O instinto social, como em Cícero, é dado por Deus e com ele torna-se possível construir a civitas segundo as normas do bom e do justo. Quem mais perto chega do justo e do bom é imagem divina entre os seus iguais (Plane Deo similimum). Ele será o chefe, o guia, o médico que conserva a integridade física e a saúde da reunião humana. Justiça, portanto, é guardar a saúde do corpo social, assegurar a prosperidade das suas partes e a coesão voluntária do todo. O rei aparece com tal múnus. Mas a simples eleição do rei nada garante em termos de justiça. Ela é um sinal de excelência, não a própria excelência : natura, non suffragiis regem esse . A eleição não gera um rei, nem um médico competentes. Mas como o diploma confere ao médico o seu direito, a eleição confere ao líder a licença para governar. Diploma ou eleição constituem formas de reconhecimento, não o saber ou o poder reais. Para evitar abusos, mesmo dos que são prudentes ao serem eleitos (ou diplomados), existe a lei, freio dos desejos de quem governa (Legem ei velut collegam aut potius moderatricem libidinum adjiciemus). As leis, diz o autor, “foram criadas com tal fim pelos povos e os reis são constrangidos a governar não segundo seu arbítrio mas segundo o direito que o povo tinha estabelecido para eles”. Mesmo um rei bom não pode dispensar a lei. Buchanan pensa numa colaboração dos poderes, do povo, magistrados e rei, não os procedimentos cortesãos e nem o tumulto dos comícios. No seu entender, os deputados deliberam o texto de uma lei com os conselheiros do governo, depois submetem sua decisão preliminar (προβουλευµα) à aprovação do povo. A lei é mais poderosa do que o rei, o povo é mais poderoso do que a lei (Est enim velut parens, certe auctor legis ut qui eam, ubi visum est, concedere aut abrogere potest). O contrato entre povo e governante não retira do primeiro sua majestade, pelo contrário.
Nesse ponto surge a distinção entre rei e tirano. O tirano segundo o título pode até ser suportado, se o governo segue a lei e a justiça. Mas o de exercício, que viola a lei, devem ser “declarados inimigos públicos e considerados como sátiros, macacos e ursos, fúrias ou Kakodemônios”. Quando o governante viola a legalidade, rompe o contrato que estabeleceu com o povo. Assim, “o povo, de quem nossos reis ganham os seus direitos, é superior aos reis, e o conjunto dos cidadãos tem sobre eles o mesmo poder que eles têm sobre um de seus membros”. Nada vai contra a deposição de um tirano, mesmo que ele seja disfarçado. Buchanan analisa a Carta aos Romanos de maneira inusitada : São Paula falaria de um soberano legítimo e não de um tirano a ser obedecido. A carta a Tito fala em obedecer o que é bom e à Timóteo pede que se reze pelos reis e magistrados. Mas o que impede matar os reis péssimos e ao mesmo tempo por eles orar? O apóstolo falava de reis pagãos, que não tinha conhecimento da lei divina. Os reis cristãos ficam sem desculpa quando agem como tiranos. ()
O retrato acima, do povo e do rei, no entanto, precisa ser melhor precisado nos textos de Buchanan. Nem sempre o rei é o tirano por ele execrado (falando-se em termos históricos, na Escócia da qual ele faz a teoria) e pouco tem de “popular” o “povo” por ele evocado. Trata-se na verdade da nobreza sediciosa e que exigia privilégios, auto-nomeada “povo”. No entanto, sob tais nomes e com tal lógica, as idéias de Buchanan se espalharam pela Europa e abriram vias para a defesa da soberania popular, contra o arbítrio dos reis. o De Iure Regni apud Scotos Dialogus (1579) () no qual defende a responsabilização dos governantes e a soberania popular. O texto mostra que o assassinato pode ser justificado como ato virtuoso. A radicalidade com a qual Tiago 1º defende o direito divino dos reis, com muita probabilidade é devida à virulência das teses de Buchanan. Aluno de Buchanan, Tiago apreciou as lições de grego, de latim, de humanidades adquiridas com o mestre. Mas renegou o quanto pode a tese da soberania popular e do tiranicídio, especialmente nos livrinhos The True Law of Free Monarchies (1598) e Basilikon Doron. () Os textos de Buchanan foram importantes para toda a história política da Inglaterra, sobretudo na revolução do século 17 e do período dominado por Cromwell.
O texto mais célebre da modernidade, ao se tratar dos monarcômacos, intitula-se Killing no Murder. () Ele se dirige contra Oliver Cromwell, o Lord Protector da Inglaterra ou mero ditador no entendimento de muitos. O regime do protetorado aparentemente se instalou em 1653 sem comoções graves. Mas as duas supressões do Parlamento anteriores (a de abril e dezembro de 1653) mostram grave crise política. A Constituição imposta (The Instrument of Government) mostrava tudo, menos reverência para o princípio da representação do poder. O regime instalado era mais presidencial do que parlamentar. Sob a rubrica de “uma só pessoa e um só parlamento”, o autoritarismo aparecia sem muitos cosméticos. A prática de Cromwell face ao Parlamento se reduzia a visitas esporádicas, nas quais o governante falava longamente, sempre no costume dos ditadores que adoram alugar orelhas de parlamentares imaginados impotentes. Os Levellers tinham perdido sua força e seus projetos de mando constitucional tinham se atenuado ao máximo. Como sempre ocorre em regimes autoritários de lavra cristã, Cromwell também acreditou num contrato (Covenant) entre Deus e o povo inglês, no qual ele, o governante, seria o intermediário sacrossanto. Entre as proclamações demagógicas e o próprio Cromwell, no entanto, a modéstia carateriza os seus atos e falas. Para o povo, ele seria um quase Moisés. Para si mesmo, não passaria de um guarda de propriedade (Constable), para um povo rude e indisciplinado. Ditadores costumem parecer modestos…
Modestos, mas a sua tarefa consiste “apenas” em negar ou trair os ideais da revolução que os levam ao poder. No caso de Cromwell, tratava-se de recusar as “bravatas” da luta contra a censura, do exército politizado e sem hierarquias nobres, do nivelamento político democrático, reforma agrária, respeito ao misticismo religioso (Quakers), justiça contra o rei e magistrados não responsáveis (accountability). Em suma: a ditadura foi efetuada para acabar com as exigências de mudanças na ordem pública.
Entre os antigos Levellers (os niveladores...) vários se indignam com o “realismo” do ditador e de seus amigos. Um deles era o jurista Wildman, preso em 1654 e solto no ano seguinte. Seu amigo Edward Sexby, soldado revolucionário e agitador, servira como espião e organizador de rebeliões na França, a serviço da Inglaterra. Na mesma operação, ele apresenta aos rebeldes franceses um “agreement” que seria cópia do programa dos niveladores. O que suscita a cólera de Cromwell, naturalmente. A partir daí, com Wildman, passa liderar planos contra o ditador. Do estrangeiro, ele começa a campanha para abater “o usurpador”. As tratativas com o rei destronado, no exílio francês, não foram adiante, porque Sexby insiste nos preceitos democráticos. O rei, como previsível, nada aceita que possa lessening the power of the crown and devolving an absurd power to the people. Cromwell, no Parlamento em 1656 denuncia Sexby num de seus longos discursos como a wretched creature, an apostate from religion and all honesty.
Os ocupantes das cadeiras parlamentares, beneficiados materialmente pela Revolução, não aceitaram pregações como as de Sexby. Eles na verdade queriam uma legitimidade nova para Cromwell, o que garantiria suas propriedades e a situação política de “segurança”. Não apenas de satisfeitos se compunha o clima político. Muitos setores não aceitavam o controle do ditador. Assim, Sexby imagina mover os defensores da realeza contra o governante e assim captar todas as insatisfações levantadas em seu protetorado. E surge o Killing no Murder em 1657. Preso, Sexby com muita probabilidade foi torturado e confessou, mas sem deixar suas convicções.
O primeiro arrazoado do texto gira ao redor da questão clássica: Cromwell é tirano ? Como sempre, Aristóteles e Cícero são fonte analítica. Mas a fonte maior, no passo, encontra-se em Maquiavel : “Tiranos efetivam seus fins muito mais por fraude do que pela força. Nem virtude nem a força (diz Maquiavel no Príncipe, cap. 9) são necessárias para aquele alvo, tanto quanto una Astutia fortunata, uma astúcia com sorte: a qual, diz ele (Principe, 2 capitulo 13) sem a força foi sempre considerada suficiente, mas nunca a força sem ela. E num outro lugar (Capítulo 18) ele diz que o caminho é Aggirare li cervelli de gli huomini con Astutia, etc.” Daí, a indicação de que Sua Alteza, o protetor, usa os artifícios maquiavélicos para conseguir seus alvos. ()
Além disso, é marca dos tiranos rebaixar os bons. Eles, como diz Aristóteles, “purgam” as assembléias em sentido negativo (a fonte mais antiga disso é Platão, na fenomenologia do tirano feita na República, livro 8), e nelas só deixam quem não possua inteligência (Wit) interesse ou coragem para se opor aos seus desígnios (Aristóteles, Política, 5, cap. 11). Eles não suportam assembléias e colocam em toda parte espias e delatores e não saem do palácio sem guarda de corpo. Eles declaram guerras para divertir o povo e mante-lo ocupado. Eles mantêm aduladores. E coisas detestáveis, eles exigem que seus subordinados as cometam. Eles fingem cuidar do povo. Mas vendem as coisas santas, na religião e em outros domínios. Eles fingem receber inspiração divina. Eles pretendem, assim, amar a Deus e fingem que oráculos divinos conduzem sua ação. Todas essas marcas são encontráveis, diz Sexby, em Cromwell. ()
A segunda série de razões gira ao redor de outra questão clássica: é legal matar um tirano? Os juízos variam, afirma Sexby. Alguns acham que os tiranos são abortos, para a cura dos quais apenas a nossa paciência é eficaz. Outros acham que eles devem ser questionados pela suprema lei da salvação popular. Eles são responsáveis (answerable) diante dos povos, por quebrarem a fé pública. Ninguém, no entanto, “em boas condições de pensamento”, torna a pessoa privada juízes nos casos de tirania. Mas o próprio tirano é um caso de vida particular, não pública. Se o governante não assegura a felicidade e a segurança públicas, ele não é mais diretor da ordem pública, mas age nela como privado. Para ser legítimo, o governante deve ser parte da Civitatis, porque toda parte se subordina ao todo ao mandar ou obedecer. O tirano nunca se subordina. Só existe civitas quando o coletivo é como se fosse só homem. Sexby cita Sófocles em latim : Non est civitas quae unius est viri. Como o tirano não é parte da Comonwealth “mas se coloca acima da lei, não existe razão para que ele seja protegido pelas leis, pois não as reconhece. Deve ser considerado uma fera, nada mais. E seguem-se exegeses bíblicas e fontes antigas para validar a tese da tirania de Cromwell.
Terceira série de arrazoados: após mostrar o que é um tirano e indicar suas marcas, vem a questão de saber se é vantajoso para o coletivo a sua destituição. E Buchanan cita muitas autoridades sobre o assunto. Dos trechos recolhidos, o mais cortante é o de Maquiavel : quem apoia a tirania, deve matar Brutus. Um tirano, diz Platão, deve afastar toda pessoa virtuosa. E se com o tirano não é possível viver em paz, felicidade, segurança, etc., é saudável e vantajoso acabar com ele.
Os monarcômacos, dos quais dei apenas alguns exemplos, colocam o direito de resistência no centro de todo o seu sistema político. () Mas devido à substituição da soberania principesca ao povo, o seu problema passou para o campo mais amplo, da transgressão dos limites do Estado. Todos os direitos que eles atribuem ao povo contra e acima do tirano seriam consequências, não limites da soberania. O que se deve pensar de um poder sem limites, inclusive e sobretudo se tratamos de um soberano coletivo? Não irei analisar aqui as teses de Hobbes e da modernidade. Importa dizer que o impulso para definir limites aos soberanos principescos ajudou e muito na edificação das democracias ocidentais, como a inglêsa, a norte-americana e a francesa. Com a Revolução de 1917 na Rússia, encerra-se a eficácia da doutrina com o Estado totalitário. Doravante, no mundo, os satélites da URSS agiram como se assumissem o principio da resistência à tirania, mas logo que atingiram o poder, impuseram tiranias ainda piores do que as derrubadas por eles. O nazi-fascismo levantou contra seu programa de horrores a resistência de alemães, franceses, italianos, gregos. Mas logo que a Segunda Guerra foi vencida, o único foco de resistência encontrou-se na luta contra os países colonialistas. E logo após muitos movimentos de libertação, no poder, instauraram tiranias sangrentas que até hoje matam milhares e milhares de pessoas humanas. Nas consciências terroristas de hoje, há uma tintura das doutrinas sobre a resistência à tirania. Mas na verdade trata-se de tiranos que usurpam o título de resistentes, e também exercem a tirania de modo exacerbado.
1 Léon Homo: L’ Italie primitive et les débuts de l ‘imperialisme romain (Paris, Albin Michel, 1925), 272 ss.
2 Ilíada, II, 204- 205 e X, 224 : (II, 204-205);; “Dois que marcham juntos, um provê ao outro como seja melhor… (Iliade di Homero, Torino, Einaudi, 1950). Para toda a análise que segue, cf. Raymond Weil, ”De la tyrannie dans la pensée grecque”, in Duverger. M. : Dictatures et Légitimités (Paris, PUF, 1982), pp. 29 ss.
3 “Die älteste erhaltene Verwendungen des Tyrannis-Begriffes findet in den literarischen Zeugnisse der archaischen Zeit bei Archilocos von Paros , der die Mitte des 7. Jarhunderstes v.Chr. gelebt haben dürfte . Der Iambograph lässt in einem Vielzeiler einem Handwerker namens Charon sagen (…) [eu traduzo os versos,RR] “Não desejo a riqueza de Gyges, nem emulei ou me arrependi diante dos decretos divinos, nem desejei seguir os grandes tiranos, diante dos quais os meus olhos permanecem fechados” in Loretana de Libero, Die archaische Tyrannis (Stuttgart, Franz Steiner Verlag, 1995) p. 24. Cf. também Pedro Barceló: Basileia, Monarchia, Tyrannis, Untersuchungen zu Entwiclung und Beurteilungen von Alleinherrschaft im vorhellenistischen Griechenland (Stuttgart, Franz Steiner Verlag, 1993). Também: Parker V.. : “Tyrannos. The semantics of a political concept from Archilochus to Aristotle” Hermes ( Steiner Verlag, Stuttgart,) 1998, vol. 126, no 2, pp. 145-172.
4 ‘After the tumult quieted down, and five days passed, the rebels against the Magi held a council on the whole state of affairs, at which sentiments were uttered which to some Greeks seem incredible, but there is no doubt that they were spoken. Otanes was for turning the government over to the Persian people: “It seems to me,” he said, “that there can no longer be a single sovereign over us, for that is not pleasant or good. You saw the insolence of Cambyses, how far it went, and you had your share of the insolence of the Magus. How can monarchy be a fit thing, when the ruler can do what he wants with impunity? Give this power to the best man on earth, and it would stir him to unaccustomed thoughts. Insolence is created in him by the good things to hand, while from birth envy is rooted in man. Acquiring the two he possesses complete evil; for being satiated he does many reckless things, some from insolence, some from envy. And yet an absolute ruler ought to be free of envy, having all good things; but he becomes the opposite of this towards his citizens; he envies the best who thrive and live, and is pleased by the worst of his fellows; and he is the best confidant of slander. Of all men he is the most inconsistent; for if you admire him modestly he is angry that you do not give him excessive attention, but if one gives him excessive attention he is angry because one is a flatter. But I have yet worse to say of him than that; he upsets the ancestral ways and rapes women and kills indiscriminately. But the rule of the multitude has in the first place the loveliest name of all, equality, and does in the second place none of the things that a monarch does. It determines offices by lot, and holds power accountable, and conducts all deliberating publicly. Therefore I give my opinion that we make an end of monarchy and exalt the multitude, for all things are possible for the majority. Such was the judgment of Otanes: but Megabyzus urged that they resort to an oligarchy. “I agree,” said he, “with all that Otanes says against the rule of one; but when he tells you to give the power to the multitude, his judgment strays from the best. Nothing is more foolish and violent than a useless mob; for men fleeing the insolence of a tyrant to fall victim to the insolence of the unguided populace is by no means to be tolerated. Whatever the one does, he does with knowledge, but for the other knowledge is impossible; how can they have knowledge who have not learned or seen for themselves what is best, but always rush headlong and drive blindly onward, like a river in flood? Let those like democracy who wish ill to Persia; but let us choose a group of the best men and invest these with the power. For we ourselves shall be among them, and among the best men it is likely that there will be the best counsels. Such was the judgment of Megabyzus. Darius was the third to express his opinion. “It seems to me,” he said, “that Megabyzus speaks well concerning democracy but not concerning oligarchy. For if the three are proposed and all are at their best for the sake of argument, the best democracy and oligarchy and monarchy, I hold that monarchy is by far the most excellent. One could describe nothing better than the rule of the one best man; using the best judgment, he will govern the multitude with perfect wisdom, and best conceal plans made for the defeat of enemies. But in an oligarchy, the desire of many to do the state good service often produces bitter hate among them; for because each one wishes to be first and to make his opinions prevail, violent hate is the outcome, from which comes faction and from faction killing, and from killing it reverts to monarchy, and by this is shown how much better monarchy is. Then again, when the people rule it is impossible that wickedness will not occur; and when wickedness towards the state occurs, hatred does not result among the wicked, but strong alliances; for those that want to do the state harm conspire to do it together. This goes on until one of the people rises to stop such men. He therefore becomes the people’s idol, and being their idol is made their monarch; and thus he also proves that monarchy is best. But (to conclude the whole matter in one word) tell me, where did freedom come from for us and who gave it, from the people or an oligarchy or a single ruler? I believe, therefore, that we who were liberated through one man should maintain such a government, and, besides this, that we should not alter our ancestral ways that are good; that would not be better.” Having to choose between these three options, four of the seven men preferred the last. Then Otanes, whose proposal to give the Persians equality was defeated, spoke thus among them all: “Fellow partisans, it is plain that one of us must be made king (whether by lot, or entrusted with the office by the choice of the Persians, or in some other way), but I shall not compete with you; I desire neither to rule nor to be ruled; but if I waive my claim to be king, I make this condition, that neither I nor any of my descendants shall be subject to any one of you.” [3] To these terms the six others agreed; Otanes took no part in the contest but stood aside; and to this day his house (and no other in Persia) remains free, and is ruled only so far as it is willing to be, so long as it does not transgress Persian law” (Herodotus, Perseus Project).
5 “But the rule of the multitude has in the first place the loveliest name of all, equality, and does in the second place none of the things that a monarch does. It determines offices by lot, and holds power accountable, and conducts all deliberating publicly. Therefore I give my opinion that we make an end of monarchy and exalt the multitude, for all things are possible for the majority. Cf. Loeb Classical Library, Herodotus, II, Books III-IV, translated by A.D. Godley, pp.107 ss.
6 Para uma análise antiga, mas cheia de informações sobre a tirania, cf. P. N. Ure : The Origin of Tyranny (Cambridge University Press, 1922).
7 Sigo as análises de Raymond Weil, citadas. “If we could all agree on what is “fair” and what is “wise” There would be nothing for men to argue and debate about. “Fairness” or “equality” are not things, they are simply words . Because we have a word for it, that does not prove a thing exists. I shall speak frankly, mother, and hold nothing back. I would climb the star-studded vault of heaven,Or descend to the black pit of hell, if I could do just this:Possess total power. Power to me’ s a goddess, tall, and beautiful and out of reach. She’s what I want, mother, and I can’t bear To think of handing her on to someone else. I want to keep her for myself. I would not be a man, if I threw away The greater share to take the lesser. I should look a fool if this man got what he wanted By marching in with his army and laying waste my land.It would be a disgrace to Thebes to surrender to fear,And hand the sceptre that is mine to a terrorist to wield.He must not be allowed to influence Our conference by threats of violence:Words kill quarrels, not swords and blood.If he just wants to live here in Thebes – that’s fine. But if he wants my power, there is no way I’ll let my mistress go without a fight. When I can be master, why should I be his slave?Let’s have the flames, let’s have the clash of steel, Yoke up the horses, let chariots crowd the plain: I shall not give my royal power to him! Most men have many vices: I have one -I worship Power. Wrong in her defence I don’t call wrong at all. Outra tradução inglesa: “If all were at one in their ideas of honor and wisdom, there would be no strife to make men disagree; but, as it is, fairness and equality have no existence in this world beyond the name; there is really no such thing. I will tell you this, mother, without any concealment: I would go to the rising of the stars and the sun, or beneath the earth, if I were able so to do, to win Tyranny, the greatest of the gods. Therefore, mother, I will not yield this blessing to another rather than keep it for myself; for it is cowardly to lose the greater and to win the less. Besides, I am ashamed to think that he should gain his object by coming with arms and ravaging the land; for this would be a disgrace to Thebes, if I should yield my scepter up to him for fear of Mycenaean might. He ought not to have attempted reconcilement by armed force, mother, for words accomplish everything that even the sword of an enemy might effect. Still, if on any other terms he cares to dwell here, he may; but that I shall never willingly let go. Shall I become his slave, when I can rule? Therefore come fire, come sword! Harness your horses, fill the plains with chariots, for I will not give up my tyranny to him. For if we must do wrong, to do so for tyranny is the fairest cause, but in all else piety should be our aim.”
8 Trata-se de um espanto diante da maravilha diametralmente oposto ao da natureza filosófica, tal como pensada por Platão no Teeteto: “Theodorus seems to be a pretty good guesser about your nature. For this feeling of wonder shows that you are a philosopher, since wonder is the only beginning of philosophy, and he who said that Iris was the child of Thaumas1 made a good genealogy. Hes. Theog. 750. Iris is the messenger of heaven, and Plato interprets the name of her father as “Wonder” e na República 5, 475c.
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10 Jean-Jacques Rousseau, Revêries du promeneur solitaire, VIème Revêrie : Gallica, coleção Bibliopolis http://www.bibliopolis.fr
11 Em toda a sequência, até aviso em contrário, as considerações redigidas aqui vêm do clássico livro de Roland Mousnier: L´ assassinat d´ Henry IV. Le problème du tyrannicide et l ´affermissement de la monarchie absolue (Paris, Gallimard, 1964). As fontes históricas são tratadas naquele escrito com mão de mestre, bem como a sua leitura no mundo europeu, em especial no século 17 francês. Ampliei a citação de fontes, não incluídas por Mousnier, para deixar mais evidente o problema do tiranicídio nos exercícios filosóficos.
12 “Não tem o povo o hábito invariável de pôr à sua testa um homem cujo poder ele nutre e torna maior? É de seu hábito, concordou. É portanto evidente que, onde quer que o tirano medre, é na raiz deste protetor e não alhures que ele se entronca. É absolutamente evidente. Mas onde começa a transformação do protetor em tirano ? Não é, evidentemente, quando se põe a fazer o que é relatado na fábula do templo de Zeus Liceu, na Arcádia? O que diz a fábula? indagou. Que aquele que provou entranhas humanas, cortadas em postas junto com as de outra vitimas, é inevitavelmente transmudado em lobo. Não ouviste contá-la ? Sim. Do mesmo modo, quando o chefe do povo, seguro da obediência absoluta da multidão, não sabe abster-se do sangue dos homens de sua própria tribo, mas, acusando-os injustamente, conforme o processo favorito dos de sua igualha, e arrastando-os perante os tribunais, se mancha de crimes mandando tirar-lhes a vida, quando, com lingua e boca ímpias, prova o sangue de sua raça, exila e mata acenando com a supressão das dívidas e uma nova partilha das terras, então, não deverá um tal homem necessariamente, e como que por uma lei do destino, perecer pela mão de seus inimigos, ou tornar-se tirano, e de homem transformar-se em lobo?” (A República, 8, 565 c – 566 a). Cito na tradução de J. Guinsburg (São Paulo, Perspectiva, 2006), pp. 332-333.
13 “A corrupção da realeza é a tirania. Ambas são governos monárquicos, mas diferem profundamente. O tirano visa apenas seu interesse pessoal e o rei se preocupa com o de seus dirigidos …o tirano só busca o seu próprio bem. Sem dúvida, a tirania é o pior dentre os governos. Da monarquia se desliza para tirania, corrupção da monarquia, e um rei péssimo se transforma em tirano” (Etica a Nicômaco, 8, 10). A realeza se fundamenta no consentimento dos governados e na lei. A tirania é um desvio dessa prática. “A tirania é monarquia absoluta que, sem responsabilidade e só no interesse do tirano, governa homens que valem tanto ou mais do que ele, esta monarquia nunca se ocupa com os interesses particulares dos governados. Assim, ela existe apesar deles, pois não existe um só homem livre que suporte voluntariamente tal poder”. (Política, 6, 3 e 6, 2). Cf. Aristotle Politics Loeb Classical Library, Volume XXI, trad- Rackham, H. (Cambridge, Harvard University Press, 1990) pp. 324 e ss.
14 “Omnium autem rerum nec aptius est quicquam ad opes tuendas ac tenendas quam diligi nec alienius quam timeri. Praeclare enim Ennius ‘Quem metuunt oderunt; quem quisque odit, perisse expetit’. Multorum autem odiis nullas opes posse obsistere, si antea fuit ignotum, nuper est cognitum. Nec vero huius tyranni solum, quem armis oppressa pertulit civitas ac paret cum maxime mortuo interitus declarat, quantum odium hominum valeat ad pestem, sed reliquorum similes exitus tyrannorum, quorum haud fere quisquam talem interitum effugit. Malus enim est custos diuturnitatis metus contraque benivolentia fidelis vel ad perpetuitatem. Sed iis, qui vi oppressos imperio coercent, sit sane adhibenda saevitia, ut eris in famulos, si aliter teneri non possunt; qui vero in libera civitate ita se instruunt, ut metuantur, iis nihil potest esse dementius. .” De officiis, II, 7, 23-26. Segue a tradução mais ampla do trecho, feita por Walter Miller : “Whom they fear they hate. And whom one hates, one hopes to see him dead.” And we recently discovered, if it was not known before, that no amount of power can withstand the hatred of the many. The death of this tyrant whose yoke the state endured under the constraint of armed force and whom it still obeys more humbly than ever, though he is dead, illustrates the deadly effects of popular hatred; and the same lesson is taught by the similar fate of all other despots, of whom practically no one has ever escaped such a death. For fear is but a poor safeguard of lasting power; while affection, on the other hand, may be trusted to keep it safe for ever. But those who keep subjects in cheek by force would of course have to employ severity — masters, for example, toward their servants, when these cannot be held in control in any other way. But those who in a free state deliberately put themselves in a position to be feared are the maddest of the mad. For let the laws be never so much overborne by some one individual’s power, let the spirit of freedom be never so intimidated, still sooner or later they assert themselves either through unvoiced public sentiment, or through secret ballots disposing of some high office of state. Freedom suppressed and again regained bites with keener fangs than freedom never endangered. Let us, then, embrace this policy, which appeals to every heart and is the strongest support not only of security but also of influence and power — namely, to banish fear and cleave to love. And thus we shall most easily secure success both in private and in public life. Furthermore, those who wish to be feared must inevitably be afraid of those whom they intimidate. What, for instance, shall we think of the elder Dionysius? With what tormenting fears he used to be racked! For through fear of the barber’s razor he used to have his hair singed off with a glowing coal. In what state of mind do we fancy Alexander of Pherae lived? We read in history that he dearly loved his wife Thebe; and yet, whenever he went from the banquet hall to her in her chamber, he used to order a barbarian — one, too, tattooed like a Thracian, as the records state — to go before him with a drawn sword; and he used to send ahead some of his bodyguard to pry into the lady’s caskets and to search and see whether some weapon were not concealed in her wardrobe. Unhappy man! To think a barbarian, a branded slave, more faithful than his own wife! Nor was he mistaken. For he was murdered by her own hand, because she suspected him of infidelity. And indeed no power is strong enough to be last ing, if it labours under the weight of fear. Witness Phalaris, whose cruelty is notorious beyond that of all others. He was slain, not treacherously (like that Alexander whom I named but now), not by a few conspirators (like that tyrant of ours), but the whole population of Agrigentum rose against him with one accord. Again, did not the Macedonians abandon Demetrius and march over as one man to Pyrrhus? And again, when the Spartans exercised their supremacy tyrannically, did not practically all the allies desert them and view their disaster at Leuctra, as idle spectators? I prefer in this connection to draw my illustrations from foreign history rather than from our own. Let me add, however, that as long as the empire of the Roman People maintained itself by acts of service, not of oppression, wars were waged in the interest of our allies or to safeguard our supremacy; the end of our wars was marked by acts of clemency or by only a necessary degree of severity; the senate was a haven of refuge for kings, tribes, 27 and nations; and the highest ambition of our magistrates and generals was to defend our provinces and (27) allies with justice and honour. And so our government could be called more accurately a protectorate of the world than a dominion” Cicero De officiis, trad, Walter Miller (New York, The Macmillan Co. 1948), pp. 168 e ss.
15 “Saepe enim tempore fit, ut quod turpe plerumque haberi soleat, inveniatur non esse turpe. Exempli causa ponatur aliquid, quod pateat latius. Quod potest maius scelus quam non modo hominem, sed etiam familiarem hominem occidere? Num igitur se adstrinxit scelere, si qui tyrannum occidit quamvis familiarem? Populo quidem Romano non videtur, qui ex omnibus praeclaris factis illud pulcherrimum existimat.” De officiis, III, 4, 19.
16 De beneficiis, 7, 19. Cautela, no entanto, com tais linhas. Elas não correspondem ao pensamento do estoico Seneca. Leia-se a meditação seguinte: “Esta é uma questão usual levantada sobre Marcos Brutus : deveria ele aceitar ter sua vida poupada pelo divino Júlio quando Brutus desejou matar César ? (…) Considero que se em outras ocasiões Brutus agiu como grande homem, errou neste caso particular e não agiu segundo os princípios estoicos”. De beneficiis, ed. C. Hosius (Lipsiae: Ed. Teubner, 1900). Para uma análise do trecho, cf. M. Piccolomini (South Illinois University Press, 1991), pp. 27 e ss. Para outro comentário do problema, cf. M. T. Griffin : Seneca, a philosopher in Politics (Oxford, Clarendon Press, 1992), pp. 189 e ss.
17 A apresentação de Jó, no livro, já traz a sua marca de temente a Deus. Ele é dito θεοσεβής, reverente e temente a Deus (a versão do rei Tiago traz o termo Fear, para medo), alguém que foge do mal. A encruzilhada diante do divino e do mal é a mesma apresentada por Paulo em Romanos.
18 “O diabo na Figura do Leviatã” capítulo do livro de Tomás de Aquino sobre o livro de Jó. Cf. Job, um homme pour notre temps. De Saint Thomas d´ Aquin, exposition littérale sur le livre de Job (Paris, Tequi, 1980).
19 Apologeticum, 31, 1. Acessado em Ad Fontes Academy [http://www.thelatinlibrary.com] no dia 30/03/2008, as 11h05 AM.
20 De mulceo, verbo transitivo que significa apalpar, afagar com as mãos, acariciar, ameigar.
21 Uso a excelente tradução de M. A. Ladero, M. Garcia, T. Zamarriego : Policraticus (Madrid, Editora Nacional, 1984). Para o pensamento de Salisbury, cf. Roberto Romano:“´Lembra-te de que és homem´. Governantes e Juízes no Policraticus de Jean Salisbury”. Revista Justiça e Democracia. Número 1, Primeiro Semestre de 1996. Páginas 153-161.
22 Não há espaço, aqui, para analisar os nexos entre a idéia de comissão, ou poder comissário, nas doutrinas jurídicas medievais, tanto laicas quanto religiosas. Mas é correto pensar que a idéia de Tomás de Aquino, neste passo, está inserida no plano mais amplo do direito ligado aos poderes. Uma tarefa fascinante e arriscada, dados os problemas óbvios trazidos pelo autor, é comparar a noção de autoridade delegada, comissária, em Tomás de Aquino da exposta por Carl Schmitt no cinzento livro A ditadura. Se possível, voltarei ao ponto.
23 Cf. Trois Discours sur la condition des grands, Premier Discours.
24 De regno ad regem Cypri, in Corpus Thomisticum : http://www.corpusthomisticum.org; Cf. também Scripta super libros sententiarum II, Dist. 44, quaest. 2 43 articulus 2: “ Utrum Christiani teneantur obedire potestatibus saecularibus, et maxime tyrannis”.
25 O que segue é citação de meu artigo “A Igualdade, considerações críticas”, publicado no Foglio Spinoziano (Itália). http://www.fogliospinoziano.it/ARTICOLI.htm Na mesma home page, cf. outro texto meu, “Democracia e Direito Natural”. Os dois escritos têm como alvo discutir o pensamento de Spinoza.
26 Tal certeza foi enunciada por Jacques Maritain em Distinguer pour unir, les degrés du savoir. Cf. Roberto Romano, “Maritain filósofo dos matizes” in Corpo e Cristal, Marx romântico (RJ, Ed. Guanabara, 1987), pp. 141 e ss.
27 Estudo há bom tempo esta doutrina hierárquica. Considero os seus detalhes desde a minha tese de doutoramento sobre a Igreja e a política (Cf. R. Romano, Brasil: Igreja contra Estado, SP, Kayrós, 1979). Desde Lorenzo Valla, o estudo de Dionisio foi modificado, a partir do seu próprio nome. Com as análises filológicas de Valla, some a lenda que envolve a suposta presença de Dionisio no areópago, quando Paulo pregou aos gregos. Uso a edição dirigida por Maurice de Gandillac, Oeuvres complètes du Pseudo-Denys, l´ Aréopagite (Paris, Aubier, 1943), e também a edição magistral da Hierarquia Celeste (Cf. Roques, René, Heil, Günter, et Maurice Gandillac : Denys l ´Aréopagite, L´ Hierarchie céleste, Paris, Cerf, 1958). Para uma síntese do problema, cf. P. Tillich : A History of Christian Thought. From its Judaic and Hellenistic Origins to Existentialism (NY, Touchstone Book, 1967).
28 Ainda hoje um livro sugestivo é o escrito por Arthur O. Levejoy: The Great Chain of Being (Cambridge, Harvard University Press, 1936 e 1964). Para o assunto tratado neste ponto de minha exposição, cf. o capítulo III, “The chain of being and some internal conflicts in medieval thought”, pp. 67 e ss.
29 Um dos comentários mais belos sobre o assunto foi realizado por Erich Auerbach sobre a Divina Comédia. A unidade daquele poema que sintetiza o pensamento ético cristão, “descansa sobre o tema geral, sobre o status animarum post mortem; este deve ser, como sentença divina final, uma unidade perfeitamente ordenada, tanto como sistema teórico, quanto como realidade prática e, portanto, também como criação estética; deve representar a unidade da ordem divina de uma forma ainda mais pura e atual do que o mundo terreno, ou algo que nele acontece, pois que o Além, ainda que inacabado até o Juízo Final, não apresenta, na medida em que o faz o mundo terreno, desenvolvimento, potencialidade e provisoriedade, mas é o ato completo do plano divino. A ordem unitária do Além, assim como Dante no-la apresenta, é tangível da maneira mais imediata como sistema moral, na repartição das almas nos três reinos e suas subdivisões: o sistema segue em tudo a ética aristotélico-tomista”. Cf. “Farinata e Cavalcante” in Mimesis. A representação da Realidade na Literatura Ocidental. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971, pp. 161-162.
30 Uma análise mais ampla desta problemática é feita por mim em trabalho já antigo : Cf. “Lux in Tenebris. Franciscanos e Dominicanos, utopia democrática”, in Lux in Tenebris. Meditações sobre Filosofia e Cultura. São Paulo, Unicamp Ed., 1987, pp. 31 e ss.
31 Scriptum super Sententiis II, Distinctio 44, questio 2, articulus 2 in Corpus thomisticum : http://www.corpusthomisticum.org/snp2044.html e também Summa theologiae IIa IIae 104: De obedientia.
32 Cf. Etica a Nicômaco V, vi. 9– vii. 3 e ss in Aristotle Loeb Classical Library, volume XIX, translated by H. Rackham p. 295 ss. “But we must not forget that the subject of our investigation is at once Justice in the absolute sense and Political Justice. Political Justice means justice as between free and (actually or proportionately) equal persons, living a common life for the purpose of satisfying their needs. Hence between people not free and equal political justice cannot exist, but only a sort of justice in a metaphorical sense. For justice can only exist between those whose mutual relations are regulated by law, and law exists among those between whom there is a possibility of injustice, for the administration of the law means the discrimination of what is just and what is unjust. Persons therefore between whom injustice can exist can act unjustly towards each other (although unjust action does not necessarily involve injustice): to act unjustly meaning to assign oneself too large a share of things generally good and too small a share of things generally evil. This is why we do not permit a man to rule, but the law, because a man rules in his own interest,and becomes a tyrant; but the function of a ruler is to be the guardian of justice, and if of justice, then of equality. A just ruler seems to make nothing out of his office; for he does not allot to himself a larger share of things generally good, unless it be proportionate to his merits; so that he labors for others, which accounts for the saying mentioned above,1 that ‘Justice is the good of others.’ Consequently some recompense has to be given him, in the shape of honor and dignity. It is those whom such rewards do not satisfy who make themselves tyrants.Cf. texto diverso no Site Perseus.
33 Física in Opere 3, trad. Antonio Russo (Bari, Laterza, 1973), p. 49.
34 Cf. B. Nicholas, An Introduction to Roman Law (Oxford, 1992) e sobretudo R. W. Dyson : Thomas Aquinas (Cambridge University Press, 2002) . Questia.
35 …regimen tyrannicum non est justum: quia non ordinatur ad bonum commune, sed ad bonum privatum regentis, ut patet per Philosophum, in tertia Polit. et in VIII Ethic. et ideo perturbatio hujus regiminis non habet rationem seditionis.
36 Cf. R. W. Carlyle and A. J. Carlyle : A History of Medieval Political Theory in the West (William Blackwood & Sons Ltd, Edinburgh and London, 1936). “For to Bartolus tyranny is not only a corrupt form of government, but it is the worst of all corrupt governments. The government of a few, or of the multitude, is corrupt when they pursue their own advantage, but it is not so far removed from a government for the common good as that of the one man. 1 We may put it in concrete terms, the Italian oligarchy or democracy was not so really corrupt and evil a thing as the Italian tyranny. Bartolus adds that the corrupt oligarchy or democracy tends to develop into a tyranny, as they had seen in their own day, for ” Italy is full of tyrants.” 2 This treatment of tyranny by Bartolus is of importance, and we must consider it not only in the ‘ De Begimine Civitatis,’ but also in another treatise, entitled ‘ De Tyranno.’ We have just seen that Bartolus derives from Egidius Colonna and Aristotle the conception of the tyrant as one who governs for his own profit and not for the good of the community. In the treatise, ‘ De Tyranno,’ he derives from S. Isidore, directly or indirectly, the description of the tyrant as that wicked king who exercises a cruel rule over his subjects ; [" Sicut enim rex, seu boni, quia ex eo quod plures sunt, ali- imperator Romanorum est Justus et quid sapit de natura communis boni. verus et universalis : ita si quis ilium Sed si unus est tyrannus otiam recedit locum vult injuste obtinere, appellatur a commuui bono. Praeterea, sicut proprie tyrannus."] from S. Gregory the Great he takes his description of the tyrant as one who governs the commonwealth but not lawfully (non jure), 4 and he applies this to the case of the King or Emperor of the Romans ; if any man seeks to obtain that place unjustly he is properly called a tyrant. 5 In another place Bartolus says : ” The tyrant may be either manifest ‘ or ‘ veiled,’ ” but, what is more important, he may be a tyrant, ” ex defectu tituli ” or ” ex parte exercitus.” The distinction is important, though it was not new ; Aquinas had pointed it out in his commentary on the ” Sentences.” . When he comes to the question of tyranny ” ex parte exercitus,” he first says in general terms that the tyrant is he who does tyrannical things that is, things directed to his own advantage and not that of the community, and then cites from a work, which he attributes to Plutarch, ‘ De Regimine Principum,’ an enumeration of such actions. What is the remedy against the tyrant. If he has a superior, it is for the superior to depose him ; but Bartolus interpolates the observation that there may be occasions when the emperor or Pope may maintain such tyrants in their position for some grave and sufficient reason. 4 In another work he seems clearly to indicate that the tyrant may rightfully be deposed, and he cites a passage from Aquinas, to which we have often referred, that it is not sedition to resist the tyrant.”
37Ad Legem Juliam Majestatis no Digesto, 48 tit. 4 s1 : “crimen illud quod adversus Populum Romanum vel adversus securitatem ejus committitur”. Cf. William Smith e outros : Dictionnary of Greek and Roman Antiquities, verbete “Majestas”( New York, Harper & Brothers, 1847), pp. 609 ss : “A frase majestas publica no Digesto equivale à majestas populi Romani. No período republicano o termo majestas laesa ou minuta era mais comumente aplicado a casos como traição geral ou render o exército ao inimigo, excitar sedições, e geralmente pela péssima conduta administrativa, que lesava a majestas do Estado.” Cf. Lauterpacht, H.(Ed.) : International Law Reports, 8 in Annual Digest and Reports of Public International Laws Cases, 1935-1937, (Cambridge University Press, 1937), pp. 88 ss : “Os Pandecta que tratam com a Lex Julia Majestatis (Dig. 48, 4), na lei I deste título, que Ulpiano define como Majestatis crimen como segue: quod adversus populum Romanum vel adversus securitatem ejus committitur. Por securitatem, diz Godofredo, seguindo os primeiros comentadores, devemos entender a segurança e tranqüilidade do Estado (…) perduellio era um ramo do crimen majestatis que cobria toda ofensa contra a dignidade, autoridade ou poder do estado. E este elemento se liga a tal ponto, porque não pode existir crimen majestatis onde a autoridade em questão não tem majestas. Perduellio só pode ser cometido contra um dirigente que possui majestas”. Perduellio é o mau guerreiro, inimigo do país em geral. Quando a palavra hostis perdeu seu sentido primitivo de “estrangeiro” ele se tornou sinônimo de perduellio, mas esta última palavra designa o inimigo interior, hostis o externo. Sob o império, o crime de lesa majestade abarcou o de perduellio. (Dic. Saglio e Daremberg, verbete Perduellio). Uma correta tradução de texto essencial de Bartolo encontra-se na página da internet dedicada aos escritos medievais cujo título é Medieval Sourcebook. Alí, pode-se ler o livro de Bartolo designado, em inglês, Treatise on City Government, c. 1330. Com esta fonte é possível deduzir o que pensa Bartolo da tirania e da maneira mais eficaz de eliminá-la. Endereço da página : http://www.fordham.edu/halsall/sbook.html
38 As acusações de feitiçaria dirigidas aos adversários políticos são comuns na época. Ainda no Ricardo 3º de Shakespeare, o tirano acusa seus oponentes reais ou imaginários de feitiçaria contra ele. Em Macbeth o jogo cênico e do destino é regido por bruxas. A bibliografia sobre bruxas é imensa. Basta citar alguns textos e nomes significativos da pesquisa acadêmica, independentemente de suas posições teóricas ou ideológicas: MARWICK, M. (org.). Witchcraft and sorcery (Middlesex, Penguin Books, 1982) e também Trevor-Roper , H.R. : The european witch – craze of the sixteenth and seventeenth centuries (Hamondsworth, Penguin, 1990).
39 Reitero que as enunciações até este passo são extraídas de Mousnier. Apenas ampliei o tema com alguns comentários ou indicação de fontes.
40 Mousnier, op. cit. pp. 70-71.
41 A. Douarche : De tyrannicidio apud scriptores XVI saeculi (Tese de Letras, Paris, 1888).
42 Discorsi, 3, 6. “Delle congiure”. Texto ambiguo no qual ao mesmo tempo o autor descreve os motivos e as formas, nas tentativas de tiranicídio, mas alerta contra o seu perigoso para os sediciosos. “ Un’altra cagione ci è, e grandissima, che fa gli uomini congiurare contro al principe; la quale è il desiderio di liberare la patria, stata da quello occupata. Questa cagione mosse Bruto e Cassio contro a Cesare; questa ha mosso molti altri contro a’ Falari, Dionisii, ed altri occupatori della patria loro. Né può, da questo omore, alcuno tiranno guardarsi, se non con diporre la tirannide. E perché non si truova alcuno che faccia questo, si truova pochi che non capitino male; donde nacque quel verso di Iuvenale :Ad generum cereris sine caede et vulnere pauci descendunt reges, et sicca morte tiranni (Satirae, 10, 112-113: ”A morada de Ceres (Plutão) são poucos os reis que descem sem feridas mortais, ou os tiranos por morte incruenta”. Cf. Niccolò Machiavelli Discorsi sopra la prima decada di Tito Livio, in Il Principe e Discorsi (Milano, Feltrinelli, 1973), pp. 390 ss.
43 Adagia, chiliadis primae, centuria secunda.
44 Uso a tradução de Lester K. Born : The Education of a Christian Prince (New York, Columbia University Press, 1936), pp. 162 ss. Erasmo encontra boa parte de sua inspiração no pequeno escrito de Plutarco, Ad principem ineruditum (Para um principe sem erudição).in Loeb Classical Library, Plutarch´ s Moralia, X, trad. H.N. Fowler, pp. 52 ss.
45 Ver Contra Henricum regem Angliae. trad. E. S. Buchanan (New York, Charles A. Swift, 1928).
46 Institution de la religion chrétienne, livro IV, cap. 20, “Du gouvernement civil”. Jean Daniel Benoît ed., (Paris, Vrin, 1957).
47 Du droit des magistrats sur leurs subiets. Traité tres necessaire en ce temps pour aduertir de leur deuoir, tant les Magistrats que les Subiets : publié par ceux de Magdebourg l ´an M.D.L & maintenant reueu & augmenté de plusieurs raisons & exemples. 1575. (Paris, Editions D´ Histoire Sociale, 1977). Fac similar.
48 O termo é dos mais difíceis de serem traduzidos para a nossa lingua. É possível encontrar em traduções de filmes, reportagens e mesmo em livros acadêmicos a palavra “oficial” para explicar a palavra inglêsa e francesa. A palavra “funcionário” seria a mais adequada, mas ela obnubila os matizes hierárquicos do termo, no Estado e na Igreja. No caso, o texto fala com clareza de funcionários de alta situação, não de subordinados. A magistratura maior é a do rei, mas ele pode ser pensado como “primeiro entre os iguais”. Max Weber é uma rica fonte teórica e histórica para o exame desse passo.
49 Cf. Gierke, Otto : Natural law and the theory of society 1500 to 1800 (Boston, Beacon Hill, Beacon Press, 1960), pp. 70 ss.
50 Uso aqui a tradução brasileira, infelizmente não integral :Joahnnes Althusius, Política (Rio, Topbooks, 2003), pp. 349 ss.
51 “…quando a força manifesta é utilizada pelo magistrado contra pessoas privadas, é permitido que elas defendam suas vidas pela resistência, pois, nesse caso, as leis que constituem os reis e o direito natural (jus naturale) armam essas pessoas contra o magistrado que usa a força contra a vida”. Ed. brasileira citada, p. 356.
52 Sigo literalmente o ainda hoje instigante exame de Althusius, feito por Otto Gierke, no clássico Johannes Althusius und die Entwicklung der naturrechtlichen Staatstheorien. Uso a tradução italiana : Giovanni Althusius e lo sviluppo storico delle teorie politiche giusnaturalistiche, contributo alla storia della sistematica del diritto (Torino, Einaudi, 1974). O livro inteiro é útil para o estudo dos monarcômacos.
53 George Buchanan, De Maria Scotorum regina, totaque eius contra regem coniuratione, foedo cum Bothuelio adulterio, nefaria in maritum crudelitate & rabie, horrendo insuper & deterrimo eiusdem parricidio: plena, & tragica planè historia. [By George Buchanan] (Actio contra Mariam Scotorum reginam … [By Thomas Wilson] – Literae reginae Scot. ad comitem Bothuelium scriptae). [London] : [publicado por John Day], [1571] e George Buchanan, Ane detectioun of the du*inges of Marie Quene of Scottes, touchand the murder of hir husband, and hir conspiracie, adulterie, and pretended mariage with the Erle of Bothwell. And ane defence of the trew lordis, mainteineris of the Kingis graces ctioun [sic] and authaoritie [sic]. Translated out of the latine quhilke was written by G.B. [i.e. George Buchanan]. [London] : [John Day], [1571].
54 As notas seguintes são extraídas do excelente trabalho, já antigo mas importante em nossos dias, de Paul Mesnard : L´ Essor de la Philosophie Politique au XVIe Siècle (Paris, Vrin, 1977), pp. 355 ss.
55 A tese de que o catolicismo político e jurídico ajudou poderosamente a formação moderna da ordem democrática é algo que merece reflexões. Como diz um comentador do assunto, “The first great influence of the church for democracy, which in general was spread over the three centuries after Christ, had been the teachings of the early Christians in the face of persecution. How antagonistic these teachings were to the Roman Empire may be gathered from a review of the systematic persecution of those who placed obedience to God before the law of Rome. Such persecution had resulted only in the quickened absorption of Christian principles throughout the Roman world, and it would be difficult to overvalue such spread of Christianity as the seed from which future democratic government was to grow. But even after the identification of the Church with the Empire, and the acquisition of temporal power by the Church itself, whereby it became in part responsible for the obedience of its members to the state, the Catholic Church made its second great contribution to the growth of democratic ideas, i.e., the political pholosophy of individual teachers who remained within the fold of the Church. The support which Iraeneus, Tertullian, Ambrose, Gratian, Chrysostom, Lactantius, and Isidore of Seville gave to the Stoic conception of natural law, the vigor with which Thomas Aquinas, Suarez, and Bellarmine defended the power of the people to depose a king, and the influence of Ivo of Chartres and his successors in rationalizing English civil law,–all these forces did service to the cause of democratic development which can hardly be calculated. Milton frequently refers to the church fathers as authorities for his republican principles. If, as Gooch and Borgeaud say, democracy is the child of the Reformation, not of the comparatively conservative reformers, she is the great grandchild of primitive Christianity, and the grandchild of the great Catholic political thinkers.” Don M. Wolfe : Milton in the Puritan Revolution (Thomas Nelson and Sons, 1941), p. 9.
56 George Buchanan, De iure regni apud Scotos, dialogus, authore Georgio Buchanano Scoto. [Edinburgh] : [Publicado por John Ross], 1579.
57 O Rei, segundo Tiago 1º é “ a manner or resemblance of Diuine power vpon earth,” ele pode, à similitude divina “make and vnmake their subiects: they haue power of raising, and casting downe: of life, and of death …. They haue power to exalt low things, and abase high things, and make of their subiects like men at the Chesse: a pawne to take a Bishop or a Knight, and to cry vp, or downe any of their subiects, as they do their money. . . . For to Emperors, or Kings that are Monarches, their Subiects bodies & goods are due for their defence and maintenance. . . . Now a Father may dispose of his Inheritance to his children, at his pleasure: yea, euen disinherite the eldest vpon iust occasions, and preferre the youngest, according to his liking; make them beggars, or rich at his pleasure; restraine, or banish out of his presence, as h *ee findes them giue cause of offence, or restore them in fauour againe with the penitent sinner: So may the King deale with his Subiects.” Speech in Parliament, 1609-10. Charles Howard McIlwain cita a passagem na sua Introdução às Obras de Tiago 1º, editadas eletrônicamente no Perseus Project. Cf. também The workes of the most high and mightie prince, Iames by the grace of God, King of Great Britaine, France and Ireland, Defender of the Faith, &c. Published by Iames [Montagu], Bishop of Winton, and Deane of His Maiesties Chappel Royall (London, Robert Barker and John Bill, 1616).
58 Cf. Wootton, D. (Ed.) : Divine right and Democracy, (Penguin, 1986) (com o texto do Killing No Murder); Coward, B. . Oliver Cromwell (Longman, 2000); Brailsford, H.N. : The Levellers and the English Revolution (Spokesman Books, 1976).
59 Theodore Calvin Pease: “Debate in the Council of the Army on the Agreement of the people” in The Leveller Movement: A Study in the History and Political Theory of the English Great Civil War (American Historical Association, 1916). p. 227 ss. Também W. Schenk : The Concern for Social Justice in the Puritan Revolution (Longmans, Green and Co., 1948), p. 72 ss.
60 Uso o texto original inglês publicado no livro de Olivier Lutaud: Des Révolutions d´ Angleterre à la Révolution Française. Le tyrannicide & Killing no Murder (Cromwell, Athalie, Bonaparte), (Haia, Martinus Nijhoff, 1973), pp. 374 ss. Há no mesmo volume, uma tradução francesa da época.
61 Otto Gierke : Giovanni Althusius…ed. cit. p. 234 ss.
62 Vem de praeire e significa o chefe que marcha à frente do exército. Primitivamente a palavra designa o consul e mesmo o ditador (praetor maximus). Cf. Dicionário Saglio, verbete Praetor, p. 628,
63 Cf. para a continuidade de choques semelhantes até os dias de hoje, no Estado democrático, o belo texto de Norberto Bobbio, “A Praça e o Palácio” in L’ Utopia capovolta.
64 Nome retomado por um autor de famoso manifesto contra a tirania, o livro Vindiciae contra tyrannos (1660) “The Vindiciae deals directly with the four great questions of the time. Are subjects bound to obey princes if they command that which is contrary to the law of God? Is it lawful to resist a prince who infringes the law of God, and ruins the Church, and, if so, who ought to resist him, by what means, and how far should resistance extend? Is it lawful to resist a prince who ruins the state, and, if so, to whom should the organisation of resistance, its means and limits, be confided? Are neighbouring princes bound by law to help the subjects of princes who afflict them either for the cause of religion or in the practice of tyranny? To the first question, the Vindiciae responds in the negative. It is clear from the authority of Scripture and the example of the martyrs that the commands of God merit obedience before any orders from an earthly prince. Nor is this situation altered by the fact that princes claim to rule by divine right. The earth is the possession of the Lord, and Kings reign only by his will; one must then obey them only to the degree that they obey the commands of their master. The King is a vassal like any other vassal; he is, therefore, bound by a contract. Should he break its terms, diffidatio ensues, as it would in any other case. The establishment of Kingship, in fact, clearly involves a double contract. There is a contract between God, on the one hand, and the King upon the other; there is a contract also between the King and the people. Clearly again, therefore, whatever binds the King binds the people also; and should the King fail in his duty, the people must not -forget its obligations. To obey its earthly master in preference to obedience from God is to invoke the punishment of heaven. For when men fail to obey the laws of God they are expelling him from his Kingdom. The King is instituted only to secure the better observance of those laws, and, when he fails, his sin ought not to involve popular acquiescence. That, indeed, is the true rebellion. It is as though men obeyed an officer rather than the express ordinance of the King himself. When subjects refuse to give their conscience into evil keeping, they obey the true source of right. For there are, as Cicero said, degrees of duty, of which the highest belongs to God, and the second only to one’s country; just as in the civil law treason, though it be a heinous crime, is inferior in wickedness to wrongdoing. Nor do the Apostles write otherwise. It is one thing to refuse obedience to a command which infringes the will of God. Whether one ought to organise resistance to a prince who seeks to infringe it and attack the Church seems, at first sight, a more difficult and complex question. Harold J. Laski:Vindiciae contra Tyrannos,Historical Introduction, in http://www.constitution.org/vct/vind_laski.htm
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OS MONARCÔMACOS.
Roberto Romano
Aula pronunciada na Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo
Abril de 2008.
No mundo atual existe muito pouco espaço para as doutrinas da resistência aos poderes tirânicos. Cresce o confisco da cidadania em todos os países, impostos atingem patamares desumanos, guerras são declaradas sem consulta aos povos, aumenta o segredo e some a transparência democrática. Após as experiências totalitárias e ditatoriais do século 20, sombras espessas se elevam sobre o planeta. Este, longe de ser um cosmos, como desejaram várias filosofias anteriores, manifesta a si mesmo como explosivo. Não existe direito garantido sequer nas democracias mais consolidadas. E tal fato evidencia a corrosão inédita do caráter, sofrida por muitos povos e seus dirigentes. A ética chegou ao ponto mais baixo quando se trata de pensar os direitos humanos coletivos e individuais. As doutrinas do monarcômacos renasce, esfacelada, nos movimentos terroristas que sucederam as revoluções falidas dos séculos 19 e 20. Proponho examinar as bases daquela forma de pensamento. Deixarei, como sempre, a conclusão para os senhores.
As duas fontes éticas do Ocidente —judaica e grega— trazem aos nossos tempos o problema do tiranicídio. No Antigo Testamento Moisés mata um egípcio e começa a libertação do povo hebreu. Aod aniquila o usurpador Eglon, rei de Moab, que domina os israelitas (Juízes, 3, 14-23). Joab destrói Absalão, que destrona Davi (Samuel, 2, 18, 14). Joab é morto por Salomão, em virtude do testamento de Davi (Reis, 1, 2). O tirano Joram, rei de Israel, foi morto por uma flecha de Jehu. Este último fez executar Ocosias, rei de Judá, com a rainha Jezebel, mãe de Joram (Reis, 2, 9). O Sumo Sacerdote Iaoiada ordena a morte de Atália, mãe de Ocosias (Reis, 2, 11). Judite mata Holofernes, general de Nabucodonosor, rei dos Assírios, para salvar o povo. (Judite, 12). (1)
Na experiência grega, o tirano é chamado lobo sanguinário por Platão (2) que prevê a sua morte nas mãos dos adversários. Aristóteles define o tirano como pernicioso ao coletivo. (3) Cicero discute a tirania, e afirma que o tirano gera ódio e sempre acaba morto de maneira violenta. (4) O escritor discute o peso do tiranicídio, em relação aos valores éticos : “Com frequência as circunstâncias tornam o que se costuma considerar torpe, como não torpe. Crime maior existe do que matar um homem, ou um amigo? No entanto, seria mesmo um criminoso quem matou um tirano, mesmo sendo ele amigo? Tal não é a opinião do povo romano. Entre as belas ações, ele considera aquele ato como o mais belo” (5) Pode ser encontrada em Seneca uma atitude próxima. “Se a cura (do tirano) é desesperada, com um só gesto farei um ato benemérito para todos e de restituição, para ele. Para naturezas como a sua, deixar a vida é o único remédio, a melhor escolha é ir embora, quando não é mais possível voltar a si mesmo”. (6)
O Novo Testamento, por sua vez, segue a linha do Velho, proíbe o assassinato. E São Paulo é explícito no que se refere aos governantes.
“Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores(ἐξουσίαις, potestatibus): porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade, resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação. Porque os magistrados não são para temor (φόβος) quando se faz o bem, e, sim, quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem, e terás louvor dela; visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal. É necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa do temor da punição, mas também por dever de consciência. Por esse motivo também pagais tributos: porque são ministros de Deus, atendendo constantemente a este serviço. Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra” (Romanos, 13: 1-7).
O termo ἐξουσίαις, cuja tradução para o latim é potestatibus, tem o significado do sublime (Omnis anima potestatibus sublimioribus subdita sit) o que gera medo (φόβος) pela sua própria magnitude e transcendência, que ultrapassam os limites dos homens finitos : poder, no sentido exato, só o divino (οὐ γὰρ ἔστιν ἐξουσία εἰ μὴ ὑπὸ θεοῦ; non est enim potestas nisi a Deo). Temos a reiteração da temática, já trazida no livro de Jó (7) da incomensurabilidade entre poder divino e humano, de onde nasce o símile do Leviatã. Tomás de Aquino fala, a propósito, do Leviatã como “excesso de grandeza”, o que vai além de todo poderio ou astúcia humanos. (8)
Lutero, para falar do medo trazido pela justiça divina, usa o termo Furcht (terror, pavor). A versão inglêsa do Rei Tiago traz claramente o vocábulo terror. A palavra latina é aparentemente mais branda: timor. Cicero afirma que o medo é política ruim, pois instaura a tirania. No caso de Paulo, o sublime divino é fonte do medo e as autoridades trazem o medo aos homens que optam pelo mal, nada podem contra os que agem bem.
Padres da Igreja, como Tertuliano e Lactâncio escrevem que embora o tirano seja detestável a sua punição é reservada a Deus, e apenas a Ele. O cristão deve morrer pela sua causa e não matar (Vincimus, cum occidimur, Apologeticum). Finalmente : “Orate (…) pro regibus et pro principibus et potestatibus, ut omnia tranquilla sint vobis!” (9) Mesma atitude na Cidade de Deus. Mas Agostinho introduz algumas concessões no tocante ao tiranicídio. Uma autoridade pública, face à maldade do culpado, pode matar. Não convêm aos particulares exercer tal decisão e ato. Se não é conveniente, não significa no entanto não ser possível ou justificável. Se Deus manda uma pessoa privada matar o péssimo dirigente, ela deve obedecer.
O grande nome das doutrinas eclesiásticas, quando se trata do tiranicídio, é João de Salisbury. O seu monumento sobre o problema é o Policraticus (1159). No livro 3, capítulo 15 daquele tratado, o autor se ocupa com o tirano por usurpação que tomou o poder por astúcia e violência. “Devemos viver de um modo com o amigo, de outro com o tirano. De qualquer modo, não convêm adular o amigo, mas é lícito acariciar (mulcere) (10) as orelhas do tirano. Pois é permitido lisonjear a quem é permitido matar. Não apenas é lícito matar o tirano como é eqüitativo e justo. Quem toma o gládio é digno de matar pelo gládio. Mas por ´tomar´ se entenda : quem o usurpa por sua própria temeridade ou recebe de seu senhor o poder de o utilizar. Quem recebe de Deus o poder conserva as leis, é servidor da justiça e do direito. Quem o usurpa rebaixa os direitos, submete as leis à sua vontade”. Não só o tirano usurpador pode ser morto, mas também o legítimo cujo exercício vai contra a lei e a justiça. O tirano “oprime o povo de modo violento (…) a lei é dom divino, forma de equidade e justiça, imagem da vontade divina, guardiã da salvação, fortaleza dos povos, regra das magistraturas, exclusão e termo dos vícios, pena contra a violência e toda injustiça (…) O príncipe combate pelas leis e pela liberdade do povo, o tirano acha que nada se faz se não se rejeita as leis e não se leva o povo à servidão. O principe é imagem da divindade mas o tirano figura a força contrária, a perversidade diabólica”.
No capítulo 20 do Policraticus, Salisbury narra os tiranicídios bíblicos. Integram sua lista os reis legítimos como Joram e Ocosias, bem como César e demais imperadores romanos. O governante é tirânico? Deve ser morto. Ao violar as leis divinas ele se torna culpado de lesa majestade divina. “Dos crimes de lesa majestade nenhum é mais grave do que o cometido contra o próprio corpo da justiça”. Retornamos ao início dessas considerações, com o preceito paulíneo da obediência à autoridade. A mais sublime dentre todas as autoridades é Deus. Ferir a lei de morte é tentar assassinar o divino. Não existe crime pior. (11)
Em Tomás de Aquino nota-se forte hesitação no tratamento do tiranicídio. No Segundo livro dos Comentários sobre as Sentenças de Pedro Lombardo (entre 1254 e 1256), os tiranos de usurpação podem ser mortos. O mesmo não é dito sobre os de exercício. Ninguém é obrigado a obedecê-los, e mesmo é preciso não acatar suas ordens em algumas ocasiões. Em geral, no entanto, deve-se obedecer o governante. O referido dever é “causado pela ordem de comissão, que tem uma virtude obrigatória, não apenas no plano temporal mas também no espiritual, em consciência como diz o Apóstolo (Romanos, 13), segundo o qual a comissão desce de Deus (…) logo segundo o que é de Deus, obedecer a tais prepostos é dever do cristão, mesmo que a comissão, ela mesma, não seja de Deus”.
Se o rei é um comissário divino, deve ser obedecido. (12) A idéia do comissariato será substituída na modernidade por símiles como o empregado por Blaise Pascal na Carta sobre a Condição dos Grandes. Os príncipes e dirigentes são como o náufrago que aparece nas praias de uma ilha distante. Ele se parece com o príncipe efetivo, mas não é ele. Assim, precisa agir como se fosse legítimo, mas sabe que a qualquer instante o soberano real pode surgir. (13) Segundo Aquino, o comissário pode abusar de sua missão de duas maneiras: fazer o contrário do que ela autoriza (exemplo, um pecado) ou obrigar os dirigidos à prática de algo alheio à sua comissão (exemplo, querer impostos indevidos). O governado pode obedecer, ou não. Se o tirano insiste os cristãos devem sofrer o martírio, mas nada é dito sobre matar o governante injusto.
Já no Regime dos Príncipes, escrito entre 1265 e 1266 (do qual com alguma certeza os livros primeiro e segundo são do filósofo, incluindo o capítulo quarto) a doutrina do tiranicídio é mais clara (ela é exposta no primeiro). Alí desaparece a distinção entre as tiranias (usurpação e exercício) e Aquino retoma Aristóteles : “Como o regime do rei é o melhor, o regime do tirano é o pior”. E logo após : “Um regime torna-se injusto se, ao desprezar o bem comum da multidão, busca o bem privado do governante. Por tal motivo, quanto mais um regime se afasta do bem comum, mais ele é injusto (…) Na tirania, se afasta mais do bem comum, pois nela se procura o bem de um só, logo o regime do tirano é o mais injusto”. (Capítulo 3). Com base em Aristóteles, mas também por recolher alguma lembrança do injusto platônico, Aquino diz que o tirano é como o lobo que não garante a segurança dos governados e persegue os bons cidadãos, favorece as quadrilhas reunidas para delinqüir, impede a amizade, propicia a discórdia. Ele em nada difere de uma fera.
Se possível, no entanto, é melhor tolerar o tirano. Caso os revoltados fracassem, ele pode se tornar ainda mais feroz. Mesmo se a tirania é insuportável não vale a pena o tiranicídio. O remédio aceito pelo doutor da Igreja é a revolta regulada por representantes legítimos do povo. “Parece que se deva proceder contra a selvageria dos tiranos, não pela presunção privada de alguns, mas por autoridade pública” como uma assembléia do povo ou como o Senado romano, que destituirá o tirano. Segundo a Suma Teológica é preciso obedecer as autoridades, quando ocorrem abusos que trazem rebeliões. Ao retomar Aristóteles e dizer que a “tirania é ordenada para o bem próprio do governante, com prejuízo da multidão” (IIa II ae, q. 42) ele condena a sedição como oposta à justiça e ao bem comum. Ora, o regime tirânico não é justo, pois não se ordena ao bem comum, mas ao proveito do dirigente. Logo, “a derrubada desse regime não tem o caráter de sedição”. (14) A sedição pode não ser pecado. E matar o tirano? Na questão 64, artigo 2 da Suma ao discutir se é lícito matar bandidos, ele afirma com apoio em Êxodo, 22 que “não suportarás que os bandidos vivam”. Assim, “se algum homem é perigoso para a comunidade e seu corruptor por causa de algum pecado, que seja morto elogiadamente e com vantagem, para que o bem comum seja conservado. Com efeito, pequena porção de fermento corrompe toda a massa”.
Uma pessoa privada pode matar o bandido? Responde o santo: “é licito matar um malfeitor, na medida em que o ato é ordenado para a salvação da comunidade; como pertence ao médico arrancar o membro apodrecido, quando foi-lhe confiada a saúde do corpo inteiro. O cuidado do bem comum e confiado aos notáveis com autoridade pública. E apenas a eles é confiado matar os malfeitores, não às pessoas privadas”. No final, chega-se à sugestão, não dita explicitamente pelo autor, de que as pessoas privadas podem matar o malfeitor e o tirano, desde que receba uma ordem divina, a missão, tal como ela se apresenta à sua consciência.
Bartolo da Sassoferrato (1314-1357?) professor de direito em Pisa (entre 1339-1350) se ocupa dos tiranos que assolam as cidades italianas, cujos regimes republicanos deslizam para o despotismo oligarquico ou individual. Hodie Italia est tota plena tyrannis, diz ele no De regiminis civitatis. Bartolo foi dos primeiros a sistematizar o campo do direito público nas cidades, o que lhe permitiu uma vista sinoptica da ordem jurídica e política. Ao mesmo tempo, teve conhecimento direto dos problemas mais amplos da Europa, por ter sido embaixador de Perugia junto a Carlos 4º.
Bartolo, como Aquino, distingue duas formas de tirania. A primeira, por defectu tituli, por problemas de origem na legitimidade. A segunda, tem a indicação de Ex parte exercitii, o desempenho no cargo. O pensador usa os sinais fornecidos por Plutarco para o reconhecimento do tirano. Este último assassina os melhores homens da cidade e chega a matar seus parentes mais próximos, impede os estudos e os sábios, proíbe reuniões particulares, semeia espiões entre a cidadania, empobrece os contribuintes para que eles fiquem ocupados com dívidas, guerreia o países estrangeiros, é mantido por um grupo de mercenários, adere a um partido político e inviabiliza os demais. (De Tyrannia, capitulo 8º). Segundo Bartolo, o tirano pode ser responsabilizado pelos ordenamentos legais do Império, passível de ser punido com penas previstas no direito romano. Quem divide a cidade, por exemplo, pode ser castigado com a lex julia majestatis e assim por diante. Se o imperador não pune o tirano, os magistrados da cidade podem processá-lo e chegar à sua condenação por exílio ou morte. Mas o escritor não autoriza as pessoas privadas a cometer o tiranicídio. (15)
No século 14 o Concílio de Constança foi encarregado de várias tarefas espinhosas, entre elas, a de resolver o cisma papal e o problema da sede pontifícia em Avinhão, analisar as doutrinas de João Wyclif, Jan Hus e sectários. O Concilio condenou o assassinato do tirano devido ao caso do Duque de Orleans (23/11/1407). O confesso mandante do crime, João Sem Medo, queria se desembaraçar do concorrente no Conselho de Estado. Defendido pelo causídico João Pequeno em 08/03/1408, seu pleito se baseia nos seguintes pontos : é lícito matar o tirano, e louvável. O Duque de Orleans era um tirano, amigo do diabo e de feiticeiros, a diaba Venus o presenteou com um talismã para se fazer amar por ele, etc. (16) Além de tudo o defunto era desleal, traidor, inimigo do povo. Assim, foi lícito matar o tirano. O assassino foi absolvido, os honorários de João Pequeno dobrados.
Quando o novo duque de Orleans entra em Paris e João Sem Medo precisa fugir, o chanceler Gerson de Notre Dame denuncia as teses de João Pequeno. Em 30/11/ 1413 uma espécie de concilio jurídico e teológico extraiu da defesa feita por João Pequeno nove proposições erradas. Finalmente, o tribunal condenou a sua apologia do tiranicídio, em nome do arcebispo de Paris e do Inquisidor da Fé. João Pequeno apela ao papa João 23º. Este submeteu o apelo ao Concilio de Constança. Assim, o processo sobre o tiranicídio adquire estatuto próximo ao da heresia de Hus. O Concilio condena as primeiras teses de Pequeno, selecionadas por Gerson, em especial a que enunciava ser lícito matar o tirano sem esperar sentença ou mandato judicial.
Roland Mousnier resume do seguinte modo as teses jurídicas e religiosas sobre o tiranicídio : (17) “Nenhum particular pode, por seu movimento próprio e sem juízo prévio por magistrado competente matar o tirano de exercício ou o de usurpação. Mas Deus sempre pode, ao seu arbítrio, confiar a um homem privado a missão de executar o tirano e por tal mandato o escolhido por Deus tem o dever de cumprir sem que exista julgamento e sem por isso se transformar em assassino. Contra os tiranos de usurpação a revolta é permitida sem que se possa qualificar os atos como sedição. Mas quanto ao tirano de exercício apenas os magistrados ou depositários legítimos da autoridade pública, príncipes, senhores, governos, representantes dos povos consultados, podem se rebelar, recusar obediência, pegar em armas, deter o governante, o julgar e depor, exilar, condenar à morte quando necessário. Contra o usurpador, que gera a guerra civil, todo cidadão pode se levantar numa guerra justa”. (18)
Na Renascença os tiranicidas têm melhor imprensa. (19) Maquiavel (20), Erasmo, com seu lamento : O Brutorum genus jam olim extinctum.(21) As advertências contra a tirania encontram-se espalhadas pelos textos erasmianos. Por exemplo, no tratado sobre a Educação do Príncipe Cristão. Após descrever a pintura do bom governante o autor se refere à “terrível fera, repulsiva besta, formada por um dragão, lobo, leão, serpente, urso, e monstros semelhantes; com seiscentos olhos espalhados sobre seu corpo, dentes por toda parte, temível em todos os seus ângulos, com anzóis em todas as suas unhas; nunca satisfeita a sua fome, nutrido por entranhas de seres humanos e pelo sangue dos homens; nunca adormecida, sempre ameaçadora para a vida e os bens dos cidadãos; perigosa para todos, especialmente para os bons; um tipo de maldição fatal para o mundo inteiro, sobre ela, todos os interessados pelo bem estar político tem sentimentos de execração e de ódio. Tal fera não pode ser limitada devido à sua monstruosidade e não pode ser derrubada devido ao desastre que tal ato traria para a cidade, porque sua malícia se fortalece com armas e riqueza. Esta é a pintura do tirano, nada pior pode ser descrito. Monstros desse genero foram Cláudio e Calígula. Os mitos nos poetas também mostram Busiris, Penteu, Midas, cujos nomes hoje são objeto de ódio para toda a raça humana”. (22)
Lutero, adversário do tomismo em todos os assuntos, (23) interdita o tiranicídio, sobretudo se praticado por um particular. Calvino, na Instituição Cristã (tanto na de 1541 quanto em 1560) (24) define: como todo poder vem de Deus é preciso obedecer a autoridade civil, mesmo tirânica. O pensador não distingue entre tirania por usurpação e por exercício. “Conhecemos por suas palavras a grande obediência exigida por Nosso Senhor para que este tirano perverso e cruel (Nabucodonosor) fosse honrado, não por outra razão, mas porque ele possuía o reino. Aquela posse apenas mostrava que ele tinha sido posto no trono por ordem de Deus e por tal ordem, elevado à majestade real, que não é lícito violar”. Calvino cita o livro de Jó (28) e relembra Davi que recusa atentar contra Saul, tirano mas ungido pelo Senhor. O cristão, diante de um tirano, deve examinar sua própria consciência, para ver os pecados pelos quais Deus assim o castiga. Se o principe deseja impor algo contrário à lei divina, no entanto, é preciso resistir até o martírio. “São Pedro nos ensina que é ´preciso mais obedecer a Deus do que aos homens´, mesmo com o risco de morte”. As pessoas privadas não podem se levantar, salvo se recebem missão especial de Deus, contra o tirano. “Algumas vezes Ele suscita manifestamente alguns de seus servidores e os arma com o seu mandamento, para punir uma dominação injusta e livrar da calamidade o povo iniquamente afligido.” O assassino, mesmo que não tenha consciência de alguma tarefa religiosa e possua outros alvos pessoais, pode servir de instrumento divino.
Chegamos ao calvinismo político que afasta todas as dúvidas quando se trata do reino francês, dividido entre papistas e huguenotes, nomes insultuosos que sempre aparecem nas guerras civis ou religiosas. Em 1573 na luta religiosa que estraçalhou a França surge o libelo O direito dos magistrados sobre seus súditos. (25) Pouco antes, em 1572, ocorrera a noite de São Bartolomeu. Em 1584 sobe ao trono um protestante, o Bourbon Henrique de Navarra, com o título de Henrique 4º. O Direito dos magistrados, apresenta a situação da desobediência quando esta passa de passiva a ativa, quando o poder contradiz os mandamentos divinos. O metron da ordem política só pode ser o divino, jamais humano, porque “nenhuma vontade a não ser a divina é perpétua e imutável, regra de toda justiça”. O tom platônico desse enunciado mostra que ele pode ser incluído na linha de Agostinho e não na vertente tomista.
Mas o escrito dá um passo a mais e sanciona as doutrinas sobre o tiranicídio. Ele autoriza o particular à execução do governante tirânico e inimigo das ordens divinas, caso os magistrados deixem de cumprir seu dever. Há um contrato entre povo e soberano. Como o Estado está acima do soberano a soberania não lhe cabe totalmente. Ele depende dos magistrados comuns que não “dependem propriamente do soberano, mas da soberania” a quem o rei presta um juramento de fidelidade. “É evidente que existe uma obrigação mútua entre o rei e os funcionários (officiers) de um reino, segundo a qual o seu governo não é posto nas mãos reais, mas apenas o soberano grau deste governo, como também os funcionários (officiers) tem, cada um, parte segundo o seu grau”.(26) O rei é um magistrado, como os demais, apenas o seu posto está acima dos outros. Os magistrados inferiores, quando o superior tomba em tirania, têm o dever de salvaguardar as leis. “Eles são obrigados (mesmo com uso de armas, se possível) de se levantar contra uma tirania manifesta, para a salvação dos que são postos sob sua guarda, até uma comum deliberação dos Estados”. Como afirma Roland Mousnier, isto vai muito além de Calvino. Se há contrato, este se baseia no direito natural e divino, e não pode ser quebrado pelas partes. O tirano rompe o contrato, o que lhe retira a garantia no governo. O povo, portador da soberania, merece sempre a resposta certa ao quesito da responsabilidade do governante face ao contrato fundamental. Se rompe o contrato, o príncipe torna-se tirano e pode ser destituído ou morto.
Outro documento relevante dos monarcômacos franceses é o livro Vindiciae contra tyrannos, surgido em 1581 de maneira anônima. Ele foi atribuído a Teodoro de Beza, François Hotman, Buchanan, Hubert Languet. Sua importância foi enorme, tanto na França quanto na Europa. Mas não vai muito além do que aparece no Direito dos Magistrados. Ele avança, no entanto, no campo do contrato. Da Biblia é extraída a noção de um duplo contrato. Em primeiro, o contrato entre povo e rei, Deus garante este acordo, pois o povo é o propriedade divina. Depois, um segundo contrato entre rei e povo, para que o último obedeça bem se for bem dirigido. Daí nascem os direitos populares para exigir prestação de contas do rei, lhe resistir, depor. Depois, o livro inova no que se relaciona ao direito de resistência. Se o povo aprova o tirano que ignora a lei e a desrespeita, uma cidade apenas, um só magistrado, um só par do reino tem o direito de se levantar contra a tirania. A verdade não é quantitativa, um só pode ter razão contra muitos, estar no legítimo direito contra muitos, estar com a verdade contra muitos, e ser o único a defender a liberdade e a fé, contra muitos. Em plano ordinário, no entanto, não cabe ao particular exercer a vingança, a menos que Deus ordene sua missão.
João Althusius, em 1603, na Politica methodice digesta segue o plano geral da Vindiciae contra tyrannos. Temos nesse ponto um elemento estratégico de ordem jurídica, a suposta ou efetiva personalidade soberana do povo, com a idéia do contrato pelo qual o mesmo povo entrega o seu poder originário ao governante. Para a famosa transferência de poder, no entanto, o povo deveria possuir uma “subjetividade” comum. Se tal asserção for verdadeira, o povo jamais transfere totalmente seu direito ao dirigente, ele guarda para si a maiestas. Mesmo os defensores do absolutismo guardam a noção de que existe um contrato a ser cumprido pelo povo. Se o povo é cobrado pelo contrato, é porque ele teria alguma personalidade original. A personalidade do povo só poderia ser coletiva, o que traz problemas para a própria noção de persona capaz de decisões e de responsabilidade. O costume, trazido do direito romano, de chamar o povo de universitas, communitas, corpus, para explicar a personalidade popular como uma unidade incorporada, foi assumida pelos monarcômacos, como na Vindiciae contra tyrannos e nos textos de Althusius.
Althusius não pode aceitar as teses dos escritores católicos, como aliás nenhum de seus pares protestantes, de uma personalidade coletiva superior e anterior, ontológica e lógicamente, aos indivíduos. Tal é o ponto grave dos monarcômacos. Como vimos, embora neguem às pessoas privadas o direito de executar o tirano, quase sempre chegam ao indivíduo ou grupo que, por ordem expressa de Deus, podem justiçar o péssimo governante. Além disso, como também vimos, o indivíduo, em casos excepcionais, tem maior acesso ao verdadeiro do que a massa. Se a lógica aqui presente for levada ao máximo (e nas guerras ou revoluções do tempo ocorreu tal fato) os direitos coletivos são os direitos dos indivíduos somados. Althusius pensa numa conexão social, numa “parceria” dos indivíduos, que gera o Estado. Temos a noção de uma consociatio, corpus symbioticum. De modo artificioso retorna o peso do coletivo sobre os átomos sociais, a autoridade da comunhão política sobre os seus integrantes.
Importa insistir sobre a visão da soberania popular em autores protestantes como Althusius, que no mesmo ato se liga ao campo do federalismo. Dos indivíduos aos Estado e deste às federações, existem graus de autonomia e dignidade, sempre com o instrumento da consociatio. A sua política pode ser dita uma teoria rigorosa de muitas associações. Todas as instâncias sociais, no entender do escritor, surgem de associações. Dentre elas, são indicadas cinco species consociationis : a família, a de camaradagem (Genossenschaft), a comunidade local (Gemeinde), a província e o Estado. Cada uma das superiores resulta das inferiores e são elas, não os indivíduos diretamente, que entram no contrato que gera as mais elevadas. Elas possuem um direito que vai além dos indivíduos, direitos que não podem ser violados tanto pelas associações superiores, quanto pelos próprios grupos inferiores ou individualidades. Se tal é o ponto, é possível aceitar que um grupo ou indivíduo, sem licença das respectivas associações (inferiores ou superiores) decrete que tal instância é tirânica e mate os seus titulares? (27 ) Se uma instância associada, ou grupo ou indivíduo no seu interior, abusa de suas prerrogativas, nota-se que a qualificação de “tirania” lhe cabe. Mas o indivíduo privado ou grupo que se arroga a executar uma justiça não escrita, e matar quem imagina (ou de fato é) tirânico, não é também algo contra o direito e tirânico?
No capítulo 38 da Politica Althusius analisa os abusos do poder estatal, a tirania e os meios para afastar semelhantes males. Como defensor das associações, ele sublinha a soberania popular como algo inalienável e reforça o veto contra toda e qualquer tentativa de subtraí-la aos seus legítimo proprietários. Tirano, para ele, em sentido rigoroso, o governante legítimo que viola o direito e trai seu dever. Assim, retoma a distinção já mencionada entre tyrannus absque titulo e tyrannus quoad exercitium. Só que para ele o pretenso tyrannus quoad exercitium é apenas e simplesmente o inimigo público. E aí temos a concessão de Althusius às doutrinas anteriores, protestantes e católicas, sobre o tiranicídio: qualquer particular tem o direito de executar a sentença contra o tirano. (Cf. Politica, § 27).
Quem é o verdadeiro tirano? O que “violando tanto a palavra quanto o juramento, começa a abalar as bases e afrouxar os laços do corpo associado da comunidade. O tirano pode ser um monarca ou poliarca que, em decorrência da avareza, soberba ou perfídia, extingue ou destrói os bens máximos da comunidade, quais sejam, sua paz, virtude, ordem, lei e nobreza”. (28) Com tais critério, Althusius fixa o jus resistentiae et exauctorationis, contra o tirano. Tal direito resulta de doze princípios, extraídos da essência do contrato, do ofício e do mandato, do conceito de soberania popular, do direito natural e da palavra divina (§§ 28-43), da história civil e religiosa (§§44-45). O referido direito é atribuído ao povo apenas, coletivamente, e em seu nome, aos Eforos. Os privados cidadãos têm direito apenas à resistência passiva e, caso exista ameaça direta contra suas vidas, bens, liberdades, o direito de legítima defesa concedido pelo direito natural (§§ 65.68). (29) Os Eforos, coletivamente, têm a prerrogativa (caso verifiquem um comportamento tirânico) de advertir o governante pacificamente. Caso ele não se emende, eles podem cassar o seu mandato com violência ou mesmo condenar a morte. (§§ 53-64). Em caso de evidente tirania, as associações podem romper o contrato e se retirar das entidades federadas (§§ 42-52). (30)
O ponto crucial do problema inteiro gira ao redor do estatuto da indivíduo no campo coletivo. Quais os limites do primeiro e do segundo? Quem é fonte dos direitos e da ação política? Quando a tirania do Todo suscita a resistência legítima ? Todas essas questões, suscitadas pelos monarcômacos protestantes, são refletidas de maneira inversa nos monarcômacos do catolicismo. O ponto mais grave, no meu entender, reside na tese de que não raro os átomos sociais e políticos, os indivíduos, podem estar na posse do direito efetivo, quando a maioria se deixa controlar por tiranias mentirosas e anti- jurídicas. Basta recordar os totalitarismos do século 20 : quem tinha razão e estava na verdade, as massas animalizadas pela propaganda nazista, estalinista, fascista, ou os poucos cidadãos que aceitaram ir para a morte, sem disto precisar por eram “arianos” ou porque simplesmente poderiam calar e cooperar com o Estado?
Insisto na análise dos monarcômacos católicos. Para eles, tirano é todo governante que não aceita os ditames da Igreja no campo da soberania, da ética, da ordem pública. Se abrirmos os textos dos monarcômacos do catolicismo, veremos que a grande maioria fazem epikéia do 5 mandamento, “não matarás”. Se é legítimo matar o invasor de sua pátria, um bandido que penetra sua casa, é permitido matar o tirano de usurpação , pois o que ele faz contra a república é uma guerra injusta e fora da lei. Assim, todo cidadão, parte da autoridade coletiva, pode executar o governante tirânico.
Manuel de Sá, jesuíta, nos Aphorismi confessiorum (1593) aprovado pela Faculdade de Teologia de Paris em 1609, diz que o governante tirânico de “uma senhoria justamente adquirida não pode ser dela despojado, a não ser por um julgamento público, sentença pronunciada. Daí, cada um pode ser o executor. Ele também pode ser deposto pelo povo, mesmo se este último jurou obediência perpétua caso, advertido, ele não se corrija. Mas todo membro do povo pode matar quem ocupa tiranicamente o poder, se não há outro remédio, pois ele é o inimigo público (publicus hostis)”. João Mariana, no De rege et regis institutione (1598) pergunta se é lícito matar o tirano. Sua resposta é uma longa discussão escolástica pelo sim e pelo não, ressaltando o sim em caso de atentado à religião.
Outro monarcômaco relevante é Georg Buchanan (1506-1582). Em 1549 o autor foi preso pela Inquisição de Portugal, pelo seu ensino considerado herético na Universidade de Coimbra. Após abjurar sua pretensa heresia, ele é solto e retorna para a França. O De Iure Regni apud Scotos Dialogus (1579), põe os fundamento da responsabilização (accountability) dos governantes face aos governados e da lei e desenvolve a doutrina da soberania popular, o que exige a tese da resistência legal aos tirano. Ele foi peça central na queda de Maria, rainha da Escócia (1567) e se tornou tutor de Tiago 6º da Escócia, futuro Tiago 1º da Inglaterra). Buchanan, pode-se dizer, foi dos primeiros a usar a retórica na tarefa pouco nobre de aniquilar os inimigos políticos. Foi o que ele fez com Maria, a quem acusou de assassina, adúltera, tirana prostituta. no libelo intitulado Detectio Mariae Reginae Scotorum (1571) (31) e desenvolvido mais amplamente na história da Escócia por ele publicada : Rerum Scoticarum Historia (1582).
No De Jure Regni apud Scotos, aparece o elemento causador do tiranicídio : a opressão do povo e sua revolta. (32) As fontes de Buchanan encontram-se em Erasmo, Aristóteles, Cícero. O núcleo do diálogo é a diferença entre monarquia e tirania, com a tese da superioridade do povo face aos dois tipos de poder. Para tal tarefa, o autor assume a famosa narrativa das origens, encontrada em Platão, nos estoicos e usada em grande quantidade no século 18, em especial por Rousseau. Ninguém pode dizer que tal narrativa pretende ser efetivamente histórica. Ela é uma idéia diretora para explicar, com algum fundamento racional, o sentido da vida humana em coletividade.
Os homens, diz o autor, viviam de modo selvagem e bruto, isolados em cavernas. O sentimento da utilidade e o instinto social os aproximou. O instinto social, como em Cícero, é dado por Deus e com ele torna-se possível construir a civitas segundo as normas do bom e do justo. Quem mais perto chega do justo e do bom é imagem divina entre os seus iguais (Plane Deo similimum). Ele será o chefe, o guia, o médico que conserva a integridade física e a saúde da reunião humana. Justiça, portanto, é guardar a saúde do corpo social, assegurar a prosperidade das suas partes e a coesão voluntária do todo. O rei aparece com tal múnus.
Mas a simples eleição do rei nada garante em termos de justiça. Ela é um sinal de excelência, não a própria excelência : “natura, non suffragiis regem esse” . A eleição não gera um rei, nem um médico competentes. Mas como o diploma confere ao médico o seu direito, a eleição confere ao líder a licença para governar. Diploma ou eleição constituem formas de reconhecimento, não o saber ou o poder reais. Para evitar abusos, mesmo dos que são prudentes ao serem eleitos (ou diplomados), existe a lei, freio dos desejos de quem governa (Legem ei velut collegam aut potius moderatricem libidinum adjiciemus). As leis, diz o autor, “foram criadas com tal fim pelos povos e os reis são constrangidos a governar não segundo seu arbítrio mas segundo o direito que o povo tinha estabelecido para eles”. Mesmo um rei bom não pode dispensar a lei. Buchanan pensa numa colaboração dos poderes, do povo, magistrados e rei, não os procedimentos cortesãos e nem o tumulto dos comícios. No seu entender, os deputados deliberam o texto de uma lei com os conselheiros do governo, depois submetem sua decisão preliminar (προβουλευµα) à aprovação do povo. A lei é mais poderosa do que o rei, o povo é mais poderoso do que a lei (Est enim velut parens, certe auctor legis ut qui eam, ubi visum est, concedere aut abrogere potest). O contrato entre povo e governante não retira do primeiro sua majestade, pelo contrário.
Nesse ponto surge a distinção entre rei e tirano. O tirano segundo o título pode até ser suportado, se o governo segue a lei e a justiça. Mas o de exercício, que viola a lei, devem ser “declarados inimigos públicos e considerados como sátiros, macacos e ursos, fúrias ou Kakodemônios”. Quando o governante viola a legalidade, rompe o contrato que estabeleceu com o povo. Assim, “o povo, de quem nossos reis ganham os seus direitos, é superior aos reis, e o conjunto dos cidadãos tem sobre eles o mesmo poder que eles têm sobre um de seus membros”. Nada vai contra a deposição de um tirano, mesmo que ele seja disfarçado. Buchanan analisa a Carta aos Romanos de maneira inusitada : São Paula falaria de um soberano legítimo e não de um tirano a ser obedecido. A carta a Tito fala em obedecer o que é bom e à Timóteo pede que se reze pelos reis e magistrados. Mas o que impede matar os reis péssimos e ao mesmo tempo por eles orar? O apóstolo falava de reis pagãos, que não tinha conhecimento da lei divina. Os reis cristãos ficam sem desculpa quando agem como tiranos.
O retrato acima, do povo e do rei, no entanto, precisa ser melhor precisado nos textos de Buchanan. Nem sempre o rei é o tirano por ele execrado (falando-se em termos históricos, na Escócia da qual ele faz a teoria) e pouco tem de “popular” o “povo” por ele evocado. Trata-se na verdade da nobreza sediciosa e que exigia privilégios, auto-nomeada “povo”. No entanto, sob tais nomes e com tal lógica, as idéias de Buchanan se espalharam pela Europa e abriram vias para a defesa da soberania popular, contra o arbítrio dos reis. o De Iure Regni apud Scotos Dialogus (1579) (33) no qual defende a responsabilização dos governantes e a soberania popular. O texto mostra que o assassinato pode ser justificado como ato virtuoso. A radicalidade com a qual Tiago 1º defende o direito divino dos reis, com muita probabilidade é devida à virulência das teses de Buchanan. Aluno de Buchanan, Tiago apreciou as lições de grego, de latim, de humanidades adquiridas com o mestre. Mas renegou o quanto pode a tese da soberania popular e do tiranicídio, especialmente nos livrinhos The True Law of Free Monarchies (1598) e Basilikon Doron. (34) Os textos de Buchanan foram importantes para toda a história política da Inglaterra, sobretudo na revolução do século 17 e do período dominado por Cromwell.
O texto mais célebre da modernidade, ao se tratar dos monarcômacos, intitula-se Killing no Murder. (35) Ele se dirige contra Oliver Cromwell, o Lord Protector da Inglaterra ou mero ditador no entendimento de muitos. O regime do protetorado aparentemente se instalou em 1653 sem comoções graves. Mas as duas supressões do Parlamento anteriores (a de abril e dezembro de 1653) mostram grave crise política. A Constituição imposta (The Instrument of Government) mostrava tudo, menos reverência para o princípio da representação do poder. O regime instalado era mais presidencial do que parlamentar. Sob a rubrica de “uma só pessoa e um só parlamento”, o autoritarismo aparecia sem muitos cosméticos. A prática de Cromwell face ao Parlamento se reduzia a visitas esporádicas, nas quais o governante falava longamente, sempre no costume dos ditadores que adoram alugar orelhas de parlamentares imaginados impotentes. Os Levellers tinham perdido sua força e seus projetos de mando constitucional tinham se atenuado ao máximo. Como sempre ocorre em regimes autoritários de lavra cristã, Cromwell também acreditou num contrato (Covenant) entre Deus e o povo inglês, no qual ele, o governante, seria o intermediário sacrossanto. Entre as proclamações demagógicas e o próprio Cromwell, no entanto, a modéstia carateriza os seus atos e falas. Para o povo, ele seria um quase Moisés. Para si mesmo, não passaria de um guarda de propriedade (Constable), para um povo rude e indisciplinado. Ditadores costumem parecer modestos…
Modestos, mas a sua tarefa consiste “apenas” em negar ou trair os ideais da revolução que os levam ao poder. No caso de Cromwell, tratava-se de recusar as “bravatas” da luta contra a censura, do exército politizado e sem hierarquias nobres, do nivelamento político democrático, reforma agrária, respeito ao misticismo religioso (Quakers), justiça contra o rei e magistrados não responsáveis (accountability). Em suma: a ditadura foi efetuada para acabar com as exigências de mudanças na ordem pública.
Entre os antigos Levellers (os niveladores) vários se indignam com o “realismo” do ditador e de seus amigos. Um deles era o jurista Wildman, preso em 1654 e solto no ano seguinte. Seu amigo Edward Sexby, soldado revolucionário e agitador, servira como espião e organizador de rebeliões na França, a serviço da Inglaterra. Na mesma operação, ele apresenta aos rebeldes franceses um “agreement” que seria cópia do programa dos niveladores. O que suscita a cólera de Cromwell, naturalmente. A partir daí, com Wildman, passa liderar planos contra o ditador. Do estrangeiro, ele começa a campanha para abater “o usurpador”. As tratativas com o rei destronado, no exílio francês, não foram adiante, porque Sexby insiste nos preceitos democráticos. O rei, como previsível, nada aceita que possa lessening the power of the crown and devolving an absurd power to the people. Cromwell, no Parlamento em 1656 denuncia Sexby num de seus longos discursos como a wretched creature, an apostate from religion and all honesty.
Os ocupantes das cadeiras parlamentares, beneficiados materialmente pela Revolução, não aceitaram pregações como as de Sexby. Eles na verdade queriam uma legitimidade nova para Cromwell, o que garantiria suas propriedades e a situação política de “segurança”. Não apenas de satisfeitos se compunha o clima político. Muitos setores não aceitavam o controle do ditador. Assim, Sexby imagina mover os defensores da realeza contra o governante e assim captar todas as insatisfações levantadas em seu protetorado. E surge o Killing no Murder em 1657. Preso, Sexby com muita probabilidade foi torturado e confessou, mas sem deixar suas convicções.
O primeiro arrazoado do texto gira ao redor da questão clássica: Cromwell é tirano ? Como sempre, Aristóteles e Cícero são fonte analítica. Mas a fonte maior, no passo, encontra-se em Maquiavel : “Tiranos efetivam seus fins muito mais por fraude do que pela força. Nem virtude nem a força (diz Maquiavel no Príncipe, cap. 9) são necessárias para aquele alvo, tanto quanto una Astutia fortunata, uma astúcia com sorte: a qual, diz ele (Principe, 2 capitulo 13) sem a força foi sempre considerada suficiente, mas nunca a força sem ela. E num outro lugar (Capítulo 18) ele diz que o caminho é Aggirare li cervelli de gli huomini con Astutia, etc.” Daí, a indicação que Sua Alteza, o protetor, usa os artifícios maquiavélicos para conseguir seus alvos.
Além disso, é marca dos tiranos abaixar os bons. Eles, como diz Aristóteles, “purgam” as assembléias em sentido negativo (a fonte mais antiga disso é Platão, na fenomenologia do tirano feita na República, livro 8), e nelas só deixam quem não possua inteligência (Wit) interesse ou coragem para se opor aos seus desígnios (Aristóteles, Política, 5, cap. 11). Eles não suportam assembléias e colocam em toda parte espias e delatores e não saem do palácio sem guarda de corpo. Eles declaram guerras para divertir o povo e mante-lo ocupado. Eles mantêm aduladores. E coisas detestáveis, eles exigem que seus subordinados as cometam. Eles fingem cuidar do povo. Mas vendem as coisas santas, na religião e em outros domínios. Eles fingem receber inspiração divina. Eles pretendem, assim, amar a Deus e fingem que oráculos divinos conduzem sua ação. Todas essas marcas são encontráveis, diz Sexby, em Cromwell. (36)
A segunda série de razões gira ao redor de outra questão clássica: é legal matar um tirano? Os juízos variam, afirma Sexby. Alguns acham que os tiranos são abortos, para a cura dos quais apenas a nossa paciência é eficaz. Outros acham que eles devem ser questionados pela suprema lei da salvação popular. Eles são responsáveis (answerable) diante dos povos, por quebrarem a fé pública. Ninguém, no entanto, “em boas condições de pensamento”, torna a pessoa privada juízes nos casos de tirania. Mas o próprio tirano é um caso de vida particular, não pública. Se o governante não assegura a felicidade e a segurança públicas, ele não é mais diretor da ordem pública, mas age nela como privado. Para ser legítimo, o governante deve ser parte da Civitatis, porque toda parte se subordina ao todo ao mandar ou obedecer. O tirano nunca se subordina. Só existe civitas quando o coletivo é como se fosse só homem. Sexby cita Sófocles em latim : Non est civitas quae unius est viri. Como o tirano não é parte da Comonwealth “mas se coloca acima da lei, não existe razão para que ele seja protegido pelas leis, pois não as reconhece. Deve ser considerado uma fera, nada mais. E seguem-se exegeses bíblicas e fontes antigas para validar a tese da tirania de Cromwell.
Terceira série de arrazoados: após mostrar o que é um tirano e indicar suas marcas, vem a questão de saber se é vantajoso para o coletivo a sua destituição. E Buchanan cita muitas autoridades sobre o assunto. Dos trechos recolhidos, o mais cortante é o de Maquiavel : quem apoia a tirania, deve matar Brutus. Um tirano, diz Platão, deve afastar toda pessoa virtuosa. E se com o tirano não é possível viver em paz, felicidade, segurança, etc., é saudável e vantajoso acabar com ele.
Para encerrar provisoriamente o nosso ponto, podemos dizer que os monarcômacos, dos quais dei apenas alguns exemplos, colocam o direito de resistência no centro de todo o seu sistema político. (37) Mas devido à substituição da soberania principesca ao povo, o seu problema passou para o campo mais amplo, da transgressão dos limites do Estado. Todos os direitos que eles atribuem ao povo contra e acima do tirano seriam consequências, não limites da soberania. O que se deve pensar de um poder sem limites, inclusive e sobretudo se tratamos de um soberano coletivo? Não irei analisar aqui as teses de Hobbes e da modernidade. Importa dizer que o impulso para definir limites aos soberanos principescos ajudou e muito na edificação das democracias ocidentais, como a inglêsa, a norte-americana e a francesa. Com a Revolução de 1917 na Rússia, encerra-se a eficácia da doutrina com o Estado totalitário. Doravante, no mundo, os satélites da URSS agiram como se assumissem o principio da resistência à tirania, mas logo que atingiram o poder, impuseram tiranias ainda piores do que as derrubadas por eles. O nazi-fascismo levantou contra seu programa de horrores a resistência de alemães, franceses, italianos, gregos. Mas logo que a Segunda Guerra foi vencida, o único foco de resistência encontrou-se na luta contra os países colonialistas. E logo após muitos movimentos de libertação, no poder, instauraram tiranias sangrentas que até hoje matam milhares e milhares de pessoas humanas. Nas consciências terroristas de hoje, há uma tintura das doutrinas sobre a resistência à tirania. Mas na verdade trata-se de tiranos que usurpam o título de resistentes, e também exercem a tirania de modo exacerbado.
Vale a pena, no entanto, meditar sobre a idéia do povo soberano e sobre as implicações da tese. Em país como o Brasil, no qual o século 19 foi o palco de várias revoltas contra os poderes tirânicos (todas afastadas com a ponta dos canhões, as torturas e as baionetas, além da censura) o século 20 foi palco de duas tiranias sangrentas que conseguiram moldar de modo lamentável o caráter do “povo soberano”. Os defensores da liberdade e da democracia não adormecem tranqüilos porque em nossa terra “O dom de avivar no passado a chama da esperança só cabe ao historiador convencido com perfeição sobre o seguinte fato : se o inimigo vence, até mortos perderão a segurança. E aquele inimigo sempre tem vencido” (Walter Benjamin).
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1 Em toda a sequência, até aviso em contrário, as considerações redigidas aqui vêm do clássico livro de Roland Mousnier: L´ assassinat d´ Henry IV. Le problème du tyrannicide et l ´affermissement de la monarchie absolue (Paris, Gallimard, 1964). As fontes históricas são tratadas naquele escrito com mão de mestre, bem como a sua leitura no mundo europeu, em especial no século 17 francês. Ampliei a citação de fontes, não incluídas por Mousnier, para deixar mais evidente o problema do tiranicídio nos exercícios filosóficos.
2 “Não tem o povo o hábito invariável de pôr à sua testa um homem cujo poder ele nutre e torna maior? É de seu hábito, concordou. É portanto evidente que, onde quer que o tirano medre, é na raiz deste protetor e não alhures que ele se entronca. É absolutamente evidente. Mas onde começa a transformação do protetor em tirano ? Não é, evidentemente, quando se põe a fazer o que é relatado na fábula do templo de Zeus Liceu, na Arcádia? O que diz a fábula? indagou. Que aquele que provou entranhas humanas, cortadas em postas junto com as de outra vitimas, é inevitavelmente transmudado em lobo. Não ouviste contá-la ? Sim. Do mesmo modo, quando o chefe do povo, seguro da obediência absoluta da multidão, não sabe abster-se do sangue dos homens de sua própria tribo, mas, acusando-os injustamente, conforme o processo favorito dos de sua igualha, e arrastando-os perante os tribunais, se mancha de crimes mandando tirar-lhes a vida, quando, com lingua e boca ímpias, prova o sangue de sua raça, exila e mata acenando com a supressão das dívidas e uma nova partilha das terras, então, não deverá um tal homem necessariamente, e como que por uma lei do destino, perecer pela mão de seus inimigos, ou tornar-se tirano, e de homem transformar-se em lobo?” (A República, 8, 565 c – 566 a). Cito na tradução de J. Guinsburg (São Paulo, Perspectiva, 2006), pp. 332-333.
3 “A corrupção da realeza é a tirania. Ambas são governos monárquicos, mas diferem profundamente. O tirano visa apenas seu interesse pessoal e o rei se preocupa com o de seus dirigidos …o tirano só busca o seu próprio bem. Sem dúvida, a tirania é o pior dentre os governos. Da monarquia se desliza para tirania, corrupção da monarquia, e um rei péssimo se transforma em tirano” (Etica a Nicômaco, 8, 10). A realeza se fundamenta no consentimento dos governados e na lei. A tirania é um desvio dessa prática. “A tirania é monarquia absoluta que, sem responsabilidade e só no interesse do tirano, governa homens que valem tanto ou mais do que ele, esta monarquia nunca se ocupa com os interesses particulares dos governados. Assim, ela existe apesar deles, pois não existe um só homem livre que suporte voluntariamente tal poder”. (Política, 6, 3 e 6, 2). Cf. Aristotle Politics Loeb Classical Library, Volume XXI, trad- Rackham, H. (Cambridge, Harvard University Press, 1990) pp. 324 e ss.
4 “Omnium autem rerum nec aptius est quicquam ad opes tuendas ac tenendas quam diligi nec alienius quam timeri. Praeclare enim Ennius ‘Quem metuunt oderunt; quem quisque odit, perisse expetit’. Multorum autem odiis nullas opes posse obsistere, si antea fuit ignotum, nuper est cognitum. Nec vero huius tyranni solum, quem armis oppressa pertulit civitas ac paret cum maxime mortuo interitus declarat, quantum odium hominum valeat ad pestem, sed reliquorum similes exitus tyrannorum, quorum haud fere quisquam talem interitum effugit. Malus enim est custos diuturnitatis metus contraque benivolentia fidelis vel ad perpetuitatem. Sed iis, qui vi oppressos imperio coercent, sit sane adhibenda saevitia, ut eris in famulos, si aliter teneri non possunt; qui vero in libera civitate ita se instruunt, ut metuantur, iis nihil potest esse dementius. .” De officiis, II, 7, 23-26. Segue a tradução mais ampla do trecho, feita por Walter Miller : “Whom they fear they hate. And whom one hates, one hopes to see him dead.” And we recently discovered, if it was not known before, that no amount of power can withstand the hatred of the many. The death of this tyrant whose yoke the state endured under the constraint of armed force and whom it still obeys more humbly than ever, though he is dead, illustrates the deadly effects of popular hatred; and the same lesson is taught by the similar fate of all other despots, of whom practically no one has ever escaped such a death. For fear is but a poor safeguard of lasting power; while affection, on the other hand, may be trusted to keep it safe for ever. But those who keep subjects in cheek by force would of course have to employ severity — masters, for example, toward their servants, when these cannot be held in control in any other way. But those who in a free state deliberately put themselves in a position to be feared are the maddest of the mad. For let the laws be never so much overborne by some one individual’s power, let the spirit of freedom be never so intimidated, still sooner or later they assert themselves either through unvoiced public sentiment, or through secret ballots disposing of some high office of state. Freedom suppressed and again regained bites with keener fangs than freedom never endangered. Let us, then, embrace this policy, which appeals to every heart and is the strongest support not only of security but also of influence and power — namely, to banish fear and cleave to love. And thus we shall most easily secure success both in private and in public life. Furthermore, those who wish to be feared must inevitably be afraid of those whom they intimidate. What, for instance, shall we think of the elder Dionysius? With what tormenting fears he used to be racked! For through fear of the barber’s razor he used to have his hair singed off with a glowing coal. In what state of mind do we fancy Alexander of Pherae lived? We read in history that he dearly loved his wife Thebe; and yet, whenever he went from the banquet hall to her in her chamber, he used to order a barbarian — one, too, tattooed like a Thracian, as the records state — to go before him with a drawn sword; and he used to send ahead some of his bodyguard to pry into the lady’s caskets and to search and see whether some weapon were not concealed in her wardrobe. Unhappy man! To think a barbarian, a branded slave, more faithful than his own wife! Nor was he mistaken. For he was murdered by her own hand, because she suspected him of infidelity. And indeed no power is strong enough to be last ing, if it labours under the weight of fear. Witness Phalaris, whose cruelty is notorious beyond that of all others. He was slain, not treacherously (like that Alexander whom I named but now), not by a few conspirators (like that tyrant of ours), but the whole population of Agrigentum rose against him with one accord. Again, did not the Macedonians abandon Demetrius and march over as one man to Pyrrhus? And again, when the Spartans exercised their supremacy tyrannically, did not practically all the allies desert them and view their disaster at Leuctra, as idle spectators? I prefer in this connection to draw my illustrations from foreign history rather than from our own. Let me add, however, that as long as the empire of the Roman People maintained itself by acts of service, not of oppression, wars were waged in the interest of our allies or to safeguard our supremacy; the end of our wars was marked by acts of clemency or by only a necessary degree of severity; the senate was a haven of refuge for kings, tribes, 27 and nations; and the highest ambition of our magistrates and generals was to defend our provinces and (27) allies with justice and honour. And so our government could be called more accurately a protectorate of the world than a dominion” Cicero De officiis, trad, Walter Miller (New York, The Macmillan Co. 1948), pp. 168 e ss.
5 “Saepe enim tempore fit, ut quod turpe plerumque haberi soleat, inveniatur non esse turpe. Exempli causa ponatur aliquid, quod pateat latius. Quod potest maius scelus quam non modo hominem, sed etiam familiarem hominem occidere? Num igitur se adstrinxit scelere, si qui tyrannum occidit quamvis familiarem? Populo quidem Romano non videtur, qui ex omnibus praeclaris factis illud pulcherrimum existimat.” De officiis, III, 4, 19.
6 De beneficiis, 7, 19. Cautela, no entanto, com tais linhas. Elas não correspondem ao pensamento do estoico Seneca. Leia-se a meditação seguinte: “Esta é uma questão usual levantada sobre Marcos Brutus : deveria ele aceitar ter sua vida poupada pelo divino Júlio quando Brutus desejou matar César ? (…) Considero que se em outras ocasiões Brutus agiu como grande homem, errou neste caso particular e não agiu segundo os princípios estoicos”. De beneficiis, ed. C. Hosius (Lipsiae: Ed. Teubner, 1900). Para uma análise do trecho, cf. M. Piccolomini (South Illinois University Press, 1991), pp. 27 e ss. Para outro comentário do problema, cf. M. T. Griffin : Seneca, a philosopher in Politics (Oxford, Clarendon Press, 1992), pp. 189 e ss.
7 A apresentação de Jó, no livro, já traz a sua marca de temente a Deus. Ele é dito θεοσεβής, reverente e temente a Deus (a versão do rei Tiago traz o termo Fear, para medo), alguém que foge do mal. A encruzilhada diante do divino e do mal é a mesma apresentada por Paulo em Romanos.
8 “O diabo na Figura do Leviatã” capítulo do livro de Tomás de Aquino sobre o livro de Jó. Cf. Job, um homme pour notre temps. De Saint Thomas d´ Aquin, exposition littérale sur le livre de Job (Paris, Tequi, 1980).
9 Apologeticum, 31, 1. Acessado em Ad Fontes Academy [http://www.thelatinlibrary.com] no dia 30/03/2008, as 11h05 AM.
10 De mulceo, verbo transitivo que significa apalpar, afagar com as mãos, acariciar, ameigar.
11 Uso a excelente tradução de M. A. Ladero, M. Garcia, T. Zamarriego : Policraticus (Madrid, Editora Nacional, 1984). Para o pensamento de Salisbury, cf. Roberto Romano:“´Lembra-te de que és homem´. Governantes e Juízes no Policraticus de Jean Salisbury”. Revista Justiça e Democracia. Número 1, Primeiro Semestre de 1996. Páginas 153-161.
12 Não há espaço, aqui, para analisar os nexos entre a idéia de comissão, ou poder comissário, nas doutrinas jurídicas medievais, tanto laicas quanto religiosas. Mas é correto pensar que a idéia de Tomás de Aquino, neste passo, está inserida no plano mais amplo do direito ligado aos poderes. Uma tarefa fascinante e arriscada, dados os problemas óbvios trazidos pelo autor, é comparar a noção de autoridade delegada, comissária, em Tomás de Aquino da exposta por Carl Schmitt no cinzento livro A ditadura. Se possível, voltarei ao ponto.
13 “Pour entrer dans la véritable connaissance de votre condition, considérez- la dans cette image. Un homme est jeté par la tempête dans une île inconnue, dont les habitants étaient en peine de trouver leur roi, qui s’était perdu; et, ayant beaucoup de ressemblance de corps et de visage avec ce roi, il est pris pour lui, et reconnu en cette qualité par tout ce peuple. D’abord il ne savait quel parti prendre; mais il se résolut enfin de se prêter à sa bonne fortune. Il reçut tous les respects qu’on lui voulut rendre, et il se laissa traiter de roi. Mais comme il ne pouvait oublier sa condition naturelle, il songeait, en même temps qu’il recevait ces respects, qu’il n’était pas ce roi que ce peuple cherchait, et que ce royaume ne lui appartenait pas. Ainsi il avait une double pensée: l¹une par laquelle il agissait en roi, l’autre par laquelle il reconnaissait son état véritable, et que ce n’était que le hasard qui l’avait mis en place où il était. Il cachait cette dernière pensée et il découvrait l’autre. C’était par la première qu’il traitait avec le peuple, et par la dernière qu’il traitait avec soi-même. Trois Discours sur la condition des grands, Premier Discours.
14 …regimen tyrannicum non est justum: quia non ordinatur ad bonum commune, sed ad bonum privatum regentis, ut patet per Philosophum, in tertia Polit. et in VIII Ethic. et ideo perturbatio hujus regiminis non habet rationem seditionis.
15 Uma correta tradução de texto essencial de Bartolo encontra-se na página da internet dedicada aos escritos medievais cujo título é Medieval Sourcebook. Alí, pode-se ler o livro de Bartolo designado, em inglês, Treatise on City Government, c. 1330. Com esta fonte é possível deduzir o que pensa Bartolo da tirania e da maneira mais eficaz de eliminá-la. Endereço da página : http://www.fordham.edu/halsall/sbook.html
16 As acusações de feitiçaria dirigidas aos adversários políticos são comuns na época. Ainda no Ricardo 3º de Shakespeare, o tirano acusa seus oponentes reais ou imaginários de feitiçaria contra ele. Em Macbeth o jogo cênico e do destino é regido por bruxas. A bibliografia sobre bruxas é imensa. Basta citar alguns textos e nomes significativos da pesquisa acadêmica, independentemente de suas posições teóricas ou ideológicas: MARWICK, M. (org.). Witchcraft and sorcery (Middlesex, Penguin Books, 1982) e também TREVOR-ROPER, H.R. : The
european witch – craze of the sixteenth and seventeenth centuries (Hamondsworth, Penguin, 1990).
17 Reitero que as enunciações até este passo são extraídas de Mousnier. Apenas ampliei o tema com alguns comentários ou indicação de fontes.
18 Mousnier, op. cit. pp. 70-71.
19 A. Douarche : De tyrannicidio apud scriptores XVI saeculi (Tese de Letras, Paris, 1888); Lossen, Die Lehre vom Tyrannenmord.
20 Discorsi, 3, 6. “Delle congiure”. Texto ambiguo no qual ao mesmo tempo o autor descreve os motivos e as formas, nas tentativas de tiranicídio, mas alerta contra o seu perigoso para os sediciosos. “ Un’altra cagione ci è, e grandissima, che fa gli uomini congiurare contro al principe; la quale è il desiderio di liberare la patria, stata da quello occupata. Questa cagione mosse Bruto e Cassio contro a Cesare; questa ha mosso molti altri contro a’ Falari, Dionisii, ed altri occupatori della patria loro. Né può, da questo omore, alcuno tiranno guardarsi, se non con diporre la tirannide. E perché non si truova alcuno che faccia questo, si truova pochi che non capitino male; donde nacque quel verso di Iuvenale :Ad generum cereris sine caede et vulnere pauci descendunt reges, et sicca morte tiranni (Satirae, 10, 112-113: ”A morada de Ceres (Plutão) são poucos os reis que descem sem feridas mortais, ou os tiranos por morte incruenta”. Cf. Niccolò Machiavelli Discorsi sopra la prima decada di Tito Livio, in Il Principe e Discorsi (Milano, Feltrinelli, 1973), pp. 390 ss.
21 Adagia, chiliadis primae, centuria secunda.
22 Uso a tradução de Lester K. Born : The Education of a Christian Prince (New York, Columbia University Press, 1936), pp. 162 ss. Erasmo encontra boa parte de sua inspiração no pequeno escrito de Plutarco, Ad principem ineruditum (Para um principe sem erudição).in Loeb Classical Library, Plutarch´ s Moralia, X, trad. H.N. Fowler, pp. 52 ss.
23 Ver Contra Henricum regem Angliae. trad. E. S. Buchanan (New York, Charles A. Swift, 1928).
24 Institution de la religion chrétienne, livro IV, cap. 20, “Du gouvernement civil”. Jean Daniel Benoît ed., (Paris, Vrin, 1957).
25 Du droit des magistrats sur leurs subiets. Traité tres necessaire en ce temps pour aduertir de leur deuoir, tant les Magistrats que les Subiets : publié par ceux de Magdebourg l ´an M.D.L & maintenant reueu & augmenté de plusieurs raisons & exemples. 1575. (Paris, Editions D´ Histoire Sociale, 1977). Fac similar.
26 O termo é dos mais difíceis de serem traduzidos para a nossa lingua. É possível encontrar em traduções de filmes, reportagens e mesmo em livros acadêmicos a palavra “oficial” para explicar a palavra inglêsa e francesa. A palavra “funcionário” seria a mais adequada, mas ela obnubila os matizes hierárquicos do termo, no Estado e na Igreja. No caso, o texto fala com clareza de funcionários de alta situação, não de subordinados. A magistratura maior é a do rei, mas ele pode ser pensado como “primeiro entre os iguais”. Max Weber é uma rica fonte teórica e histórica para o exame desse passo.
27 Cf. Gierke, Otto : Natural law and the theory of society 1500 to 1800 (Boston, Beacon Hill, Beacon Press, 1960), pp. 70 ss.
28 Uso aqui a tradução brasileira, infelizmente não integral :Joahnnes Althusius, Política (Rio, Topbooks, 2003), pp. 349 ss.
29 “…quando a força manifesta é utilizada pelo magistrado contra pessoas privadas, é permitido que elas defendam suas vidas pela resistência, pois, nesse caso, as leis que constituem os reis e o direito natural (jus naturale) armam essas pessoas contra o magistrado que usa a força contra a vida”. Ed. brasileira citada, p. 356.
30 Sigo literalmente o ainda hoje instigante exame de Althusius, feito por Otto Gierke, no clássico Johannes Althusius und die Entwicklung der naturrechtlichen Staatstheorien. Uso a tradução italiana : Giovanni Althusius e lo sviluppo storico delle teorie politiche giusnaturalistiche, contributo alla storia della sistematica del diritto (Torino, Einaudi, 1974). O livro inteiro é útil para o estudo dos monarcômacos.
31 George Buchanan, De Maria Scotorum regina, totaque eius contra regem coniuratione, foedo cum Bothuelio adulterio, nefaria in maritum crudelitate & rabie, horrendo insuper & deterrimo eiusdem parricidio: plena, & tragica planè historia. [By George Buchanan] (Actio contra Mariam Scotorum reginam … [By Thomas Wilson] – Literae reginae Scot. ad comitem Bothuelium scriptae). [London] : [publicado por John Day], [1571] e George Buchanan, Ane detectioun of the duinges of Marie Quene of Scottes, touchand the murder of hir husband, and hir conspiracie, adulterie, and pretended mariage with the Erle of Bothwell. And ane defence of the trew lordis, mainteineris of the Kingis graces ctioun [sic] and authaoritie [sic]. Translated out of the latine quhilke was written by G.B. [i.e. George Buchanan]. [London] : [John Day], [1571].
32 As notas seguintes são extraídas do excelente trabalho, já antigo mas importante em nossos dias, de Paul Mesnard : L´ Essor de la Philosophie Politique au XVIe Siècle (Paris, Vrin, 1977), pp. 355 ss.
33 George Buchanan, De iure regni apud Scotos, dialogus, authore Georgio Buchanano Scoto. [Edinburgh] : [Publicado por John Ross], 1579.
34 O Rei, segundo Tiago 1º é “ a manner or resemblance of Diuine power vpon earth,” ele pode, à similitude divina “make and vnmake their subiects: they haue power of raising, and casting downe: of life, and of death …. They haue power to exalt low things, and abase high things, and make of their subiects like men at the Chesse: a pawne to take a Bishop or a Knight, and to cry vp, or downe any of their subiects, as they do their money. . . . For to Emperors, or Kings that are Monarches, their Subiects bodies & goods are due for their defence and maintenance. . . . Now a Father may dispose of his Inheritance to his children, at his pleasure: yea, euen disinherite the eldest vpon iust occasions, and preferre the youngest, according to his liking; make them beggars, or rich at his pleasure; restraine, or banish out of his presence, as h *ee findes them giue cause of offence, or restore them in fauour againe with the penitent sinner: So may the King deale with his Subiects.” Speech in Parliament, 1609-10. Charles Howard McIlwain cita a passagem na sua Introdução às Obras de Tiago 1º, editadas eletrônicamente no Perseus Project. Cf. também The workes of the most high and mightie prince, Iames by the grace of God, King of Great Britaine, France and Ireland, Defender of the Faith, &c. Published by Iames [Montagu], Bishop of Winton, and Deane of His Maiesties Chappel Royall (London, Robert Barker and John Bill, 1616).
35 Cf. Wootton, D. (Ed.) : Divine right and Democracy, (Penguin, 1986) (com o texto do Killing No Murder); Coward, B. . Oliver Cromwell (Longman, 2000); Brailsford, H.N. : The Levellers and the English Revolution (Spokesman Books, 1976).
36 Uso o texto original inglês publicado no livro de Olivier Lutaud: Des Révolutions d´ Angleterre à la Révolution Française. Le tyrannicide & Killing no Murder (Cromwell, Athalie, Bonaparte), (Haia, Martinus Nijhoff, 1973), pp. 374 ss. Há no mesmo volume, uma tradução francesa da época.
37 Otto Gierke : Giovanni Althusius…ed. cit. p. 234 ss.
PROGRAMAÇÃO DA IV SEMANA JURÍDICA DA FTC
“ZETÉTICA E DOGMÁTICA: UMA CONCILIAÇÃO POSSÍVEL”
18 a 20 de maio de 2011
Salvador
Prof. Dr. Roberto Romano da Silva Unicamp
Zetética. Um olhar filosófico.
La tolleranza non comporta affatto la rinuncia alle proprie ferme convinzioni, ma nasce dall ‘idea che la verità abbia tutto fa guadagnare a sopportare l ‘errore altrui (Norberto Bobbio, Lode della Toleranza).
O tema é a zetética e a dogmática. E uma sugestão a mais, relativa à sua possível conciliação. Devemos assumir grande prudência em problemas básicos da cultura. E ainda mais quando os desafios brotam no terreno da filosofia e do direito. Contentar-me-ei em expor alguns prismas pouco debatidos quando a zetética é discutida pelos especialistas desta ou daquela área do saber. Quanto à dogmática no campo jurídico, não faltam excelentes analistas para examinar o problema. Quanto à possível reconciliação de ambas as formas de pensamento, direi minha opinião no final.
A zetética foi posta em forma atualizada, na reflexão sobre o direito, por Theodor Viehweg. ( ) Como se espera de um labor erudito e alerta, a idéia de busca proposta por ele, tem fundamento nas formas céticas da filosofia que, elas mesmas, em suas origens supõem a leitura dos textos platônicos. Há, na intelecção retórica a que se liga a zetética, a marca indelével do ceticismo. ( ) A atitude básica na análise jurídica é a de não aceitar argumentos abstratos como base última da lei como se fossem princípios imutáveis da moralidade, afastando também a tese de que o discurso da lei pode ser dito racional pelo consenso. Ela recusa, ademais, a prova da certeza estrita da lei baseada em técnicas como a da lógica simbólica. Como adianta o comentador de Viehweg, JamesHerget, o ceticismo daquela proposta não é completo. Ela nega o sistema perfeito a acabado do direito, mas reconhece que a lei existe na sociedade, que o ensino da lei exige habilidades teóricas, as quais, por sua vez, podem ajudar os operadores do direito e a cidadania.
O ponto inicial, no entanto, gira ao redor da dúvida e do desacordo na interpretação do elemento jurídico. A interpretação, adianta Viehweg, parte do que é problemático. É tarefa árdua conciliar, na maior parte das vezes, os grandes princípios sistêmicos e as decisões legais. A lei, como em todo pensamento cético, é matéria de opinião, mesmo que esta opinião seja a assumida pela comunidade dos operadores do direito. “O estatuto dos livros (a ‘lei’ segundo os leigos) não impõe a si mesmo, nem comunica um significado sem ambigüidade e sem variações para cada contexto. O significado é fornecido pelas pessoas que devem usar a lei; logo, a opinião dos advogados e juízes sobre o que deve ser a lei tem prioridade sobre as fontes formais”. ( ) Em suma, para dizer com o próprio Viehweg, “o debate, manifestamente, permanece como a única instância de controle” ( ) O professor alemão, com certeza, sabia o vespeiro em que punha os dedos. Deixo de entrar nos árduos campos da tópica e da retórica por ele propostos. Meu intento é mais modesto, mas o creio de alguma relevância, porque em análises sobre a zetética noto que, não raro, atribui-se à filosofia coisas distantes do efetivamente enunciado por seus cultivadores, de Platão aos nossos tempos. Claro que ainda existem acadêmicos para os quais o labor filosófico é apenas acessório, perfumaria nos cursos de direito. Talvez seja saudável nos estender um pouco mais do que o habitual na origem e significados dos conceitos. O problema, os equívocos entre filósofos e juristas, é antigo e nos séculos passados causou batalhas. Há um saboroso escrito de Jean-Louis Gardies cujo título denuncia a tensão entre filósofos e pensadores do direito: “Sobre alguns malentendidos entre Hegel e os Juristas”. Ali, o autor se esmera em recolher farpas de ambos os lados, o que poderia explicar a causa da ordem filosófica ser assumida, nas Faculdades de Direito, como “perfumaria”. Creio existir naquele artigo uma trilha para que as desavenças de lado a lado sejam, pelo menos, clarificadas. Como tal alvo está muito distante, fico no terreno filosófico, nas formulações técnicas sobre a zetética.
Começo o exame semântico ao redor de Platão. O apóstolo Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios, chama os judeus de povo semiótico. Os gregos são ditos, por ele, “povo zetético” ( ) E dos gregos, Platão foi o zetético por excelência. Inicio, portanto, mencionando o trecho da República sobre a justiça e o ato da busca, essencial na zetética. Estamos na altura do livro 4, linhas 432 b-d. A justiça é afirmada como a essência do Estado excelente. Sócrates convida Glauco a imitar na sua busca "alguns caçadores (κυνηγέτας) que formam um círculo ao redor da moita (θάμνον). Precisamos de toda nossa atenção para evitar que a Justiça (δικαιοσύνη) não ache uma saída por onde escapar e, travestida, escape de nossos olhos". Tendo recebido a anuência de Glauco, Sócrates recomenda : "abra, pois, os teus olhos, fazendo todo o possível para percebê-la no caso de, talvez, tu a vejas antes de mim, assinalando-a". ( )
Ao longo dos textos platônicos surge a metáfora da caça quando se trata de buscar o verdadeiro, o justo, o bom, o belo, o político. ( ) Nas Leis, ele diz que o ensino dos jovens deve prevenir contra a caça aos animais e aos homens. A primeira deve ser regulamentada, a segunda será vista como indesejável. Caçar homens é dar-lhes o estatuto de feras. Os jovens não podem considerar que outros seres humanos são feras, monstros. No diálogo Eutidemo (290b 7 – c6), Sócrates sugere que a arte do general é a mais apta a fazer os homens felizes. Clinias, o interlocutor, não cai na esparrela armada pelo filósofo: o trabalho do general entra mais na arte da matança dos homens. A caçada tem um nome específico no argumento de Clinias : “ nenhuma das artes dos pesquisadores (tès thèreutikès) ( ) propriamente ditos, não são ligadas em algo além de pesquisar e colocar a mão sobre o bicho. Desde que o agarraram, não são capazes de usá-los e os caçadores e pescadores o passam ao cozinheiro. Do seu lado, os geômetras e calculadores –pois eles também são pesquisadores pois não criam figuras mas descobrem as que existem- ignoram o seu uso, mas apenas as pesquisam. Eles passam os seus produtos aos dialéticos que podem aproveitar suas descobertas”. O caçador da verdade e da justiça, portanto, precisa ter seu trabalho completado pelo dialético, mas o caminho do saber é uma caça, uma pesquisa, uma zetétike.
Se o modelo da caça impera nas relações entre indivíduos e grupos, na polis ou no mundo grego mais amplo, temos a barbárie. Agindo assim, não surge nenhuma amizade entre eles e o coletivo está quebrado a partir de seu interior. A caça não tem um fim em si mesma, bem como os saberes amealhados nas pesquisas matemáticas ou éticas. O fim da primeira é dado pelo cozinheiro, o das segundas se encontra no dialético que as sintetiza num sistema lógico coerente e universal. Mas a pesquisa e a sabedoria última se conciliam, como devem ser conciliados os indivíduos e o coletivo. Platão diz no mesmo livro que a cidade só pode ser forte se nela as dores e alegrias do indivíduo constituírem as dores e alegrias de todos. E dores e alegrias de todos inclui a dos indivíduos. Se na cidade muitos riem e alguns choram, é marca de injustiça. Saber sem pesquisa não existe, pesquisa sem a síntese universal é tarefa infinda e inútil.
Francis Bacon, inspirador da moderna forma científica, indicou a distinção entre pesquisa e saber sistemático ao figurar animais com os defeitos da pura zetética ou do vazio dogmatismo. Existem, diz ele, intelectuais que acumulam dados e dados sem pensá-los numa síntese. Como as formigas, acumulam e cortam os elementos empíricos ou doutrinários, mas nada brota de seu labor. Existem os intelectuais que tecem verdades lógicas em conceitos finíssimos, os sistemas doutrinários e dogmáticos, os cérebros aranha. Mas como as teias, aqueles sistemas se rasgam diante dos fatos e documentos que os desmentem. Existem, finalmente, os intelectuais que praticam a zetesis, nela recolhem os dados, mas os pensam e produzem conceitos informados pela ordem lógica, com auxílio dos elementos empíricos. As formigas zetéticas não produzem sínteses que orientem a reflexão dos saberes, as aranhas sistemáticas fazem sínteses, sem preocupação com os dados da experiência. As abelhas sintetizam e recolhem o diverso das informações que vêm da ordem empírica. Seus enunciados estão repletos de fatos e pensamentos unidos, com sentido. ( )
A figura da caça mostra uma atitude epistemológica e axiológica fundamental: no mundo empírico, todos os partícipes da vida coletiva devem caçar os conceitos, sendo que o resultado de tal exercício não é garantido a priori. ( ) É preciso “agarrar” (lambano) ( ) os conceitos, como se prende nas mãos uma caça. Somente quem vai além das limitações espaço-temporais e subjetivas (devemos recordar que "empírico" significa "dentro de limites"), adquire um saber sólido sobre os valores e os entes. Ninguém, em estado lúcido, pode acreditar em textos filosóficos ou legais, como se eles trouxessem o verdadeiro, o belo, o justo.
A lingua, tanto a dos gestos quanto a oral, segundo Platão, é impotente (ἀσθενές) para expressar e colher conceitos e realidade. Por tal motivo, na Carta Sétima (343a) ele afirma : "quem reflete (e é provido de razão) nunca terá a ousadia de depositar na escrita os seus pensamentos (...) deles fazendo algo imutável, escrito." ( ) A crítica aos textos se espalha nos Diálogos, sendo notável a passagem do Fedro (274b) onde é narrada a recusa do rei Thamus, pela invenção da escrita. ( ) O tema da impotente escrita muito discutido no século IV, em Atenas. Platão nada inova no problema. Alcidamas (Peri ton Sophiston) afirma que “escrever, de fato, não é mais que uma imagem semelhante à que fabrica o pintor. Só o discurso falado é vivo e capaz de adaptar-se à ‘situação’”. ( )
Contra o fetichismo da escrita no saber e na lei, Platão enuncia que "nenhum homem ponderado (σπουδαῖος), preso às coisas sérias (τῶν ὄντων σπουδαίων) se arriscará a deixar, escrevendo, cair no domínio público aporias, expondo-as às maldade e às dúvidas. Quando observamos obras escritas, em forma de leis por algum legislador, ou em outro assunto, notemos o seu caráter (...) Se ele considera tais coisas sérias, assim dispostas em escritos (…) os mortais arruinaram totalmente a sua razão". (Carta 7, 344c). ( ) Dessa descrença no texto da lei, surgem no diálogo Político o elogio da pessoa animada, racional, que exerce o governo. "A arte de legislar, evidentemente", diz o Estrangeiro ao jovem Sócrates, "pertence à arte real" (δῆλον ὅτι τῆς βασιλικῆς ἐστιν ἡ νομοθετική). Mas de outro lado, o melhor está que a força pertença, não às leis, mas ao homem prudente, real (ἄνδρα τὸν μετὰ φρονήσεως βασιλικόν)". Diante do espanto mostrado pelo jovem Sócrates, arremata o Estrangeiro: "Nunca uma lei seria capaz de perceber com acribia o que, para todos ao mesmo tempo, é o melhor e o mais justo e prescrever para todos o que mais vale. Entre os homens, com efeito, como entre os atos, existem dissemelhanças, sem contar que nunca, por assim dizer, nenhuma das coisas humanas permanece em repouso, íntegra, o que não permite à arte, a nenhuma arte, formular nenhum princípio cuja simplicidade valha em toda matéria, em todos os pontos sem exceção e durante o tempo".
A lei, termina o Estrangeiro, “parece um homem presunçoso e ignaro, que não deixa ninguém fazer algo fora do que ele regulou, e também não deixa que ninguém o questione, mesmo que uma idéia nova, exterior aos arranjos normativos por ele impostos, deva ter para o caso individual um resultado melhor”. (294a-c). Não entrarei aqui na vexata questio milenar e no dilema: governam a lei ou os homens? ( ) Sou bem alerta para os usos modernos e anacrônicos da opção pelo indivíduo soberano, do absolutismo assumido por Tiago Primeiro na Inglaterra do século 17 até Carl Schmitt e a proposta de que o "Füher decide o direito". ( )
O que interessa, dada o nosso alvo, é indicar que intelectos, como o de Platão, afirmam a necessária coragem anímica de não aceitar textos, sejam eles de filósofos ou legisladores, sem exame crítico. Caso contrário, surge o pedantismo da letra e o injusto em decisões legais, tanto para atingir sanções positivas ou aplicar sanções negativas aos cidadãos. A imagem da justiça enquanto caça, a recusa da pseudo-estabilidade da escrita, a busca das situações vivas com pessoas vivas, tal é o campo inaugurado por Platão e, sobretudo, pela sua descendência, no ceticismo. Aliás, para os que assumem a metodologia cética, mesmo Platão deve ser visto como dogmático. ( )
A primeira pergunta a fazer é porque enunciações dogmáticas adquirem tal estatuto. Segundo um filósofo alemão de nossos dias, quando interpretamos um “algoritmo matemático, um formalismo lógico, uma fórmula física ou química, dados estatísticos, sintomas médicos de uma doença, não somos incitados à procura do sentido daqueles simbolismos (…) Trata-se de atribuir um sentido conhecido anteriormente às fórmulas ditas ‘vazias’”. Tal procedimento, que não se interroga sobre o sentido de fórmulas e técnicas, aparecem nas ciências naturais e axiomatizadas mas também nas ciências humanas e culturais. Ele designa o campo dogmático. O horizonte de tais procedimentos técnicos é o da teologia, da jurisprudência, da filologia, da pedagogia. Aqui os textos e documentos são institucionalizados e servem de base para as próprias instituições vigentes. Assim, temos os Padres da Igreja (na teologia), os códigos legais dos juristas, os dicionários prestigiosos dos filólogos, os manuais dos professores. “Evidentemente, o bom teólogo, o jurisconsulto ou juiz, o filólogo e o professor erudito não buscam o sentido das palavras ou dos dicta dogmáticos, mas por seus estudos na disciplina eles conhecem o sentido daqueles enunciados de antemão. Eles ficam bem assegurados com a visita aos textos e os usam para solucionar problemas de consciência, a decisão de um processo jurídico, a escolha de uma palavra ou frase equivalente numa tradução, e a apresentação em regra de um tema pelo professor”.
Quanto à zetética, diz o mesmo autor, podemos compará-la à dogmática para perceber sua diferença. A dogmática é estritamente disciplinar e jamais interdisciplinar : ela nada tem a ver com a busca da verdade ou da falsidade, mas se qualifica como boa ou má, elegante ou tola, admitida ou vetada. “Ela assegura a eficácia quando se trata de estabelecer em todo caso um sentido. Por tal motivo, aqui nunca existe um ‘non liquet’, a impossibilidade de estabelecer um sentido, sem o que o texto dogmático cairá em desuso. As regras e os cânones dogmáticos são específicos segundo a disciplina da qual dependem. Mas em conjunto eles aspiram garantir o estabelecimento de um sentido capaz de solucionar ao problema dado. Para tal fim, oferecem comumente alternativas ou uma grande quantidade de possibilidades para a construção do sentido. Na teologia é famosa a doutrina dos quatro sentidos da Biblia ( ); em jurisprudência, a alternativa do sentido histórico (vontade do legislador) ou sistemática (razão da lei), e além disso a interpretação literal, restritiva ou extensiva. A filologia oferece multiplas sendas para as traduções: literais, metafóricas, poéticas, arcaizantes, modernistas, etc. No ensino (…) se adapta o sentido dos manuais à capacidade dos estudantes para uma interpretação fácil e simples (pode ser superficial) ou então densa e complexa (pode ser profunda). Evidentemente as palavras “dogma”e “dogmática” perderam seu prestigio de outrora e por causa da batalha das Luzes contra a fé, a teologia, as autoridades”. ( )
Vejamos a zetética na história do pensamento. Para exercer a razão crítica é preciso suspender o juízo, uma técnica radical ou moderada, mas indispensável. O primeiro uso intencional da zetética, com fins críticos, encontra-se em Pirro e Timão no terceiro século AC. O que ambos visavam com o termo? Recusar qualquer tese que não fosse examinada pela balança do pensamento. Os pirrônicos se intitulam skeptoi, ( ) cuja tradução latina encontra-se em quaesitores (os que buscam) e consideratores. Vimos na Carta Sétima que, diante de aporias graves do pensamento, como é o caso da verdade e da lei, só pessoas não ponderadas ousam escrever sobre elas, perdendo a essência da questão dificultosa. Quem, por não ter agarrado o conceito, não possui certezas fundamentadas (epistême), ao lavrar o verbo em letras visíveis trai a razão. Quem dispõe de bases sólidas para pensar as aporias, não as "resolve" de imediato, busca prudentemente, sem interrupção, as suas razões.
O que é uma aporia ? O termo significa dificuldade de ir além, ultrapassar uma porta (poros), ( ) não resolver de imediato dificuldades epistêmicas ou éticas. Em termos simples: trata-se de um assunto para o qual as saídas foram fechadas. O que faz o cético, seguindo o veto platônico de confiar nas palavras, sobretudo as escritas? Ele suspende o juízo para investigar a coisa. Ele procura, sendo assim um zetetes, integrando o número dos quaesitores. Os céticos seguram a pena e a lingua antes de enunciar razões sobre as coisas e as pessoas. E se limitam a dizer "que a verdade ainda não foi achada, não dizem que ela é inacessível. E não desesperam de achá-la um dia e a buscam. Eles são zetéticos". ( ) E temos a impossibilidade filosófica de aproximação entre zetética e dogmática. A primeira, em filosofia, parte da constatação seguinte: os dogmáticos precipitam as idéias no papel e na lingua, não se demoram no exame de todos os lados, no fato a ser discutido, afirmam como absoluto o relativo, incompleto. E transformam terminam afirmando a sua verdade como única. Recordo uma análise de Erich Auerbach sobre o tema. Auerbach inventa a figura do holofote : o mundo é palco de infinitas cenas. O apressado joga a luz sobre uma ou outra delas. Ele persuade a platéia de que fala o único verdadeiro. Mas, argumenta Auerbach, da verdade faz parte toda a verdade. As cenas ocultas também devem ser iluminadas, o que demanda tempo. “O público sempre volta a cair nestes truques, sobretudo em tempos de inquietação, e todos conhecemos bastantes exemplos disto, do nosso passado recente (Auerbach se refere aos totalitarismos do século 20, RR). Contudo, o truque é, na maioria dos casos, fácil de ser descoberto ; mas falta ao povo ou ao público, em tempos de tensão, a vontade séria de fazê-lo; quando uma forma de vida ou um grupo humano cumpriram o seu tempo ou perderam prestígio e tolerância, tôda injustiça que a propaganda comete contra eles é recebida, apesar de se ter uma semiconsciência do seu caráter de injustiça, com alegria sádica”. ( )
A pressa ideológica espalhou doutrinas genocidas no século 20 e definiu judeus, ciganos, eslavos, homossexuais e outros integrantes das cenas coletivas como alvos a serem destruídos com alegria sádica. O truque da propaganda dogmática teve acolhida devido ao tempo rápido na circulação das palavras. Se carrega ódio e intolerância, o verbo mata em cronologia ensandecida. Contra a rapidez doutrinária se estabelece a cautela prudencial da zetética. Um obstáculo na pesquisa filosófica, adiantam os céticos, encontra-se na pressa em chegar ao verdadeiro. Sexto Empírico buscou, entre outros, combater “a procipitação (propéteia) dos dogmáticos” ( ) Quem é o dogmático, segundo os zetéticos? É quem ousa dizer que encontrou o verdadeiro e o justo, desconsiderando as outras mentes humanas. Na sua pressa em se afirmar e impor aos demais as suas teses, eles são presunçosos, demonstram amor exagerado de si mesmos, autoestima tombada no excesso denominado hybris, orgulho excessivo que leva à perdição do vaidoso e da sociedade. ( )
Há na República platônica um ponto essencial quando se trata de garantir a polis : o controle da filáucia. O que produz a tirania? O amor de si mesmo. A filáucia é o contrário da amizade. Nas Leis (Livro 5, 731 d) é sintomático que o sujeito acometido de idiotismo seja comparado ao “amante, cego no relativo ao ser amado, sendo péssimo juiz das coisas justas, boas, nobres”. A paixão impede o saber e a prática do bem. “Há um grande mal (…) que o maior número de homens tem, e que lhes é congenital. Com ele, cada um é cheio de auto-indulgência e ninguém dele escapa. Este mal chama-se amor próprio. A ternura do homem para consigo mesmo pertence à sua natureza, ela causa nossos erros pelo afeto que temos para conosco (…) O grande homem não acaricia nem a si mesmo, nem as coisas de sua propriedade, mas o justo.” O tirano exerce o auto-erotismo e suprime os inimigos “mas também os que, por terem sido seus iguais ou cúmplices, a ele se dirigem com franqueza”.(República,8,567b)”.( ) O amor que os indivíduos têm para consigo mesmos desatrela a luta pelo domínio, onde todos são inimigos de todos.
A arrogância une-se à propéteia, pressa em falar ou escrever verdades e leis. Ao orgulho os zetéticos chamam, na trilha platônica, filautia, amor exagerado de si mesmo : os dogmáticos, para os zetéticos, são “phílautoi que, explícita ou implicitamente ‘dizem ter de a si mesmos preferir-se com relação aos outros homens no julgamento das coisas, mas sabemos que sua pretensão é absurda (átopos)’: sendo parte na discussão filosófica sobre o julgamento de aparências conflitantes, eles incorrem em inegável petição de princípio ao assumir aquela preferência, antes mesmo de o julgamento começar. E, de fato, no que respeita à verdade, os dogmáticos são homens que, por seu amor de si (philaútos) ‘dizem tê-la, eles próprios, sozinhos descoberto”. ( )
De onde vem o termo "ceticismo" ? Provavelmente de Homero que, na Odisséia (Canto 12, versos 244-249), usa spekptomai no sentido de "olhar para todos os lados afim de observar. A palavra significa olhar atentamente rumo a duas ou mais direções possíveis. Em Sófocles (Édipo Rei, 584) o termo tem o sentido de olhar e refletir. ( ) Em Platão, voltemos a ele, no contexto da polêmica com Trasímaco (a justiça é atributo do mais forte), após uma investida do sofista, Sócrates lhe diz, com a ironia habitual: "Trasímaco, não sejas duro conosco. Se eu e meus amigos cometemos erros na consideração do problema, fiques seguro que erramos invontáriamente. Porque não podes supor, seguramente, que se a nossa busca (σκέψει ) jamais enganaríamos uns aos outros, fazendo concessões na busca (ζητήσει), desperdiçando nossa chance de encontrá-lo. Estamos à busca da justiça (δικαιοσύνην δὲ ζητοῦντας), uma coisa mais preciosa do que o mais fino ouro, e seríamos loucos (ἀνοήτως ) por dar passagem um ao outro e não dedicar o mais sério (σπουδάζειν) de nós para descobrí-la". (República I, 336e)
A pesquisa (zetesis) do excelente e do justo exige o que é mais sério. Já vimos: para o filósofo, redigir leis e verdades não se encontra entre as tarefas mais sérias da existência. Pelo contrário, designam atividades ensandecidas porque procuram encarcerar a mente, como na mumia, em bandagens rígidas, dogmáticas. Chegamos ao ponto mais delicado do ceticismo. Tudo pode ser motivo de busca, zetesis, mas sempre num mar revolto que, ele, campo do fenômeno, não pode ser procurado porque se oferece de imediato para todos os que pensam. Não podemos dizer como as coisas são "realmente" por detrás de sua aparência, o ser em si das coisas é algo "azetetos". De outro lado, nossas impressões também são postas como algo"azetetos", não podemos perguntar sobre elas: as coisas aparecem, mas saber o como e o porque elas surgem é impossível. ( ) Em todos os lados do ato de conhecer e fazer é preciso a suspensão do juízo para não cair na ilusão dogmática que, no fim das contas, é delírio e loucura.
Quando se evoca em filosofia a atitude zetética, as ressonâncias não trazem apenas a idéia de busca, de pesquisa, mas de juízo crítico, pesagem das teses e antíteses, decisão de jamais "resolver" aporias da mente e da ética. Note-se, pois, que aparece algum ruído quando, ao comparar a dogmática à zetética, se indica que nesta última temos as ciências (exatas ou humanas) e na primeira as ordens legais indiscutíveis. Nullius addictus jurare in verba magistri. A exigência de Horácio (Epistolas I, 14) serve aos que, nos tempos modernos, recolhem as lições de Platão. A recusa do princípio de autoridade invadiu as ciências e artes, destas à política. Dizer que um enunciado é verdadeiro porque dito ou escrito por Aristóteles ou um mestre do direito, significa renunciar ao uso da própria razão.
Como diz Montaigne, pioneiro da liberdade anímica, "o juízo tem, em mim, uma sede magistral". A metáfora do tribunal da mente passa a ser determinante no mundo noético. Atitude crítica exige a pesagem das palavras. Não por acaso o símbolo assumido pelos zetéticos da modernidade, a balança, é o mesmo da justiça. O cuidado para não aceitar verdades impostas exige que os termos sejam ensaiados antes de sua circulação no mercado político e social. Os Ensaios receberam o nome de "conatus", esforço na ação física ou intelectual. Em Montaigne e na ordem moderna o "eu liberta-se, pensando, e pensa, marchando"( ) A filosofia está sempre em movimento, nunca parada, dogmática. ( ) A liberdade, diz um comentador do filósofo, "não é um estado, repouso, mas um ato ou função, um aspirar, um esforçar-se".
Temos outro elemento na filosofia cética ao redor do ensaio. Tal palavra deriva do latim exagium. Ela era usada na avaliação das moedas em seu toque, título, quilate. Ensaiar é examinar : monetam inspicere. Na Casa da Moeda um ensaiador as examina com a balança, também símbolo dos céticos. É preciso, confidencia Montaigne, ensaiar (exagiare) as idéias, pesá-las, descobrir o metal precioso nelas posto ou a escória tida pela maioria como preciosidade. Na pesagem das palavras está suposta outra noção. O vocábulo "pensar" liga-se ao ato de pesar. Pensar vem de pensare, ponderare, pondus. Um pensador pesa juízos, como o ensaiador, as moedas. "Eu não conto meus empréstimos, eu os peso".
No mercado comercial, político, religioso, diz Montaigne, "não se olha mais o que as moedas pesam e valem, mas cada um as recebe segundo o preço que a aprovação comum e a cotação lhe dá". A propriedade das idéias é de todos os homens. Mas nem todos são alertas para pesar o seu valor e se elas servem para as operações para quais são movidas. Não raro idéias pouco valiosas compram decisões governamentais, magistrais, religiosas. Montaigne evoca o envenenamento noético. Doutrinas falsas mostram-se letíferas e perigosas. Contra o dogmatismo sectário que tende a encarar as suas próprias teses como absolutas, é preciso a relativização, a crítica. Todo o ideário de Montaigne se resume na figura da balança: "Que sei eu? Como eu coloco numa balança". Veneno. Palavra para designar fanatismos fantasiados de ciência moderna, sobretudo no século vinte.
Tais aporias nos levam à uma terceira senda entre a zetética e a dogmática. Imanuel Kant tentou evidenciar, já no primeiro prefácio à Crítica da Razão Pura, que as duas devem ser ligadas ao controle da razão para o bem coletivo. A primeira, no seu entender, é despótica. A segunda causaria desordem. ( ) Nem cética e nem dogmática, a crítica examinaria os fundamentos e as pretensões dos conceitos que pretendem ostentar o título de ciências, em todo e qualquer campo intelectual e volitivo. Os profissionais do Estado aludidos, que esposaram as teses da eugenia, médicos, juízes, engenheiros, usaram a razão. Mas não pesquisaram os limites daquela força intelectual. Por outro lado, não examinaram a própria consciência na busca de imperativos éticos que os impedissem de cair na animalidade. Como diz Goethe no Fausto, uma pessoa assim usa a razão, mas de maneira a se tornar mais feroz do que todas as feras : “Er nennt‘s Vernunft und braucht’s allein, Nur tierischer als jedes Tier zu sein
É contra a pretensão das escolas ditas superiores pelos governos (medicina, direito, teologia) que se voltam as três críticas kantianas. Os profissionais da medicina, do direito, da teologia (não raro, da filosofia) usam os enunciados racionais na ausência da crítica. O dogmatismo, diz Kant, é uma “confiança cega no poder que tem a razão de se ampliar a priori sem crítica, por meio de conceitos puros, preocupada apenas com o seu aparente sucesso”. E confessa o mesmo Kant: “eu encontrava pouco a pouco muitas proposições que consideramos objetivas mas que, de fato, são subjetivas, isto é, contêm as condições sob as quais somos nós mesmos que entendemos e concebemos o objeto”. Dois caminhos: tombar no ceticismo que suspende sempre o juízo ou se afastar da trilha dogmática, desesperando da ciência e da ética, ou examinar o poder da razão, os seus limites. Este foi o caminho de Kant : nem zetética pura nem dogmática, mas a crítica da razão pura, antes dos enunciados científicos, morais ou artísticos. Mas para I. Kant “o ceticismo, com fundamento no juízo circunspecto, advertido pela experiência, é a passagem necessária do dogmatismo para a filosofia crítica” ( ) Kant nada disse a mais do que outros pensadores adiantaram. Pierre Bayle, ao falar a propósito de Pirro e dos céticos adianta que eles foram chamados de “céticos, zetéticos, eféticos, aporéticos, ou seja, examinadores, inquisidores, suspendentes, dubitantes. O que mostra que eles supunham ser a verdade possível de ser encontrada, e que eles não decidiam que ela era incompreensível” ( )
Contra os dogmáticos de todas as escolas, pensa Kant, o procedimento cético é um antídoto eficaz. Como Platão, no entanto, ele não absolutiza a dúvida. Em Platão, no mesmo Eutidemo que citei acima, o argumento cético traz sempre admiração (ἀεὶ θαυμάζω) a Sócrates : os céticos não apenas arruinam (ἀνατρέπων) os pensamentos alheios, como os seus próprios. ( ) A corrosão das perguntas incessantes, a zetesis infinda, termina por não chegar a nenhum ponto sólido no saber e na ação. Kant acolhe o repto platônico ao ceticismo mas, como Platão, usa as técnicas que abalam as certezas como instrumento para arrancar do intelecto escórias doutrinárias. O ceticismo absoluto, segundo Kant, “ao renunciar a afirmar todo conhecimento, anula todos nossos esforços para assegurar a posse de um conhecimento do que é certo”( ) Na guerra contra o dogmatismo, o procedimento cético não chega à vitória completa : “seu sistema é posto, por ele mesmo, em dúvida, visto que suas objeções só repousam em fatos, e fatos contingentes, e não em princípios capazes de nos obrigar à renúncia ao direito das afirmações dogmáticas” ( ) Mas o método que consiste em suspender o juízo presta relevantes serviços à crítica. Se o ceticismo absoluto prejudica o conhecimento e a moral ele “é útil e oportuno enquanto método, se o entendermos como o modo de tratar uma coisa como incerta e conduzi-la ao mais alto grau de incerteza na esperança de encontrar no caminho o traço da verdade. Este método filosófico consiste em descer às fontes das afirmações e objeções e aos fundamentos sobre os quais elas repousam, método que permite esperar atingir a certeza”. ( ) A zetética é o modo pelo qual se encaminha a resolução de um problema antigo, o do ensino filosófico. Não é possível ensinar a filosofia, mas a filosofar. “Ninguém pode se dizer filósofo no sentido estrito, ou mestre da sabedoria, de modo que não é possível ensinar filosofia como doutrina constituida no sentido dos saberes positivos, as apenas a filosofar segundo um encaminhamento zetético, todos e cada um podem ser tornar filósofos na acepção do conceito cósmico da filosofia que visa os fins últimos da razão humana”. ( )
Para o conhecimento certo é necessário arrancar as camadas doutrinárias que se acumularam na mente humana. A imagem mais própria para esta situação vem dos textos platônicos e foi usada por Rousseau: a estátua do deus Glauco. ( ) A ferocidade dogmática não é vencida pelo método cético. Mas este último afasta certezas dos que operam com a razão sem críticas e limites. O procedimento kantiano não discrepa, assim, do uso feito por Descartes na dúvida metódica e, mesmo, hiperbólica. ( ) Mesmo Pascal usa a dúvida cética, na medida em que ela serve para distinguir os vários tipos de seres humanos. Existem os que encontraram Deus, os que o procuram sem o encontrar e, finalmente, “os outros que vivem sem procurá-Lo. É preciso reconhecer que a expressão de Pascal é muito apropriada, na medida em que ela dá conta também da natureza ‘zetética’ da dúvida pirrônica, sempre aberta à pesquisa, o que é o caso do segundo tipo descrito pelo apologista, enquanto o terceiro, se não alude simplesmente ao gênero mais comum dos ‘belos espíritos’, rebeldes, irreligiosos e libertinos nos costumes, pode bem se aplicar à forma de dúvida que permite economizar a crença, rebatendo o espírito ao nível dos fenômenos e neutralizando todo apelo aos ‘dogmata, pela simples constatação do equilíbrio instaurado entre as diferentes opiniões e os diversos fenômenos, uns opostos aos outros”. ( )
O lado corrosivo da dúvida cética, presente na filosofia moderna em autores como Descartes e Pascal ( ) (embora, finalmente, ela tenha sido abandonada) levantou suspeitas gerais contra a filosofia crítica, demasiado próxima aos movimentos das Luzes e da Revolução Francêsa. ( ) Não por acaso as escolas arrogantes e os governos idem ergueram barreiras, entre elas a da censura, contra os textos kantianos. Já no intróito da Crítica da Razão Pura, Kant proclama que nosso tempo é o da crítica, à qual tudo deve ser submetido, pois não mais nos contentamos com a aparência do saber. A razão não pode, por nenhuma defesa, atacar a liberdade da crítica sem arruinar a si mesma e sem atrair suspeitas que a prejudicam. Contra o dogmatismo e o ceticismo, a crítica permite provar sua ignorância relativamente a todas as questões possíveis de uma certa espécie. Quem não submete a sua razão à crítica, termina sempre com saberes inquestionados, mas no mínimo derrisórios. ( )
Faltou aos operadores do Estado e aos acadêmicos, a crítica de sua própria razão, o reconhecimento de seu próprio caráter, a distância de seus atos em relação a toda beleza. A pessoa que praticou um ato ilegítimo e tenta se desculpar “percebe sempre que o advogado que fala em seu favor não pode reduzir ao silêncio a voz interna que a acusa, se ela tem consciência, de estar em seu bom senso quando cometeu o ato injusto em plena liberdade”. A consciência moral é a faculdade judiciária que julga a si mesma. Quando se diz, adianta Kant, “este homem não tem consciência”, o que se afirma é que ele não obedece o veredicto do seu juiz interno. E tal sentença, no tribunal da consciência, é infalível. É impossível o engano, o que foi feito, traz a chancela da vontade que não se dobrou ao imperativo moral da própria consciência. Tal é a essência do antissemitismo, do racismo e de outras expressões que encontraram nos dogmas da ciência eugênica as suas razões. ( )
Assim, todos os que praticam atrocidades em nome da ciência ou da razão de Estado, não merecem desculpas. Sabemos o quanto, em Nuremberg e depois, aqueles servidores do poder tentaram salvar a própria pele descarregando todo o mal sobre indivíduos poderosos, como Hitler, ou em organizações burocráticas (foi o que Carl Schmitt alegou no seu julgamento), ( ) ou no “espírito do tempo”. Eric Voegelin mostra o quanto tais desculpas são esfarrapadas, não poupando em sua análise do elo entre Hitler e os alemães as igrejas, as universidades, os tribunais, a inteira sociedade alemã. ( ) Não é segredo para ninguém que o programa para a denazificação da Alemanha foi um fiasco, quando não pura absolvição silenciosa de notórios nazistas, aproveitados na ordem democrática por seus conhecimentos burocráticos, financeiros, etc. Voegelin també não poupa este crime que significa uma anistia silente dos carrascos. ( )
Zetética e dogmática, uma conciliação possível? ( ) Talvez, desde que ambas passem pela crítica da razão, científica, moral, artística. E para a tarefa, pensadores da filosofia, das ciências naturais e humanas, do direito e da teologia têm dedicado os seus melhores esforços, pelo menos desde o distante século XVIII a era das Luzes. ( ) Em sua conclusão do livro relevante sobre os embates da zetética contra o pensamento dogmático, Marcello Gigante recorda a importância atual da filosofia que duvida. Mas indica que ela não pode ser proposta a quem deseja viver e sobreviver, sobretudo quando ela afasta as opiniões firmes. “Já David Hume escrevera que ‘um pirrônico deve reconhecer algo, que toda a vida humana deve perecer se os seus princípios devessem ser universalmente e prontamente prevalecer. Todo discurso, toda ação acabaria imediatamente e os homens ficarão numa letargia total, até que a necessidade da natureza, insatisfeita, ponha fim à sua existência miserável’”. O cético enxerga a diversidade, alí onde o dogmático visualiza a igualdade dos entes. Gigante narra uma visita sua a Nova York : “no World Trade Center, a última maravilha do mundo, os dois prédios exibem mais de cem planos, e me apareceram em julho diversos e iguais, iidem et alii, segundo a distância e o ponto de observação. Durante o passeio pelo Hudson, um parecia menos alto do que o outro; em terra firme, na distância mínima, os dois colossos, ousado e elegante êxito das estupenda técnica dos nossos dias, surgiam como eram, iguais. Após a dúvida, tive a certeza, depois da aporia, o dogma: os edifícios têm a mesma posição, a mesma estrutura, a mesma altura mesmo que, às vezes, observados à distância, forneçam a sensação de serem diversos; a diversidade se revela um aparecer, a igualdade um ser (…) Vejo, erro, conheço, distinguo, julgo: o processo gnoseológico conduz à uma certeza que está no limite, única e não dúplice, verificada e não contradita pela experiência”. ( )
O exemplo é terrível. Após o 11 de setembro, a certeza sobre os prédios gêmeos, tão acarinhada por Gigante, sumiu na poeira das bombas e dos aviões. E agora, mesmo o idealizador dos ataques que os destruíram desapareu na sombra da morte. Seu nome e figura estarão de volta em novos atentados ? Não sabemos. David Hume tem razão: viver sempre na dúvida conduz à letargia e à morte. Mas viver sob o sono dogmático violenta fenômenos e consciências. Kant, desperto por Hume do sono metafísico, tentou uma terceira via entre a zetética e a dogmática. Vale a pena, antes de exibir saberes infalíveis na ordem médica, política, econômica, jurídica e outras, meditar sobre as três críticas kantianas. E recordar a lição preciosa da zetética: a tolerância. Esta, como diz Noberto Bobbio, é o caminho para se atingir a verdade. Ao comentar as teses polêmicas de Alistair MacIntyre ( ) que defendia o retorno da reflexão sobre a virtude no pensamento ético, Bobbio, no mesmo átimo em que discute a doutrina kantiana da moral e do direito confessa, do seu modo polido: “sempre hesitei em aceitar drásticos contrastes, porque eles favorecem unilateralmente atitudes relativas a intangíveis assuntos, como os ligados à filosofia, onde a verdade nunca é peremptória, definitiva e indiscutivelmente posta em um lado e também por respeito à interpretação histórica, este imenso depósito disposto aleatoriamente com mil coisas, sendo perigoso acima de tudo, e inconclusivo, isolar um entre muitos” ( )
A crítica kantiana alicerça o seu programa na liberdade e na autonomia de todos os entes humanos. Ela não se dirige apenas aos especialistas, as elites sábias que manipulam massas domesticáveis. ( ) Nela, o alvo é a maioridade universal do gênero humano. E tal fim se atinge com a procura, a caça da verdade. Sem mais.
Ética e Decoro Parlamentar
Primeiro Seminário Sobre Ética e Decoro Parlamentar, Câmara dos Deputados, Brasilia.
Dr. Roberto Romano/Unicamp.
No capítulo quarto do Tratado Político, Spinoza —o autor da mais importante ética moderna— discute os erros dos governos e dos que legislam em nome do povo soberano. Em primeiro lugar, ele analisa o problema que preocupou os pensadores gregos, os profetas de Israel, os juristas medievais e da Renascença e hoje é um item espinhoso dos regimes democráticos.( ) Seria o poder supremo (summa potestas) controlado pela ordem legal e poderia ele errar ? A resposta de Spinoza gerou as teses que produziram a Revolução Francêsa e a Revolução Americana : “erros” e “leis”, afirma o filósofo, são palavras que designam, além dos direitos do Estado (civitatis iura), as leis comuns de toda a natureza. Consideradas as regras da razão, pode-se afirmar que o poder supremo estatal erra e se um Estado não tivesse leis nem regras, seria preciso enxergar nele uma quimera.
O Estado erra quando age ou permite comportamentos que o arruinem. Ele erra quando age contra a razão. Apenas se obedece os ditames da razão (ex dictamine rationis), o Estado é senhor de si mesmo (sui iuris).
Quando um Estado age contra a razão e na medida em que o faz, ele destrói a si mesmo. Toda pessoa decide um negócio de seu interesse e age como lhe aprouver , mas tal poder deve ser medido tanto pela força do agente como pelas facilidades oferecidas pelo paciente. Se digo que posso fazer desta mesa o que eu desejar, não entendo por isto que posso obrigá-la a comer capim.
De modo igual, quando dizemos que os homens não regem a si mesmos, mas seguem o direito estatal (homines non sui, sed civitati iuris esse) não queremos dizer que eles perdem a sua natureza humana e revestem uma outra. O Estado tem a força, e portanto o direito, de fazer com que os homens tenham asas para voar, ou, o que é tão impossível quanto, que eles considerem com respeito o que excita o riso ou o desgosto.
Em determinadas condições o poder estatal inspira aos cidadãos medo e respeito (reverentia et metus). Mas se tais condições forem perdidas, desaparecem respeito e medo “e o proprio Estado deixa de existir. Logo, o Estado, para permanecer senhor de si mesmo (sui iuris) é obrigado a manter as causas de medo e de respeito, sem o que ele não é mais um Estado. Os detentores do poder público (imperium) não podem, igualmente, apresentar-se em estado de embriaguez ou despidos na companhia de prostitutas, agir como palhaços, violar e desprezar abertamente as leis estabelecidas por eles mesmos, e assim agindo conservar a sua majestade. Isto é tão impossível para eles quanto ser e não ser ao mesmo tempo. Trucidar os cidadãos, despojá-los de seus bens espoliando-os, violar mulheres e outras coisas semelhantes, é mudar o medo em indignação e como resultado, o estado civil em estado de guerra (statum civilem in statum hostilitatis vertunt)”. ( )
Impossível lição mais contundente sobre a ética dos que legislam e administram o Estado. Spinoza não aceita a tese hobbesiana, que enuncia um pacto no qual os indivíduos perdem a liberdade política em favor do soberano. Este, no pensamento de Hobbes, assume a função de árbitro inquestionável das questões civís e jurídicas. Para que seja atenuada a guerra de todos contra todos, Hobbes não define o soberano como juiz, pois este deveria seguir leis prévias. Ele pensa o governante desligado (ab-soluto) das leis. Assim, ele não erra, porque nada tem diante de si para comandar a sua decisão. Os indivíduos, lobos uns dos outros, escolhem não continuar a matança e seguem a razão, o cálculo da sobrevivência, e obedecem a decisão de um árbitro contra o qual não lhes é mais lícito apelar. O arbítrio do soberano é a essência do Estado.
Spinoza recusa esse arbítrio e indica o Estado apenas como o instrumento para aumentar a potência dos cidadãos. Eles não perdem o estatuto de soberanos em prol de um rei ou de uma Assembléia, como ocorria em Hobbes. Reunidos no Estado, eles não o perdem, na exata medida em que, ao entrar em acordo entre sí, não deixam de ser indivíduos
livres. Eles não podem abandonar a sua condição natural. Deus, para Spinoza, é a substância infinita que possui atributos infinitos dos quais nós, os homens, expressamos dois apenas : o pensamento e a extensão. Não renunciamos, no Estado, à liberdade do pensamento, visto que somos apenas a individuação daquele atributo divino infinito. Não podemos alienar o divino que está em nós. Não renunciamos ao nosso corpo, visto também que somos a individuação do atributo infinito e divino que o contem. Deste modo, contra Hobbes, não negamos a nossa capacidade de pensamento ou força corporal quando a vida pública é instaurada.
Quem administra o Estado e para ele legisla deve levar em conta aquelas duas forças, a do pensamento e a dos corpos. Se as ignora e desrespeita, luta contra a natureza. Daí o exemplo, à primeira vista estranho, da mesa. Como, se digo que tenho poder absoluto sobre a mesa eu não posso entretanto obrigá-la a comer, visto que sua essência é puramente espacial, nenhum governante ou legislador pode editar mandamentos que desrespeitem a natureza dos homens, seres que pensam, desejam, têm paixões. Os homens pensam e possuem uma força lógica comum, a qual não suporta a contradição. Quando os legisladores ordenam não roubar e roubam, ordenam respeitar a pátria e não respeitam, ordenam procedimentos honestos e agem de modo desonesto, eles são percebidos pela inteligência dos cidadãos. Como a cidadania pensa, fala, escreve, os governantes indecorosos tornam-se cedo ou tarde conhecidos como tal e perdem respeito e reverência. O Estado que deseja ordenar a si mesmo, segue a razão. E a razão recusa contradições. Uma lei é universal ou não é lei. Ela vale para todos e qualquer um dos indivíduos do coletivo, sejam eles cidadãos ou legisladores, ou perde seu caráter. E um Estado onde as leis não valem universalmente, segundo a razão, não é Estado, mas quimera.
Spinoza é absolutista ao modo democrático. O povo soberano, a base do Estado, não aceita que ao mesmo tempo sua majestade seja obedecida e não o seja. Isto é contraditório. Sempre que os governantes ou legisladores mentem, desobedecem as leis, agem de modo a negar a dignidade do cargo, insultam a inteligência e os sentimentos, os corpos dos cidadãos.
Na vida coletiva, cada indivíduo possui uma força adequada ao seu corpo e ao seu pensamento. Isolados, os homens possuem uma força pequena. Unidos, a sua potência comum é práticamente ilimitada. E todo indivíduo ou Estado tende a perseverar em seu poder, sem levar em conta nada que seja exterior. Deixado ao seu desenvolvimento natural, os corpos dos indivíduos tendem a se expandir e a se prolongar no tempo. A luta pela sobrevivência é a regra. Esta luta, segundo Spinoza, não é abolida no Estado. Este apenas reúne forças e as administra racionalmente, em proveito de todos e de cada um dos cidadãos. Para viver em segurança e do melhor modo possível, os indivíduos devem se entender e passar a seguir a razão, encarnada nas leis universais. ( )
Logo, “nenhum pacto poderia ser válido, a não ser por causa do interesse que apresenta ao que o conclui. Desaparece o interesse? O pacto, ferido de nulidade, desaparece. Toda pessoa que pede à uma outra uma palavra perpétua é louca”. Os cidadãos obedecem enquanto isto lhes é útil e apenas quando notam que os demais cidadãos e os dirigentes e legisladores obedecem as regras comuns, as leis.
Todo homem tem um corpo com necessidades e desejos. “A mente humana” diz Spinoza, “é dominada pelo gosto do lucro, da vaidade, da inveja, da cólera, ao ponto em que a razão é emudecida”. Nos homens comuns, as promessas “de manter a palavra e os empenhos solenes, não trazem nenhuma segurança total, a menos que uma garantia positiva a ela se acrescente”. Esta garantia é a lei a ser mantida pelas autoridades e pelos legisladores, para exemplo e norma dos cidadãos. É deste modo que, enuncia Spinoza, os dirigentes não podem dar ordens contrárias aos interesses coletivos, mas devem agir de modo correto “e fundar seu governo em critérios racionais. (…) Num regime democrático, particularmente, as decisões absurdas não são muito temíveis, pois é quase impossível que a maioria dos homens, no interior de um coletivo considerável, coloquem-se de acordo com uma absurdidade”. Se o alvo do Estado é fazer com que os indivíduos deixem os desejos pessoais e sigam a razão comum, vivam em paz, as autoridades não têm o direito de entravar esta via.
A regra obrigatória para os governantes que dão ordens —e legisladores— não deve a sua própria salvação, “mas a do povo inteiro”. Na democracia, “nenhum indivíduo transfere seu direito natural a um outro (em proveito do qual aceitaria não mais ser consultado). Ele o transfere para a totalidade do coletivo que integram; os indivíduos permanecem assim todos iguais, como no estado de natureza”. ( )
No capítulo 17 do Tratado Teológico-Político, Spinoza adverte contra o abuso, pelos governantes, da força física e do poder de constrangimento: “guardemo-nos de medir a potência de uma autoridade pelo medo que ela inspira, pois neste caso nenhuma seria mais considerável do que a exibida por um tirano”. Ao mesmo tempo, “a fidelidade dos cidadãos, seu valor moral e sua constância na obediência das ordens recebidas são os fatores essenciais da conservação do Estado”. Sim, mas os cidadãos integram ao mesmo tempo o Estado como sujeitos racionais de direito e vivem enquanto massa “regida, não pela racionalidade mas pelos sentimentos e seus impulsos, o que os expõe, enquanto massa, às corrupções da cupidez e do desregramento. Os indivíduos que compõem a massa acreditam, cada um deles, tudo saber e cada um deles quer tudo decidir ao seu modo, e os eventos lhes parecem justos ou iníquos, desejáveis ou funestos, segundo eles lhes trouxerem uma vantagem ou desvantagem. Por vaidade, eles desprezam seus semelhantes, dos quais não aceitam nenhum conselho; invejam a reputação ou a sorte dos que —eles os encontrarão sempre— são mais favorecidos; desejam a infelicidade alheia e se deliciam com isto. Detenhamos aqui esta enumeração, pois ninguém ignora a quantos crimes a insatisfação e o gosto da novidade, a violência sem freio e o horror da pobreza empurram frequentemente os homens”. Com este panorama da massa onde lutam em guerra perene os indivíduos, diz Spinoza, “a organização do Estado, para remediar aqueles males, representa uma obra laboriosa, das mais árduas; trata-se de impedir todo jogo da desonestidade e criar as instituições que conduzirão os homens —qualquer que seja a sua disposição pessoal— a colocar sempre o direito do coletivo acima de sua vantagem particular”.
Todos os indivíduos imersos na massa mantêm os seus interesses e precisam ser conduzidos ao interesse comum. Se enxergam autoridades e legisladores que agem de modo a perseguir os seus alvos particulares e usam o Estado para isto, perdem a confiança na própria união estatal. “A menos que sejam completamente barbaros, os homens não suportam ser abertamente enganados e perder sua condição de cidadania para submeter-se à de escravos impotentes para realizar o seu interesse próprio”. Entre a massa e a cidadania ordenada racionalmente em Estado, há um salto proporcionado exatamente pela política. Ao contrário dos que defendem a repressão da massa, Spinoza enxerga na atividade política o meio de instituir o Estado democrático. A política, nele, é arte de transformar o vulgus em populo e o alvo “não é transformar os homens racionais em feras ou autômatos! O que se deseja dar-lhes é, pelo contrário, a plena latitude de viver em segurança as funções de seu corpo e de sua mente. Depois disto eles estarão em condições de raciocinar com maior liberdade, eles não mais se enfrentarão com as armas do ódio, da cólera, da astúcia e se tratarão mútuamente sem injustiça. Em resumo, o fim da organização no coletivo é a liberdade!”.
A exposição de Spinoza é pouco idílica. Se os homens não percebem nos dirigentes e legisladores a disposição de seguir e dar exemplos de cuidado supremo com as causas públicas, e se os governantes agem nos cargos como simples particulares que buscam seu interesse pessoal, o resultado é a perda gradual, no início e absoluta, depois, da confiança no coletivo estatal. E isto joga toda a massa na sua condição de massa, de vulgus, ou seja, no estado de guerra de todos contra todos. A ética e o decoro das autoridades e legisladores são a mola mestra do Estado. Um atentado contra eles, no caso dos administradores e dos que legislam, são mais graves do que o crime comum, porque arrancam dos cidadãos a fé na república, na liberdade, na democracia. E os jogam no morticínio sem esperanças de sobrevivência.
Deixo o maior pensador democrático do século 17 e chego ao nosso tempo. Importante monumento político sobre a sociedade contemporânea e a violência societária, é o livro de Elias Canetti, Massa e Poder. Expositor frio dos fenômenos que levaram aos desastres nazistas e fascistas e a todas as formas totalitárias e genocidas do século 20, Canetti mostra até que ponto a voragem das massas pode ser conduzida nos genocídios dos campos de concentração onde milhões foram abatidos.
O capítulo de Massa e Poder mais grave para a questão da ética e do decoro parlamentares é o intitulado “A essência do sistema parlamentar”. Nele, Canetti mostra que a política no Parlamento continua a guerra geral por outros meios. Os senhores sabem que esta tese vem de Clausewitz e define até hoje o pensamento estratégico das potências imperiais. A continuação da política na guerra, como a continuação da guerra na política são lados complementares, teorizados por Hobbes, por Maquiavel, por Platão e por Tucídides. Mas Clausewitz deu aos dois enunciados a sua abrangência máxima.
Em Massa e Poder, o parlamento é um campo de guerra prolongado. Os partidos constituem a extensão da estrutura psicológica dos exércitos combatentes. A essência parlamentar encontra-se nesse elemento bélico. A diferença encontra-se no fato de que a guerra no Parlamento é feita para avitar a guerra civil. Enquanto nesta última todos podem ser mortos, no Parlamento são escolhidos indivíduos que lutam em nome dos interesses de seus eleitores, mas não podem ser mortos. Este é o pleno sentido da imunidade parlamentar. Em vez das balas e das baionetas, os votos no plenário. Esta garantia repercute na vida civil, que vive sempre na guerra, dando-lhe condições de prolongar a vida.
“Numa votação parlamentar não há nada a ser feito senão verificar a força de ambos os grupos num mesmo lugar. Não basta que se conheça isto desde o princípio. Um partido pode contar com 360 delegados e o outro com 240; a votação continua sendo decisiva em todos os instantes em que existe uma verdadeira medição. Ela é o resquício do choque sangrento que se expressa de múltiplas maneiras com ameaças, insultos e agressão física, que pode levar a golpes ou a lutas. Mas a contagem dos votos representa o final da batalha. Supõe-se que os 360 tenham triunfado sobre os 240. A massa dos mortos fica fora do jogo. Dentro do Parlamento não deve haver mais mortos. Esta intenção é expressa da maneira mais clara na imunidade parlamentar, que tem um aspecto duplo: fora, em relação ao governo e aos seus órgãos; dentro, entre os seus pares (este segundo ponto geralmente não recebe a devida atenção).
Ninguém jamais acreditou realmente que a opinião da maioria numa votação seja, devido ao seu maior peso, também a mais sensata. Vontade confronta-se com vontade, como numa guerra; cada uma destas vontades tem a convicção do maior direito próprio e da própria razão(…) O sentido de um partido consiste justamente em manter vivas esta vontade e esta convicção. O adversário que fica em minoria não se submete porque de repente tenha deixado de acreditar em seu direito, mas apenas porque se dá por vencido. É fácil para ele dar-se por vencido, pois nada lhe sucede. Ele não é castigado por sua atitude hostil anterior. Caso se tratasse de colocar sua vida em jogo, ele reagiria de forma complemente diferente Ele conta porém com batalhas futuras. E o número destas batalhas não tem limite fixado e ele não morre em batalha alguma”.
Esta imunidade contra a morte é a essência de todas as demais imunidades parlamentares e a fonte de todas as garantias dadas aos cidadãos que seguem a lei redigida pelo Parlamento, sancionada e imposta pelo Executivo, julgada pelo Judiciário. O sistema representativo só funciona se ela existir. “Ele desmorona”, diz Canetti, “assim que algum posto seja ocupado por alguém que se permita contar com a morte de qualquer um dos membros da corporação” parlamentar. “Nada é mais perigoso do que ver mortos entre vivos. Uma guerra é uma guerra porque inclui mortos em seu resultado. Um parlamento só é um parlamento enquanto excluir os mortos”. Com a imunidade parlamentar vive e morre o parlamento de qualquer país.
Na eleição geral, a imunidade estratégica ainda não é a dos eleitores, mas a das cédulas de votação. “É permitido influenciar os eleitores de quase todas as maneiras, até o momento em que eles se comprometem definitivamente com o nome de sua preferência, que o escrevem ou que o assinalam. O candidato oposto é ironizado e entregue ao ódio generalizado de todas as maneiras possíveis. O eleitor pode parecer que não se decide em muitas batalhas eleitorais; se ele tiver orientação política, seus destinos variáveis têm para ele o maior dos encantos”.
A sacralidade do voto nas cédulas e a votação sem mortes, a imunidade parlamentar, afastam a matança que se mantem na vida civil. Todos os votos, o dos cidadãos e dos parlamentares, são anotados em números. “Quem joga com estes números, quem os adultera, quem os falsifica, volta a dar lugar à morte e nem sequer se apercebe disto. Os entusiasmados amantes da guerra, que gostam de fazer pouco das cédulas de votação, confessam desta forma suas próprias sangrentas intenções. As cédulas de votação, da mesma forma como os tratados, não passam de simples pedaços de papel para eles. Como estes papéis não estão manchados de sangue, não têm valor para eles; para eles valem apenas as decisões pelo sangue. O deputado é um eleitor concentrado; os momentos muito isolados em que o eleitor existe como tal acumulam-se muito mais para o deputado. Ele existe justamente para votar com frequência. Mas também é muito menor o número de pessoas entre as quais o delegado vota. Sua intensidade e o seu exercício devem substituir em excitação o que os eleitores extraem de seus grandes números”. ( )
Tanto o pensador político do século 17, quanto o premio Nobel no vinte, mostram a importância da ética e do decoro parlamentar para a vida em segurança mínima dos homens reunidos em sociedade. Segundo ambos, a guerra de todos contra todos não é abolida com o advento do Estado. Ela continua na vida civil, com toda a violência. O meio para atenuá-la é justamente a tarefa dos legisladores e dos governantes, os quais têm imunidade como se fossem portadores de bandeiras brancas no debate que suspende, no âmbito dos parlamentos, a matança, a cobiça, a rapacidade, os truques que os indivíduos e grupos usam uns contra os outros. Se existe fraude na bandeira, se existem pessoas que se julgam acima dos regimentos e das leis porque investidas da função parlamentar, se existe atentado à ética e ao decoro, desaparece o Estado, instaura-se a morte e a guerra como fruto daqueles atentados. Os senhores conhecem como ninguém a violência tradicional da sociedade brasileira, que se prolonga e agrava em nossos dias. Em nossa vida civil, a morte ronda as relações de vizinhança, de parentesco, comerciais, políticas, ideológicas. A capangagem, a prática do escravismo, o uso de mão de obra barata e jovem no tráfico de drogas, a barbaridade do trânsito urbano e nas estradas, as fraudes, o assassinato de mulheres pelos maridos em nome da pretensa honra, o estupro de crianças em pleno lar, os abortos clandestinos que jogam o nada sobre embriões e corpos de jovens mulheres aos milhares, as lutas ao redor da terra, o desprezo pelos pobres postos em mãos médicas canhestras ou de má fé, o descontrole das polícias cuja opção preferencial é pelos negros e demais negativamente privilegiados, os plágios universitários, a espionagem industrial, e temos uma lista infindável de crimes e práticas letais saídas da caixa de Pandora chamada sociedade civil brasileira.
Nesse universo de tristeza infinita, a confiança na palavra dos governantes e dos legisladores é o único meio de fazer com que os cidadãos abandonem as suas armas ou deixem de serem cúmplices ou vítimas dos que estão fora da lei. Quem frauda um painel de votação ou mente da tribuna, quem se apodera de bens públicos no orçamento nacional, quem desvia recursos para sua conta privada, comete crime de lesa fé pública e de golpe contra o Estado. Quem promete algo nos palanques e pratica o seu oposto nos palácios, dá um passo tremendo rumo à redução do povo soberano ao estatuto de vulgo sem dignidade. Ensina que a palavra dada não tem substância. E sem palavra confiável não existe Parlamento, porque o próprio nome, Parlamento, é o lugar que sucedeu a prática racional grega do Logos, do discurso racional que tranquiliza e protege os cidadãos. É isto que diz Canetti ao criticar os que adulteram votos. Eles, na verdade, desejam regimes sem votos, regimes onde o único voto permitido é a morte na guerra de cada um contra todos.
Citei o ensinamento dos maiores mestres do Estado para introduzir o nosso problema, justamente numa Casa abalada nas últimas décadas por gravíssimos atentados à ética e ao decoro. Em termos pessoais, como professor de ética na universidade pública, não me furtei à crítica e à análise pública daqueles problemas. Fui inclusive processado por um de seus pares porque não me calei diante de atentados às exigências éticas. Absolvido pela Justiça, continuo acreditando que o Parlamento é a via para atenuarmos a guerra de todos contra todos, gravíssima no Brasil. Se o Estado perde sua força e a fé pública, ganham terreno as potências da morte genérica, vencem os bandidos. É sintomático que as quadrilhas organizadas dominem parte do território de nossas grandes cidades, definam espaços de quase soberania (inclusive arregimentando colaboradores nos três poderes oficiais) na mesma proporção em que a cidadania perde a confiança no regime democrático e na política. Se fracassar no Brasil a vida dos parlamentos, a voragem da morte levará nossa esperança de vida, em primeiro lugar, e de vida livre e digna.
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Trapaças, vícios e virtudes. Uma leitura da razão de Estado.
Roberto Romano/Unicamp
Carl Schmitt se notabilizou por apresentar, no auge da tirania fascista, um texto no qual expõe a hermenêutica autoritária do Leviatã. (1) Partindo do Antigo Testamento ele indica, no monstro que encarna o poder, um símbolo que não pode ser visto de modo intelectual ou científico. Nas próximos instantes pretendo, sem esmiuçar em demasia os textos, dizer o exato contrário do controvertido jurista alemão. (2) Hobbes intimida qualquer leitor prudente. Mas sua argumentação racional é das mais poderosas na história da filosofia.
No Discurso Preliminar da Enciclopédia, uma passagem sugere a cautela do autor sobre a filosofia de Hobbes. À pergunta habitual relativa à formação da sociedade, o texto afirma que o vínculo entre os indivíduos aumenta a extensão das idéias existentes e gera outras, bem mais complexas das que eles teriam por si mesmos, sem os laços sociais. Cabe aos filósofos, afirma ainda o Discurso, a tarefa de julgar se a comunicação recíproca, unida à semelhança que percebemos entre as nossas sensações e as dos nossos semelhantes, contribui para fortalecer o nosso pendor invencível de supor a existência dos objetos que nos tocam. O prazer e a vantagem que encontramos no trato social, seja ao expor nossas idéias aos demais, seja ao unir as suas idéias às nossas, devem nos levar ao reforço dos laços coletivos já iniciados e torná-los, tanto quanto possível, mais úteis. O lado positivo da vida urbana, louvado no De cive, tem um aspecto sombrio segundo o Discurso. Cada habitante, diz o autor, “busca aumentar para si mesmo a utilidade que dela retira, precisando combater em cada um dos outros uma ânsia igual à sua, todos não conseguem ter a mesma parte das vantagens, embora todos tenham o mesmo direito. Um direito tão legítimo, pois, logo é desrespeitado pelo bárbaro direito da desigualdade, a lei do mais forte cujo uso parece nos confundir com os animais. Mas de semelhante direito, no entanto, difícil é não abusar. Deste modo a força, concedida pela natureza a alguns homens, força que eles deveriam empregar
apenas para sustento e proteção dos fracos, torna-se pelo contrário a origem da sua opressão. No entanto, quanto mais violenta é a opressão, mais eles a sofrem com impaciência porque sentem que nela nada razoável deve sujeitá-los. Daí a idéia do injusto e por conseguinte do bem e do mal moral, cujo princípio é buscado pelos filósofos. O grito da natureza, o qual ressoa em todo homem, ecoa mesmo nos povos mais selvagens. Daí também esta lei da natural que encontramos em nosso interior, fonte das primeiras leis que os homens formaram : sem o recurso dessas leis ela, algumas vezes ela é forte o bastante para aniquilar a opressão ou pelo menos contê-la em certos limites. O mal que sofremos, pelos vícios de nossos semelhantes, produz em nós o conhecimento refletido das virtudes, opostas aos mencionados vícios; conhecimento precioso do qual seríamos privados se ocorresse a união e igualdade perfeitas”. (3)
Em 1740, o rei Frederico II da Prússia sobe ao trono e redige a réplica virulenta do escrito publicado por d´ Holbach, o Ensaio sobre os Preconceitos. Trata-se do mesmo soberano que ainda em 1778 fez a seguinte pergunta para concurso da Academia, em Berlim : “Seria útil enganar o povo?”. O mesmo Frederico escrevera um libelo contra Maquiavel, com afirmações moralistas que, supostamente, desvendariam a virulência tirânica do Florentino. Diderot assume a defesa de d´ Holbach, o qual solicitara aos soberanos que renunciassem aos “preconceitos” de nobreza e glória militar. Além disso, seu ensaio pedia que se falasse a verdade ao povo. Diderot analisa a leitura de Frederico contra o Ensaio numa carta, o que fornece à sua crítica um tom enganosamente velado. (4)
Diderot indica que d´ Holbach, no Ensaio sobre os Preconceitos, expõe o mundo cheio de mentirosos, salafrários, opressores de todo tipo, esta a realidade : reis despóticos e cruéis, ministros violentos e ávidos, padres astuciosos, fanáticos, pessoas cegas pelas paixões, pais duros e negligentes, filhos ingratos, esposos pérfidos. Dessa maneira, o filósofo mostra que d´ Holbach segue Spinoza que, no Tratado Político (5) compara o moralista e o político. Sendo moralista, o Ensaio deveria manter-se no plano utópico e “ideal” enquanto Frederico, um rei, deveria ser mais preso ao real. Há uma diferença efetiva, mas que joga em favor de d´ Holbach. Embora acentue o lado baixo da existência humana, ele afirma que os homens procuram a verdade. Frederico, de seu canto, critica o pessimismo do Ensaio, mas se refestela com o segredo, a mentira e a razão de Estado. D´ Holbach mostra que os homens não poderiam se enganar sem ferir a si mesmos, pois a felicidade efetiva encontra-se no verdadeiro. Assim, não se deve julgar os seres humanos pela sua ação, mas pelo que buscam. Todos os homens podem afirmar após Medéia : “Vejo o bem e o aprovo, mas é o mal que me arrasta”. (6)
A sociedade não pode existir sem a verdade. Esta tese recolhe a noção republicana da fé pública (o termo inglês, que vem do século 17 e da Revolução Puritana é accountability), mas exige que o segredo e a dissimulação sejam atenuados ao máximo. A mentira e seus assemelhados ameaçam o coletivo, pois corrompem o juízo e as condutas. A simples busca da verdade diminui o fanatismo e, diz Diderot, o rei da França pode permitir que os padres falem ao povo nos domingos entre 10 e 11 horas, e também tem condições de murmurar : “Agora mesmo, cinqüenta mil salafrários falam o que melhor lhes parece a dezoito milhões de imbecis; mas graças a meu punhadinho de filósofos, a maioria desses imbecis ou não
acreditarão no que ouvirem, ou se acreditarem não significarão o menor perigo para mim”.
A verdade reside na busca, nunca na posse absoluta do verdadeiro por indivíduos ou coletividades. O intolerante sendo odioso, é preciso separar as idéias de probidade e de existência divina. Seja qual for o culto sagrado, ele é compatível com a virtude. “Que os homens pensem do ser divino o que desejarem, desde que deixem em paz os que pensam de maneira diferente”. Esta frase na qual ressoam as lições de Pierre Bayle, (7) também recorda toda a forma e conteúdo do ensino hobbesiano. Mas agora surge uma afirmação que dificilmente seria admitida por Hobbes. Diderot critica Frederico porque o rei, ao analisar o texto de d´ Holbach, afirma ser necessário respeitar a forma do governo sob a qual se vive. Caso o soberano queira dizer que é preciso respeitar as leis da sociedade, da qual todos são membros, não existiria dificuldade em seu enunciado. Mas se tais leis forem ruins, seria necessário silenciar? A resposta hobbesiana seria positiva, porque o juízo sobre as leis não é de competência dos juízos privados. Não é o caminho assumido por Diderot, que pergunta como o legislador teria consciência dos erros em suas leis, se ninguém falasse ? E se uma dessas leis determinasse a pena de morte para quem atacasse a legislação funesta, seria preciso curvar-se diante dela? Com esse passo, Diderot afasta o enunciado hobbesiano de que a verdade não tem conexões com a vida pública.
É essencial recordar que a soberania, em Hobbes, exige o banimento na ordem pública dos juízos com origem privada, pois eles geram a polêmica. Não existe, segundo o filósofo, padrão ou medida comum para o juízo moral. Indivíduos diferentes percebem as coisas de modo diferente, pois desenvolvem diferentes paixões. Ninguém concorda sobre o que é benéfico ou maléfico, certo ou errado, justo ou injusto. E o juízo de cada um tende a se
ampliar ao infinito, na medida mesma do desejo nele presente, desejo que desconhece limites (pleonexia). A guerra de todos contra todos não é apenas física, mas também psicológica, pois inveja e ódio campeiam, cada indivíduo julga-se mais esperto do que o outro. Paixões diversas e igualdade no poder mortífero, levam à morte. É impossível arrancar a força física dos homens, mas é factível fazê-los abdicar de seu juízo privado. No pacto todos renunciam ao seu juízo particular em proveito de um homem ou assembléia. Em termos jurídicos, visto que todos possuem um direito mesmo direito natural, cada um pode aderir ao pacto. Assim, todos renunciam ao seu direito sobre tudo e submetem-se ao juízo de um árbitro, seja ele individual ou coletivo, aceitando-o como seu. Só o soberano guarda o seu direito natural, com o pleno uso da força física e do juízo próprio. (8)
O soberano concentra o poder de julgar em todas as matérias, nas leis, na administração, nos tribunais, na guerra ou paz, controla a religião, decide o bom e o ruim. Este é o pressuposto para colocar limites sólidos contra os desejos infinitos dos indivíduos. Como todos abrem mão do juízo privado, pouco sobra ao direito de resistência que nele reside. É preciso aceitar que as coisas são diferentes do modo pelo qual a concebemos. Entre o mundo como o vemos em nós e o mundo tal como existe, ocorrem diferenças, pois construímos um mundo pela imaginação que, por sua vez, é movida pelos nervos. O intelecto humano não possui um perfeito conhecimento do mundo externo ou interno aos demais homens. O estratégico para os indivíduos “não é a verdade, mas a imagem que faz a paixão. E a tragédia afeta mesmo um
assassino, se ela for bem desempenhada” (The Elements of Law). A paixão causada pela imagem traz rebeliões e guerras. O uso correto dos nomes e palavras não consiste na verdade, mas apenas serve para evitar ambigüidades nocivas. A distinção entre o interior e o mundo externo, a imaginação e o efetivo, fundamenta a tese da ausência um padrão, ou medida comum de bem e mal. (9) Os indivíduos não atingem a concórdia sobre o certo e o errado, portanto são incompetentes para emitir tais juízos. “Os homens, veementemente amorosos de suas próprias novas opiniões (mesmo as mais absurdas) e decididos com obstinação a mantê-las, também deram às opiniões o reverenciado nome de consciência, como se julgassem fora da lei mudá-las ou falar contra elas”.
Logo, “é evidente que, seja o que for que acreditemos tendo como única razão para tal a que deriva da autoridade dos homens e de seus escritos, quer eles tenham ou não sido enviados por Deus, nossa fé será apenas fé nos homens”. (10) Diderot volta às sendas hobbesianas logo a seguir, mas inova na crítica ao “reino das trevas” denunciado no Leviatã. Ele critica a tese de Frederico sobre os nexos entre o clero e o trono. Acreditando-se racionalista e desprovido de preconceitos, o soberano alemão concorda com a tese de que é o povo supersticioso que prende o monarca em seu cargo. E se é o clero que alimenta a superstição, conclui Frederico, é preciso apoiar o clero. (11) “Este raciocinador seguramente não é soberano ou filósofo” (12)
Diderot, nessa frase, ataca Frederico, em duas frentes. Na escrita diderotiana, raisonneur pode assumir o significado de “sonhador” ou “tolo”. É o que se passa no Entretien d’ un Philosophe avec la Maréchale de ***: Um jovem mexicano, cansado de seu trabalho, passeava um dia à beira-mar. Deu com uma tábua cuja ponta estava imersa na água. E passou a raisonner sobre as lendas de seu povo, dormindo. Enquanto dormia, ele terminou navegando na tábua, em pleno mar. “J’ai raisonné comme un étourdi, soit ; mais j’ai été sincère avec moi-même ; et c’ est tout ce qu’ on peut exiger de moi. Si ce n’ est pas une vertu que d’ avoir de l’ esprit, ce n’ est pas un crime que d’ en manquer”. (13) Assim, o raisonneur é uma espécie de sonhador que joga seus arrazoados contra as crenças comuns do povo, mas o que ele tem para trocar por aquelas crenças é apenas a sua febre de argumentos. Trata-se de uma forma de douta tolice. (14)
No Sobrinho de Rameau, a crítica do raisonneur é mais complexa, visto que o diálogo trata desse problema exatamente quando se discute tendo no pano de fundo a crítica ao pensamento de Leibniz, a doutrina do otimismo. O fio condutor é a natureza que produz bons frutos, segundo personagem “Eu”. E logo replica “Ele” : “mas se a natureza fosse tão poderosa quanto sábia; porque ela não faria os frutos tão bons quanto grandes?”. E observa “Eu” : “Mas você não enxerga que, ao usar semelhante raciocínio, subverte a ordem geral, e que se tudo aqui embaixo fosse excelente, nada seria excelente?”. “Ele” assume o questionamento agostiniano sobre a teodicéia, retomado em Leibniz : “Porque, se Deus fez todas as coisas, ele não as fez todas iguais?”. (15)
Agostinho apresentou a sua fórmula: non essent omnia, si essent aequalia (se todas as coisas fossem iguais, nada seria). “Ele” deixa a “igualdade” momentaneamente e passa à “excelência”. E o sobrinho concorda: “Você tem razão. O ponto importante é que você e eu sejamos, e que sejamos eu e você. Que tudo vá como é possível. A melhor ordem das coisas, na minha opinião, é aquela onde eu deveria estar; e dane-se (na verdade, o termo usado por Diderot —foin— é bem mais chulo) o mais perfeito dos mundos, se nele não estou. Prefiro ser, e mesmo impertinente raciocinador (raisonneur) do que não ser. Eu.- Ninguém que pensa como você deixa de fazer o processo da ordem que é; sem perceber que renuncia à sua própria existência. Ele.- É verdade. Eu.- Aceitemos pois as coisas como elas são. Vejamos o que elas nos custam e o que nos rendem; deixemos de lado o Todo que não conhecemos o bastante para louvá-lo ou criticá-lo; e que talvez não nem bem nem mal; se ele é necessário, como muitas pessoas honradas imaginam”. No trato coletivo o “melhor” (como, por exemplo, os intermináveis debates sobre o melhor governo, se a monarquia, a aristocracia, a democracia) só pode ser dito pelos que possuem a visão da totalidade. Estes são deuses. Cabe aos seres finitos o cálculo e o raciocínio (raisonnement). Se um indivíduo é fraco raciocinador, mesmo assim o seu cálculo é mais efetivo do que afirmações dogmáticas sobre “o melhor”. Assim, raisonneur apesar de se inscrever no interior do texto mais satírico e ácido dentre os escritos por Diderot, não pertence à sátira como no primeiro caso, o do jovem mexicano.
O terceiro significado da palavra raisonneur na pena de Diderot encontra-se no artigo “Direito Natural” da Enciclopédia. Aqui o termo adquire sentido polêmico contra Hobbes. Tomemos o Capítulo 5 do Leviatã. “Quando um homem raciocina (Reasoneth), ele nada mais faz do que conceber uma soma total, a partir da adição de parcelas, ou um resto a partir da subtração de uma soma a outra; o que, (se feito com palavras) é conceber a consequência dos nomes de todas as partes para o nome da totalidade, ou dos nomes da totalidade e de uma parte para o nome da outra parte (…) Os escritores da política adicionam pactos (Pactions) para achar os deveres (duties) dos homens. E os juristas somam leis e fatos para descobrir o certo e o errado na ação dos homens privados. Em suma, em qualquer matéria onde existir uma adição e subtração haverá lugar para a razão (Reason). Onde aquelas não tiverem lugar, também a razão nada a fazer”. Assim, “razão” é cálculo, nada mais. Todo homem pode errar no cálculo, o que não quer dizer que inexista a razão. “Assim como ao surgirem controvérsias sobre um cálculo as partes precisam, por mútuo acordo (by their own accord) recorrer à razão certa de um árbitro ou juiz, a cuja sentença se submetem, a menos que sua controvérsia se desfaça e permaneça indecisa por falta de uma razão certa constituída pela natureza. O mesmo ocorre em todos os debates, de qualquer natureza. Quando homens se julgam mais sábios do que todos os demais gritam e exigem uma razão certa para juiz, eles só procuram garantir que as coisas sejam asseguradas não pela razão dos outros homens, mas pela sua. É intolerável, na sociedade e no jogo, uma vez escolhido o trunfo, usar como trunfo em todas as outras ocasiões a série de que se tem mais cartas na mão. Então os “jogadores” nada mais fazem do que tomar cada uma de suas paixões, à medida que elas neles surgem, pela razão certa, e isso em suas próprias controvérsias, revelando a falta de justa razão com a exigência que dela fazem.” (16) Pinturas conhecidas no mundo artístico e político mostram a atitude do “tricheur” que joga com a simulação e a dissimulação. Entre muitas, a de Georges La Tour (talvez 1593, morto em 1652), ou a de Caravaggio (Os Trapaceiros, por volta de 1594).
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Note-se, naqueles quadros, o jogo dos corpos e dos olhares. Tudo se define no plano da dissimulação, especialmente os rostos e as mãos. Torquato Acetto, embora em seu pequeno texto (17) invective a fraude, ao descrever a dissimulação indica bem o que a raison d´ État renascentista e moderna assume como essencial —La dissimulazione è una industria di non far veder le cose come sono. Si simula quello che non è, si dissimula quello ch’ è— (18) para manter o segredo e afastar os ouvidos e olhos do povo comum, os ministros e seu rei usam a fraude unida à dissimulação. Antoine Mizauld, em 1565, escreveu um livro para ajudar as pessoas a “julgar incontinenti o natural de cada um apenas pela inspeção da face e dos seus lineamentos”. Como indica Giovanni Macchia, o cardeal Mazzarino (ou o pseudo-Mazzarino) ensinava, com base nesta técnica, a distinguir o indivíduo astucioso e fraudulento pois este possuiria uma saliência na fronte, na altura pouco acima do nariz. O mentiroso teria, ao rir, duas saliências nas bochechas. Assim, o poderoso busca descobrir os intentos secretos de seus inimigos ou liderados nos menores gestos, nas mais tranqüílas situações. Não apenas os olhos eram movidos nesta descoberta: todos os sentidos entravam na economia do desvelamento. Trata-se de uma economia global do corpo a serviço da razão secreta do Estado. A situação perfeita, para os governantes, seria a de plena transparência dos inimigos e dirigidos, e a sua plena obscuridade própria. (19)
Afinal, o que é a raison d´ État ? Um analista diz que ela se assemelha ao jogo viciado. O governante que a usa para validar atos e tratados opostos às leis comuns do país, age como o jogador desonesto ou mau perdedor : quando as regras do jogo não lhe são favoráveis, ele trapaceia em segredo e quebra todas a sequência da partida. Deste modo, ele arranca dos cidadãos a confiança, a fé pública, base mesma da instituição do Estado. (20) Esta metáfora do jogo e das regras é antiga na filosofia política. No exato século em que a razão de Estado se firmou, um dos filósofos mais agudos da modernidade, Blaise Pascal, construiu a partir dela toda uma moral, uma política, uma teologia. A vida humana é jogo. As regras supremas são de acesso dificil aos homens. Só Deus joga com absoluta certeza. E ganha sempre. No caso humano, tudo é incerto, sobretudo no campo das leis e da política. Esta antropologia, que hoje volta a ser um assunto de interesse filosófico e político, é nuclear na história do pensamento moderno. (21) Nela, importa a idéia do cálculo como elemento básico da política, plataforma da razão de Estado. O governante que sabe calcular as suas oportunidades e as de seus inimigos tem condições de, pelo menos, desrespeitar sem muitos prejuízos as regras “normais” do jogo diplomático, bélico, ou de política interna, como por exemplo nas escolhas para os dirigentes públicos. (22)
Se atentarmos novamente para as linhas do Leviatã, notamos que Hobbes afasta a fraude no “jogo” da sociedade civil, mas em proveito do soberano que não está preso a regras. Os particulares não têm mais direito (porque assumiram o pacto) de viver segundo a fraude. O
soberano, cuja função é salvar o povo de todas as maneiras, sobretudo dos inimigos que pertencem aos Estados estrangeiros, não sofre esta limitação. O jogo opera com a inteligência e a imaginação dos indivíduos. Na sociedade civil, se todos podem jogar sem obedecer as regras, desaparece a essência mesma do jogo, porque nenhum dos jogadores parte da igualdade das chances, visto que o truque não se revela e nem pode-se indicar quem o usa (caso contrário, o jogo acaba e se transforma em guerra). O jogador sem regras usa o segredo, a simulação e a dissimulação. Ele finge seguir as regras, mas guarda para si mesmo o fato de que as desrespeita, simulando aceitá-las e dissimulando os truques. O jogador comum opera com a imaginação e a discrição: ele deseja ganhar, imagina-se no instante em que vence (pode imaginar os frutos do ganho como por exemplo riquezas, amores, etc) e ao mesmo tempo não pode revelar suas cartas. O jogador que não segue as regras (e, portanto, não é um jogador) deve usar a discrição, a imaginação, a simulação e a dissimulação. Ele opera como se estivesse em pleno direito natural. Mas seu intelecto (Wit) não é imediatamente natural, porque ele possui experiência e consegue enganar os demais se tiver uma imaginação rápida. Caso contrário, será bisonho ladrão de cartas. A imaginação sem discrição dificilmente é força.
E Hobbes apresenta a diferença entre o poeta e o historiador, um lugar comum que remonta a Aristóteles. O poeta usa a imaginação e o juízo, seus trabalhos devem agradar pela extravagância, mas não devem desagradar pela indiscrição. O historiador usa o juízo com método e verdade, a imaginação deve apenas ornamentar o estilo. Quem move o intelecto no jogo exerce uma deliberada dissipação da mente (mind), como ocorre na ordem familiar onde é permitido jogar com os sons e palavras equívocos. Alí permite-se a desregrada sequência da imaginação (Fancy), mas jamais num sermão ou em público diante de pessoas desconhecidas ou às quais é devido reverência. A discrição é fundamental, porque ela traz as regras do trato entre os indivíduos, regras que determinam a loucura (brilhante, pouco importa) de uns e a lucidez de outros. Juízos sem imaginação (Fancy) mostram inteligência (Wit), mas imaginação sem juízo foge do engenho. É possível ser discreto e prudente, mas perverso. “Caso à prudência se acrescente o uso de meios injustos ou desonestos, como os que os homens são levados pelo medo e pela necessidade, temos a perversa sapiência (Crooked Wisdome) a que se chama astúcia (Craft), sinal de pusilanimidade. A magnanimidade é o desprezo pelos expedientes injustos ou desonestos. Aquilo que os latinos chamam Versutia —versatibilidade— e consiste no afastamento de um perigo ou incômodo presente, mediante a passagem a um maior ainda, como roubar uma pessoa para pagar a outra, astúcia de vistas curtas”.
Como fazer com que todos os jogadores sigam as regras, sem truques? “As leis da natureza (justiça, equidade, modéstia, benevolência, em suma fazer aos outros o que gostaríamos que eles nos fizessem, por si mesma, sem o terror de algum poder, para fazê-los observá-las, são contrárias às nossas paixões naturais, que nos empurram para a parcialidade, orgulho, vingança etc. E pactos sem a espada, são apenas palavras (Covenants, without Sword, are but Words) e não possuem nenhuma força (strength) para assegurar um homem”.
O terror do poder dita as regras do jogo político e as impõe para todos e para cada um. Leis civis, os homens são obrigados a respeitar. Uma lei não é conselho, mas ordem dada pelo soberano, regra que o Estado impõe oralmente ou por escrito, ou por algum sinal suficiente de sua vontade, para uso e distinção do bem e do mal, do que é contrário ou não à regra (Rule). As leis são interpretadas pelo soberano e apenas por ele, ou pelos que ele designa para a tarefa de julgar. Elas não são julgadas pela razão dos particulares, porque implica em contradições dos intérpretes com suas escolas. “Se os homens tivessem liberdade para considerar como divinos os seus próprios sonhos e fantasias (fancies) não mais de dois homens concordariam (agree) sobre o que são os mandamentos de Deus. Quando o juízo privado pretende mudar as leis e o poder público, os que agem tendo em vista sua “consciência” assumem o papel de estraçalhadores da Commonwealth. No De cive (capítulo 12) lemos que “muitos homens, que mesmo sendo bem apegados à sociedade civil, fazem por carência de saber (knowledge) inclinar a mente dos súditos à sedição, quando ensinam, aos jovens, a doutrina conforme às suas opiniões nas escolas, e ao povo todo nos seus púlpitos. Os que desejam levar aquela disposição aos atos, colocam todo o seu esforço nisso: primeiro, eles juntam todos os doentiamente afetados na facção e na conspiração; depois, eles mesmos buscam ter a maior força na facção. Eles os colocam na facção enquanto fazem de si mesmos os relatores e intérpretes dos conselhos e ações do homem individual, e nomeiam as pessoas e lugares para reunião e para deliberar sobre as coisas nas quais o governo atual deve ser reformado, segundo deve parecer melhor aos seus interesses. O alvo é fazer deles mesmos os que governam a facção e a facção deve ser tolhida por uma outra facção; ou seja, eles devem ter suas reuniões secretas em separado, apenas com poucas pessoas, reuniões nas quais eles podem ordenar o que devem a seguir propor numa Assembléia Geral, e por quem, e sobre quais assuntos e em que ordem cada um deverá falar, e como eles atrairão os mais poderosos e populares dentre os homens para a facção de seu lado. E quando eles conseguem grande o bastante, a qual podem dirigir (rule) pela sua eloquencia, eles a mobilizam para administrar os negócios. E assim, às vezes eles oprimem a sociedade (Commomwealth) quando não existe outra facção maior para se opor a eles; mas na maioria das vezes eles conseguem fazer aquilo e começam uma guerra civil. Porque a loucura e a eloquência concorrem para a subversão do governo, de maneira igual à das filhas de Pélias, rei da Tessália, que conspiraram com Medéia contra seu pai. Elas iam restaurar o ancião decrépito em sua juventude, por conselho de Medéia cortaram-no em pedaços e o colocaram para ferver; em vão esperando o momento em que ele viveria novamente. Assim o povo comum em sua loucura, como as filhas de Pelias, desejando renovar o governo antigo, é conduzido pela eloquência de homens ambiciosos, como se tivessem enfeitiçados por Medéia; divididos em facções eles consomem em chamas em vez de reformar o governo”. (23)
Vejamos agora a versão diderotiana da mesma fábula escrita por Ovidio: “a condição do restaurador de uma nação corrompida é bem diferente. É um arquiteto que se propõe erguer sobre uma área coberta por ruínas. É um médico que se propõe tentar a cura de um cadáver grangrenado. É um sábio que prega a reforma a pessoas endurecidas. Ele só tem ódio e perseguições para obter da geração atual. Ele não verá uma geração futura. Ele produzirá poucos frutos, com muito trabalho, durante sua vida; e só obterá estéreis lamentos depois de sua morte. Uma nação só pode se regenerar num banho de sangue. É a imagem do velho Esão, a quem Medéia só concedeu a juventude cortando-o em pedaços e fazendo ferver. Quando ela decaiu, não cabe aos homens fazê-la levantar-se. Parece que tal obra é devida à uma lonfa sequência de revoluções. O homem de gênio passa muito rápido, e não deixa posteridade”. (24) Diderot distorce a história contada por Ovidio (Metamorfoses, 7), onde Medéia rejuvenesce seu sogro. Esão, cortando sua garganta e tirando o seu sangue, dando-lhe uma transfusão de sangue de ovelha, leite, vinho e outras iguarias. Seguindo este portento,Medéia engana as filhas do inimigo de Esão e irmão, Pélias, que desejavam também aumentar a vida do seu pai, fazendo-as despedaçar os seus membros e fervê-los, o que o matou. Diderot expõe num só lance dois episódios —o rejuvenescimento de Esão e o esquartejamento de Pélias— para mostrar que um indivíduo solitário não consegue regenerar o corpo político, apenas uma “longa sequência de revoluções sangrentas.
Diderot conhecia muito bem os escritos de Hobbes. A Enciclopédia está cheia de referências ao filósofo inglês e não apenas no verbete “Hobbismo”. No artigo “Vintième” discute bastante o pensamento de Hobbes. Diderot não se preocupa com a parte em que são condenadas as reformas e a eloquência, mas se volta para as passagem em que são decepadas pela sátira as pretensões de soberania espiritual da Igreja, no item do Leviatã intitulado “Reino das Trevas”. O colaborador de Diderot, Jaucourt passa por Hobbes em artigos como Contrat, Engagement, Estime, Injustice, Malmesbury, Morale, Rutland, Shropshire, Société, Sujet. Jaucourt, no artigo Sujet, recorda Antigona na peça de Sófocles: “Hobbes não teria fugido da questão mais importante que se coloca sobre a relação súdito-soberano, ou seja, se um súdito pode seguir inocentemente uma ordem que sabe injusta e que o soberano lhe prescreve formalmente, a sua resposta está longe de nos satisfazer. Hobbes sustenta que ser preciso distinguir se o soberano ordena fazer em nosso nome uma ação injusta que seja dita nossa, ou se ordena seguir em seu nome uma ação injusta e como simples instrumentos. No último caso, ele pretende que se pode efetivar sem medo a ação ordenada pelo soberano, que deve ser considerado como o único autor sobre quem deve recair a culpa. A distinção, para Jaucourt (e antes para Burlamaqui) não resolve a dificuldade porque “de qualquer modo que um súdito opere de modo ilícito, seja em seu nome próprio, seja em nome do soberano, a sua vontade concorre para a ação injusta e criminosa (…) é pois verdade que em toda ordem do soberano evidentemente injusto o que pareça injusto, ocorre mostrar coragem nobre, refutar seguí-lo, resistir com toda força à injustiça porque mais vale obedecer a Deus do que aos homens, qualquer que seja o seu cargo nesta terra (…) Eu não acreditava, diz Antigona a Creonte, rei de Tebas, que os editos de um homem mortal como tu, devessem prevalecer sobre as leis dos próprios deuses, leis não escritas na verdade, mas certas e imutáveis”. (25)
Cavallo, na obra citada, indica o verbete “Vintième” como uma espécie de reabilitação de Hobbes. Diderot afirma que os princípios autoritários do Leviatã devem-se às infelicidades pessoais do autor e à necessidade das circunstâncias nas quais ele viveu : “ocorre com essas obras políticas como o passado com o Principe de Maquiavel; os que apenas viram o sentido aparente que eles possuem, não compreenderam o verdadeiro”. Donde Hobbes e Maquiavel devem ser interpretados de maneira diferente ao jeito comum da cultura européia. Hobbes, ao fazer a apologia do soberano, tinha apenas o fito de conseguir um pretexto de satirizar a divindade à qual ele o compara, e à qual nenhum homem honesto desejaria assemelhar-se. Aceitando-se apenas a superfície dos textos “de um dos maiores lógicos” de seu tempo, é difícil não enxergar no Leviatã uma ordem tirânica. Mas, replica Diderot, “como presumir que um raciocinador (raisonneur) tão profundo tenha pensado que um ser qualquer pudesse dar sobre si mesmo para um outro ser da mesma espécie um poder indefinido, e que por consequência desta concessão, este pudesse ser na verdade um ser malévolo, mas nunca injusto? Como imaginar que ele tenha acreditado que aquele a quem o direito da guerra permitia matar no estado de natureza, submeter-se-ia a toda sorte de serviços e obediências para com aquele que deseja conservar sua vida com esta condição, e que esta obrigação é irrestrita para tudo o que ele desejar ? Esta proposição anuncia muito distintamente várias contradições. 1 . O vencedor, segundo este sistema medonho, poderia exigir do vencido que ele se matasse, assassinasse seu pai, sua mulher, filhos, enfim, que ele sacrificasse o que é mais caro e se curvasse a esta escravidão infame que pode conservá-lo. 2 . Se é verdade que na natureza o mais forte mata o mais fraco que lhe resiste, não é verdade que ele o faça seu escravo. (…) Onde as obrigações não são recíprocas, as convenções são nulas…Não seria um abuso das palavras e da faculdade de raciocinar (raisonner) dizer que o magistrado que tem o seu poder da lei, não está submetido à lei? Apesar de Santo Agostinho que o afirma, e apesar de todos os sofismas que se pode cometer para sustentar esta asserção desumana, é claro que ao transgredir a lei que lhe dá autoridade, o magistrado derruba os fundamentos de seu pode (…) Se Hobbes tivesse realmente pensado, como ele diz (…) que um povo que colocou seu direito nas mãos de um tirano não subsiste (…) a multidão (como a chama Hobbes depois que este direito foi entregue) diria ao tirano: ´não sou mais o povo de quem você recebeu o direito que deseja exercer : dado que sua eleição me nadifica, não sendo eu mais o que era quando contratei com você, sendo uma outra pessoa, não estou mais obrigado a seguir nenhuma de suas condições´”. Diderot “esquece” que o povo contrata com o povo, o rei não contrata com ele. Uma dificuldade hermenêutica bem grave para a leitura “inovadora” de Hobbes…
A defesa do povo e dos indivíduos, contra Hobbes, apresenta em Diderot vários matizes que devem ser analisados com precaução máxima. Antes de seguir adiante, vejamos a imagem do povo antes do século 18, na França. As batalhas entre os reformados e católicos, pensam os juristas do rei, ameaçam o Estado. É preciso dar um fim às rebeliões geradas em nome das causas religiosas. Em janeiro de 1562, o dirigente L´ Hospital (26) fala em nome do rei e dirige a Assembléia composta de Presidentes e Conselheiros dos Parlamentos da França, reunidos em Saint-Germain-en-Laye. A tentativa é, uma vez mais, atenuar as querelas e lutas físicas entre o partido católico e huguenote. Carlos IX (1550-1574) abre os Estados Gerais (13/12/1560) e participa do Colóquio de Poissy, entre os dois cultos religiosos. O Colóquio foi organizado por Catarina de Médicis e Michel de l´ Hospital, tendo por alvo aproximar os inimigos. Único resultado: a lista dos desacordos. Em 31/01/1561, um Ordenamento é assinado pelo rei em Orleans, proibindo as perseguições contra os protestantes, autorizadas por Henrique II. Mas as querelas aumentam. O duque de Guise, católico, tudo faz para gerar uma guerra civil, cujo primeiro passo seria o “Massacre de Wassy”. O nobre queria assistir a missa, se irrita com os cantos protestantes, entra no lugar onde aqueles últimos se refugiavam e os massacra. Este fato produziu a primeira guerra de religião moderna na França. Os protestantes, comandados por Louis de Condé e pelo Marechal Coligny perdem em Dreux (19/12/1562). Guise cerca Orléans, sendo assassinado por um protestante. Enquanto isso, Antoine de Bourbon, um chefe protestante, é morto em Rouen. Catarina de Médicis aproveita o sumiço de ambos os chefes e assina a paz, oferecendo liberdade (apenas privada) de culto aos huguenotes.
Carlos IX, maior a partir de 1563, anda pela França durante 1564 até 1566 e leva consigo Henrique de Navarra, que reinará como Henrique IV. O alvos das viagens é reconciliar os inimigos religiosos sob o manto real. Na sequência da guerra religiosa, condé cai na batalha de Jarnac e é executado. O marechal Coligny refugia-se em La Rochelle. Finalmente Catarina de Médicis assina a paz em 1570. Neste ano o rei se livra da tutela materna e continua a tentar a união dos inimigos. Em 1570 ainda (08/08) em Saint-Germain são oferecidas algumas garantias aos huguenotes e La Rochelle, Cognac, Montauban são ditas cidades protestantes. A liberdade de culto é oferecida, menos em Paris. Toda essa política tem inspiração em Michel de l’ Hospital. Coligny retorna ao círculo do rei, onde adquire influência, inclinando o soberano à guerra contra a Espanha. Catarina, católica e política de ferro, arrisca novamente a guerra civil. A família Guise quer vingar a morte de seu chefe e tenta matar Coligny contratando assassinos de aluguel. Em 22/08/1572, Coligny sofre um atentado, recebendo a visita do rei que, no entanto, assume a idéia de Catarina de acabar com os protestantes, acusados de, sob liderança de Coligny, subverter o Estado. O Marechal é executado com requintes de crueldade. Depois de sua morte, durante cinco dias, a partir de Paris ocorrem os massacres conhecidos como “A noite de São Bartolomeu” (na verdade, as noites…) praticados em Lyon, Dijon, Blois, Tours causando algo ao redor de 15 mil mortos. O rei perde a confiança dos súditos, os protestantes enfraquecidos não se rendem e se rebelam em 1573. (27)
Carlos IX usou a razão de Estado, um jogo onde as regras não foram, como é o hábito, obedecidas. Se conseguiu impôr sua decisão, nem por isso ele conseguiu o essencial: unir os súditos sob a sua autoridade. É esse o desejo expresso por Michel l ´Hospital na já mencionada reunião em Saint-Germain-en-Laye de 1562 : “O rei não quer que entreis em disputa sobre qual opinião (religiosa, RR) é a melhor. Porque não se trata aqui de constituenda Religione (….) sed de constituenda Republica. E muitos podem ser Cives, que non erunt Christiani, e pode-se viver em repouso com os de opinião diversa, como vemos numa família, onde os católicos não deixam de viver em paz e amar os da nova religião”. (28) Com esse passo, atingimos um ponto nuclear tratado nos textos de Hobbes e também nas obras diderotianas. Trata-se, como já indiquei antes, da secularização determinada pelo Estado ao espaço público. Hobbes viveu algum tempo na França, afastado pela guerra civil e religiosa que sacudiu a Inglaterra. Ao deixar seu país e penetrar na França, encontrou uma realidade próxima, pois as duas nações que estavam se constituindo na cena política européia corriam o risco de fragmentação devido às batalhas campais entre segmentos teológico-políticos. A unidade do Estado é um dos temas mais caros à raison d´ État, desde o Renascimento. (29) E a desejada unidade se dissolvia a olhos vistos no território francês e britânico.
Vale a pena examinar um autor estratégico do Renascimento e que tem um posto relevante na história da razão de Estado na França. Refiro-me ao autor do Discurso sobre a Servidão Voluntária, ou Contra Um, Etienne de la Boétie, morto com 33 anos em 1563. Ao falecer, deixou com seu “intimo irmão e inviolável amigo” Montaigne livros e documentos. Oito anos depois, o autor dos Ensaios publicou alguns dos escritos do falecido, traduções de Plutarco, de Xenofonte, versos latinos e franceses. As duas ausências na coletânea eram justamente o Discurso da Servidão Voluntária e os Relatórios sobre Nossas Confusões sobre o Edito de Janeiro de 1562. Ao justificar o corte ou censura, Montaigne diz que as duas obras eram delicadas em demasia para serem abandonadas “ao grosseiro e pesado ar de uma estação tão insalubre”. Quem segue a história do período recorda-se do que se passou no governo de Carlos IX, com ou sem a tutela de Catarina de Médicis. Os protestantes sublevados e os católicos que recorriam ao massacre não eram, com certeza, geradores de bons ares. Publicar os dois textos teria efeito semelhante ao de acender um palito de fósforo num paiol. Os volumes ficaram inéditos. Mas os huguenotes se apoderaram do Discurso e publicaram um pedaço em 1574 numa coleção de panfletos intitulada o Despertador dos Francêses (Réveille-matin des François). Nome sugestivo, pois os franceses deveriam acordar, bem cedo, se não desejassem perder a vida e a cidadania. Em 1576 e 1578, eles publicaram o texto inteiro, “levemente” adequada para a defesa da Causa. O juízo de Montaigne é duro para com os protestantes. Eles juntaram ao escrito de La Boétie coisas de sua própria lavra, para “confundir e mudar o estado de nossa polícia, sem se preocuparem se eles a podem reparar”. (30) Bem antes de Hobbes, pois, temos a percepção de que os rebeldes constituem pessoas incompetentes, facciosas, inábeis, que estraçalham a república e não a podem reparar.
Enquanto o bem demagógico Discurso serviu perfeitamente ao desígnio dos rebeldes, o Relatório passou intacto por eles. Durante bom tempo se considerou que o tirano desenhado vivamente por La Boétie fosse Henrique III. Mas o testemunho de um autor italiano em 1570, Jacopo Corbinelli que dizia ter lido um manuscrito do Discurso “in franceze elegantíssimo” deixou inequívoca paternidade de La Boétie e, portanto, a sua escrita no reinado de Carlos IX. Tendo em vista as trapaças políticas do rei, sob ou sobre Catarina de Médicis, é mais lógico pensar que o monarca que suportou ou aceitou ou incentivou os massacres e batalhas de todos contra todos (protestantes e católicos) cabe melhor no papel de tirano na obra de La Boétie. (31)
Como o Relatório não foi utilizado por nenhum dos partidos, ele permaneceu no anonimato até data muito recente, ao contrário do Discurso que adquiriu fama com o correr do tempo. Paul Bonnefon, pouco prezado no Brasil pelos que conhecem os temas por ouvir dizer ou pela fé em professores de filosofia, buscou em Arquivos e Bibliotecas o documento em questão. Encontrou o texto na biblioteca Mejanes, em Aix -en- Provence, no manuscrito Número 410. Quase todas as peças reunidas sob aquele número eram relativas ao século XVI, anteriores a 1575. Com as turbulências no reino, os conselheiros reunidos por L´ Hospital em Saint-Germain-en-Laye não poderiam discutir “qual seria a melhor religião, mas se as Assembléias deveriam ser permitidas”. Este é problema de La Boétie, de l´ Hospital e, depois, de Hobbes chegando a Diderot. La Boétie desejava a liberdade das pregações huguenotes, desde que os reformados seguissem a lei e devolvessem as igrejas tomadas por eles. A tese do Relatório é que todos devem respeitar a coisa pública. Vejamos o que se enuncia no texto, para notar o quanto ele se aproxima dos pressupostos hobbesianos.
Como pacificar as lutas intestinas na França ? La Boétie recorre, como inúmeros outros pensadores antes dele, à figura do médico. Para saber como acabar com a doença, urge saber “o estado presente do mal que se deseja curar, reconhecer a origem e a fonte para saber como ele nasceu, como ele se nutriu e cresceu. Se devemos encontrar algum remédio, o encontraremos mais facilmente após ter considerado aquelas duas coisas”. E qual é a doença? Toda ela encontra-se na diversidade religiosa, a qual avançou tanto que “um mesmo povo, vivendo sob um mesmo príncipe, dividiu-se em duas partes”. A ruptura não ocorre apenas na “consciência”, na “opinião”. Ela se instala “em diversas igrejas, diversos chefes, contrárias observações, diversa ordem, contrária polícia quanto à religião”. O resultado é a forma de duas repúblicas opostas, uma contra a outra. Ler o texto de La Boétie tendo o De cive e o Leviatã ao lado é tarefa mais do que instrutiva.
Vejamos: do mal causado pela divisão religiosa e da fratura da república, surgem dois outros malefícios. Em primeiro, o ódio (secreto ou público) e malefícios quase universal entre os súditos do rei, com os tristes efeitos previsíveis. Em segundo lugar vem o fato de que “pouco a pouco o povo se acostuma à uma irreverência diante do magistrado e, com o tempo, aprende a desobedecer voluntáriamente e se deixa conduzir para as armadilhas da liberdade, ou melhor, da licença, o mais doce e gostoso veneno do mundo. Isto porque o populacho, tendo conhecimento de que não é obrigado a obedecer o seu principe natural em se tratando de religião, aproveita mal esta regra que, em si mesma, não é ruim, e dela tira uma consequência falsa, a de que só é preciso obedecer aos superiores nas coisas boas em si mesmas, e depois ele se atribui o juízo do que é bom ou mau, e chega à pensar que não existe outra lei a não ser a sua consciência, isto é, a persuasão de seu espirito e de suas fantasias, e às vezes tudo o que eles querem; pois como nada é mais justo e nem mais conforme às leis do que a consciência de um homem religioso e temente a Deus, e provido de honestidade e prudência, também nada é mais louco, mais tolo e mais monstruoso do que a consciência e a superstição do aglomerado (multitude) indiscreto”.
Hobbes e La Boétie, a partir do mesmo diagnóstico —a república se quebra se a ruptura religiosa for mantida— passam ao modus operandi comum. O juízo dos particulares causa a guerra civil e destrói a obediência às autoridades. Hobbes afirma que na república nenhum juízo particular pode ser ensinado e praticado sem ordem do soberano. A opinião privada deve permanecer silente, sem exteriorizar-se. La Boétie fornece um outro remédio, como veremos adiante.
La Boétie indica também algo que pode ser verificado nos textos de Hobbes. A desobediência encontra alimento poderoso no fato de que integrantes do Estado, que deveriam distribuir a justiça do rei, possuem eles mesmos sua opinião religiosa. Assim, os “officiers de Justice” agem segundo a sua crença na tarefa que lhes cabe publicamente. Com isso, levantam a desconfiança e o rancor dos que assumem religião oposta às suas. Desse modo, “sendo grande o ódio contra a Justiça, é necessário que a reverência e a obediência seja diminuída em demasia, pois é impossível honrar os que desprezamos e obedecê-los de bom grado, voluntáriamente”. Se a doença não for curada, “por contágio” a pior doutrina “e a mais perniciosa” pode passar para todas as regiões da França. E pode ocorrer que “o populacho indiscreto” pode aderir aos grandes vícios e mesmo “dos que têm origem na licença”, como ocorre com as “doenças contagiosas que seguem de país em país”.
Agora temos a imagem que surge no De cive e que aparece com força no Relatório. Se as filhas de Pélias obedeceram a feiticeira Medéia e seguiram a sua “receita” matando o pai Esão, o populacho, diz La Boétie, cheio da febre das novidades, busca opiniões diferentes, segundo as razões que ele imagina. Tratando-se da salvação, a busca indiscreta é mais perniciosa porque “toma uma opinião falsa por verdadeira e muda de bom grado, e com frequência, sem saber o que deixa e o que toma. É bem o que um grande ator antigo dizia da medicina, sobre o perigo de colocarmos nossa pessoa nas mãos de um médico desconhecido”. Na licença religiosa e na busca indiscreta da salvação, o populacho coloca sua vida até nas mãos “das velhotas mais ignorantes, se elas prometem a saúde, com rezas ou braceletes de ervas”. E o medo da morte faz com que as pessoas “entreguem seu corpo a desconhecidos”. Tudo isto resume-se nas seguintes palavras : “tolice e um estulta e cega superstição”. Uma ferida inflamada, quando as pessoas têm medo de um cirurgião, precisa no entanto de seu bisturi para acabar.
A origem das lutas que ameaçam o Estado, pensa La Boétie, encontra-se na Igreja, há muitos anos “maravilhosamente corrompida”, pelos abusos e dissolução dos costumes. A comunhão eclesiástica foi tocada, pela Reforma, “nos pontos em que seria necessário mesmo efetivar a purga”. Somado a esse ponto, no entanto, as coisas pioraram porque o povo foi chamado pelos partidos em luta para ampliar as querelas e legitimar a busca do poder. Ora, “o povo não tem condição de julgar, porque é desprovido do que dá ou confirma o bom juízo, as letras, os discursos, a experiência. Porque não pode julgar, ele acredita nos outros. Ora, é comum notar que a multidão acredita mais nas pessoas do que nas coisas, e que ela é mais persuadida pela autoridade de quem fala do que pelas razões enunciadas; e não duvida que, em seu lugar, as impressões percebidas pelos seus olhos corporais têm mais poder do que as disputas sutís e os mais vivos argumentos. Porque o seu entendimento principal reside nos sentidos naturais e não no espírito”. Ao ver o péssimo comportamento do clero, e ouvindo as críticas dos protestantes, a multidão passa do que enxerga (o comportamento apodrecido) à doutrina, declarada errônea pelo que é visível. E muita gente deixou a Igreja por perder o respeito ao clero, “deixaram uma causa que não entendiam, como vários juízes que, por um zelo indiscreto, conhecendo uma parte de má fé e com defesa competente, condenam a causa devido à pessoa, sem respeitar o direito”. Um lugar comum da época, entre os católicos, dizia que os protestantes seriam “gente iletrada”. Como analisa E. Telle, “o erro dos dirigentes (católicos) naquele momento era acreditar que a nova religião só atraía as pessoas de inteligência e instrução medíocre ou nula, era praticar a política da avestruz”. (32) A Reforma, iniciada entre letrados (Lutero era um deles), recebeu adesões relevantes nas universidades e nos meios de ensino tradicionais. Os pastores nomeados eram antigos sacerdotes ou acadêmicos, juristas, etc. que tiveram papel relevante na cultura e conheciam o grego, o latim, o hebreu e sabiam o que fazer com o manejo daqueles idiomas no campo da filologia, história, filosofia, teologia, medicina, direito, etc. Ainda na edificação do futuro Estado norte-americano, os puritanos mostraram conhecimentos amplos e sofisticados da cultura, inclusive da Patrística, na sua prática e nas propostas de ensino. ( 33)
O “argumento” utilizado por La Boétie, na passagem citada acima, deve-se mais à uma apologética estereotipada e usual no catolicismo. A questão já vem dos Evangelhos, mais precisamente dos Atos dos Apóstolos (4:13) : João e Pedro são ditos, alí, “sine litteris, et idiotae”. (34) O ideal de “simplicidade” iletrada tentou os monges. Mas a elite do clero, bem logo, assumiu as letras e passou a acusar os hereges, dando-lhes o título “gentil” de iletrados. O assunto, que remete à uma história bastante singular dos preconceitos e dos ódios entre católicos e protestantes, é bastante estudado em nossos dias. 35La Boétie mostra apego ao “ethos” tradicional, o que mostra alguns limites de sua análise política e jurídica.
Os eventos que deram o sinal das guerras religiosas ocorreram dentro da Igreja, com as indulgências de 1517. O fato demonstra, adianta La Boétie, que “a Igreja estava tão tarada (tarée) que era impossível cobrir aquela deformidade sem demasiada impudência”. Os chefes da Igreja, a começar com o Papa, em vez de curar o mal no início “o alimentaram e nutriram”. O fogo da rebelião, assim assoprado pelos próprios eclesiásticos, consumiu não apenas o edifício existente, que era gasto e viciado, mais ainda “o lado bom, sólido, bem fundado”.
Com a repressão aos protestantes, pelos Estados católicos, pensa La Boétie, as coisas chegaram ao perigo máximo. “Pois nada é mais ameaçador num Estado, do que se desejar proibir o crescimento de uma opinião religiosa que perturba a coisa pública, obrigando os que a aprovam testemunhar por ela com a morte”. E o Relatório apresenta uma lista de mortos pela sua opinião religiosa, sem no entanto, La Boétie cita a regra de Santo Agostinho, terem sido verdadeiramente mártires —como no caso dos maniqueus, donatistas, anabatistas— mas apenas testemunhos desesperados que, “no entanto, não deixaram de aumentar seu número por aquele meio”. De qualquer modo, seja para decidir a questão num sentido, seja para determiná-la em outro, o soberano não pode, em hipótese nenhuma, acompanhar o povo nas suas opiniões, visto que o populacho “é o pior produtor de políticas que existe no mundo” (“le populaire, qui est le pire policeur du monde”). Se o rei permitir duas religiões, o estrangeiro pode guerrear a França e vencê-la, devido à divisão interna. “Nenhuma dissenção é maior nem mais perigosa do que a devida à religião: ela separa os cidadãos, os vizinhos, os amigos, os parentes, os irmãos, o pai e os filhos, o marido e a mulher; ele quebra as alianças, os parentescos, os casamentos, os direitos invioláveis da natureza, e penetra até o fundo dos corações para extirpar as amizades e enraizar os ódios irreconciliáveis.”. Pode ocorrer que, apesar de tudo isso, os cidadãos ainda continuem obedientes ao rei. Mas pela sua divisão, eles deixam de resistir ao estrangeiro com eficácia. A autoridade real deve prover templos comuns para que todos possam cultuar a Deus, em horários diferentes. Nenhuma das duas religiões teriam templos próprios, ostentando assim a divisão interna do reino. La Boétie termina seu Relatório comentando o dito de Santo Atanásio : quando Constantino lhe sugeriu que aos arianos deveria ser alocado um templo em Alexandria, a resposta do santo foi pronta. “Deixaremos sete templos, quando eles concederem setes aos católicos de Antioquia”. Com este diálogo, La Boétie deixa bem claro o que pensa sobre as divisões religiosas e o poder real: este não pode conceder nenhuma oportunidade para que os dois lados quebrem a ordem pública e a obediência ao soberano.
Tanto em La Boétie quanto em Hobbes, portanto, apesar de suas diferenças, existe o veto de se trazer ao público, sob controle do soberano, as opiniões religiosas e demais opiniões que residem na “consciência” individual ou dos grupos. Os Elements of Law já afirmam que (36) a dificuldade oferecida pela frase “É preciso obedecer mais a Deus do que aos homens” cai por terra. Em primeiro lugar, porque as leis não foram feitas para governar as consciências, mas as suas palavras e atos. Os cristãos encontram na Biblia o ensino de que devem submeter-se ao soberano “em todas as coisas”. O dilema (obedecer Deus ou obedecer o soberano) é desconhecido entre os Judeus, Gregos, Romanos e outros gentios. Naqueles povos, as leis civis definiam o justo e o virtuoso e o culto externo a Deus. Os católicos romanos apresentam dificuldades para o poder soberano, na medida mesma em que exigem para a autoridade religiosa poderes acima do civil ou, pelo menos dele independente. As leis civis não obrigam a consciência dos homens, mas suas palavras e atos. Mesmo os apóstolos não pretendem controlar as consciências, mas persuadi-las e instruí-las. Quanto às ações, a paz só é conseguida quando elas são reguladas (submetidas às regras). Caso contrário, persiste a divisão no Estado devido à “liberdade” de consciência. Ser papista, luterano, calvinista, arminiano, como no passado paulistas, apolineanos, cefasianos, não é necessário nem impede a obediência aos superiores na ordem pública. Quem luta com o pretexto dessas questões, e “se dividem em seitas, não devem ser contados entre os piedosos da fé, porque sua luta é carnal, o que é confirmado por São Paulo (1 Cor. 3, 4) ; quando alguém diz, afirma o apóstolo, eu sou de Paulo, e outro, eu sou de Apolo, nãos sois carnais? Porque aquelas questões não vem da fé, mas da inteligência (Wit) e carnalmente os homens são inclinados a buscar o domínio um sobre o outro. Porque nada é verdadeiramente um ponto de fé, senão que Jesus é o Cristo”. Assim, Paulo mostra que as questões surgidas pelos raciocínios humanos (human ratiocination) são perigosas para a vida cristã. Em se tratando do mundo civil, quem resiste a um rei porque duvida de seu título ou porque é dominado pelas paixões, merece punição. E de outro lado, sob um soberano poder de uma república cristã, não há lugar para a danação pela simples obediências das leis humanas. “Sendo a consciência apenas um juízo humano e opinião” não deve ela ser abolida, mas restrita a sua exteriorização para o espaço público o qual não pode ser uma soma heteróclita de opiniões, mas o resultado de uma só “opinião” racional. O medo da morte iguala a consciência comum do necessário pacto.
O debate sobre o destino post-mortem não deve ser feito em público e, sobretudo, deve ser afastado das leis comuns que regem todo o corpo social. Pierre Bayle indica esse ponto no pensamento hobbesiano, de modo claríssimo : “O sumário do Leviatã é que sem a paz não existe segurança num Estado, e a paz não pode subsistir sem comando, o comando sem armas; e estas últimas nada valem se não são postas nas mãos de uma pessoa; o medo das armas não pode conduzir à paz os que são impulsionados a combater por um mal ainda mais terrível do que a morte, isto é, pelas dissenções sobre as coisas necessárias à salvação eterna”. (37) O Estado possui uma potência que chega ao nível espiritual, sempre que se trata da república. No pacto, o indivíduo aliena o direito de agredir os demais. O soberano, no entanto, choca-se com algumas barreiras para a sua soberania. Em termos lógicos: se todos abrem mãos de seu direito natural para afastar a morte, não tem sentido o Estado exigir contra eles o direito de vida e morte. A segurança é inalienável.
Seria apenas no plano da conservação do Estado que Hobbes apresenta interesse? Aqui tocamos os elos entre o seu pensamento e os do século 18, sobretudo a filosofia diderotiana. Ferdinand Tönnies (38) editor e estudioso de Hobbes, movido pelo projeto de refutar todo o saber político e social mecânicos suposto no Leviatã (Tönnies pertence à sociologia romântica que opõe a vida comunitária, à vida societária moderna) define dois modelos contrários de ordem social, incluindo a vida pública. A sociedade é algo morto, maquinal, enquanto a comunidade é viva, corporal. “O que vai de uma ferramenta artificial ou a determinada máquina construída para certos fins, até um sistema orgânico ou a alguns órgãos concretos de um corpo animal, é o que vai de um conglomerado de vontade desse tipo —vontade sobreposta— a um conglomerado de vontade de uma outra classe, a uma vontade essencial”. Como indica com bastante correção Georg Lukács, “Tönnies pinta a sociedade com as cores da filosofia do direito de Hobbes, como o estado em que cada um é inimigo do outro e no qual apenas a lei assegura uma ordem externa.”. (39) Pois bem, é exatamente em sua famosa biografia de Hobbes, citada acima, que Tönnies recorda Augusto Comte e sua genealogia das Luzes e da Revolução Francêsa. No Cours de Philosophie Positive (Volume V), Comte aponta para os nexos entre Hobbes e o pensamento iluminista dizendo que “Hobbes é o verdadeiro pai da filosofia revolucionária”. E Tönnies concorda com o positivista, ao recordar que d´ Holbach traduziu bons trechos de Hobbes (Human Nature, em 1772) e que Rousseau combateu sua doutrina do Estado, enquanto Diderot, no Plano de Uma Universidade para a Rússia, recomenda ao lado da Lógica de Port-Royal o livro de Hobbes sobre a Natureza Humana “ouvrage court et profond (…) un chef- d´ oeuvre de logique et de raison”. (40)
Nada mais alheio à hermenêutica proposta, em péssima hora da humanidade, por Carl Schmitt. O Leviatã pode ser um símbolo do poder arbitrário, ditatorial, ou seja lá o que for, mas sua lógica é um dos esteios do pensamento filosóficos e políticos da modernidade. E isto é muito, quando se pensa na tarefa, proposta pelo irracionalismo fascista, que pretendeu usar a filosofia do século 17 para a domesticação das massas e dos indivíduos.
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1 Uso a tradução francesa: Le Léviathan dans la doctrine de l État de Thomas Hobbes, sens et échec d´ un symbole politique (Paris, Seuil, 2002).
2 A bibliografia oceânica sobre Hobbes não será invocada neste escrito. No Brasil existem muitos trabalhos sobre o pensador que merecem leitura, como é o caso do livro publicado por Renato Janine Ribeiro : Ao leitor sem medo (SP, Ed. Brasiliense). Publiquei um artigo sobre o tema com o título de “Massa, Poder e Morte” (Cf. Roberto Romano : Lux in Tenebris, meditações sobre Filosofia e Cultura, SP, Cortez/Unicamp, 1987, pp. 23 ss).
3 Richard N. Schwab comenta do seguinte modo a passagem citada : “This basic natural law is that which naturally leads men to preserve themselves from pain or death at the hands of those who are stronger than they. Ultimately, it is the natural law of social self-preservation that is stamped upon everyone, and it involves the necessity of resistance to oppression. Thus, the fundamental natural law of ethics and society is, for d’ Alembert, an empirical fact in the history of humanity. The first laws of organized societies were designed to limit oppression; thus they derive from the natural law of self-preservation, protecting the members of society as well as possible from pain and death at the hands of the strong. This seems almost to be a Hobbesian view of the natural state of man and the origins of law, government, and the ideas of right and wrong”. Cf. Preliminary Discourse to the Encyclopedia of Diderot (Jean Le Rond d’ Alembert) (The Library of Liberal Arts, 1963) página 12.
4 Cf. “Lettre de M. Denis Diderot sur l ´ Examen de l ´Essai sur les Préjugés”, in Versini, Laurent (Ed.) : Diderot. Oeuvres, Tome III – Politique (Paris, Robert Laffont, 1995), páginas 165 e seguintes.
5 TP, I, 1 : “Os filósofos concebem as afecções conflitantes em nós como se fossem vícios em que os homens caem por erro próprio. Por tal motivo eles se habituaram a ridicularizá-los, deplorá-los, reprová-los e, quando desejam parecer muito morais, detestá-los. (….) Concebem os homens não como eles são, mas como gostariam que eles fossem. Assim (…) é a política o campo em que a teoria passa por diferir mais da prática, e não há homens que se pense menos adequados para governar o Estado dos que os filósofos”. “Affectus, quibus conflictamur, concipiunt philosophi veluti vitia, in quae homines sua culpa labuntur; quos propterea ridere, flere, carpere vel (qui sanctiores videri volunt) detestari solent. (…). Homines namque non ut sunt, sed ut eosdem esse vellent, concipiunt; (…) Cum igitur omnium scientiarum, quae usum habent, tum maxime p o l i t i c e s t h e o r i a ab ipsius p r a x i discrepare creditur, et regendae reipublicae nulli minus idonei aestimantur, quam theoretici seu philosophi”.
6 Ovídio, As Metamorfoses, VII, 20 : “video meliora proboque, deteriora sequor”.
7 Dictionnaire historique et critique (Rotterdam, 1697). Desde o Renascimento e a Reforma, “ateu” era uma palavra de guerra. Ela designava uma pessoa sem bons costumes, contrária às leis morais, libertina. Erasmo foi chamado de “ateu” por Lutero e o termo passou do campo religioso para o da ética. Marx e Engels apenas repetem o juízo de todo o século 18 sobre Bayle “ quem, na teoria arrancou o crédito da metafísica do século 17 e de todas as metafísicas, foi Bayle. Sua arma era o ceticismo forjado em fórmulas mágicas da metafísica. Seu ponto de partida foi a metafísica cartesiana (…) Por duvidar da religião, Bayle submeteu a metafísica à crítica, em toda a sua evolução histórica. Ele anunciou a sociedade atéia que logo viria, ao demonstrar que pode existir uma sociedade de puros ateus e que um ateu pode ser honesto ”. A Sagrada Família
8(6) Esse ponto é tratado de maneira oposta por Spinoza. Sendo a força física um elemento do espaço e os juízos a modificação do pensamento, e sendo ambos, pensamento e força física modos da substância infinita, Deus ou Natureza, cada indivíduo possui em si mesmo a força e o pensamento que seguem ao infinito. Não é possível arrancar deles a força, como em Hobbes, mas é impossível também deles retirar, pela força, o juízo próprio. Algo só pode ser movido por algo que apresenta as mesmas determinações modais. Um corpo não pode ser movido ou forçado pelo pensamento. E também um pensamento só pode ser modificado por outro pensamento. Usar a força para impôr a soberania e o poder é um erro ontológico e epistemológico, além de ser uma violência que não garante o Estado e a soberania, visto que os indivíduos recebem o pensamento da substância infinita divina. Pode-se tentar controlar os pensamentos, mas ele não aceita os limites da força física e, sobretudo, os limites da imaginação religiosa ou política. Este é o sentido da frase spinozana quando o Eleitor Palatino lhe convidou para dar aulas, mas sem “perturbar a religião oficialmente estabelecida”. A resposta é clara: “Desconheço em quais limites minha liberdade de filosofar deveria ser contida para que eu não parecesse desejar a perturbação da religião estabelecida”. (Carta a Fabritius, 30/03/1773). Cf. Spinoza. Oeuvres complètes. (Paris, Gallimard, 1954), Coleção Pléiade, página 1284.
9 Problema ético e científico dos mais complexos, sempre retomado na filosofia política e no campo epistemológico. Importantes achegas ao campo podem ser encontradas no Seminário publicado sob a coordenação de Jean-Claude Beaune : La mesure, instruments et philosophies (Paris, Champ Vallon, 1994)
10 Leviatã, VII. Cf. Ed. Macpherson (Pelican, Penguin Books, 1977), páginas 132 a 134.
11 A atitude de Frederico foi piorada nos reinos de seus sucessores, sobretudo pelos que não partilhavam o seu racionalismo, como foi o caso de Frederico Guilherme 2. O rei baixou um Edito de Religião (09/07/1788) que proibia toda crítica pública à crença estabelecida. I. Kant criticou acerbamente o governo prussiano por controlar a população com o uso da fé religiosa, da medicina e do direito. Na Universidade, eles permitem aos ministérios o controle do povo. Este, por sua vez, “quer ser dirigido, isto é, na lingua dos demagogos, enganado. Mas ele não quer ser dirigido pelos cientistas da faculdade (…) mas por seus agentes, que sabem muito fazer, pelos eclesiásticos, funcionários da justiça, médicos, na medida em que eles são práticos e, por isso mesmo, lhe apresentam presunções mais vantajosas”. São “instrumentos do governo” (Werkzeuge der Regierung) os eclesiásticos, os magistrados, os médicos que se “endereçam diretamente ao povo que se compõe de ignorantes (Idioten), como, pode-se dizer, o clero em relação aos leigos”. Der Streit der Facultäten, Erster Abschnitt. In I. Kant Werkausgabe (F.A.M., Suhrkamp Verlag, 1977). Cf a tradução de J. Gibelin : Le Conflit des Facultés (Paris, J. Vrin, 1935).
12 “As Luzes não exigem mais liberdade além da que permite usar de modo público a própria razão em todos os domínios, seja como escritor ou erudito, mas não como funcionário a quem não se permite raciocinar (räsonnieren) enquanto tal. ”Cf. Eisler, Rudolf : Kant-Lexicon, Trad. francêsa de Balmès, A.D e Osmo, P. (Paris, Gallimard, 1994), página 646. Os enunciados de Kant no clássico “Que são as Luzes?”, mostram a plena ambigüidade do pensamento político que procura, como é o caso kantiano, negar a tese de Hobbes sobre a opinião na república. O funcionário não tem o direito de operar com o raciocínio livre, apenas os “intelectuais” podem usufruir tal privilégio, o que se paga, no entanto, com a ausência de poder efetivo no Estado. Quem partilha o poder estatal não tem “liberdade” de pensamento ao modo dos escritores e eruditos. Neste sentido, Theodor Adorno aponta uma ambigüidade no trato das Luzes com a razão pública. Cito um trecho de suas lições traduzidas para o espanhol : Th. Adorno : La Crítica a la Razón Pura de Kant, Lição 6, 09/06/1959, Traduzida por Francesc J. Hernàndez no site http://www.uv.es/fjhernan/arxiu/L6.pdf : “Desde que o funcionário tenha função determinada, como funcionário, o arrazoar acaba; para um funcionário o uso sem travas da razão tem o duplo significado da palavra “raciocinar” (Räsonieren) de injuriar inconveniente e de uma espécie de crítica prática às instituições. Ele diz : `As Luzes não querem dizer isto. Enquanto você fica apenas no dominio da razão que é auto-suficiente, tudo estará perfeito; mas este não é só o domínio do espirito puro no mundo da divisão do trabalho´ (…) esta tendencia, de ao mesmo tempo transfigurar a razão como o mais elevado e, no entanto restringí-la como um mero raciocinar [Räsonieren], já está em Kant, um ilustrado supostamente radical”.
13 Na tradução Guinsburg (Obras de Diderot, Filosofia e Política, páginas 244-245) lemos : “Raciocinei como um tonto, seja; mas fui sincero comigo mesmo; e é tudo o que se pode exigir de mim. Se não é virtude ter espírito, não é crime não tê-lo”.
14 Ainda Kant pode nos servir como elemento de comparação, sobretudo nos Sonhos de um visionário explicados pelos sonhos da Metafísica onde os metafísicos são ditos “construtores de castelos no ar (Luftbaumeister) e “sonhadores da razão ” (Träumer der Vernunft).
15 “Songeons au bien de notre espèce. Si nous ne sommes pas assez généreux; pardonnons au moins à la nature d’avoir été plus sage que nous. Si vous jetez de l’eau froide sur la tête de Greuze, vous éteindrez peut-être son talent avec sa vanité. Si vous rendez de Voltaire moins sensible à la critique, il ne saura plus descendre dans l’âme de Mérope. Il ne vous touchera plus. LUI: Mais si la nature était aussi puissante que sage; pourquoi ne les a-t-elle pas faits aussi bons qu’elle les a faits grands? MOI: Mais ne voyez-vous pas qu’avec un pareil raisonnement vous renversez l’ordre général, et que si tout ici-bas était excellent, il n’y aurait rien d’excellent. LUI: Vous avez raison. Le point important est que vous et moi nous soyons, et que nous soyons vous et moi. Que tout aille d’ailleurs comme il pourra. Le meilleur ordre des choses, à mon avis, est celui où je devais être; et foin du plus parfait des mondes, si je n’en suis pas. J’aime mieux être, et même être impertinent raisonneur que de n’être pas. MOI: Il n’y a personne qui ne pense comme vous, et qui ne fasse le procès à l’ordre qui est; sans s’apercevoir qu’il renonce à sa propre existence.LUI: Il est vrai. MOI: Acceptons donc les choses comme elles sont. Voyons ce qu’elles nous coûtent et ce qu’elles nous rendent; et laissons là le tout que nous ne connaissons pas assez pour le louer ou le blâmer; et qui n’est peut-être ni bien ni mal; s’il est nécessaire, comme beaucoup d’honnêtes gens l’imaginent. LUI: Je n’entends pas grand-chose à tout ce que vous me débitez là. C’est apparemment de la philosophie; je vous préviens que je ne m’en mêle pas.” Le Neveu de Rameau, éd. critique de Jean Fabre (Genève, Droz, 1977), pp. 14-15.
16 Sainte Beuve (Port-Royal) diz que entre Hobbes e Pascal há mais proximidade do que se imagina. Jogo e truque são analisados com a perspectiva do poder e da justiça por Pascal, sendo continuado no século 18 por filósofos como Condorcet.
17 Della dissimulazione onesta , cópia muito boa pode ser encontrada na seguinte home page italiana, dedicada à tarefa de publicar textos eletrônicos : http://web.comune.torino.it/liberliber/biblioteca/a/accetto/index.htm
18 “A dissimulação é uma técnica de não fazer enxergar as coisas como elas são. Simula-se o que não é e se dissimula o que é”. No jogo fraudulento da razão de Estado, como na fraude do jogo de cartas, a dissimulação e a simulação entram enquanto técnicas do engodo que, mesmo usando o cálculo, não respeitam as regras que devem ser obedecidas pelos súditos ou pelos “paspalhos” enganados nas partidas. Hobbes denuncia os que, numa república, fingem seguir as regras mas no segredo as violam e, pior, violam as próprias regras de seu jogo escondido. Mais adiante discutirei este ponto ao comentar as facções e a figura de Medéia. O artifício de fazer com que apenas o soberano não esteja submetido às regras suscita problemas graves de interpretação do pensamento hobbesiano no contexto da razão de Estado. Cf. o já citado texto de Micheline Triomphe: “Hobbes et la raison d´ État” in Zarka, Yves Charles : Raison et déraison d´État (Paris, PUF, 1994).
19 Breviario dei Politici, secondo il Cardinale Mazzarino. Edição italiana de Giovanni Macchia. (Milano, Rizzoli Ed., 1981)
20 Cf. Lazzeri, Christian e Reynié, Dominique: “Introduction” ao livro La raison d´ Etat: politique et rationalité. (Paris, PUF, 1992) página 9 e ss.
21 Lembro apenas três textos fundamentais para se entender uma parte deste rico pensamento: o volume de Laurent Thirouin, Le hasard et les règles. Le modèle du jeu dans la pensée de Pascal. Paris, Vrin, 1991, e o pequeno grande livro de Gerard Lebrun, Blaise Pascal, Coleção Encanto Radical, São Paulo, Brasiliense, 1983, além do clássico de Sainte Beuve, Port Royal, Paris, Gallimard. 3 volumes.
22 Toda esta temática se une ao problema essencial do golpe de Estado e da exceção ao direito, importantes na doutrina conservadora e nos textos fascistas como o Carl Schmitt. Uma fonte importante na cultura mais ampla, no entanto, é o relevante livro de Gabriel Naudé: Considérations politiques sur les coups d´Estat (1639). Uso a edição fac similar da Gallica (BNF). Ainda hoje a análise mais aguda do campo encontra-se no livro de Thuau, Etienne : Raison d’’État et pensée politique à l’ epoque de Richelieu (Paris, Albin Michel, 1966). Para uma crítica moderada do estado de exceção segundo Carl Schmitt e seus aderentes na esquerda ou direita ideológica, cf. Monod, Jean-Claude: Penser l ´ennemi, affronter l´exception, réflexions critiques sur l ´actualité de Carl Schmitt (Paris, Éditions La Découverte, 2007), importante sobretudo é o capítulo intitulado “La banalisation de l ´exception”, pp. 71 e ss.
23 De cive, 12 in Gert, B. (Ed.) : Thomas Hobbes Man and Citizen (Cambridge, Hackett, 1993, páginas 254-255. Esta crítica hobbesiana em imagens é seguida no século 18 por Edmund Burke, um dos maiores escritores contra-revolucionários que, nas Reflections on French Revolution indica as filhas de Pelias de modo idêntico. “To avoid, therefore, the evils of inconstancy and versatility, ten thousand times worse than those of obstinacy and the blindest prejudice, we have consecrated the state, that no man should approach to look into its defects or corruptions but with due caution, that he should never dream of beginning its reformation by its subversion, that he should approach to the faults of the state as to the wounds of a father, with pious awe and trembling solicitude. By this wise prejudice we are taught to look with horror on those children of their country who are prompt rashly to hack that aged parent in pieces and put him into the kettle of magicians, in hopes that by their poisonous weeds and wild incantations they may regenerate the paternal constitution and renovate their father’s life”. O texto de Edmund Burke pode ser encontrado no seguinte lugar da Internet : http://www.cpm.ll.ehime-u.ac.jp/AkamacHomePage/Akamac_E-text_Links/Burke.html
24 “La condition du restaurateur d’ une nation corrompue est bien différente. C’est un architecte qui se propose de bâtir sur une aire couverte de ruines. C’est un médecin qui tente la guérison d’un cadavre gangrené. C’est un sage qui prêche la réforme à des endurcis. Il n’a que de la haine et des persécutions à obtenir de la génération présente. Il ne verra pas la génération future. Il produira peu de fruit, avec beaucoup de peine, pendant sa vie; et n’obtiendra que de stériles regrets après sa mort. Une nation ne se régénère que dans un bain de sang. C’est l’image du vieil Æson, à qui Médée ne rendit la jeunesse qu’en le dépeçant et en le faisant bouillir. Quand elle est déchue, il n’appartient pas à un homme de la relever. Il semble que ce soit l’ouvrage d’une longue suite de révolutions. L’homme de génie passe trop vite, et ne laisse point de postérité.” (Histoire des Deux Indes citada por Srinivas Aravamudan : Tropicopolitans. Colonialism and Agency, 1688-1804 (Duke University Press, 1999), página 317. Cf. também Goggi, G. : “Diderot et Médée dépeçant le viel Eson” in Denis Diderot 1713-1784. Colloque International Paris-Sèvres-Reims-Langres. Actes recueillis para Anne-Marie Chouillet (Paris, Aux Amateurs de Livres, 1985), páginas 173-183.
25 Cf. Cavallo, T. : “Aggressore dell’umanità e apologeta della tirannide? L’Hobbes degli enciclopedisti” na home page do autor : http://www.cromohs.unifi.it/8_2003/Cavallo.html O texto indicado da Encyclopédie, “Sujet” foi redigido por Diderot e Jaucourt : “On demande donc si un sujet peut exécuter innocemment un ordre qu’il sait être injuste, & que son souverain, lui prescrit formellement ; ou s’il doit plutôt refuser constamment d’obéir, même au péril de perdre la vie? Hobbes répond qu’il faut bien distinguer, si le souverain nous commande de faire, en notre propre nom, une action injuste qui soit réputée nôtre, ou bien s’il nous ordonne de l’exécuter en son nom & en qualité de simple instrument, & comme une action qu’il répute sienne. Au dernier cas, il prétend que l’on peut sans crainte exécuter l’action ordonnée par le souverain, qui alors en doit être regardé comme l’unique auteur, & sur qui toute la faute en doit retomber. C’est ainsi, par exemple, que les soldats doivent toujours exécuter les ordres de leur prince, parce qu’ils agissent comme instrumens, & au nom de leur maître. Au contraire, il n’est jamais permis de faire en son propre nom une action injuste, directement opposée aux lumieres d’une conscience éclairée. C’est ainsi qu’un juge ne doit jamais, quelque ordre qu’il en ait du prince, condamner un innocent ni un témoin à déposer contre la vérité.Mais, cette distinction ne leve point la difficulté ; car de quelque maniere qu’un sujet agisse dans tous les cas illicites, soit en son nom, soit au nom du souverain, sa volonté concourt à l’action injuste & criminelle qu’il exécute. Conséquemment, ou il faut toujours lui imputer en partie l’une & l’autre action, ou l’on ne doit lui en imputer aucune. Il est donc vrai que dans tout ordre du souverain évidemment injuste, ou qui nous paroît tel, il faut montrer un noble courage, refuser de l’exécuter, & résister de toutes ses forces à l’injustice, parce qu’il vaut mieux obéir à Dieu qu’aux hommes, quel que soit leur rang sur la terre. En promettant au souverain une fidele obéissance, on n’a jamais pu le faire que sous la condition tacite qu’il n’ordonneroit rien qui fût contraire aux loix de Dieu, soit naturelles, soit revélées. ” Je ne croyois pas, dit Antigone à Créon, roi de Thebes, que les édits d’un homme mortel tel que vous, eussent tant de force, qu’ils dûssent l’emporter sur les loix des dieux mêmes, loix non écrites à la vérité, mais certaines & immuables ; car elles ne sont pas d’hier ni d’aujourd’hui ; on les trouve établies de tems immémorial ; personne ne sait quand elles ont commencé ; je ne devois donc pas par la crainte d’aucun homme, m’exposer, en les violant, à la punition des dieux. ” C’est un beau passage de Sophocle, Tragédie d’Antigone, vers 463. (D. J.)” Edição eletrônica da Encyclopédie em CD, na Redon, CD-Macintosh.
26 Michel l ´Hospital (1505-1573), Chanceler da França.
27 Para a documentação dessa passagem, cf. François Hotman, La vie de Messire Gaspar de Colligny, Admiral de France. Ed. Fac. símile aos cuidados de Emile-V. Telle (Genève, Droz, 1987). O texto original foi redigido, compreensivelmente, em latim.
28 Citado por Telle, Vie de Messire…”, Ed. cit. “Introduction”, página 35.
29 Em Shakespeare, o tema é onipresente nas peças políticas. O erro fatal de Lear foi a divisão territorial de seu Estado pelas filhas que o adularam e seguiram a sua ordem tirânica. Ele usou de maneira estulta a lei da razão de Estado que ordena Divide et impera. O soberano que perde seu espaço, tudo perde e nada garante aos súditos, salvo guerras civís. É bom lembrar o núcleo da peça logo nos primeiros instantes. “Lear. Meantime we shall express our darker purpose./Give me the map there.Know that we have divided/In three our kingdom: and ’tis our fast intent/To shake all cares and business from our age;/Conferring them on younger strengths, while we/Unburden’d crawl toward death./Our son of Cornwall,/And you, our no less loving son of Albany,/We have this hour a constant will to publish/Our daughters’ several dowers, that future strife/May be prevented now. The princes, France and Burgundy,/Great rivals in our youngest daughter’s love,/Long in our court have made their amorous sojourn,/And here are to be answer’d./Tell me, my daughters,/Since now we will divest us both of rule,/Interest of territory, cares of state,/Which of you shall we say doth love us most?/That we our largest bounty may extend/Where nature doth with merit challenge”. A peça liga-se à adulação, na linha do escrito de Plutarco Como distinguir o amigo do adulador do qual existe tradução em português (São Paulo, Scrinium Ed., 1997). Analiso tal problema com detalhes no meu livro Silêncio e Ruído. A sátira e Denis Diderot (Campinas, Unicamp Ed., 1997).
30 Polícia tem a mesma origem de política: ambas as palavras vem de Politéia (grego) e do latim Politia. É evidente o nexo com a polis. Quando se diz, até o século 19 pelo menos, “polícia”, entende-se geralmente um Estado dirigido de maneira legal pelo soberano, o que garante os direitos e deveres dos súditos. Dizer, como o faz Montaigne, que os rebeldes protestante desejam perturbar a polícia da França, não significa que eles levantam-se contra uma “polícia” tal como nos habituamos a nomear, mas contra toda a ordem legal e legítima do Reino.
31 Todos esses informes são extraídos do prefácio de Paul Bonnefon à sua edição do Relatório. Cf. Bonneffon, Paul: “Une oeuvre inconnue de La Boétie: Les Mémoires sur l ´Édit de janvier 1562”, in Révue d´Histoire littéraire de la France, 24e Année- 1917 (Paris, Armand Colin, 1917), página 1 e seguintes (primeira parte). O mesmo Paul Bonnefon publicou, em 1892, uma edição crítica das Oeuvres complètes de La Boétie (Bordeaux, G. Gounouilhou Éd./Paris, J. Rouam Ed.). Bonnefon também publicou uma importante biografia de La Boétie que até os nossos dias fornece preciosos dados para a análise do período e do pensador. Cf. Bonnefon, Paul: Estienne de La Boétie. Sa vie, ses ouvrages et ses relations avec Montaigne. (Genève, Slatkine Reprints, 1970).
32 Cf. Telle, E. : “Introduction”. La Vie de Messire…ed. cit. p. 25.
33 Os textos de Calvino e de outros reformadores, brilham pelo estilo, rigor lógico e controle das fontes. Um elemento decisivo na expansão da fé reformada entre as elites intelectuais européias e também de eficácia na pregação, o que conquistou vastas camadas populares. Na Inglaterra e suas colônias não foi diferente. “The Anglican sermon is constructed on a symphonic scheme of progressively widening vision; it moves from point to point by verbal analysis, weaving larger and larger embroideries about the words of the text. The Puritan sermon quotes the text and “opens” it as briefly as possible, expounding circumstances and context, explaining its grammatical meanings, reducing its tropes and schemata to prose, and setting forth its logical implications; the sermon then proclaims in a flat, indicative sentence the “doctrine” contained in the text or logically deduced from it, and proceeds to the first reason or proof. Reason follows reason, with no other transition than a period and a number; after the last proof is stated there follow the uses or applications, also in numbered sequence, and the sermon ends when there is nothing more to be said. The Anglican sermon opens with a pianissimo exordium, gathers momentum through a rising and quickening tempo, comes generally to a rolling, organ-toned peroration; the Puritan begins with a reading of the text, states the reason in an order determined by logic, and the uses in an enumeration determined by the kinds of person in the throng who need to be exhorted or reproved, and it stops without flourish or resounding climax” Perry Miller The New England Mind, (Boston. Beacon Press, 1968), páginas 332-3. Tal amplo domínio da lógica e do estilo prova também amplo domínio da história filosófica, teológica, etc.
34 “Vendo a constância de Pedro e de João, entendendo que eles eram iletrados e ignorantes, pensavam: e eles souberam então que eles estiveram com Jesus”. [Videntes autem Petri constantiam et Iohannis conperto quod homines essent sine litteris et idiotae admirabantur et cognoscebant eos quoniam cum Iesu fuerant].
35 Cf. Biller, Peter e Hudson, Anne (Ed.) : Heresy and Literacy, 1000-1530. (Cambridge, University Press, 1994). Uma coletânea bastante rica de análises sobre este ponto que até os nossos dias apresenta, nas franjas do populismo e do aristocratismo abstratos que falseiam os estudos sobre o mundo cultural, sérias consequências para o entendimento e a observância da ordem democrática.
36 Cf. The Elements of Law Natural and Politic / by Thomas Hobbes Electronic Text Center, University of Virginia Library.
37 “Le précis de cet ouvrage est que, sans la paix il n’y a point de sûreté dans un État, et que la paix ne peut subsister sans le commandement, ni le commandement sans les armes; et que les armes ne valent rien si elles ne sont mises entre les mains d’une personne; et que la crainte des armes ne peut point porter à la paix ceux qui sont poussés à se battre par un mal plus terrible que la mort, c’est-à-dire par les dissensions sur des choses nécessaires au salut. Ejus autem summa haec fuit, sine Pace impossibilem esse incolumitatem, sine Imperio Pacem, sine Armis Imperium, sine opibus in unam manum collatis nihil valere Arma, neque metu Armorum quicquam ad pacem profici posse in illis, quos ad pugnandum concitat malum morte magis formidandum; nempe dum consensum non sit de iis rebus, quae ad salutem aeternam necessariae creduntur, pacem inter cives, non posse esse diuturnam”. Pierre Bayle, Artigo “Hobbes”.DICTIONNAIRE HISTORIQUE Et CRITIQUE, 4e édition, Tome Second (C-I). Amsterdam et Leyde 1730
38 Thomas Hobbes Leben und Lehre (Stuttgart-Bad Cannstatt, 1971), páginas 272-273.
39 Cf. El Asalto a la Razon. La trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta Hitler. (Barcelona, Grijalbo, 1968), páginas 480-481.
40 Tönnies, op. cit. páginas 272-273 e Diderot, Plan d´mune Université… in Versini, L. (Ed.) Oeuvres de Diderot, T.III, (Paris,Robert Laffont,1995), página 445.
Fukushima e responsabilidade. Hans Jonas.
As notícias do Japão desafiam todo o pensamento ético. Elas também geram asserções sensatas ou desvairadas, como em todos os traumas coletivos, antigos ou contemporâneos. No pretérito, as pessoas se perguntavam se a culpa pelas desgraças seria dos deuses. Hoje, elas interrogam a ciência, a técnica, os alvos humanos. A busca de culpados mostra que tais problemas ainda são discutidos sob o signo das paixões e medo, longe da razão. Para desculpar os deuses, foi criada a Teodicéia. Os homens são indesculpáveis.
Hans Jonas, filósofo judeu nascido na Alemanha mas com reconhecimento acadêmico pleno nos EUA, refletiu sobre o futuro a partir da tragédia vivida em Hiroshima e Nagasaki. Longe de terem sido episódios inesperados, aqueles eventos revelam, diz o pensador, uma senda de horror pelo uso irresponsável das técnicas. Após a energia nuclear, afirma ele, a natureza passou a ser radicalmente alterada pelos homens. O que antes era nexo externo entre a nossa espécie e a natureza (catástrofes pluviais, maremotos, etc) agora tem impulso humano e pode resultar em desastre. Daí, a proposta do “princípio responsabilidade” para uma nova ética. O título de seu livro "Das Prinzip Verantwortung: Versuch einer Ethik für die technologische Zivilization" —O Princípio de Responsabilidade, à procura de uma ética para a civilização tecnológica— (), merece análise. Quando falamos em “responder”, de imediato vêm à tona as raízes jurídicas do nosso pensamento. “Respondere” no direito romano manda “garantir em troca, assegurar”. “Verantwortung” é responsabilidade diante de alguém que possui direitos. O vocábulo se aproxima da tese inglêsa e democrática sobre a necessária “accountability”. Com os Levellers, todas as autoridades do Estado, antes só responsáveis diante do Ser Supremo, têm o dever de prestar contas à cidadania. Tal doutrina custou a cabeça de Carlos 1. A mesma regra levou Luis 16 à guilhotina. Os EUA foram edificados sobre aquela base. Com Napoleão, a norma ética foi afastada em proveito da razão de Estado. Mas ela é essencial em toda política com pretensões democráticas.
Voltemos a H. Jonas. Antes das recentes inovações tecnológicas, o sujeito humano não podia alterar o mundo. Autores revolucionários, a exemplo de Karl Marx, deixaram de interpretar o universo, exigindo a sua plena alteração. “Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert, es kommt aber darauf an, sie zu verändern”. A profecia de Marx, imoderado admirador da técnica, foi realizada na era nuclear. Com ela surge enorme aporia, jamais proposta às mentes humanas. Não se trata apenas do sentido de nossa existência, mas da própria existência. É possível, com o simples manejo de botão, arrancar a vida do planeta e, mesmo, aniquilar a Terra.
Não só no campo bélico se instalou o desejo ilimitado de impor outras formas ao mundo, chegando à sua destruição. Também na medicina e na genética existe o desejo de alterar a estrutura somática do próprio ser humano. No controle dos comportamentos, na medicação, no exercício da engenharia e da medicina, surgem fatos inquietantes que atraem os pesquisadores responsáveis. Cito apenas, escolhendo entre muitos, Jonathan Moreno. Especialista em bioética, consultor do Congresso e do governo nos EUA, ele tem alertado coletividades e indivíduos para os caminhos da pesquisa, quando ela tenta modificar corpos e almas visando a "melhoria" do padrão humano. Como, antes de Moreno, asseverou Hans Jonas, estamos realizando tais projetos, mas nada garante que eles estão à nossa altura, ou que temos o direito de os efetivar.
Não podemos manter atitude despreocupada com o resultado de nossas façanhas técnicas. Temos o dever de preservar a vida humana e a do planeta, contra experimentos e aparelhos que não garantem o nosso patrimônio biológico ou espiritual. Jonas não segue Rousseau e menos ainda os ecologistas místicos. Nele não ocorrem frases ridículas sobre a "mãe natureza" ou sentenças tolas como "os terremotos e tsunamis têm origem no abuso humano". Seu diagnóstico é cheio de matizes e admite que a técnica possui valor inquestionável. O perigo reside no seu uso sem a necessária prudência. Aliás, ele não deixa de seguir o princípio esperança elaborado por Ernst Bloch, outro crítico das administrações burocráticas, marxistas ou capitalistas.
Responsáveis diante de quem ? Tal é a pergunta de Jonas. Não perante a natureza, pois ela não é portadora de direitos. Somos responsáveis pela nossa vida no uso dos recursos naturais. Não sendo possível interromper o movimento científico e técnico, importa lutar contra a tirania tecnocrática. É preciso que admistradores e políticos respondam diante dos governados e de toda a humanidade. Urge que eles sigam o mandamento ético que manda agir "de tal modo que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida autênticamente humana na Terra, durante o maior tempo possível". Jonas não tem fé ingênua em governantes que se regem segundo os alvos do poder, mas apela para a responsabilidade de todas as pessoas. O imperativo categórico é universal.
"A tecnologia, ao contrário da ciência, justifica a si mesma apenas pelos seus efeitos, não por si mesma e, assim, dados certos efeitos, avanços posteriores podem se tornar indesejáveis". (Jonas). Diante de situações dolorosas como a do Japão, o princípio da responsabilidade define tarefas para os que, sem cair no misticismo ecológico, desejam ser sucedidos, "no maior tempo possível" por seres humanos nesta partícula do universo a que demos o nome de Terra. Sem responsabilidade, morre qualquer esperança.
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Música e política.
Roberto Romano
Um lugar comum da filosofia política é o símile entre cidade e ordem musical. Na Renascença, François Hotmann usa as imagens antigas da harmonia para descrever o governo desejável. As figuras, como é previsível em alguém nutrido pelo pensamento antigo, são extraídas de Platão e de Cicero. Hotmann cita “a bela passagem” ciceroniana sobre o bom tempero musical do governo cuja fonte, afiança, é a República de Platão (escrita, diz Hotmann, com maestria na lingua grega “en si bons termes, qu’ il ne soit possible de lui donner une telle grace en la notre”) na qual o filósofo diz : os que tocam instrumentos musicais ou cantam em várias pessoas, “seguem certa medida e ressoam um canto harmonioso, mistura de vozes diversas reunidas e concordes, as quais se chegam a se fragmentar um pouco apenas e sair do tom, fazem mal aos ouvidos dos que as ouvem. E no entanto aquela harmonia só vem da perfeita consonância, bem acordada, de vozes diferentes.” De modo idêntico, segue Hotmann, “no governo da coisa pública, composta de pessoas de alta, média e baixa qualidade, quando as diferentes partes se unem, se ligam e se incorporam, não existe harmonia tão musical, nem melodia melhor acordada. A concórdia procede da união, caridade e mistura dos cidadãos da mesma urbe, como se fosse uma forte corrente e rija, para garantir o estado de uma coisa pública que não dura muito tempo sem justiça”.
Não apenas no lado protestante e rebelde à corte, ao qual pertencia Hotmann, foram postos em movimento doutrinas e saberes sobre a ordem musical de mundo e política. Entre 1564 e 1566 a rainha regente, Catarina de Medicis, e seu filho rei Carlos tentaram por todos os meios pacificar o Estado e a sociedade. Eles viajaram pelo interior da França buscando apaziguar os ânimos e cooptar novos aderentes para a corte. Mas a paz de Amboise, compromisso instável entre governantes e rebeldes que durou quatro anos, foi rompida em setembro de 1567 pelo príncipe Condé, protestante e líder dos reformados. O príncipe temia que Filipe 2, localizado próximo da fronteira entre Países Baixos e França para reprimir a revolta local, entrasse na França para apoiar Catarina de Médicis e vencer os protestantes. Foi tentado o rapto do rei. Além dos motivos religiosos para o ato, alvos políticos foram expostos, como o pedido de convocação dos Estados. A revolta de Condé vai de 1567 a 1569 e foi tratada como a anterior guerra do “Bem Público” de 1465, derrotada por Luis 11. Catarina venceu batalhas militares contra Condé. O movimento inteiro dos nobres protestantes era político e religioso, na tentativa de enfraquecer a Igreja Católica e a presença espanhola na política interna da França. As sedições levadas pelos huguenotes conseguiu o afastamento de Miguel de l ‘Hospital em maio de 1560. A liderança militar dos reformados era mantida por Gaspar de Coligny. Editos de tolerância nada valeram e não trouxeram paz à França, católica ou protestante. O edito de Saint Germain ofereceu aos huguenotes a liberdade de consciência, o culto por eles praticado antes das lutas e quatro cidades armadas (La Rochelle, Cognac, Montauban. La Charité). Assim, o rei reconhecia o partido da Reforma como potência militar autônoma e não apenas como uma dissidência religiosa. O sonho da harmonia política sob o rei se desfazia a cada instante. O monarca não mais garante a segurança geral da França.
Apesar desse fracasso, o campo noético da França, no relativo ao monarca, acentua a doutrina platônica, ou neo platônica, que afirma a hierarquia política (constante nas doutrinas do neo platonismo, em especial pela antiga tradição que passou por Santo Tomás de Aquino, de Dionísio o pseudo areopagita) e a idéia de harmonia. A corte de Carlos 9 nutriu pensadores que assumiram a exigência de hierarquia na ordem pública e de harmonia no reino, devida à pessoa do monarca. Em 1570 Carlos 9 incentiva a fundação da Academia de Música. Fundada por Jean-Antoine de Baïf em aliança com Ronsard e outros, seu objetivo era compor música segundo o modelo antigo e “acordar”a poesia com a música, conjugando sílabas francesas e notas. Assim, pensavam eles, seria possível atingir uma harmonia perfeita, concebida como fundamento do universo e da alma, prelúdio para o domínio das paixões humanas.
É com esse horizonte que o rei tenta, a partir da Paz de Saint-Germain, controlar a ordem política na França. Na tentativa de pacificação interna (que dera a Coligny lugar no Conselho de Estado), o casamento de Margarida, filha de Catarina, com Henrique de Navarra, líder dos protestantes depois da morte de Condé, serviu mais para erguer protestos de ambas as partes, a católica e a protestante, do que para definir uma paz duradoura e profunda. As coisas assumem rumo incontrolável com a tentativa de assassinato de Coligny por incitamento do duque Henrique de Guise.
Com essa situação insustentável, Carlos 9 e sua mãe tentam o golpe de Estado conhecido como a Noite de São Bartolomeu. Contra o golpe se levantam, como previsível, os protestantes e seus intelectuais. Hotmann será um deles. Dentre as fontes explícitas de Hotmann surge Platão nas Leis (sobretudo o livro III). A concórdia entre os humanos, a tolerância diríamos se estivéssemos no século 18, só é possível se os legisladores tiverem como referência o modelo musical.
Faço uma diversão em nosso tema, para adiantar alguns pontos importantes ao assunto. A figura da pacificação trazida pela música seguiu sua trilha até os nossos dias. No século 19 ela vigorou entre os românticos, teóricos e poetas. Shelley (1) resume o ponto ao enunciar que “o homem é um instrumento sobre o qual uma série de impressões internas e externas são conduzidas, como as alternâncias de um vento sempre mutável numa harpa eólica, que a move por seus movimentos numa sempre mutável melodia. Mas existe um princípio no ser humano, e talvez em todo ser sensível, que age de modo diverso do que ocorre na lira, e produz não só melodia, mas harmonia, por um ajuste interno dos sons e movimentos que excitam as impressões que os excitam”. (2)
O tema banal da harpa eólica se relaciona com a fábula da estátua egípcia do jovem Menão, onipresente na literatura romântica. Menão seria o filho de Titonius e Aurora morto na guerra de Tróia. Seu túmulo seria frequentado por um pássaro. Na poesia de Erasmus Darwin, “a gigantesca estátua de Menão no seu templo de Tebas, tinha uma lira em suas mãos que, muitos escritores críveis nos asseguram, ressoa quando o sol nascente nela bate”. (3) Entre o delírio dos apreciadores de ópio e do retorno à natureza, na qual brotaria a música melodiosa da concórdia comunitária, contra a via moderna e ao maquinismo da sociedade e do Estado, temos, portanto, as doutrinas humanistas de vários matizes, da Renascença ao século 18.
Montesquieu é escritor estratégico quando se trata da harmonia dos poderes estatais e das leis. Ele se refere à música e aprecia a sua função pública na política, moral e ideológica. No capítulo oitavo do livro IV (Espirito das Leis) são analisadas a força e a importância da música como instituição política da Grécia, tendo como base Platão e Aristóteles. Montesquieu explica, sem demasiada originalidade é certo, o quanto importa dar aos cidadãos um ofício que tempere a educação demasiado bélica. A música deveria “amansar os costumes” porque “de todos os prazeres dos sentidos, nenhum corrompe menos a alma”. O filósofo retoma o tema dos poderes morais da música. (4)
Catherine Kintzler, em belo artigo sobre o tema, passa rápido em demasia pelas teses de Montesquieu. No livro 4, capítulo oito citados, o filósofo trata de um paradoxo grego quando trata da música e dos costumes. Em primeiro lugar ele cita Políbio e Platão, sempre no sentido de se providenciar a atenuação da ferocidade guerreira. “Platão não teme dizer que não é possível modificar alguma coisa na música sem que mudanças ocorram na constituição do Estado”. Depois ele cita Aristóteles, Teofrasto, Plutarco, Estrabão, afirmando que o elo da música com as leis e costumes “é um dos princípios de sua política”. A partir daí, temos uma análise, de fundo econômico e social, que tenta explicar o vínculo entre música e legalidade. Nas cidades gregas, sobretudo as dedicadas à guerra, os trabalhos destinados ao ganho de dinheiro eram indignos do homem livre. A democracia manteve aquele veto. E foi apenas “pela corrupção de algumas democracias que os artesãos chegaram à cidadania. É o que Aristóteles informa e sustenta : uma boa república jamais lhes dará o direito de cidade”. A agricultura era própria dos servos, dos povos vencidos (Ilotas em Esparta, Periécios em Creta, Penestas na Tessália). Todo comércio baixo era infame, pois nele um cidadão servia um escravo, um locatário, um estrangeiro. Donde, adianta Montesquieu, um problema sério: seria preciso que os cidadão fossem ocupados, não se apegassem à preguiça. Mas eles não poderiam comerciar.
Logo, a ginástica e a guerra eram muito próximas. A sociedade grega seria uma espécie de clube de atletas e guerreiros. Tal ocupação torna os indivíduos duros e selvagens. Ela precisa ria ser temperada pela música e por outros afazeres. A música, por si só, não amansaria os costumes, mas ela atenuaria a ferocidade. Ela ajudaria a alma a sentir ternura, doce prazer, piedade. Existe, no trecho, um aguilhão contra o pensamento à moda de Rousseau : “Nos autores de moral, que, entre nós, proscrevem tão fortemente os teatros, nos fazem sentir bastante o poder da música sobre as almas”. Mas porque, interroga Montesquieu, escolher a música para amansar os costumes ? “De todos os prazeres dos sentidos, nenhum deles corrompe menos a alma. Enrubescemos ao ler em Plutarco que os tebanos, para amansar os costumes de seus jovens, estabeleceram por lei um amor que deveria ser proscrito por todas as nações do mundo”. (5)
Mas não apenas Montesquieu prestou atenção aos conceitos éticos sobre a música, engendrados pelos filósofos gregos. No Dicionário de Música (verbete “Música”) Rousseau afirma que “a música era muito estimada pelos povos da antiguidade, principalmente pelos gregos, e esta estima era trazida pela potência e efeitos surpreendentes que eles atribuíam a tal arte. Seus autores não acreditavam dela nos fornecer uma idéia demasiado grande, nos dizendo que ela era usada no céu e que ela a principal diversão dos deuses e das almas bem aventuradas. Platão não teme dizer que não pode existir mudança na música que não cause outra na constituição do Estado, e pretende ser possível assinalar os sons capazes de fazer nascer a baixeza da alma, a insolência, e as virtudes contrárias (…) a música integrava o estudo dos antigos pitagóricos. Eles a usavam para excitar o coração tendo em vista ações louváveis e para o inflamar do amor da virtude. Segundo tais filósofos, nossa alma era formada, por assim dizer, apenas de harmonia, e acreditam restabelecer, por meio da harmonia sensual, a harmonia intelectual e primitiva das faculdades anímicas; ou seja, a que, na sua opinião, nela existia antes que animasse nossos corpos e quando ela morava nos céus”. (6)
Apenas para não ficar nos poucos exemplos do romantismo, entre os pensadores situados no século 18, citemos Diderot. Poderíamos falar bastante sobre o elo entre harmonia, sociedade e poder estatal no Enciclopedista. Basta que recordemos o Sobrinho de Rameau. Mas no pensamento de um adversário maior dos enciclopedistas, inimigo de Rousseau, encontramos o panegírico da harmonia para determinar a natureza, a sociedade e o Estado. Trata-se de Jean-Philippe Rameau. O século 18 se define, normalmente, pelo classicismo, quando mais apropriado seria dizer que nele percebemos os derradeiros passos do barroco. A polifonia é criticada naquele tempo, sobretudo a propósito da opera. Como adianta uma analista da música no século das Luzes, não seria possível para as mentes cartesianas do período aceitar ser possível executar várias coisas ao mesmo tempo. “Se as vozes apenas se repetem, não existe interesse; se dizem coisas diferentes, é uma cacofonia incompreensível”. (7) A música como finalidade em si mesma é algo difícil de ser compreendido no século 18. Ela é pensada no conjunto dos costumes, da ordem política, religiosa, etc. Em tal contexto ela ainda é utilizada para a entender a noção de mimesis. E aqui as doutrinas gregas sobre a música mostram importância estratégica nos séculos 17 e 18.
Descartes, Mersenne, Kircher e outros conheciam rudimentos da música na Grécia antiga, como aliás também antes deles os mosteiros beneditinos. Tanto o Dictionnaire de Musique de Rousseau quanto a Enciclopédie diderotiana abrem caminho para o elo da música moderna com a antiga. Segundo Béatrice Didier, surpreende o número de informações sobre a música grega em Rousseau. Este último teria ensaiado aprender a lingua tendo em vista preparar seus artigos de música para a Enciclopédie. (8) Para os filósofos das Luzes, a Grécia teria sido a primeira terra a possuir um sistema musical coerente, embora não o mais antigo, pois tal elemento seria próprio do Egito. Alguns, no entanto, defendiam ser a China o lugar onde a música surgiu com anterioridade. O artigo “Música” da Enciclopédie enuncia que os antigos “diferem muito entre si sobre a natureza, o objeto, a extensão e as partes da música. Em geral eles davam à palavra um sentido muito mais extenso que o de hoje. Não apenas sob o nome de música eles compreendiam (…) a dança, o canto, a poesia; mas até a coleção de todas as ciências. Hermes definiu a música como o conhecimento da ordem de todas as coisas, esta era também a doutrina da escola de Pitágoras e a de Platão, os quais ensinavam que tudo no universo era música. Segundo Hesíquio os atenienses davam o nome de música a todas as artes”.
A música, para boa parte dos pensadores no século dezoito seria uma arte da totalidade. “O teatro grego seria justamente este espetáculo completo”. A Opera florentina se inicia com o modelo do teatro grego no qual “as tragédias eram cantadas” (Rousseau, “Fragmentos de Observação sobre Alceste …de Gluck”). (9) Segundo Rousseau o grego, ritmado pela alternância de longas e breves, já era musical e na música ”as medidas eram apenas fórmulas e ritmos fornecidos para todos os arranjos das sílabas longas ou breves, e pés suscetíveis à lingua e à poesia. De modo que, embora possamos distinguir muito bem no ritmo musical a medida da prosódia, a medida dos versos e a medida do canto, não podemos duvidar que a música mais agradável ou a melhor cadenciada seja aquela na qual estas tres medidas concorrem unidas da maneira mais perfeita possível”. (Escritos sobre a Música)(10)
Importa entender o sentido amplo da palavra “música” dos antigos ao século 18, para não cairmos na esparrela do romantismo e de seus representantes tardios como R. Wagner, sobre a ”obra de arte total”. (11) Segundo este último, tal prática seria “novidade” sua, obra de seu gênio. No entanto, basta abrir os textos da renascença, como os de Hotmann, para nos dar conta da amplitude do termo e da coisa para os pensadores que produziram antes do século 19. Segundo Condillac “a palavra música compreende não só a arte que ela designa em nossa lingua, mas ainda o gesto, a dança, a poesia e a declamação. A tais artes reunidas, pois, é preciso relacionar a maioria dos efeitos de sua música e desde então eles não surpreendem” (Ensaio). (12 ) Mesmo o grande inimigo do teatro, Rousseau, exclui a tragédia grega da condenação geral emitida na Carta a D’ Alembert sobre os Espetáculos. Naquelas peças canto e palavra seriam unidos, o que se perdeu com a degradação da sociedade. A degradação da música, aqui, tem o sentido que lhe foi dado por Platão na República e nas Leis.
A questão da harmonia é essencial naqueles textos, e assim eles foram percebidos na renascença e na idade moderna. Ao analisar o pensamento musical e metafísico de Rameau, (13 ) Catherine Kintzler diz que o compositor “não contente por ter submetido a música a um modelo matemático (…) empreende uma cruzada teórica cujo fim confesso é ‘abrir caminho’ alí onde reinava a obscuridade, empreende uma cruzada teórica para estabelecer a música no centro e no topo do saber. A música não poderia ser uma disciplina subordinada. Ela deveria se tornar a rainha das ciências”. Desde 1750 Rameau diz que a música pode ser vista como “o espelho da natureza na parte científica”. Logo ele inverte o papel da música e da matemática, pois no seu entender a segunda deve ser submetida à primeira. A música se transforma em princípio universal de inteligibilidade. A música encarna o fundamento material de toda verdade. É dela que as demonstrações matemáticas extrairiam sua certeza. Assim, a harmonia musical deve ser levada a sério: “não existem obras da natureza ou da arte na física ou moral, que não sejam suscetíveis do termo harmonia universal, harmonia celeste, harmonia do corpo humano, harmonia em pintura, arquitetura, harmonia do governo, etc. Se perguntarmos aos pintores o que significa acordar um quadro, veremos que é contentar o olho o que se faz em música para contentar o ouvido para chegar à justeza exata e rigorosa e sensível da música, a qual parece nos ter sido concedida pela natureza como o tipo sensível do que deve estar em proporções, ou seja, de toda a perfeição”. (14 )
Entremos no vivo da questão, com a fonte referida em quase todos os autores renascentistas ou dos séculos 17 e 18, para determinar a amplitude da música como perspectiva universal que engloba as artes e a política. Refiro-me naturalmente a Platão nas Leis, sobretudo no livro terceiro. Sem ignorar os conhecimentos do leitor sobre os escritos platônicos, peço vênia para resumir os pontos essenciais daquele texto. A pergunta inicial fornece todo o movimento do escrito: qual poderia ter sido a origem da sociedade política? (676 a). Para encaminhar a pesquisa, o ateniense propõe um ponto de partida, o que determina como os Estados caminham tanto no sentido da virtude quanto no do vício. E vem a proposta de recuar a tempos sem limites, seguindo as mudanças ilimitadas ocorridas naqueles tempos. Assim, trata-se de investigar o tempo no qual os Estados se organizaram em sociedades políticas, tempo que deve ser concebido, o que não é fácil, porque faltam meios para o fazer. Tal tarefa é árdua e sem instrumentos eficazes. A dificuldade de semelhante tarefa a torna ἀμήχανος (sem esperança, impraticável). Durante aquele tempo milhares e milhares de Estados foram constituídos e na mesma proporção, milhares desapareceram. Tais Estados conheceram todas as espécies de organização política. Eles não passaram de pequenos a grandes e de grandes a pequenos? Está posta aqui, desde já, o problema do crescimento do Estado, com o imperialismo. Falaremos do ponto mais tarde. Tal mudança quantitativa (maior/menor) tem seu correlato na qualidade: as organizações seriam piores ou melhores, mudando de sentido com o tempo. Trata-se, pois de captar a causa (palavra que vem de αἴτιος, o responsável, o culpado) de semelhantes modificações.
O tempo incomensurável, no entanto, e as mudanças qualitativas que ele encerra, poderia ser examinado, para se descobrir alguma verdade, segundo as tradições arcaicas sobre os eventos ocorridos. O termo empregado por Platão agora é παλαιοὶ λόγοι (os ditos primeiros, muito antigos). As narrativas rezam que os homens sofreram graves cataclismos (dilúvios, epidemias, etc) que só deixaram subsistir uma parte deles. No dilúvio, por exemplo, os pastores das montanhas teriam escapado em pequeno número. Eles seriam ignorantes do resto das técnicas (que não o pastoreio) quanto das maquinações (μηχανῶν, plural, feminino, no genitivo vindo de μηχανή, instrumento, astúcia) usadas pelas pessoas das cidades umas contra as outras, para ter mais bens do que os demais (o termo é pleonexia) para ser mais importante que eles (o termo agora é philoneikia, amor da vitória sobre os demais, o que leva ao significado de sectarismo, partidarismo, etc) sem falar das safadezas (κακούργημα, truques baixos, fraudes) usadas por uns contra os outros.
As cidades situadas na planície e beira mar foram inundadas e destruídas e com elas os instrumentos bem como as descobertas de valor implementadas pelas artes, sobretudo a técnica politica e demais saberes (sophias). Aqueles saberes ficaram escondidos, até que Dédalo as revelou em alguma parte, Orfeu em outras e Palamedes ainda outras no domínio musical. Marsyas no Olimpo e depois Anfião quanto à lira e outra infinidade de inventos, os quais, podemos dizer, datam de ontem ainda.
Após a destruição, a humanidade vive num estado terrível de solidão, em imensas extensões de terra desolada. Morreu a maioria dos animais, salvo talvez pequenos rebanhos de chifre, sem dúvida cabras, insuficientes para nutrir os sobreviventes. E da organização política e das leis, nada sobrou. Nada restou também da virtude em abundância e da perversidade idem. Os homens ignoram “as belas coisas da vida citadina”, na virtude e no vício. Com o tempo e o aumento da espécie humana, tudo chegou à situação presente. O provável é que as mudanças se tenham ocorrido gradativamente. Descer dos montes para a planície seria, para todos os sobreviventes, motivo de um terror que ressoava em suas almas. Como seu número era pequeno, sentiam alegria no encontro com os semelhantes. Mas os instrumentos de comunicação desapareceram com as demais técnicas, os que teriam sobrado, estavam gastos. Para ter novamente tais comodidades, foi preciso muito tempo.
Sem instrumentos que possibilitam os encontros, é menos importante a dissenção (στάσις) e a guerra (πόλεμος). Isolados, os homens tem prazer de se encontrar, com sentimentos de benevolência mútua. Como eram poucos não precisavam brigar pela comida, roupa, utensílios, etc. Eles eram pobres e não tinham motivos para as lutas. “Uma comunidade (συνοικία) na qual não comungariam a riqueza ou pobreza, é nela que se realizaria o a mais alta (γενναιότατα) nobreza ética. Nela não existiria desmesura (ὕβρις) , injustiça (ἀδικία), nem inveja (ζῆλοί) ou rivalidade (φθόνοι )” .
Aqueles homens teriam bondade de coração (εὐήθεια) e o que lhes era dito belo ou feio, o consideravam assim e se conformavam pois nenhum tinha o talento de suspeitar a falsidade. Eles viviam de acordo com o que lhes diziam sobre os deuses e os homens. Eles ignorariam os processos e dissenções, artes que consistem em maquinar (μηχανή) engodos em palavras e atos injustos, para se aproveitas uns dos outros. E como eles precisaram de leis e legisladores ? Se eram bons, não precisavam de leis. Eles não tinham escrita, mas por costume (ἔθεσι) as normas (νόμοις) eram as legadas pelos seus antepassados (πατρίοις).
Assim, eles dariam o nome de “ hereditariedade”(δυναστείαν) ao poder político, forma que ainda hoje existe entre gregos e bárbaros. Eles não precisavam de assembléias, pois cada chefe dava a lei para as crianças e mulheres. Com o aumento das pequenas comunidades primitivas, cada qual com seus costumes e devido ao seu isolamento recíproco, cria-se uma grande comunidade, composta das pequenas, e cada representante vinha à grande comunidade com as suas leis próprias, deixando de lado as leis das outras comunidades. Eles escolheriam para representá-los os que mais identificados fossem com os costumes e leis de sua comunidade, a tribo. Eles recebem o nome de legisladores, instituindo magistrados para trabalhar com o que se poderia chamar de rei, se definindo algo como um governo dos melhores (ἀριστοκρατία).
Uma terceira forma, é analisada depois da dinastia e da aristocracia. Tróia, ao deixar as alturas se estabeleceu numa grande e bela pradaria, sobre uma colina pouco elevada em cuja vizinhança corriam belos rios. Com os tempos, os seus habitantes esqueceram o dilúvio. Outras cidades foram iniciadas, que conduziram expedições contra ela. Os aqueus passaram dez anos diante dela a pudessem conquistar. Enquanto isso, nas cidades dos atacantes surgiam sedições fomentadas pelos jovens. Estes, quando os guerreiros voltavam, não os acolhiam como o devido, nem mesmo com justiça, mas com assassinatos, banimentos, degolação. Os que foram assim tratados mudaram seu nome. De aqueus eles passaram a se chamar dórios, pois Dorieus reuniu aquela gente. Esta é a história dos espartanos.
Toda a questão das leis surgiu, diz o ateniense, de uma digressão sobre a música e a embriaguez. Na via seguida, chegamos ao estabelecimento de uma população em Esparta, que teria sido um estabelecimento perfeito, o que nos leva até Creta, que tinha leis irmãs à de Esparta. Com a digressão, foram examinadas três formas políticas, que se sucederam no tempo imenso. Estamos diante de uma quarta, ou povo. Nos coloquemos nos tempos em que Esparta, Argos, Messena estavam sob o domínio dos ancestrais. Em Argos, agora independente do todo, Temenos se tornou rei, Cresfontes em Messena, Procles e Cresfontes em Esparta.
Um triplo juramento ligou cada um das três realezas aos três Estados, juramento conforme as leis instituídas para regular as relações dos governantes com os governados. Os primeiros se empenhariam a não, com a passagem do tempo, e de sua linhagem, fazer uso excessivo da força no uso de sua autoridade; os segundos, fortalecidos pelo juramento solene dos governantes, se comprometiam a nunca fazer algo para derrubar a realeza, nem abandoná-la aos que, no estrangeiro, desejariam derrubá-la. O juramento serviria para ajuda mútua entre reis e povos vitimas de injustiças. Um conselho prudencial para os legisladores : eles deveriam fazer leis que pudessem ser acolhidas de bom grado pela massa popular. Como os professores de ginástica e os médicos devem colocar algum prazer nos seus cuidados.
Entramos agora no ponto mais delicados das leis e da ordem política: o econômico que implica a propriedade. O ateniense diz que para estabelecer a igualdade (o termo de origem é ἰσότης, igualdade) entre os cidadãos, seria preciso que se efetivasse de modo conveniente a regulamentação da propriedade fundiária. Também seria preciso regular as dívidas, liquidando-as. Quando um legislador deseja mudar algo neste campo, todos se levantam contra ele e alegam que não se deve mexer no caso. E chegam imprecações contra os que propõem uma nova partilha das terras e modificações nas dívidas, de modo que tais problemas, para qualquer legislador, definem uma aporia (ἀπορία ).
Em Esparta, no entanto, graças à excelente distribuição das terras e da pouca importância das dívidas, não havia lugar para as competições invejosas. Como se deu então a quebra nos elementos constitucionais? Desde que os três estados foram constituídos politicamente, dois deles logo irão corromper (διαφθείρω, fut.) sua organização interna e suas leis, um só, Esparta, permaneceu fiel.
Enquanto a constituição dos três Estados era mantida, havia segurança para cada um deles e para todo o Peloponeso. Isto ocorre à semelhança do que se deu com Tróia, arrogante por confiar em demasia no poder dos Assírios. O que subsistia do prestígio daquele império era algo considerável. Como ainda hoje tememos (φοβέω) o Grande Rei, as pessoas daquele tempo temiam a reunião de povos agrupados sob uma única autoridade. Tróia tomada pela segunda vez, havia ali havia alí pelos Assírios (a cidade integrava seu império) poderosa queixa contra os gregos. Contra tal ameaça, os gregos acreditavam que constituindo um só exército, repartido pelos três Estados sob a autoridade de três irmãos, eles teriam um arranjo para suas forças que as faria superiores às que estavam presentes na expedição contra Tróia. Tal organização, o poder nas mãos de uma só família, parecia durável aos gregos. Mas a esperança mostrou-se vã. Uma parte se colocou em guerra contra as demais.
Qual a causa da ruptura desastrosa? Todos os homens possuem um comum objeto de desejo, tudo o que ocorre deve ocorrer conforme as exigências de nossa alma, de preferência tudo sem exceção, pelo menos tudo o que pertence à ordem humana. E o que pedimos nas orações, pedimos também aos que amamos. Um filho, no entanto, pode pedir aos deuses algo do qual seu pai pediria exatamente o contrário, quando se trata de um pedido desarrazoado. As preces devem ser dirigidas para o que é razoável. O legislador deve seguir este princípio. Ele deve estabelecer tendo em vista a virtude que comanda a tudo, o pensamento refletido (φρόνησις ) a inteligência (νοῦς) a opinião (δόξα) com o amor (eros), com o desejo ( ἐπιθυμία) que concorda com as primeiras atividades de nossa alma. Platão diz que enuncia em forma de brincadeira ( παίζω) com o que deveria ser assumido com sério (σπουδάζω) ( ) e vice versa. Para quem é desprovido de inteligência, é arriscado usar a prece, pois pode ocorrer o contrário do que se pede. A causa da ruína das realezas dóricas não está em algum medo mas no fato de que na guerra eles não souberam dizer quem deve mandar e quem deve ser mandado. A causa está na sua ignorância sobre o que mais importa nos assuntos humanos.
O legislador deve se esforçar na imposição ao Estado de toda prudência (φρόνησις) possível, purgando-o de sua desrazão (ἄνοια) tanto quanto estiver em seu alcance. Qual a ignorância visada? A produzida quando tendo julgado bela uma coisa, ou boa, não a amamos e pelo contrário, a odiamos. E quando amamos e procuramos o que consideramos perverso e injusto.
Tal discordância entre pena e prazer de um lado, e de outro entre a opinião razoável é a suprema ignorância e maior porque ela é própria da massa (πλῆθος) (14) pois a parte da alma sujeita à pena e ao prazer corresponde exatamente, no Estado, o povo e a massa. Quando a alma se opõe aos seus conhecimentos ou às suas opiniões, ou ao que é razoável (o que na natureza é feito para comandar), chamo isto nela de “desrazão” (ἀμαθία, ignorância, estupidez) e assim também no Estado, quando a massa não obedece os magistrados e as leis. O mesmo ocorre nos indivíduos, quando os bons princípios são ineficazes e se deixam agir ao contrário do que eles prescrevem, afirmo que os ignorantes são os seres mais dissonantes.
Nenhuma magistratura pode, portanto, ser atribuída a alguém que padeça de semelhante ignorância, mesmo que tenham a mente rápida e fina. Deve-se, ao contrário, chamar de sábios aquele cujo caráter é o oposto, mesmo quando não sabem ler ou escrever (ou mesmo nadar) e lhes atribuir os cargos porque justamente são pessoas sensatas. Na sinfonia (συμφωνία), a mais bela e elevada consiste no mais alto saber (σοφία), partilhado pelo homem que vive de maneira razoável. Quem carece deste saber arruina a sua casa, é impossível que seja um salvador (σωτήρ) para o Estado. Do indivíduo ao Estado, temos a questão da harmonia.
Num Estado é preciso quem obedeça e quem manda. O último deve possuir títulos para tal, nos grandes Estados, nos pequenos e nas famílias. Nestas, o pai ou a mãe comandam os filhos. No Estado, as pessoas de alto nascimento (γενναῖος) devem comandar os de baixa extração. Depois, os anciãos devem comandar os jovens, o escravo deve ser comandado pelo senhor. Depois, o fraco deve ser comandado pelo forte. Mas há um sexto modo de comandar, por título, o ignorante (ἀνεπιστήμων) deve obedecer o sábio, o que tem prudência (de φρονέω).
Há o modo de obedecer que não segue a natureza, mas segue a natureza, ou melhor, segue o comando natural da lei sobre as pessoas que se submetem voluntariamente, sem recurso à violência. Chegamos ao sétimo título, o sorteio, quem comanda é o que ganhou, o perdedor será comandado. Este título depende de ser amigo dos deuses ou presenteado pela boa fortuna (εὐτυχής).
Poderíamos brincar (παίζω) com os se põem a redigir leis e lhes perguntar quantos títulos ao comando existem e se eles não enxergam os contrastes que existem entre aqueles títulos. Temos aqui uma fonte de sedição (στάσις) . No caso dos reis de Argos, as causas de sua ruína e a perda de potência (δύναμις) do povo grego foi ignorar as palavras de Hesíodo segundo a qual, em muitos casos, “a metade vale mais do que o todo”. Sempre que é prejudicial por a mão sobre o todo, quando basta fazer isto com a metade, a justa medida vale mais do que o que o desmedido pois é melhor do que o pior.
Os reis que se arruinaram foram os primeiros a serem atingidos do mal que consiste em ambicionar ter mais (pleonexia) do que permitem as leis estabelecidas. Eles haviam louvado as leis, juraram seguir os seus mandamentos, em palavras. Mas não de fato. Esta discordância (διαφωνία) constitui a mais grave ignorância (ἀμαθία) mas é tida como sabedoria (σοφία). Em razão de tal dissonância e defeito amargo de cultura (ἀμουσία), se corromperam todas as belas coisas da constituição.
A justa medida é essencial na ordem política, como também nas relações do corpo (alimentação) ou técnicas (nos navios, mais velas do que o preciso), na alma direitos excessivos. Sem ela, tudo se inverte. Alí a abundância de carnes que leva à doença, aqui a ilimitação (hybris) que leva à injustiça (adikia). A alma dos jovens não pode suportar o peso do poder, logo ela é infectada da mais grave doença, a desrazão (anóia). Contra tais excessos de poder, cabe ao legislador prudente, graças à justa medida, tomar precauções.
E chega o instante dos pesos e contra pesos do poder. Em Esparta, em vez do rei único, uma dupla de reis, o que restringe o poder à justa medida. Além disso, o voto de 28 anciãos que possuem, nos assuntos mais graves, poder igual ao dos reis. Há um terceiro salvador (σωτήρ), com o poder dos Eforos, um poder que se aproxima do sorteio. Assim, o governo de Esparta é uma combinação de poderes que leva à salvação própria. Juramentos não controlam a alma de um jovem candidato à tirania. Importa limitar a medida dos poderes, fundir num só os três poderes.
Assim, existe de um lado o poder autocrático dos Persas , o poder temperado de Esparta. É preciso sempre o tempero, o acorde correto. Esta teoria do poder tem como pressuposto uma visão do universo e da sociedade como harmonia. E na ordem política, deve ser mantida a ordem antiga, sob o domínio das antigas leis , na qual o povo não tinha soberania (ele não era κύριος) nos assuntos, mas era escravo voluntário ( ἑκών) das leis.
Quais leis seriam as referidas? As relativas à música. Na época antiga a música era dividida segundo espécies e formas que lhe eram próprias. As preces aos deuses eram uma espécie de canto, os hinos. Depois havia uma espécie de canto oposto: lamentos chamados “trenos”. O pean era uma espécie distinta e outra, ligada ao nascimento de Dionisos, o ditirambo, etc. Reguladas as coisas não era permitido abusar de uma das formas, transpondo-as para outras. O poder de julgar sobre elas e julgar com conhecimento de causa e punir os transgressores não pertencia às vaias ou aplausos, mas era decidido por homens sábios naquela cultura que tudo ouviriam em silêncio e, com a varinha nas mãos, estabeleceriam a ordem e advertiriam as crianças e a seus professores. Esta a ordem aceita pelos cidadãos, sem que eles tivessem a audácia de recorrer à gritaria para dar sua opinião.
Os poetas foram os primeiros a quebrar as leis da música. Eles eram dotados para a poesia, eles nada conheciam da Musa enquanto fonte de legitimidade e fé pública, eles misturam as formas, levam tudo a se confundir, pretendem mentirosamente, em sua desrazão involuntária, que na música não existe lugar para alguma retidão e que, além do prazer que se encontra no seu gozo, não existe meio correto de decisão, melhor ou pior. Eles inculcam na massa (πολύς) o hábito de infringir as leis e a audácia de se acreditar capaz de decidir. Resultado: antes, o público não falava no teatro (era ἄφωνος), depois, começou a falar como se entendesse para saber o que é belo na música, ou não, surge então uma “teatrocracia” (θεατροκρατία) depravada que substitui o poder dos melhores juízes. Se apenas em música, e em música apenas, surgisse uma democracia composta por indivíduos de uma cultura liberal, não ocorreria algo tão desastroso. Mas na verdade é pela música que se iniciou, entre nós, com a crença na sabedoria de todo mundo para julgar, a atitude subversiva. Nenhum medo os retinha, pois se acreditavam sábios, e esta ausência de medo gerou a impudência, na audácia de não temer a opinião de quem vale mais do que nós, eis a impudência detestável, efeito da audácia de uma liberdade cuja arrogância é levada ao excesso.
Após tal liberdade, vem outra que consiste em não aceitar voluntariamente (ἐθέλω) ser um escravo (de δουλεύω, ser um escravo) de quem é depositário da autoridade. Depois vem a fuga da escravidão diante do pai e da mãe, diante dos antigos (fugindo de suas admoestações) e buscar um meio de não obedecer as leis. Neste termo, vem o desprezo dos juramentos, da fé publica, o desprezo dos deuses. O livro III termina com a indicação das tarefas do legislador: o Estado a que suas leis serão aplicadas deve ser livre, uma amizade mútua unirá nele os cidadãos, ele terá base no pensamento racional. Consideremos duas organizações políticas, uma despótica e uma livre, em qual delas existe a retidão? Obtendo para cada uma delas em separado um certo limite (poder despótico em uma e o direito de liberar a si mesmo, na outra) vemos que se produz nelas um sucesso excepcional. Quando, pelo contrário, cada uma delas conduzia a coisa ao seu máximo, servidão em uns e o oposto da servidão nos outros, nenhum bom sucesso ocorria.
É possível dizer que a correta constituição deve reunir aspectos da monarquia e da democracia, sendo temperada e permanecendo no justo meio. Todo poder dever ser limitado, tanto no lado do povo quanto no lado do príncipe. Atenas se inclinou em demasia para o lado democrático, a Pérsia do outro. A Pérsia se enfraqueceu porque a obediência dos povos nela se tornou servidão, mas Atenas se enfraqueceu porque a liberdade se transformou em licença, perdendo o sentido da autoridade. O Estado bem ordenado o poder político deve ser distribuído na proporção da virtude, cujos graus são os seguintes : bens da alma, unidos à temperança, bens do corpo, riqueza.
No século 17 a “harmonia das esferas”, doutrina acreditada até durante governo de Luis 14, foi superada pelas teorias de Newton e de Kepler. (15 ) Mas esta reviravolta não acabou de vez com a idéia pitagorica. Em nossos dias existem inúmeros trabalhos sobre o pensamento da harmonia. O tom romântico de semelhante interesse é claro. (16) Trata-se, como nas especulações românticas do século 19 (mas também do século 20) de reagir contra o paradigma da máquina e das suas supostas visões “reducionistas” do universo. Sempre que se ouve falar em “holismo” é possível ver na palavra a senha para a doutrina orgânica sobre o universo, com suas formas de pensar e de agir conservadores. Não por acaso, nos meios que defendem a “pureza” natural, a preservação da natureza, se percebe tal visão conservadora do universo.
Elemento nuclear dessa visão é a idéia de uma “biosfera”, antítese da visão mecânica do universo. Subsumida naquela noção encontra-se a antiga doutrina da “alma do mundo”, ou seja, o universo como ser vivo. Tais especulações se apresentam por exemplo em escritos sobre a Gaia, hipótese lançada por James E. Lovelock (17 ). Na antiga visão pitagorica (na verdade, um amplo conjunto de pensadores que engloba várias escolas filosóficas) (18 ) se determina que o mundo resulta da harmonia, ordenada na proporção da escala musical. Existem trabalhos que indicam o peso do instrumento monocórdio (ou kanon) na filosofia pitagórica e platônica.
Analogia significa “igualdade de ratios” ou proporções. “A palavra também é o módulo ou sistema das ratios no seu número total que fornece as ‘divisões do monocórdio’, o ponto preciso no qual a corda vibrante pode ser interrompida com uma ponte móvel, para ressoar os intervalos fixos ou fundamentais da escala musical, a oitava (2:1); a quinta (3:2); a quarta (3:4); e o tom maior (8:9). As íntegras 6, 8, 9 e 12 constituem o menor número total com o qual o sistema simétrico de ratios que se encontram –a moldura natural das antigas e modernas escalas diatônicas– pode ser expresso”. (19 ) O mais antigo sobrevivente dos livros sobre o monocórdio é de Euclides, o instrumento deve ser mais antigo. Seu uso e significação foram expostos por Ernest G. McClain, sobretudo no livro The Pythagorean Plato (20 )
Tomando os números usados ou derivados similares aos números do monocórdio “McClain identifica seu emprego que se espraia em alegorias numéricas, mitos, metáforas encontradas nos mais antigos livros. Quando Platão caracteriza o bom homem como ‘vivendo 729 vezes mais feliz e o tirano mais penosamente pelo mesmo intervalo’ (República 587e), ele usa o número que define o tríton (a sexta força do três; ou seja, 6/5 acima do tom fundamental). A tensão entre o homem bom e o tirano é comparada à pior dissonância possível no sistema da música ocidental” (cito sempre Graham Pont).
McClain analisa as alegorias numéricas de Platão e mostra como sua teoria política foi modelada pela teoria musical, com as Constituições de Calípolis, Atenas, Atlântica e Magnésia, correspondendo a quatro diferentes “temperamentos”, incluindo a escala temperada, durante bom tempo tida como invenção moderna. A chave das analogias músico-políticas seria a seguinte: a palavra grega syntagma pode se referir tanto ao sistema político quanto ao musical. Um autor recordado por Graham Pont apresenta uma análise importante neste campo. No escrito intitulado Classical and Christian Ideas of World Harmony (21), diz Graham Pont, Leo Spitzer deseja explicar os sentidos compostos da palavra alemã Stimmung e descobre suas relações no arranjo total dos termos harmônicos que ressoam na lingua européia. Com base apenas filológica, Spitzer divide aqueles termos em dois grupos: primeiro os relativos a acordo como “acorde”, “concorde”, etc. O segundo os relativos a “temperança” (tempo, temperamento, etc) . Os dois grupos correspondem à distinção entre ajuste (tuning) pelo número total e tempero (pequenos ajustes que envolvem proporções irracionais).
Spitzer estava intrigado com o significado da raiz das palavras do segundo grupo, um segmento de interrupção. De origem incerta, a variedade das palavras em ‘temp’ e sua ampla distribuição testemunha a existência de uma cosmologia musical muito antiga. Palavras como temenos (lugar sagrado), ‘templo’, ‘tempo’, ‘temperado’, and ‘término’ todas se referem a divisões do espaço e do tempo baseadas, supostamente, nas matemáticas comuns, as quais devem ter sido musicais na origem. A forte associação das ciências musicais e espaciais foi confirmada por Árpád Szabó (22), que argumenta serem os termos da geometria pré euclidiana derivados da teoria musical. Por exemplo, “diastema” significa um intervalo, espacial ou musical, como “corda” ainda tem uma significação musical.
Quando Hotmann, portanto, recorre à noção de Harmonia e a determina a partir das Leis platônicas, trata-se de um poderoso impulso e uma reflexão complexa sobre o Estado, no instante em que se instaura a monarquia absolutista. O problema ético do tempero e da harmonia no comportamento social e político é bem conhecido e analisado no período anterior a Hotmann, como em Montaigne. Basta abrirmos o ensaio “Sobre a moderação” (23 ) O comentário segue rumo à justa medida na ordem das práticas e valores. “Podemos amar a virtude em demasia, e nos comportar com excesso numa ação justa”. Montaigne diz gostar das naturezas “temperadas e médias. A imoderação diante do próprio bem, se não me ofende, me espanta e me coloca em dificuldade para a nomear”. Nem a mãe de Pausanias que arremessou a primeira pedra para matar seu filho, nem o ditador Postumios que mandou matar o seu filho cujo ardor na batalhar o fez jogar-se contra os inimigos, antes de ser a hora, me parecem justos, mas estranhos. “Não gosto de aconselhar, nem de seguir, uma virtude tão cara e selvagem”. E Montaigne cita o texto platônico : “Calicles, em Platão (Górgias) diz que a extremidade da filosofia é nociva, que tomada com moderação ela é agradável e cômoda, mas que no fim ela torna um homem selvagem e vicioso, desdenhoso da religião e das leis comuns, inimigo das conversas, inimigo dos prazeres humanos, incapaz de toda administração política (…) Ele fala a verdade, pois em seu excesso ela escraviza o nossa franqueza natural e nos desvia, por um sutileza importuna, do belo e claro caminho que a natureza nos traçou”. A lição de moderada atividade é vital quando se trata da arte política. (24 ) Nos tempos de Montaigne se tornava exacerbada a luta entre huguenotes e católicos radicais, entre os dois e o Estado francês.
“Nossos ancestrais foram maravilhosamente sábios e avisados ao bem determinar o governo político, de modo que considero seguro dizer que alí reside o único e verdadeiro remédio para todos os nossos males, ou seja, reformar nosso modo de vida no molde das virtudes exibidas por aqueles grandes personagens e reduzir o nosso Estado corrompido, como se ele fosse música dissonante, ao belo e antigo acorde dos tempos de nossos pais”. Assim reza o início da Franco Gallia. A França antiga, segundo Hotmann, seria temperada e harmoniosa como desejam os filósofos. “Nossos maiores, almejando manter sua república na bom temperamento, praticaram a mistura das três espécies de governo”.
O autor da Franco Gallia compara, no mesmo escrito, o Estado cujo governo se tempera e possui Conselhos efetivos e os dirigidos por dois conselhos, o primeiro deveria ser hegemônico, mas não é, ou seja, o Conselho Ordinário e outro, que deveria ser adjunto, mas se torna hegemônico, o Conselho privado que auxilia o monarca. “O primeiro tende a prover o bem de toda a república, universalmente. O outro, pensa apenas em se servir das comodidades e vantagens de um homem. Depois, visto que tais conselheiros moram num só lugar, ou não saem da corte principesca, eles não poderiam ver, nem conhecer o estado das províncias, que são mais afastadas. Melhor, ocorre muito frequentemente que sendo apegados às delícias e volúpias da corte, eles se corrompem e se deixam facilmente conduzir à um desejo de dominar, e ao desejo de fazer com que suas casas aumentem, de modo que no final eles se fazem conhecem não como conselheiros do reino, e do bem público, mas aduladores de um rei, e ministros de suas dissoluções e das suas”.
O Reveille Matin (1573/1574) afirma que nenhum povo estabeleceu um governante com autoridade absoluta para fazer o que bem lhe aprouvesse. A soberania encontra-se também nos demais magistrados, que possuem o direito de resistir à tirania. Os dirigidos deveriam obedecer o soberano apenas na medida em que ele obedeceria as leis e o contrato que o colocou no mando. Se um rei como Carlos 9 massacra seus súditos, é tempo de colocá-lo fora do trono. A Noite de São Bartolomeu seria motivos suficiente para tal expulsão.
Tanto Hotmann quanto o Reveille Matin consideram que a legitimidade para depor o governante reside nos magistrados inferiores. E tal doutrina eles a retiram de Calvino. Vimos que o reformador exigia obediência sem restrições ao governante, salvo em caso de ordens contrárias à fé. Mas ele confessa que em Atenas (falamos de um humanista) e Esparta existiam funcionários cuja missão era de vigiar o soberano, aplicando-lhe censuras conforme a gravidade de seus atos. Nos tempos modernos poderia ser retomada a experiência daqueles magistrados. Hotmann em Franco – Gallia e Teodoro de Beza no Du Droit des Magistrats afirmam que o rei partilha o poder com representantes do povo (embora, como vimos, o “povo” não era assim tão próximo da efetividade democrática, mas de certa aristocracia) e Beza chega ao ponto de enunciar que os representantes possuem o direito de afastar reis corrompidos ou injustos.
Segundo Hotmann em tempos pregressos “toda a administração do reino estava inteiramente à disposição da assembléia dos Estados, que se chamava (…) às vezes Placitum, pois como diz o uso da lingua latina (Placitum) propriamente indica a resolução e a conclusão final que se toma sobre determinada matéria debatida e disputada por vários. É por tal motivo que Cicero e outros autores chamam máximas tidas como certas e indubitáveis entre os filósofos (placita)”. Quando as decisões passaram a ser escritas em francês, diz Hotmann, a palavra placitum foi traduzida, “por ignorância ou malícia” como “tel est notre plaisir”. De qualquer modo, era imperativo ouvir a opinião (avis) do povo. Hotmann fala do governo inglês e espanhol, no sentido do império da lei sobre o monarca e no costume deste último ouvir a assembléia. Ele cita o texto lido pelos espanhóis quando um rei era coroado : “Nos qui valemos tanto como vos, y podemos mas que vos, vos elegimos rey con estas y estas conditiones : intra vos y nos, un que manda mas que vos”. Dada a presença geral do costume, conclui Hotmann, “não apenas esta liberdade tão bela de manter assembléias gerais de conselho, é uma parte do direito das gentes, mas até mesmo que os reis, por má prática e astúcias oprimem esta santa e sagrada liberdade, não devem mais ser tidos como reis, mas como tiranos, como os que violam o mais santo direito que sempre existiu entre os homens, e rompem os próprios liames da sociedade humana”. O tema aparece também em Teodoro de Beza (25 ).
Sagradas que sejam as razões do conjurados, devemos atentar para outros fatores além da religião na luta de parte considerável da nobreza contra o rei. Quando se fala do Estado moderno é preciso pensar na sua estrutura funcional. “Do ponto de vista da sociologia, o Estado moderno é uma ‘empresa’ com o mesmo título de uma fábrica. Nisto consiste precisamente seu traço histórico específico. E também deste modo se acha condicionada de maneira homogênea a relação do mando (Herrschafttsverhältnis) no interior da empresa”. (26). A separação (Trennung) entre os meios de administração e o seu operador, tanto na empresa quanto no Estado, define a burocracia que opera sine ira et studio, maquinal e hierarquicamente. O Estado absolutista, podemos dizer, montou o protótipo da referida empresa. Ele separou os nobres dos meios de administração feudal que eles herdaram de seus ancestrais. De modo idêntico, ele separou as cidades do auto controle administrativo.
As urbes que resistiram durante toda a Idade Média, após o esfacelamento do Império romano, guardaram seus costumes, sua administração e, sobretudo, o controle de seus impostos. Quando Igreja e Estado começaram a exigir taxas e impostos que iam além da capacidade daqueles centros urbanos, eles se levantaram contra os dois poderes centralizadores. As massas que fugiam dos feudos —o ar da cidade liberta— empregavam artifícios como as peregrinações. Os senhores feudais não podiam proibir tais expressões de piedade, mas os camponeses iam aos santuários como Compostela, e não retornavam aos domínios. Outro meio de movimentação de massas foi o comércio. O fato é que as referidas massas se concentravam, sem trabalho e costumes urbanos, nas periferias das cidades. As corporações fechadas não lhes proporcionavam emprego. O resultado foi a insegurança coletiva nas cidades. Por isto, “as primeiras constituições políticas urbanas tiveram a Paz como preocupação maior, elas apareceram como ´atos de Paz´ (Marc Bloch, A Sociedade Feudal). Para deixar clara esta violência, vejamos uma crônica da época: “No dia seis de maio o irmão Alberto de Mântua chegou a Florença e ali fez reinar a paz sobre 95 casos de homicídio; então pacificou em Bertinora; depois em Siena; depois em Castelnuovo; depois em Forlimpopoli; e finalmente em Imola pacificou 28 casos de homicídio” (Corpus Chronicorum Bononiensium, citado por R.W. Southern). Tais cifras são espantosas, se as compararmos com os habitantes das cidades. Em 1200, Florença tinha 30 mil habitantes. Tudo isso é bem exposto no dito espalhado por toda a Europa: “comunia est tumor plebis, timor regni, tepor sacerdotii” (A cidade é o tumor da plebe, o medo dos reis, o relaxamento dos padres: De rebus gestis Ricardi Primi, também citado por Southern).
É nessa brecha da insegurança geral que as cidades, gradativamente, cedem sua autonomia aos poderes papais e reais, com a centralização do poder e o aumento da força repressiva física. A estrutura do judiciário passa aos Reis e à Santa Sé, sempre disputada pelos dois poderes. E para manter a polícia e os exércitos, além de todo o aparato de mando central, recrudescem ao mesmo tempo os impostos e os saberes sobre a demografia, a economia, etc. já citados.
NOTAS
1) “Defense of Poetry”, in Shelley’s Literary and Philosophical Criticism (John Shaw Ed., Oxford, 1909), p. 121.
2) Cf. Para uma análise percuciente e válida até hoje, cf. Abrams, M.H. : The mirror and the lamp (Oxford, Univ. Press, 1971), p. 51.
3) Cf. Hayter, Aletheia : Opium and the romantic imagination (London, Faber and Faber Ed., 1968), p. 84 e ss.
4) Cf. Catherine Kintzler : “Montesquieu et la musique” no Blog da escritora (Mezetulle, http://www.mezetulle.net/) acessado no dia 09/01/2009, 10 horas.
5) Cf. De l ‘Esprit des lois (Ed. Pléiade, volume II), pp. 270-273. O trecho citado por Montesquieu refere-se ao Batalhão sagrado de Tebas, composto por amantes masculinos e cuja bravura suscitou os elogios de Filipe da Macedonia : “Pereçam miseravelmente os que suspeitam tais homens de ter feito ou sofrer algo desonesto!”. E continua Plutarco : “Não foi a paixão de Laios, como desejam os poetas, que introduziu em Tebas o amor de que falo; mas seus próprios legisladores que, para moderar e suavizar, desde a mais tenra idade, o caráter violento daquele povo, fizeram usar a flauta em todas as suas ocupações e divertimentos. Eles honraram aquele instrumento e se puseram a nutrir, nos ginásios, este amor puro e virtuoso, para domar o natural daqueles jovens. Foi portanto com sabedoria que tais legisladores deram como protetora de sua cidade a deusa Harmonia, a qual é dita filha de Marte e de Venus, para insinuar que, quando a ousadia e a coragem são temperadas pelas graças e pelo atrativo da persuasão, os povos usufruem do governo melhor ordenado e perfeito, fruto natural de uma feliz harmonia”.
6) Cf. Dictionnaire de Musique, ed. Pléiade cit. p. 921. Para uma análise da harmonia e do platonismo no pensamento de Rousseau, em especial na música, cf. Eigeldinger, J-J. : “Tartini, Rousseau et les Lumières” no mesmo volume V da Pléiade (onde se encontra o Dictionnaire de Musique), pp. 1694 e ss. Sobre o nexo entre política e arte, em especial no campo do teatro, passando pela filosofia de Platão, cf. o fragmento “De l ‘imitation théatrale”, mesmo volume da Pléiade, pp. 1196 ss.
7) Cf. Béatrice Didier : La musique des Lumières (Paris, PUF, 1985), p. 20.
8) Carta a Madame de Warens (27/01/1749). Didier, p. 43.
9) Écrits sur la musique, citado por Didier, p. 408, que remete também para o verbete “Opera” do Dictionnaire de Musique.
10) Didier, p. 44.
11) Cf. Roberto Romano: “Wagner, o conceito no palco” in Corpo e Cristal, Marx romântico (RJ, Ed. Guanabara Koogan, 1985). O livro está esgotado, mas pode ser lido em bibliotecas universitárias.
12) “Quant aux grecs, il leur paroissoit si honteux de l’ ignorer, qu’ un musicien et un sçavant étoient pour eux la même chose, et qu’ un ignorant étoit désigné dans leur langue par le nom d’ un homme qui ne sçait pas la musique. Ce peuple ne se persuadoit pas que cet art fût de l’ invention des hommes, et il croyoit tenir des dieux les instrumens qui l’ étonnoient davantage. Ayant plus d’ imagination que nous, il étoit plus sensible à l’ harmonie : d’ ailleurs, la vénération qu’ il avoit pour les loix, pour la religion et pour les grands hommes qu’ il célébroit dans ses chants, passa à la musique qui conservoit la tradition de ces choses. la prosodie et le style étant devenus plus simples, la prose s’ éloigna de plus en plus de la poësie. D’ un autre côté, l’ esprit fit des progrès, la poësie en parut avec des images plus neuves ; par ce moyen, elle s’ éloigna aussi du langage ordinaire, fut moins à la portée du peuple, et devint moins propre à l’ instruction.” (Essai sur l’origine des connoissances humaines [Document électronique] : ouvrage où l’ on réduit à un seul principe tout ce qui concerne l’entendement humain / par l’abbé de Condillac , no Site Gallica da BNF, acessado no dias 11/01/2009, as 10 horas AM. Quanto às inovações, também temidas por Platão, diz Condillac: “ Six cent ans avant Jésus Christ, Timothée fut banni de Spartes, par un décret des éphores, pour avoir, au mépris de l’ ancienne musique, ajouté trois cordes à la lyre ; c’ est-à-dire, pour avoir voulu la rendre propre à exécuter des chants plus variés et plus étendus. Tels étoient les préjugés de ces temps-là”. (ed. cit).
13) Jean-Philippe Rameau, Splendeur et Naufrage de l ‘Esthétique du Plaisir a l ’Age Classique (Paris, Le Sycomore, 1983).
14) Cf. A. Ed. Chaignet : La Vie et les écrits de Platon (Paris, Didier et Cie., 1871), pp. 403 e ss.
15) Isherwood, Robert M. 1973. Music in the Service of the King: France in the Seventeenth Century. Ithaca: Cornell University Press.
16) Toda a sequência deste trecho tem como base o artigo de Graham Pont, “Philosophy and Science of Music in Ancient Greece: Predecessors of Pythagoras and their Contribution”, Nexus Network Journal, vol. 6 no. 1 (Spring 2004), http://www.nexusjournal.com/filename.html Discordo do autor quanto à sua comparação antropológica entre Grécia arcaica e tribos aborígenes da Austrália. E também discordo de outros pontos. Mas sua explanação sobre a música e os nexos com a vida social e política servem bastante aos nossos propósitos.
17) Lovelock, James E. Gaia: A new look at life on Earth. (Oxford, Oxford University Press, 1979).
18) Basta recordar os argumentos postos por Cicero no De natura deorum contra os epicuristas, relativos à providência: um monte de palavras jogadas para cima não fariam a Ilíada, um monte pedras também jogadas jamais resultariam num pórtico ou obra de arte, supõe a idéia da harmonia no desígnio produtor do universo e da ordem humana.
19) Graham Pont, op. cit.
20) New York, Nicolas Hays Ed. 1978.
21) Spitzer, Leo : Classical and Christian Ideas of World Harmony: Prolegomena to an Interpretation of the Word “Stimmung” (Baltimore, Johns Hopkins Press, 1963).
22) Szabó, Árpád : The beginnings of Greek mathematics. (Dordrecht, D. Reidel, 1978)
23) Livro I, capítulo XXX, na edição Pléiade na página 195 ss.
26) Para uma análise correta das atitudes defendidas por Montaigne, cf. Jean Starobinski, “A ação calma” in Montaigne em Movimento (SP, Cia. das Letras, 1993), pp. 246 e ss.
24) O texto de Hotmann é de 1574, na tradução francesa que estou usando. Já em 1519, o tratado fundamental de Plutarco sobre a bajulação, “Como distinguir o amigo do adulador”, era conhecido na tradução de François Sauvage, a partir do latim de Erasmo. Em 1537 Antoine du Saix traduz novamente o tratado, com o nome exato de “La touche naifve pour esprouver l ‘amy et le flatteur, inventée par Plutarque, taillee par Erasme et mise a l’usage francoys par noble homme frere Antoine du Saix, commendeur de Bourg. Uso a edição moderna de Robert Aulotte : Plutarque en France au XVIe siècle (Paris, Ed. Klincksieck, 1971), pp. 15 ss. ”Or, il n’ est pas facile aux riches et aux Roys de dire ces parolles suyvantes: ‘A mon gré j ’eusse quelque pauvre personne encores plus indigente que ung mendian qui, en voulent mon bien et toute craintes ostée, me parlast de courage, en bon amy’. Mais, comme les joueurs de Tragedies et moralitez on besoing de musiciens et instrumentz qui supllient à leurs fainctes et pareillement ont mestier de gentz qui leurs applaudissent, de mesmes les grands seigneurs s’ en aydent. Pourtant, en sa Tragedie Merope admonestoit ainsi que ceulx là nous debvions faire noz amys qui ne dissimulent point pour le plaisir d ‘aultruy et chasser loing horas de l’ enceinte de nostre maison ces meschantz qui ne servent que de complaire et gracieuser. Toutestfois, les susdictz grands maistres font au rebours, car ilz chassent et fourbanissent de leur court ceulx qui se soubstiennent leur opinion, qui resistent par raison 1a leur concupiscence seulement en leur maison, mais aussi jusque aux affaires secretz et au dedans de leurs affections, les pipeurs chocquareroz”. Ed. Du Saix cit. p. 76.
25) Du droit des Magistrats, ed, cit. p. 39 e ss.
26) Cf. Max Weber : Wirtschaft und Gesellschaft. Fünfte Revidiert Auflage ,1972, p. 825.
O favor como técnica de controle e dominação encontra-se no plano mais amplo do Sobrinho de Rameau. Os fios que unem a sociedade em que Jean François se move, com suas cambalhotas para agradar os mestres e seus preferidos, foram tecidos na sociedade política conhecida como Ancien Régime. E o tempo da tecitura data, pelo menos, de Felipe o Belo. Mas ela foi acelerada no Renascimento. A ordem dos favores impera na corte e nos elos entre nobres importantes e outros, menos poderosos. Ela segura em redes complexas de nepotismo, apadrinhamentos, interesses, o rei a todos e a cada um dos súditos. Não por acaso, o título monárquico é o de Pai. Projeta-se na ordem pública o que se determina na vida familiar.
Como enuncia Joël Cornette () “O reino é organizado como uma família mais ampla de início, na qual as ligações de sangue e proximidade são hegemônicas, onde o rei sempre é percebido sob os traços de pai benevolente, do pater familias, concedendo suas benesses aos seus e sabendo distinguir, entre seus próximos, os que as merecem. Henrique IV, chefe benfeitor de clã, permanece para sempre como o que fez dos franceses ‘irmãos ’, ‘primos’, ‘amigos’, um clã que tem sentido não quando ele está em guerra ou em paz, mas porque está reconciliado (...) Todas as famílias concomitantes e superpostas, de Versalhes até a mais humilde choupana, são dominadas pela família mística: o Pai, o Filho e o Rei da França. Pois a essência divina da monarquia, pensada, difundida, teorizada definitiva e eficazmente a partir da ressacralização de Henrique IV, confere a esta dimensão paterna da monarquia um valor sagrado. Segundo uma propaganda oficial, as famílias terrestres do reino francês apenas transcrevem a família celeste, dos santos, dos anjos, do povo de Deus.”
Ademais, o trabalho do rei é o de prover os seus próximos “construindo uma rede familiar e doméstica que assegure a boa marcha do governo. Para tanto, é preciso achar subsídios. Os monarcas mais atilados elaboraram, com seus conselheiros, sistemas que ligam o ‘doméstico ao administrativo’, a fidelidade à venalidade, o ‘serviço de sua pessoa na administração da coisa pública’. Assim a monarquia criou em permanência a estrutura clientelar com ramos horizontais no espaço geográfico, limitadas apenas pelas fronteiras , com implicações verticais na hierarquia social, descendo até os submetidos à talha e à corvéia”. ()
A ascensão social e política é feita pelos grupos e indivíduos naquela imensa rede de favores instaurada pelo absolutismo. O rei precisa cooptar os nobres, estes precisam exibir poder ao rei. E ambos os lados precisam de operadores que permitam a fluidez dos interesses, a sua realização sempre dependente dos alvos concorrentes ou paralelos aos dos coletivos familiares ou de “amigos” que os mantinham. A política do “é dando que se recebe” não foi instaurada no Brasil, como se nota. A sociedade e o Estado absolutistas constituíam, diz um historiador, “redes de amizade, de primos, de camaradas de colégio e combate, companheirismo, afinidades diversas, encontros de vizinhos”. Elas eram, para um nobre, “uma rede de interdependência na qual ele se inseria desde o nascimento, onde se casava e que lhe permitia sustentar, ou aumentar, a reputação de sua casa. É um capital que em parte ele herdara de seus parentes, que deveria fazer frutificar, antes de o transmitir por sua vez aos filhos. O gosto das relações, o culto da amizade, contavam tanto quanto o sentido da honra e do devotamento”. ()
O reino, grande família, era movido pelos alvos das famílias. As redes horizontais de parceria e cumplicidade buscavam, todas, ascender na escala do Estado. O meio era encontrar conexões em estratos cada vez mais altos de redes de interesse e favor, até atingir os arredores do trono. Assim, os elos de clientela e fidelidade se tornavam a cada momento mais amplos e complexos. Entre os termos que assinalam os pactos tácitos (o termo é posto no Sobrinho de Rameau) está o que enuncia que alguém “pertence” a um outro, é sua “criatura” ou seu “doméstico”. Todos estes termos servem, perfeitamente, para descrever Jean François e seus concorrentes na busca da ascensão e sobrevivência. Só que tudo mais degradado, mais vil, desprovido da ilusão nobre da honra, da glória, etc. ()
Tais cadeias de solidariedade uniam três tipos de pessoas: o patrão, o cliente, e os “brokers” (os intermediários), ou seja, o corretor. A clientela é algo praticado desde os tempos de Roma. Deixemos um pouco os tempos absolutistas modernos e nos dobremos sobre o clientelismo em Roma. ()
Como ainda no Antigo Regime, as relações políticas de Roma ocorrem nos círculos complexos das famílias. As coalisões são formadas na base familiar, com as gentes e as familiae. O consulado romano foi possível, com certa estabilidade, com fundamento no trato dos grupos familiares e de sua clientela. A prática da adoção de indivíduos por famílias é uma outra maneira de manter vínculos de força e de poderio político. O costume de adotar, mantido pela sociedade, foi posto em movimento pelos imperadores, mas a partir de uma prática jurídica anterior: as famílias em filho homem como herdeiro, adotavam alguém que passava a usar o seu nome, dando-lhe sobrevivência e coesão. Adotar era um meio de estabelecer alianças entre famílias. () Os cargos maiores de Roma eram gratuitos, porque os seus ocupantes eram ricos e poderosos, não sendo próprio à sua dignidade receber para administrar. Receber salários para exercitar o governo é próprio de um regime que deseja fornecer livre acesso ao poder para todos os cidadãos. E Roma era uma aristocracia, não uma democracia. Mesmo sua república não era democrática. Assim, toda a eficácia política, guerreira ou econômica repousa sobre a influência de certos indivíduos de certas famílias no circulo social. Não existe matiz igualitário em Roma: ou a pessoa pertence à uma família poderosa, ou à uma família pobre. Há os que governam, uma elite, e a massa dos que obedecem. Trata-se da relação patres/plebs.
Dessa relação, conflitiva em toda a república e império romanos, surge uma prática de manipulação dominadora exemplar: o patronato e a clientela. Não se trata de algo inédito, inventado em Roma. Já na Grécia existia o patronato, sendo que um conservador como Fustel de Coulanges imagina ser ele “uma prática das mais conformes à natureza humana”. O próprio Fustel analisou tal costume na Gália e nos povos germânicos. () Os habitantes das cidades conquistadas por Roma se tornavam clientes do general que os venceu, este recebe o título de patronus. Os escravos libertos por manumissio,() entravam para a clientela do patrono. Tais casos não dizem muito para a dominação política, pois os seus partícipes dominados eram escravos. Importante é o ato “pelo qual um cidadão livre se coloca sob a proteção de uma pessoa mais poderosa e mais influente, o seu patronus. Esta forma de clientela se distingue essencialmente da anterior, porque é constituída por uma adesão livremente contraída após entendimento estabelecido entre as duas partes, o que se chama fides.” A clientela é oferecida para todos os que não possuem a plena cidadania. Ela resulta de um pacto solene, no qual o patrão enuncia a fórmula : Ego in fidem te recipio. Ela não traz prejuízos à posição jurídica do cliente, ela é puramente moral, não cai no domínio público. Os clientes, embora não sejam patrícios, podem pertencer a todas as categorias sociais, desde que encontrem apoio de um mais poderoso. A clientela é hereditária, mas pode ser rompida, ou estabelecida com maior número de patronos. Aí, a conciliação da fides a um ou a outros, é mais complicada.
O cimento que faz a fides permanecer, sólida, é o fauor (favor). Favere assume o sentido “ser favorável”, na lingua comum e na política. Ao termo fauere corresponde fautor : “aquele que favorece”. Ele aparece em data mais avançada da república. Favor é o que sustenta o político nas eleições, com aprovação popular. Ele significa o próprio voto (favor) mas não a campanha, que tem por nome officium. O favor se acompanha de sinais externos, em especial de laude, gratulationes, plausus, clamor (a manifestação externa do fauor). Trata-se de um termo também usado no teatro. A partir do teatro, o termo pode ter sido aplicado à política. Pouco a pouco o termo passa a significar “popularidade”. Fauere, por sua vez, significa “trabalhar para o aumento da posição política de alguém”. Se o cliente tem o dever moral de sufragar nas eleições o nome de seu patrono, este último deve proteger o cliente. Mas como, na república, existe a ficção da soberania popular (a monarquia caíra com Tarquínio, o soberbo), o favor do voto tem como nome o eufêmico beneficium. Tal relação pode, se transformar em obsequium (indulgência, cumprimento, complacência), blanditiae (de blandus, lisonjeador, adulador, acariciador), ambitio (na república a busca dos candidatos por votos, para solicitar aos cidadãos individuais os seus votos por meios corretos e legais) . ()
Cicero louva a amizade desinteressada, algo que só pode existir entre os boni viri, os integrantes do patronato. Ricos, eles não precisam de nada material para obter dos seus iguais. Mas, recorda Hellegouarc‘h, para o mesmo Cicero um dever dos amigos é ajudar o parceiro na carreira política. O comentador aponta para a contradição entre os princípios elevados da ética e as realidades da ordem prática. “Cicero esteve sempre entre as duas opções e nunca escolheu formalmente entre elas. Ele constata que a virtus não tem muito lugar na atividade pública quando a tomamos em sentido moral estrito e que é difícil acordar moral e política”. Assim, no ideário romano, permanece a amizade em sentido elevado, mas o que se pratica, de fato, é o interesse momentâneo, a amizade breuis et suffragatoria. As amicitiae “se constituem como elemento importante da política; elas são feitas e desfeitas segundo as circunstâncias e necessidades do momento; só o interesse comanda e o sentimento não tem muito a ver com elas. A influência de um personagem é de algum modo proporcional ao número de amigos que ele soube adquirir”. Na ausência de partidos organizados, “o político não tem outro recurso para expandir sua influência a não ser unir-se ao maior número de pessoas possível, as quais lhe trarão por sua vez apoio dos que lhes são apegados”. Há uma distinção, entretanto: os amici pertencem ao patronato, os inferiores formam a clientela. Tal é a teoria, como no caso da amizade em geral, como virtude moral, e como prática efetiva. Assim, era possível colocar no plano dos amigos, pessoas que o mais correto seria colocar no âmbito dos clientes. “Esta extensão súbita e diplomática do número de amigos devia ser particularmente importante na época de campanha eleitoral”. Assim, conclui Hellegouarc’h, “precisamos renunciar a toda distinção entre amicus e cliens. Embora na origem as duas palavras se apliquem a situações muito diferentes, elas se perverteram no uso e se tornaram intercambiáveis segundo as necessidades e as circunstâncias.” ()
Segundo o Contrato Social, nas antigas repúblicas virtuosas, “cada um tinha vergonha de dar publicamente seu sufrágio a uma opinião injusta ou a um assunto indigno, mas quando o povo se corrompeu e seu voto foi comprado, foi conveniente que o segredo fosse instituído para conter os compradores pela desconfiança e fornecer aos salafrários (´fripons´) o meio de não serem traidores”. () Ao comentar os comícios, Rousseau diz que as leis de eleições dos chefes não eram os únicos pontos submetidos ao seu julgamento. O povo romano, diz ele, tendo usurpado as mais importantes funções do governo, pode-se dizer que a sorte da Europa era regulada por aquelas assembléias. “Esta variedade de objetos dava lugar a diversas formas que tomavam tais assembléias, segundo as matéria sobre as quais ele deveria se pronunciar. Para julgar essas diversas formas, basta compará-las. Rômulo, ao instituir as curias, desejava conter o senado pelo povo e o povo pelo senado, dominando igualmente sobre todos. Ele deu, portanto, ao povo, assim, toda autoridade do número para equilibrar (balancer) a da potência e das riquezas que ele deixava aos patrícios. Mas, segundo o espírito da monarquia, ele no entanto deixou mais vantagem aos patrícios por influência de seus clientes na pluralidade dos votos. Esta instituição admirável dos patrões e clientes foi uma obra prima de política e humanidade, sem a qual o patriciado, tão contrário ao espírito da república, não teria podido subsistir. Roma apenas teve a honra de dar ao mundo este belo exemplo, do qual não resultará jamais abuso e que, no entanto, jamais foi seguido”. () Quanto ao fato de que a clientela serviu aos patronos ricos, Rousseau tem plena razão histórica. Se tal invenção foi algo excelente, em termos políticos e de humanidade, pode-se imaginar se o filósofo ironizava cruelmente, ou se foi atacado, quando escrevia as linhas acima, por um súbito ataque de realismo. Como a segunda opção é improvável...
Voltemos ao Antigo Regime francês, espaço de clientela e de favores. Em troca da proteção e benesses recebidas, o cliente deve servir ao seu patrão “com docilidade e lealdade, ajudá-lo a conseguir seu alvo, por exemplo, lhe fornecendo informações, o servindo com a pena ou espada, adotando suas inclinações, ambições, e às vezes seguindo-o na adversidade”. O patrão “ajuda seu cliente, se for preciso o veste, o alimenta, hospeda, lhe procura emprego, empresta ou dá o dinheiro para comprar um cargo, o empurra na ascensão social, o defende contra seus adversários. As vezes ele organiza seu casamento, educa ou casa seus filhos. Tal patrão, se não for uma pessoa rica, pelo menos é alguém influente, capaz de intervir em favor de seu protegido o recomendando aos mais poderosos do que ele”. ()
A ausência de reciprocidade traz ruptura, traição, acusações de ingratidão. Agora o terceiro elemento o corretor, ou broker. Ele é uma espécie de patrão pela metade, que põe sua própria clientela para servir um outro, mais poderoso. Ele facilita as negociações. “O patrão principal precisa desses ‘cafetões’ –entremetteurs– numerosos e eficazes para ampliar sua influência, assegurar o apoio de meios ou redes que ele não pode abordar diretamente. O corretor tem sua vantagem em fazer frutificar seu próprio capital de relações, monetarizando em preço alto seu papel de mediação e buscando por sua vez assegurar para si mesmo o monopólio do mercadejo (courtage), o que o patrão nem sempre tem interesse em conceder”. ()
Essas relações de favor e de influência são essenciais na sociedade do antigo regime. Elas permitem entender o funcionamento do poder num sistema estatal incompletamente institucionalizado, como a França do período, formando a “monarquia administrativa”. Note-se o leve tom de etnocentrismo na análise de Petitfils. A França “foi” assim no Antigo Regime. Outras culturas, “incompletamente institucionalizadas” de hoje, sofrem os mesmos males do clientelismo. É possível perguntar se na França e nos demais países “completamente institucionalizados”, o favor e as relações de clientelismo foram abolidas. O autor, na sua exposição, cita para os dias de agora François-Xavier Guerra, cuja tese de doutoramento defendida na França se intitula Le Mexique. De l ‘ancien régime à la révolution () Ele também cita Steffen Schmidt (Friends, Followers and Factions: a reader in political Clientelism). () Poder-se-ia pensar que as relações de favor do Antigo Regime seriam persistências anacrônicas do feudalismo.
Antes de François-Xavier Guerra discutir a ordem mexicana, no Brasil Maria Sylvia Carvalho Franco tematizou, para compreender a lógica que norteia a sociedade e a política nacional, as relações de favor, de “amizade” e de compadrio . Em Homens Livres na Ordem Escravocrata, a autora conceitualiza a partir de textos históricos e depoimentos, a rede de relações tecida entre poderosos fazendeiros, sitiantes mais pobres e os dominados no baixo da escala social. O grande proprietário, diz ela, manteve relações aparentemente horizontais com o sitiante. Ela começa pelo depoimento de um integrante de família rica em Resende, nascido em 1870. “Não havia desigualdade entre fazendeiros e sitiantes; havia mesmo amizade. Se um deles chegava à nossa porta, vinha para a mesa almoçar conosco”. () Aqui temos a noção de amiticia, imperante na sociedade romana e que, nela, apresentava uma polissemia imensa, a ponto de se precisar suspender a busca de sua designação “correta”. A ambigüidade da palavra entra na prática do político romano, do nobre francês, do fazendeiro brasileiro. Como prova da “igualdade” com o sitiante, era dito que eles e grande proprietários eram compadres.
Assim como a amicitiae romana, ou do antigo regime, a prática do compadrio suspende, de maneira imaginária, a diferença de nível e de riqueza. A autora cita Antonio Cândido () “Os vínculos estabelecidos entre padrinho e afilhado eram tão ou mais fortes que os de consangüinidade não apenas o padrinho era obrigado a tomar o lugar do pai, sempre que necessário, mas tinhas que ajudar seu afilhado em várias ocasiões (...) o afilhado, por sua vez, ajudava o padrinho em tudo o que este necessitava, e freqüentemente tomava o nome da família”. No compadrio, ressalta o fato de um dos lados, o mais poderoso, “se apresenta como um patrocínio do superior e uma decorrente submissão do inferior.”. A criança pobre deve ser “encaminhada na vida”, com ajuda do mais forte. A autora cita Coldman () “Como naturalmente o padrinho deseja cumprir sua promessa com a menor despesa possível, o que de melhor pode fazer senão prover o jovem, tão logo tenha idade adequada, com um emprego público? E se o governo não tem o suficiente número de cargos à sua disposição, como poderia a influência do Duque, Marquês, Barão, Comendador, ser mantida mais facilmente que criando novos cargos e novos funcionários?”. A autora lembra o que significa, no Brasil, o termo “apadrinhar”. Poderíamos dizer a mais, que em nossa terra, “quem tem padrinho, não morre pagão”, ou seja, sempre alcança os empregos públicos ou privados, quando funciona a rede de favores recíprocos.
“Ampliando-se as trocas do compadrio para situações sociais, compreende-se como deriva dele toda uma intrincada rede de dívidas e obrigações, infindáveis porque sempre renovadas em cada uma de suas amortizações, num processo que se regenera em cada um dos momentos em que se consome”. ()
A igualdade fictícia, trazida pelos ritos sagrados e pela “amizade” interessada, mostra sua face de dominação em momentos de apuro financeiro. O patrono ajuda o sitiante, este devolve em apoio político. Diz um rico, em depoimento anotado pela autora: “se os sitiantes da redondeza estavam em dificuldades ou queriam comprar um pedaço de terra, emprestavam dinheiro de meu pai; em compensação, esta gente sempre o acompanhava, eram seus eleitores ou seus cabos, pois ele era o chefe conservador da zona (...) Não havia compra de voto. Não havia concorrência entre os chefes políticos: não adiantava, quem era conservador era conservador e quem era liberal era liberal”. Deduz a autora: “a dependência” em que os protegidos estavam, “tornava inelutável a fidelidade correspondente. Sua adesão em troca dos benefícios recebidos é tão automática, que nem sequer são tomadas medidas que assegurem seu voto; tampouco se cogita de providências para atrair eleitores cuja fidelidade está definida para com o lado contrário. Umas seriam desnecessárias, e outras inúteis”.
Presos à política local ou no máximo regional, os dominados não perceberam o alcance de eventos como a Independência do Brasil e similares. “Estado, na consciência desses homens se confundia com a pessoa do príncipe e governo se identificava com seus atos e decisões, ou com a de seus representantes”. Assim, a consciência política dos setores livres e pobres não vai além da pessoa que lidera o elo entre os dois extremos da cadeia de domínio. A visão institucional do Estado e de seus interesses nacionais ou internacionais falta a tais setores. Os nexos entre patrono e cliente são definidos: “a lealdade inclui o reconhecimento do benefício recebido, o sentimento de gratidão por ele, e o imperativo de sua retribuição equivalente”. Mas “o fabricar de lealdades e fidelidades através de um processo cumulativo de recíprocos encargos e favores promovia, sucessivamente, a eliminação completa da possibilidade de um existir autônomo”. O poder, então, é impossível de ser concebido “senão mediante o prisma formado pela encarnação do poder: este transfigura a realidade social, convertendo-a nas formas objetivadas da existência daquele que é ideado como superior, e plasma as categorias através das quais ela é conhecida, confinando-as a imagens que não podem transcender essa mesma situação vital particular, personificada e alheia”. Isto mostra o peso do comportamento mecanizado do dependente e sua incapacidade para apreender a organização e a dinâmica da política em nível institucional. Atitude similar, de “amizade” ocorre entre patronos e agregados. O morador ficava nas terras do patrono se fosse amigo. “Agregado ou camarada, a anulação de sua vontade se revela na simples incapacidade de tomar uma decisão autônoma”. Uma testemunha, no caso de rapto de jovem, diz que o réu “lhe fora pedir para ter guardada em sua casa a menor e ele respondera que não o podia fazer sem o consentimento de seu patrão, porque era agregado”. Sua recusa, adianta a autora, “tem a ver menos com o risco de transgredir a lei, que de incorrer na desaprovação do fazendeiro”.
O favor permeia, assim, os elos entre patronos e gente livre, mas pobre no Brasil. E se atentarmos para o fato de sermos uma sociedade desigual por excelência, a ficção da igualdade jurídica e política se esvai rapidamente. No mesmo passo, guardamos as práticas políticas do Antigo Regime, como por exemplo a diferenciação entre operadores do Estado e “pessoas comuns”, simples pagadores de impostos, sem maiores direitos e poderes. Os cargos dos “amigos” e apadrinhados continuam em uso, na troca de favores entre oligarcas que tentam se aproximar do poder, na corte. () Os mesmos padrinhos tentam, por meio dos seus clientes, alicerçar alianças com seus pares oligárquicos, tudo segundo a receita absolutista.
As relações de amizade, no mundo moderno, seguem o padrão explicitado em Roma: amizade ligada a interesses de ascensão social ou política, breuis et suffragatoria. Voltemos ao Sobrinho de Rameau. Em primeiro lugar, ele cumpre o papel de broker entre personagens ricos e suas vítimas que devem sucumbir ao desejo “amoroso”. Mas ele, como diz um comentador, é apenas um “masca dinheiro, um pobre doador de lições, sem clientela e sem reputação” (Charles Asselineau, em prefácio ao Sobrinho de Rameau). () Sem clientela e sem reputação, o Jean François serve apenas no âmbito interno de seu patrão, ele não possui a utilidade e o estatuto de um “amigo”. Seus ofícios entram no rol das coisas abjetas, como o de cativar mocinhas para a lubricidade de personagens ricos e inescrupulosos. ()
Logo no início do texto, antes mesmo de dizer o nome do Sobrinho, Jean François, o autor diz que ele “tinha se introduzido, não sei como, em algumas casas honestas nas quais tinha seus talheres, mas à condição de não falar sem autorização. Ele se calava e comia com raiva”. Pouco depois, falando de seu tio músico, o sobrinho diz que ele “é um filósofo em sua espécie. Ele só pensa em si mesmo”. E gente assim, “não sabem o que significa ser cidadão, pai, mãe, irmão, parentes, amigo”. Jean François entra nas casas “honestas”, nelas come, mas não fala, ou seja, é destituído do elemento essencial da sociabilidade, a linguagem, onde se estabelecem os vínculos de amizade, parentesco, de política, etc. Já o filósofo, e seu tio é um, está liberado daqueles elos sociais. A receita de bem viver assumida neste ponto é a sabedoria de Rabelais cumprir o dever, sempre falar bem do prior, “deixar o mundo seguir segundo a sua fantasia”. As condições subalternas têm uma sabedoria ou nada falar, ou falar bem dos patrões. Não existe ilusão de igualdade na perspectiva do Sobrinho. E o poder da fala se concentra na mentira dos poderosos “eu estava um dia à mesa com um ministro do rei de França, que tem espirito para quatro; ele nos demonstrou claro como um e um fazem dois, que nada era mais útil aos povos do que a mentira, nada mais prejudicial do que a verdade”. Quem possui o poder de falar, mente, sobretudo se está no topo da hierarquia política. Estamos em plena sátira à razão de Estado, algo que suscita a ira diderotiana. Na raison d‘État se estabelece a heterogeneidade entre o mundo dos governados e o universo dos dirigentes. Como diz um comentador do problema, na aurora do Estado moderno “a verdade do Estado é mentira para o súdito. Não existe mais espaço político homogêneo da verdade; o adágio é invertido: não mais fiat veritas et pereat mundus, mas fiat mundus et pereat veritas. As artes de governar acompanham e ampliam um movimento político profundo, o da ruptura radical (…) que separa o soberano dos governados. O lugar do segredo como instituição política só é inteligível no horizonte desenhado por esta ruptura (…) à medida que se constitui o poder moderno. Segredo encontra sua origem no verbo latino secernere, que significa separar, apartar”. ( )
Diderot, numa Carta intitulada “Sobre o Exame do Ensaio sobre os Preconceitos”, escrito por Frederico da Prússia, o rei que iniciou sua carreira “filosófica” com um livro contra Maquiavel, defende o autor do Ensaio, D’ Holbach. Este, no seu escrito, aconselhava os príncipes a renunciar aos preconceitos da nobreza e da glória militar, abolir os privilégios reconhecendo o mérito verdadeiro realçado por uma educação pública de qualidade, e assegurando0 que deve-se dizer sempre a verdade ao povo () Ora, Frederico é o rei que chegou a propor à Academia de Berlim , em 1777, “se pode ser útil enganar o povo ?”. () No dia 23 de outubro de 1777, na sessão primeira da Academia de Berlim (Nouveaux Mémoires de l ‘Academie de Prusse, VIII, 46) Formey leu uma carta de Frederico na qual o rei perguntava “se é útil enganar o povo ?”. Em 1778 a Academia mudou a pergunta para “É útil para o povo ser enganado, seja que os induzamos em novos erros ou mantenhamos aqueles nos quais ele lavora ?”. Foram dadas 33 respostas, 20 pela negativa, 13 afirmativas, 4 foram tidas como boas para a primeira categoria, 7 para a segunda. Duas foram premiadas, a do alemão Becker na primeira categoria, a do matemático francês F. de Castillon na segunda. ()
Segundo d’ Holbach, lido por Diderot, o homem ama a verdade. Diderot considera, como idéia favorita, que “não existe nenhum exemplo de que verdade tenha sido prejudicial nem para o presente, nem para o futuro” () É o que o filósofo diz ao Sobrinho “apesar do ministro sublime que citastes, acredito que se a mentira pode servir um momento, ela é necessariamente prejudicial em longo prazo, e que ao contrário a verdade serve necessariamente em longo prazo, embora ela possa prejudicar no momento”. Mesmo movimento no Sonho de D’ Alembert “Bordeau: pensais que a mentira tem suas vantagens e a verdade os seus inconvenientes. Senhorita de Lespinasse –Sim. Bordeau Eu também. Mas as vantagens da mentira duram um momento e as da verdade são eternas; mas as sequências incômodas da verdade, quando ela as tem, passam rápido, e as da mentira só acabam com ela. Examinai os efeitos da mentira na cabeça do homem e seus efeitos na sua conduta; na sua cabeça, ou a mentira se ligou de tal modo à verdade, e a cabeça é falsa; ou ela é bem e consequentemente ligada à mentiram e a cabeça é errônea. Ora, qual conduta poderíeis esperar de uma cabeça ou inconseqüente em seus raciocínios, ou consequente em seus erros ? –Lespinasse – O último desses vícios, menos desprezível, e talvez a ser mais temido do que o primeiro”. ()
O verbete Raison d’ État da Encyclopédie determina os limites da verdade e da mentira do governante para com os governados: é preciso saber “se a raison d' état autoriza o soberano a fazer sofrer algum dano a um particular, quando se trata do bem do Estado”. É fácil responder: “se prestarmos atenção que, ao formar a sociedade, a intenção e a vontade de cada indivíduo deve ter sido sacrificar seus próprios interesses aos de todos, sem o que a sociedade não poderia subsistir. É certo que o todo é preferível à sua parte; entretanto nessas ocasiões, sempre incômodas, o soberano se recordará que deve uma justiça para todos os seus governados, dos quais ele é igualmente o pai; ele não dará por razões de Estado motivos frívolos ou corrompidos que o empenhariam para a satisfação de suas paixões pessoais ou as dos seus favoritos; mas ele gemerá diante da necessidade que o obriga a sacrificar alguns dos membros para a salvação real de toda a sociedade”. A mentira é o alicerce de todas as religiões, sobretudo do cristianismo (verbete cristianismo, XIV, 145). Montaigne, que é considerado por Diderot, é por ele condenado por considerar que existe mentira útil (Carta a Falconet, setembro de 1766).
Quanto à política do favor, o próprio Diderot dela não escapava na vida real. Basta recordar suas relações com Catarina 2, e outros elos sociais e políticos que lhe renderam bons recursos financeiros. Um personagem que aparece no Sobrinho, no entanto, mostra plenamente a efetividade do clientelismo e dos patrocínios políticos.
Trata-se de Palissot de Montenoi (1730-1814). Diderot o descreve como cínico, parasita, enganador. Em primeiro lugar, ele se instala no círculo “devoto” na corte do rei Stanislas da Polônia. Alí, encontra “proteção” em todos os sentidos. Frederico da Prússia, sendo péssimo escritor mas adulado por intelectuais, o conde de Stainville, mais tarde Duque de Choiseul e primeiro ministro, o aluga, ou aluga sua pena para criticar Frederico. Mais tarde, Palissot se beneficia dos favores de Choiseul, em 1755 ele consegue a Receita Geral dos Tabacos de Avinhão. Vítima de um desonesto, o mesmo Choiseul lhe perdoa uma dívida. Quando Diderot estava no máximo de tensão, pois periclitava a Enciclopédia, ele escreve as “Cartinhas sobre os grandes filósofos”, onde opõe Locke, Condillac, Voltaire aos enciclopedistas, sobretudo Diderot. Palissot, adulador de Luis XV e Luis XVI, adulará a Revolução, na sua parte mais extremista. Recebe uma cadeira no Conselho dos Anciãos e depois um cargo de administrador da Biblioteca Mazarino. ()
“Antiga política” a que vigorou na Idade Média, edificada com os frangalhos do pensamento grego e romano. No século 12 o debate ocorre em relação às virtudes políticas. Apenas no século 13 os fragmentos do saber antigo começam a a ser unidos de modo coerente, definindo-se as condições intelectuais para o Renascimento. Tal aglomerado de idéias, que dificilmente poder-se-ia intitular como sistema une-se às formas de pensamento que surgem nas cidades livres, os municípios que se tornaram praticamente autônomas em toda a Europa mas sobretudo na Itália onde chegaram a se determinar como repúblicas (formadas nos séculos 11 e 12). ()
Municípios : Roma, foedus, cai o império romano do Ocidente, feudalismo, anarquia, cidades municípios em luta contra a Igreja, os nobres, o imperador. Elas perdem sua autonomia e sua independência com a centralização do Estado. Na Itália e na Alemanha, apenas no século 19 o poder central conseguiu abolir a independência daqueles antigos municípios romanos. () No momento em que as cidades republica se firmam, três são as correntes que orientam a lingua política: a tradição das virtudes (magnificamente representadas na Alegoria do Bom Governo), o aristotelismo, o direito romano. As cidades da Liguria, Lombardia, Emilia, Toscana, seguem a forma de governo no qual os cidadãos não obedecem príncipes mas apenas a senadores eleitos por eles. Além disso, os cargos tinham duração limitada, os Consules eram trocados a cada ano. A “ideologia” ciceroniana e o direito romano formavam o ideário das republicas indicadas. O maior cargo de autoridade era o Podestà, ou Potestà, que possuía poder judiciário, militar, administrativo e decisão na diplomacia. Mas seu estatuto era de eleito limitado pelos estatutos da cidade. Ele não tinha poder legislativo e, no fim do mandato, prestava contas ao Conselho dos Síndicos sobre como foram mobilizados por ele os recursos públicos e as pessoas a ele submetidas.
Tal princípio tem sua origem remota na chamada dokimasia (δοκιμασία) () grega: antes e depois do mandato o dirigente devia ser examinado, quando suas contas eram aprovadas, ou não. Temos aí as bases da accountability democrática, princípio expulso da cena pública, liminarmente, pela razão de Estado, desde o século 17 até os nossos dias. Contra a razão mencionada se ergueram as revoluções inglesa, norte-americana, francesa. Do fracasso, desvio ou retrocesso dessas revoluções, renasceu a razão de Estado no século 19 e, depois, no século 20. Na Revolução Francesa, a confiança nas virtudes republicanas, com o Termidor, foi recusada como resquício subjetivo que não garantia a “governabilidade” contra os povos submetidos pela polícia ou exércitos, sobretudo após o domínio de Napoleão.
A seleção, nos escritos roussoístas, de escritos e sentidos, deu-nos algumas versões mentirosas sobre o pensador. E isto não foi obra do acaso. Com o golpe do Termidor, a Revolução Francesa deixou o campo dos valores e passou ao plano mentirosamente mais sólido do interesse econômico e social como base da política. As representações intelectuais do século 18, incluindo as de Rousseau, as de Diderot e mesmo as de um aristocrata como Voltaire, insistiam na virtude cidadã como base do governo não tirânico. Esta doutrina foi reforçada no período jacobino, sobretudo sob Robespierre. Com o golpe do Termidor, ela foi afastada na teoria e na prática políticas.
Comenta Alain Badiou num texto luminoso: “o ponto central é que ao princípio da Virtude se substituiu o princípio do interesse. O termidoriano exemplar (…) é certamente Boissy d’ Anglas. Seu grande texto canônico é o discurso do 5 Messidor ano 3. Citemos: ‘Devemos ser governados pelos melhores (…) ora, com poucas exceções, só encontrareis semelhantes homens entre os que, tendo uma propriedade, são apegados ao país que a contém, às leis que a protegem, à tranqüilidade que a conserva’.”. A virtude, comenta Badiou, “é uma prescrição subjetiva incondicionada, que não remete para qualquer determinação objetiva. É por este motivo que Boissy d’ Anglas a recusa. Não se exigirá do dirigente que ele seja um político virtuoso, mas que ele seja um representante governamental dos ‘melhores’. Estes não constituem uma determinação subjetiva. É uma categoria definível condicionada absolutamente pela propriedade. As três razões evocadas por Boissy d’ Anglas para entregar o Estado aos ‘melhores’ são essenciais e tiveram grande futuro: —para um termidoriano, o país não é, como para o patriota jacobino, o lugar possível das virtudes republicanas. Ele é o que contém uma propriedade. O país é uma objetividade econômica. —Para um termidoriano, a lei não é como para o jacobino, a máxima derivada do nexo entre princípios e situação. Ela é o que protege, e singularmente o que protege a propriedade. Assim, sua universalidade é totalmente secundária. Conta a função. —Para um termidoriano, a insurreição não poderia ser, como o é para o jacobino quando a universalidade dos princípios é pisoteada, o mais sagrado dos deveres. Pois a reivindicação principal e legítima do proprietário é a tranqüilidade. Encontramos, assim, o tripé fundamental de uma concepção objetiva do país, de uma concepção conservadora da lei, e de uma concepção securitária das situações. Uma primeira descrição do conceito de termidoriano nele vê a nuvem do objetivismo, do status quo ‘natural’ e da seguridade”. ()
Justo porque o princípio objetivo impera a partir do Termidor e as noções de justiça, valor, virtude, são esvaziadas ao máximo, dando-se preferência à propriedade; porque não é mais permitido mudar a política sem a licença do mercado, o poder passa a desempenhar o papel de protetor da propriedade —velha tese de Locke—() contra os que não podem se encontrar no rol dos “melhores”. Não é preciso consultar os autores liberais do período, ou mesmo o que sobrou dos que defendiam o jacobinismo, para perceber que a garantia da propriedade deu-se com a mais dura violência. Termidoriano foi o império e termidoriana a restauração monárquica. Em ambos os períodos, o elemento “objetivo” invadiu a política e a cultura, deixando para os indivíduos apenas os devaneios românticos e a sensibilidade exacerbada. ()
A passagem do “subjetivo” (as virtudes) para o “objetivo” marca o realismo ou razão de Estado. A política deixa de ser assunto da vontade, do querer coletivo ou individual, e se transforma em algo exterior aos planos dos homens, com estatuto “natural”. Quando o realista age, ele se ancora nas “leis da objetividade”, como se o Estado e a vida social seriam apenas uma réplica mais complexa dos mundo natural. Assim, os valores como a virtude deixam de ter sentido, eles são mais representações Ideeles do que realidades empíricas ou ideais. É como se o mundo político estivesse submetido às determinações expostas na Crítica da Razão Pura, deixando para o campo da Razão Prática o vazio metafísico. Quem se curva ao mundo político tal como ele “é” apenas “obedece leis objetivas” e quem tenta transformar as relações corrompidas é apenas um sonhador, nada mais.
Algo similar ocorreu no início do século 14, quando a maioria das repúblicas mudam a sua forma de governo em proveito de um signore ou família, com os príncipes. Azzo VII se torna principe de Ferrara a partir do cargo de podestà. Ele fez o Conselho Comunal prometer que, na sua morte, seria reconhecido seu sobrinho, Obizzo, Signore de Ferrara. Este foi aclamado Signore com o poder de governar segundo sua vontade. Em todas as antigas repúblicas, a mudança foi mais ou menos difícil e controvertida. Algumas cidades como Bolonha e Gênova alternaram república e principado. Outras, como Florença e Siena resistiram como repúblicas e caíram sob o domínio principesco apenas no século XVI.
O ideal virtuoso e republicano, a “política”, tem sua base estratégica em Macróbio, no comentário ao ciceroniano Sonho de Scipião (parte da República escrita por Cicero) (). Naquele sonhos os políticos virtuosos são premiados quando morrem, com a felicidade eterna. O essencial guardado pelos republicanos : “nada do que ocorre na terra é mais agradável ao Deus supremo que governa todo o cosmos do que o estabelecimento de associações e federações de homens unidos por princípios de justiça (iure sociati) que chamamos comunidades (civitates), Os governantes e protetores delas (rectores et servatores) dela vêm e para e para ela retornam após sua morte” (Comentário do Sonho de Scipião). A virtude garante a felicidade do governante. A equação é platônica. O político prudente, segundo Macróbio, ordena seus atos pela razão, desejando o que é reto, justo. Este político permite a felicidade coletiva.
Seria Maquiavel o inverso dos ideais elaborados por Cicero? Segundo seus críticos do século XVI e XVII ele é o corruptor das verdadeiras políticas e modificou a mais nobre arte humana, transformando-a em instrumento de servidão. Segundo Inocent Gentillet, ele inventou máximas totalmente “malvadas (meschantes) e sobre elas construiu uma ciência política ainda mais tirânica”(Discours sur les moyens de bien gouverner et maintenir en bonne paix un royaume ou autre principauté, citado por Viroli).
As virtudes integram os princípios ciceronianos da política. Se a justiça não assegura a todos o que lhes cabe, some a sociedade pela ação de sentimentos baixos como a inveja e a sedição. Para que exista justiça é preciso que a virtude impere nos governantes e nos governados. Seria Maquiavel inimigo da justiça, amigo das sedições ? Segundo James Harrington (Oceana, 1656) ele encobriu idéias republicanas sob a capa do elogio da dissimulação e ferocidade principescas. Harrington distingue duas espécies de prudência: o governo de jure, com justiça e obediência à razão, e o governo onde “alguns poucos homens sujeitam uma cidade ou nação e governam segundo seus (ou seu) interesse privado”. Este é o governo segundo os homens e não segundo as leis.
Viroli, que sigo ainda aqui, nota um pensamento de Hannah Arendt segundo o qual “Maquiavel é o único teórico político pós clássico que fez um esforço extraordinário para ‘restaurar a política na sua dignidade antiga’”. Outros comentadores, como Hans Baron, comparam o autor e o cidadão republicano ao autor de O Príncipe. Note-se uma peculiaridade: naquele texto não usa o termo “político” e nem seus equivalentes. Para esta constatação, Viroli é devedor de Dolf Sternberger. () Segundo Viroli, não existia mais terreno para se falar em política, dada a nova lingua que estava sendo forjada e imposta praticamente, a da tirânica razão de Estado. Este juízo de Viroli pode ser discutido. Assim, outros autores, partindo também da constatação de Sternberger indicam um outra caminho. Segundo Giovanni Giorgini, ( )Viroli tem razão, mas é preciso qualificar seu enunciado. O Príncipe trata do “grau zero” da política, a situação na qual é “preciso instalar as condições para a possibilidade da política, criando ex novo ou salvando a comunidade política. Maquiavel aprendeu muito bem a lição de Tucídides (a soteria poleos é a mais importante consideração para um estadista) e também a lição do pensamento político romano ( salus reipublicae suprema lex esto).”. Assim, o Príncipe deveria ser lido como “uma variação do tema sobre o status necessitatis, a condição extrema e excepcional na vida de uma comunidade política (...) O príncipe, especialmente o novo, é com frequência forçado a agir contra a fé, a caridade, a humanidade, a religião, para preservar o Estado, citando Maquiavel na sua famosa frase, ele não deve separar-se do bem, se pode, mas estar pronto para o mal, se forçado. (...) O mal é especialmente necessário quando h]a corrupção no Estado ou quando a comunidade política enfrenta a destruição que vem de fora. E existe corrupção quando as leis favorecem apenas um segmento da comunidade e favorece a ambição dos poderosos. Em tal situação o vocabulário da política é pervertido: homens perniciosos são ditos industriosos no mesmo tempo em que bons cidadãos são tido como loucos”. Temos aí, novamente, a tese da “purga” invertida indicada por Platão, no seu retrato da tirania.
Notadas as divergências dos comentários, devemos ressaltar que, para Viroli, o vocabulário político anterior se justificaria, no entanto, nas cidades republicanas. O assunto de Maquiavel, no Príncipe, é o Estado do príncipe e, como tal, estado algo a ser preservado e dirigido. Viroli cita Maquiavel quando este diz o seguinte : “deixarei o raciocínio (ragionare) das repúblicas, porque em outra ocasião arrazoei muito. Trataremos apenas do principado (...) e discutirei como estes principados são passíveis de governar e manter”. Maquiavel, em Istorie Fiorentini fala de Cosimo, segundo o qual não é possível manter Estados com rosários (paternostri). Cosimo pensa no seu Estado, o dos Medici, não no poder soberano da comunidade política de Florença. Outro ditado da nova política ilustra a diferença entre Estado republicano e Estado de alguém: “é melhor uma cidade arruinada do que perdida”. Tal ditado expõe muito corretamente a política do Papa Julio 2, quando invadiu Bologna pretextando restaurar as antigas franquias daquela cidade. A sátira de Erasmo contra o pontífice é virulenta. () Cosimo defende o seu stato e para isso exilou, confiscou, etc. Os cidadãos que não obedeciam não eram inimigos da república, mas do seu Estado. Ele premiou os amigos e partidários, como é evidenciado por Platão.
Segundo Viroli, Maquiavel, à semelhança dos humanistas do Quatrocentto, não fala da arte do Estado (na qual o Príncipe se baseia) como sinônimo do antigo vivere politico porque, para ele, “stato” não era apenas outro termo para republica, mas uma forma específica de organização que exclui a tirania e o governo despótico, sendo incompatível com o governo de alguém. Se um cidadão ou partido domina os demais acima das leis e acima dos magistrados, desaparece a república. Tres tipos de Estado, como se nota a partir do Principe: a) stato del Turco, despótico; b) stato di Francia (reino moderado); c) Stati qui sono consueti a vivere con le loro leggi e in libertà, repúblicas.
Maquiavel, assim, não usa o termo ‘político’ porque no Príncipe não existe política no sentido republicano. Ele escreve sobre a arte do Estado, a de preservar ou reforças o estado de alguém. O debate sobre o governo tirânico no qual a polis “pertence” a alguém e o governo político onde todos, governantes e governados, obedecem a Lei, é antigo como a filosofia. Em Platão, Aristóteles, etc. existem notas estratégicas sobre o tema.
Marcello Gigante, em Nomos Basileus () apresenta um tratamento clássico do tema. Como ele mesmo diz, o assunto toca fundo no problema da justiça e da injustiça, “quanto no problema da legitimidade e da injustiça”. E também na questão da legitimidade da violência no mundo dos violentos. Hoje, adianta ele, “se pratica a violência em nome do ‘direito’ do punho, descoberta antiga do homem ainda deseducado. Mas tal ‘direito’ não tem raiz divina, nem o homem conseguiria codificá-lo. Hoje o interesse econômico elevou a nomos novíssimo uma história inglória, com a violência do mais forte sobre os mais fracos. Sobram apenas as teorias ‘intimistas’ do desfalecimento da consciência moral, e cuja ação inclui os procedimentos tortuosos e de bajulação”. Gigante escreve logo após a IIa Guerra Mundial, com o fascismo vencido, bem como o nazismo. O estalinismo estava no auge. A pergunta sobre o político, o republicano, o justo, permanece, bem como a questão dos saber se obedecemos leis ou somos servos de outros homens. Aqui, poderemos recordar as invectivas de Etienne de la Boétie, no Discurso da Servidão Voluntária. Somos cidadãos dignos deste nome, ou apenas objeto do poder?
Em Nomos Basileus temos exibidos os elos entre moral, força e direito no pensamento grego, de Homero a Platão. Nos poemas épicos, Zeus garante a diké (a lei), mas o termo nomos aparece apenas no composto eunomia (em antítese à hybris, OD. XVII, 487). Hesíodo fala de nomos genericamente como norma de vida: Zeus determinou um nomos para os animais (mas sem diké) e outro para os homens, e tal nomos é fundido na diké, contraposta à Bia, a violência física, a pura força. (“For the son of Cronos has ordained this law for men, that fishes and beasts and winged fowls should devour one another, for right is not in them; but to mankind he gave right which proves [280] far the best. For whoever knows the right and is ready to speak it, far-seeing Zeus gives him prosperity; but whoever deliberately lies in his witness and foreswears himself, and so hurts Justice and sins beyond repair, that man's generation is left obscure thereafter”. Trab. Dias, 276-280, Perseus Project).
A primeira vez em que a idéia de que a violência pode se harmonizar com a lei encontra-se em Solon, quando ele defende sua reforma. Ele afirma: “com o império do nomos, conciliando violência e justiça, cumpri esta obra”. O sintagma Nomos Basileus se encontra em Píndaro, que recorda como Hércules se apoderou das vacas de Gerion com a força. Mas a própria violência pode ser justa, se imposta pelo Nomos soberano. Nomos é a vontade de Deus. Mesmo perplexos, devemos nos inclinar diante do Nomos que autoriza a violência (como a de Hércules contra Gerion). Heródoto (III, 38) cita o poeta Píndaro ao narrar que Dario perguntou aos Callati (tribo indiana) e aos gregos sobre os funerais. Os indianos comiam os cadáveres dos genitores, viam como sacrilégio cremá-los. Gregos os cremavam e jamais aceitariam comê-los.
Heródoto: “Tais são, pois, as tradições e me parece que Píndaro tinha bem dito ao afirmar que o Nomos é o senhor do mundo”. O sentido dado por Heródoto é relativista mas, segundo Gigante, “as tradições de um povo têm, para ele, o valor de uma norma que ninguém deve violentar”. Demarato teria previsto que os espartanos não cederiam a Xerxes e o combateriam até a morte “porque acima deles está, soberana, a lei”. Segundo Gigante, no pensamento arcaico não existe conflito entre nomos e physis, “o predomínio da divindade é nomos e physis ao mesmo tempo, é lei santa e violenta, ao mesmo tempo”. (Gigante, p. 12). O Nomos basileus preside deuses e homens.
Quando, mais tarde, se distingue outra lei escrita (humana) e outra não escrita (divina) já se nota que a unidade arcaica do nomos foi violada. o que torna problemático o convívio político e social; a ética também se torna relativística. Este é o momento da sofística, com a “descoberta” do direito do mais forte, do nomos physeos. Antes, o direito do mais forte tinha uma só fonte: o divino, como em Píndaro. Os sofistas concedem ao direito do mais forte o fim terrestre e materialista do sympheron, o útil individual. Em Tucídides, Platão, Eurípedes, há o retorno da antiga raiz universal de lei fundamental. Daí a luta contra os sofistas e a tirania, com a unidade do direito e da ética. É o que se chamou, ao longo da Idade Média e no início da Renascença, “política”.
O imaginário medieval sobre o tempo e o eterno é transposto para os programas políticos. De um lado, os católicos da Europa que enxergam na razão de Estado o “inferno”, unindo semelhante doutrina a Maquiavel, e de outro os protestantes que, também vendo na razão de Estado um elemento pecaminoso, atribuem aos católicos todo maquiavelismo. Enfim, temos os que na França são chamados de “políticos”, dispostos a ultrapassar os vetos religiosos para a imposição do Estado sob comando central, do soberano monarca. Começo nosso exame com um autor protestante e republicano do século 17 revolucionário, John Milton, justamente no monumento poético e político denominado O Paraíso Perdido. Todo o poema pode ser lido como uma alegoria da ordem governamental, na passagem das repúblicas para o poder monárquico. Satã contesta a sucessão ao trono do Eterno pelo Filho, considera injusta e não justificada a escolha arbitrária da segunda pessoa da Trindade, em seu detrimento. A partir daí, comanda uma rebelião que mimetiza (apenas mimetiza) os traços republicanos e igualitários do seu movimento. Na verdade, seu programa é tirânico porque o poder seria exercido por ele, em seu nome. O Estado celeste ainda teria um dono, seria de alguém. Nos entrechos da saga luciferina encontramos elementos das doutrinas reais ou fictícias atribuídas a Maquiavel. ()
Existe hoje, entre os comentadores, quase consenso sobre os elos entre Milton e Maquiavel, em termos culturais. Milton, ao começar seus trabalhos já encontra vários “Maquiavéis” : o amoral, o político teórico, o diabólico do teatro, o satanás dos teólogos, o campeão das virtudes republicanas. O Paraíso Perdido recolhe fragmentos de tais tradições múltiplas mas o poema, sem dúvida, toca essencialmente no problema da sociedade ideal. Recordemos que um dos veios essenciais do protestantismo encontra-se no pensamento de Santo Agostinho e na sua separação rigorosa entre a civitas celeste e a terrestre. A primeira, eterna, serve como belo modelo, impossível de ser alcançado dentro do tempo e do espaço; a segunda é mostra da nossa degradação após o pecado. Em nosso mundo, podemos ansiar pelo paraíso perdido, mas apenas a passagem ao Eterno, pela graça divina, poderemos encontrar a paz e a felicidade. Este ponto ajudou e muito os protestantes reformadores a desconfiar das instituições eclesiásticas visíveis (logo, ligadas ao espaço e ao tempo) e nas autoridades da Igreja e do Estado. Milton segue a tradição protestante, evocando a passagem do Eterno, após a Queda, como melancólica perda de toda felicidade.
Seria possível conciliar os clássicos do pensamento antigo e o cristianismo? A pergunta que teve resposta negativa em Tertuliano (leia-se novamente o Apologeticum) e positiva em muitos padres da Igreja como São Justino, na corrente neo-platônica, ou nos que seguiram o caminho de utilizar pensamentos estoicos como base de sua compreensão do mundo físico e moral () ainda hoje suscita debates no mundo religioso. A posição católica tradicional pensa responder de modo positivo à pergunta. Os escritos de Santo Tomás de Aquino, com forte presença de elementos aristotélicos mas também neo-platônicos, como no caso de Dionisio Areopagita, mostram este encaminhamento positivo. E surgem resultados estratégicos, como o poema de Dante, a Divina Comédia. Alí ocorre o diálogo tenso que se completa, de lado a lado, na cultura cristã e na antiguidade representada por Virgílio.
Além desse ponto, Milton também enfrenta, na condição de pensador da Reforma, o problema do elo entre indivíduos e comunidade política. Recordemos, novamente, que a Reforma se dirigiu contra o princípio da autoridade visível eclesiástica, liberando assim o indivíduo dos laços comunitários e o entregando à uma solidão fundamental diante de Deus e da humanidade. O vínculo entre indivíduo e Igreja (que reverbera nos tratos do indivíduo com o Estado) situa-se na mais íntima questão do liberalismo e do republicanismo moderno. Quem desejar maiores detalhes sobre o ponto, consulte o clássico escrito de J. G. Fichte, Considerações sobre a Revolução Francesa () Se não mais existe uma Igreja visível, dado o predomínio da Igreja celeste, e se o Estado por sua vez não recebe mais legitimidade do poder religioso, o único fundamento da obediência e confiança no poder público encontra-se na vontade e na consciência, invisível e autônoma, dos indivíduos. Contra tal doutrina se ergueu Hegel e o pensamento moderno. Mas sempre que se fala em liberalismo, deve-se pensar no marco trazido por Fichte, na trilha de Kant.
Voltemos a Dante, um poeta e pensador que defende a independência do poder terreno diante do religioso. () Dante encontra, diante de si, as mesmas aporias ainda hoje não resolvidas, entre o indivíduo e o comunitário, entre o pensamento cristão e o paganismo. Sua síntese é uma resposta provisória, sempre ameaçada pelos integrismos e pela razão de Estado. Indico, para análise, o texto de Erich Auerbach, “Farinata e Cavalcante” (). No poeta, diz Auerbach, “a figura humana se impõe de maneira mais forte, concreta e peculiar do que, por exemplo, na poesia antiga. Pois da autoconsumação que compreende toda a vida passada, tanto objetivamente quanto na memória, faz parte de um desenvolvimento histórico individual, uma história, em cada caso individual, de um devir cujo resultado está diante de nós como coisa pronta, mas cujos estágios são apresentados porém, em muitos casos, pormenorizadamente”. Nos tres reinos, existem indivíduos concretos em situação concreta, para usar a frase de Marx na Ideologia Alemã. O Inferno reflete, anamorfóticamente, o Paraíso. Recordemos a alegoria do Bom Governo.
Milton procurou ver o instante inicial da vida humana em sociedade, a Queda que faz irromper o tempo, a corrupção e a opacidade na mente e no corpo humano. Dante exibe o que pode se tornar o homem por suas virtudes ou vícios, paixões e dignidade. Nos dois casos, os poetas individualizam os méritos e as culpas, mas em sentidos diversos: Dante projeta indivíduos concretos, históricos (até papas simoníacos) para o Além. Milton mostra como caímos do Além para o tempo e o espaço, como perdemos e nos perdemos do Eterno. Em Milton não temos os Farinata nem os Cavalcante, nem toda a multidão de indivíduos com nome de família, de cidade, etc. Mas Adão, Eva, os anjos e, sobretudo Satã, têm traços individualizantes marcados. Eles não se perdem em coletivos abstratos, mas têm vida, idiossincrasias.
Maquiavel trata dos mesmos problemas no Príncipe e na Primeira Década de Tito Lívio. Milton deliberadamente evoca o Príncipe na sua pintura de Satã. Deste modo, ele vai contra Maquiavel e, de certo modo, contra Dante e Tomás de Aquino (não esqueçamos o peso de Lutero e de Calvino no entrecho). Para os Reformadores, que seguem o apóstolo Paulo, a sabedoria pagã é loucura diante de Deus. Para Dante e Aquino impera o enunciado de que “gratia non tollit naturam, sed perficit”. Ou seja, no plano da natureza (o dos pagãos) existem possibilidades de salvação e, mesmo, de inspiração para a vida cristã. Se Milton recusa a tradição católica, na qual não se estabelece uma ruptura absoluta entre natureza e Além, pelo menos não uma ruptura sem remédio, ele, no entanto, move o quadro do inferno do poder.
Já no livro primeiro do PP, Satã exibe os traços do Príncipe: impetuoso, confiante em si mesmo, corajoso e tortuoso. Recordemos que no capítulo 18 do Príncipe o governante deve saber usar a fera dentro de si, sendo ao mesmo tempo leão e raposa, segundo as circunstâncias. No capítulo 25, Maquiavel critica a tendência à rigidez de comportamento, do governante que não sabe se desviar de suas inclinações. Então é elogiado quem sabe mudar sua natureza segundo a contingência, ou seja, a Fortuna. Para ele, a virtù é o talento para agir que se alia à prudência. Assim, Satã é ao mesmo tempo maquiavélico e não maquiavélico. Seu discurso nos dois primeiros livros do PP evoca os princípios da força e da astúcia. Entre muitas passagens, os versos 645 do livro I: “Nossa melhor parte consiste/ em operar com desígnios ocultos por fraude ou astúcia/ o que a força não consegue” (). Mas surge um problema: Satã é inflexível e imprudente, o que não corresponde às receita de poder apresentadas no Príncipe. Aqui, Milton força um lado do pensamento maquiavélico, o republicano segundo o qual os principados são, na verdade, fracos pois abolem a força que reside na soberania popular. Satã possui a impetuosidade indicada por Maquiavel para que se vença a Fortuna pois esta, como toda mulher é melhor dominada pela força (Cap. 25 Principe). Mas coragem não é o único requisito, pois é preciso sabedoria. sempre recordando que a politica, como diria Bismarck (repetido por um ex-presidente brasileiro) é a arte do possível. Maquiavel não elogia os que, por princípio, perdem o principado. O elogio de Maquiavel também se amplia para as inovações, mas com prudência, porque ao inovar um governante pode abrir a comporta para um oceano de contingências, fora de seu controle. Donde a lição com um oxímoro : a “inovação estável” que exige clarividência e coragem ao mesmo tempo. No mesmo capítulo 25, a Fortuna é comparada a um rio violento que só pode ser detido por diques, desde que ele seja visto com previsão prudente, que se baseia no domínio do passado e do presente, orientando em parte o futuro.
O oceano de contingências que segue a rebelião de Satã mostra inovação imprudente o que é uma fratura na sua virtù. Ele admite sua imprudência ao confessar para Belzebu que tinha menosprezado o poder divina em armas (I, 93-94). No inferno, ele continua inflexível, ou imprudente. Ora, o ensino de Maquiavel é que importa mudar o pensamento segundo as circunstâncias externas. Satã está tão petrificado em seus pensamentos sobre si mesmo que não percebe a radical mudança em seu estatuto. Ele se endurece na força, um perigo contra o qual adverte Maquiavel. Como, devido ao automatismo, os governantes tendem a repetir tudo o que lhes trouxe sucesso, eles perdem a habilidade de inovar e se tornam vítimas da Fortuna, que sempre cria desafios novos (Principe, 25). Satã não endurece por suas vitórias, mas pelo seu fracasso, à semelhança do Faraó, cujo coração vira pedra mais dura a cada nova praga divina. Maquiavel ensina se dobrar diante do poder de fato e de sua vitória. Satã não se dobra diante da vitória divina, mostrando cegueira política. Satã se ilude no presente e no passado. Ele passa a acreditar, como se fosse verdade, que as forças lideradas por ele “abalaram o trono divino” e que Deus mesmo “duvidou de seu império” (PP, I, 105). Ele acredita ter adquirido clarividência com os fatos que testemunhou e praticou. Mas, na verdade, nada aprendeu, porque insiste em combater um poder invencível. Ele se imagina livre para inovar seu futuro, mas é escravo de sua própria natureza. Aqui temos a recordação da República platônica. Nela, nos livros 8 e 9, Sócrates mostra que a personalidade dos tiranos - indefesa diante dos seus próprios desejos, isolado dos outros, miserável. O erotismo de seu próprio ser, puro desejo, nunca pode ser satisfeito, porque é insaciável. Na mística, sabemos, o elo entre Deus e criatura é de ordem absoluta, insaciável na terra, só completa no Eterno, quando toda a beatitude será, como diz o Apocalipse, grátis : δωρεάν (acusativo, como advérbio : graciosamente, sem uma causa, livremente). “Et spiritus, et sponsa dicunt: Veni. Et qui audit, dicat: Veni. Et qui sitit, veniat: et qui vult, accipiat aquam vitæ, gratis” (Apocalipse, 22, 17)
No Príncipe, um enunciado que escandalizou muitos que o leram, foi a recomendação para que o governante esteja apto a fazer o mal. Satã atende ao requisito : “Fazer o que é da boa vontade nunca será nosso labor, / Mas sempre fazer o mal é a nossa delícia,/ pois é contra à sua Alta vontade/ Contra a qual resistimos”. (PP, I, 159-62). Sua busca é o do interesse pessoal, acima de tudo : “viveremos neste vasto recesso,/ Livres, e não prestando contas a ninguém”(PP, II, 253-56). “Free, and to none accountable”. Tal é a divisa do absolutismo da monarquia moderna, absolutismo que jamais foi aceito pela Igreja católica e que, entre protestantes, significava um excesso das prerrogativas do governo civil.
Segundo leitores protestantes e católicos, Maquiavel incentivaria o mal no mundo, em vez de combatê-lo. Leo Strauss não foi o primeiro, nem será o ultimo a identificar maquiavelismo e política da perversão. () Pouco importa que outros leitores, também agudos, digam que Maquiavel sublinha que o mal deve ser feito, segundo o preceito da salvação do povo, “segundo a necessidade”. Seu uso do mal seria pragmático. Já o de Satã é pouco maquiavélico, porque absoluto, auto-destrutivo para seu reino. Ele é fixo em demasia, quando é preciso, para salvar o povo, que os principes ou o povo sejam abertos a inovações. O povo é mais facilmente adaptado para enfrentar novos desafios, tal é a lição posta nos Discorsi (livro III). Em texto político essencial, Milton afirma que as comunidades são de modo inerente mais estáveis do que as monarquias. (The readie and easie way) () . “A realeza foi considerada mais segura e durável, porque o rei e, na maior parte o seu Conselho, não muda durante a sua vida: mas uma comunidade é imortal; e, portanto, ela é mais firme, segura, e muito acima da Fortuna. Porque a morte de um rei causa com frequência muitas alterações perigosas; mas a morte agora e então de um senador não é sentida; a maior parte do corpo senatorial continua e permanece nas grandes e nobres comunidades, como se eles fossem eternos”.
Maquiavel prefere os governos mistos porque eles reúnem as habilidades do “um”, “dos poucos”, “dos muitos” conforme surgem as dificuldades. Naquele regime, o misto, os cidadãos constroem o Estado e, por sua vez, cada cidadão é nutrido pelo todo. A virtude cívica se fortalece com o uso e desaparece com o desuso. Uma pequena nota: a combinação dos três elementos é um axioma dos pensadores contra revolucionários do século 19, contra as teses republicanas ao modo de Maquiavel e das Luzes. Segundo eles, a Igreja é o modelo de poder, tanto civil quanto religioso, porque nela se encontram o um, os poucos, os muitos. Ela é ao mesmo tempo monárquica, aristocrática, democrática.
Milton, como Maquiavel, via nos seus compatriotas gente corrompida, efeminada, indigna da liberdade republicana. Os ingleses de seu tempo seriam “escravos por natureza, animais vagabundos e sem palavra; inaptos para aquela liberdade pela qual eles clamam com barulho, mas aptos a serem reconduzidos rumo à sua velha servidão, como uma espécie de clamorosas e briguentas brutas ( ...) que não sabem como usar a liberdade pela qual lutam”(Eikonoclates, XXVII).
Uma leitura interessante dos poemas miltonianos encontra-se em Christopher Hill, historiador inglês cujos conhecimentos da História de sua terra é dos mais amplos e profundos. () Particularmente no capítulo intitulado “A queda do homem”, encontramos a exegese política do PP e de outros poemas. Trata-se, segundo Hill, de uma crítica virulenta aos revolucionários que, na busca de mudar o mundo da razão de Estado e da monarquia, tombam nas tentações do poder, ou seja, nas tentações da razão de Estado, pioradas pelo orgulho, ganância material, etc. ( ).
Precisamos voltar ao pensamento medieval, com a noção da hierarquia celeste que serve de modelo para a terrestre e política. Repercutem em Tomás de Aquino os escritos de Dionísio, o pseudo-Areopagita, sempre pelo filtro de Agostinho: “um soldado está sujeito ao seu rei e ao seu chefe de exército; em sua vontade ele pode buscar o bem de seu chefe, e não o de seu rei, ou o contrário. Mas se o chefe recusa a ordem do rei, a vontade do soldado será boa se recusar a vontade do chefe em favor da real; ela será ao contrário má, se obedece a do chefe contra a do rei, pois a ordem de um princípio inferior depende da ordem do princípio superior.” As substâncias separadas, adianta Aquino, “não são apenas ordenadas em relação a Deus, mas umas em relação às outras, da primeiro até a última”. (Summa contra gentiles).
O universo inteiro segue, dos anjos aos governantes, a ordem hierárquica essencial. “A bondade da criação não seria perfeita sem uma hierarquia dos bens segundo a qual alguns seres são melhores que os demais; sem isto todos os graus do bem não seriam realizados e nenhuma criatura seria semelhante a Deus por sua preeminência sobre as outras. Assim a bondade última dos seres desapareceria com a ordem feita de distinção e disparidade; bem mais a supressão da desigualdade dos seres arrastaria a supressão de sua multiplicidade: um é o efeito melhor do que o outro pelas próprias diferenças que distinguem os seres uns dos outros, como o vivente e o inanimado e o racional do não racional”. Esta escala cósmica e ontológica (sobremodo axiológica) continua na soberania política: “a perfeição para todo governo é prover os seus súditos no que diz respeito à sua natureza, tal é a noção mesma de justiça nos governos. Do mesmo modo, pois, que para um chefe da cidade opor-se — se não for apenas de maneira monentânea em função de certa necessidade —a que os súditos cumpram sua tarefa , seria contrário ao sentido de um governo humano, do mesmo modo a sua natureza seria oposta ao sentido do governo divino.”
Aquino, com base na doutrina da hierarquia celeste, escreveu minuciosas observações sobre o livro de Jó. As mais relevadoras, no vínculo entre poder e orgulho, encontram-se em notas sobre os derradeiros versículos do poema. Diz Tomás: “após o Senhor descrever as particularidades do diabo sob a imagem do elefante, o maior dos animais terrestres, ele o descreve na figura do Leviatã, ou da baleia que é o maior animal marinho”. O poder do Leviatã não pode ser evitado ao modo humano, pela lisonja ou ameaças. Assim, “o diabo não teme o homem”. A potência de Satan é imensa. E Aquino enfrenta, ao seu modo, o problema arcaico da teodicéia: Deus não é cruel por ter suscitado o poder demoníaco. “Por tê-lo suscitado não sou cruel”. A onipotência divina não poupará o poderoso Leviatã : “todas as coisas sob o céu são minhas”.
Aquino segue para as linhas finais: “Nenhuma potência sobre a terra é-lhe comparável. Ele foi feito para não temer ninguém. Ele vê grande em tudo; ele mesmo é o rei de todos os filhos do orgulho”. A versão latina, utilizada pelo doutor da Igreja, é a da Vulgata, a mesma que suscitou o imaginário hobbesiano sobre o poder terrestre: non est super terram potestas quae comparetur ei, qui factus est ut nullum timeret. Omne sublime videt : ipse est rex super universos filios superbiae.()
Ao comentar este passo, o filósofo cristão ressalta a incomparável e indizível força do Altíssimo, infinitamente superior à do Leviatã. Quando o diabo for vencido, “os anjos do Senhor temerão admirando o poder divino; mas nessa admiração muitos efeitos da virtude divina são-nos conhecidos e (o autor do livro de Jó, RR) introduz aqui ”e o terror os purificará “; com efeito, como diz Dionísio no capítulo 6 dos Nomes divinos (na verdade, trata-se do tratado sobre as Hierarquias Celestes, RR), os anjos são ditos purificados não de uma impureza, mas da ignorância; como toda criatura corporal, se comparada aos santos anjos, é pouca coisa, não se indica por aí que os anjos celestes estão muito espantados com o cetáceo corporal, a menos que talvez se enxergue homens nestes santos anjos; os anjos de que tratamos assistem a decadência de Satan, o Leviatã espiritual que foi transido pela justiça divina quando caiu do céu pelo pecado, então os anjos admiraram a majestade divina e se purificaram ao separar-se de sua companhia”.
Finaliza Aquino : “…o intento do demônio é agarrar tudo o que é sublime. E como essas coisas são próprias do orgulho (…) o diabo não só em si mesmo é orgulhoso, mas ultrapassa todo o mundo em sua soberba e mostra-se como fonte de orgulho para os outros, (…) ele mesmo é rei de todos os filhos do orgulho, ou seja, dos escravos do orgulho e que o tomam por guia”. Que lições Job (e cada ser humano após ele) tira da parábola do Leviatã? Responde Aquino: “o que mais deveria ser temido por Jó é que o diabo pedisse para lhe tentar, levando-o ao orgulho e ao seu reino; ser-lhe-ia necessário evitar as disposições e as palavras que respiram orgulho”.
Satan quer agarrar tudo o que é sublime. E como essas coisas são próprias do orgulho (…) o diabo não só em si mesmo é orgulhoso, mas ultrapassa todo o mundo em sua soberba e mostra-se como fonte de orgulho para os outros, (…) ele mesmo é rei de todos os filhos do orgulho, ou seja, dos escravos do orgulho e que o tomam por guia”. Que lições Job (e cada ser humano após ele) tira da parábola do Leviatã? Responde Aquino: “o que mais deveria ser temido por Jó é que o diabo pedisse para lhe tentar, levando-o ao orgulho e ao seu reino; ser-lhe-ia necessário evitar as disposições e as palavras que respiram orgulho”.
Apesar dos muitos choques entre o ensino católico, representado por Tomás de Aquino e as doutrinas protestantes —na interpretação da origem do mal e do poder mundano— existe pouca discrepância nas duas percepções sobre a rebelião de Lúcifer. Tudo o que enunciei sobre o comentário tomista foi assumido nas várias igrejas e seitas reformadas. Mesmo autores que ajudaram poderosamente a separar o Estado de seus fundamentos religiosos, como Francis Bacon, usam o símile angélico para expor os nexos entre conhecimento e poder político. “O desejo de poder em excesso causou a queda dos anjos; o desejo de saber em excesso causou a queda do homem”. Essa fórmula adquire um significado grave se aproximada do aforismo baconiano célebre: knowledge and power meet in one. Sim, desde que limites sejam respeitados.
As achegas anteriores permitem-nos visualizar o maior poema cristão sobre o poder e o conhecimento, após o Inferno dantesco. Refiro-me ao Paraíso Perdido. Milton constrói a sua trama e mantém a espinha dorsal da hierarquia, herança do neo-platonismo, certamente de Proclus, mas com muita segurança também de Dionísio, o pseudo-Areopagita. Sem ela, fica sem nenhum sentido cada passo do imenso drama cósmico desenvolvido de modo épico. Sobre Milton, tudo foi dito e tudo ainda resta a dizer. Saliento apenas o aspecto da soberba que marca, no caminho dos versos, a Queda satânica e o campo da política humana. Como sublime artesão do verso, Milton exercita um imaginário que vai além dos textos e dos motivos encontrados na vasta história do cristianismo ou da cultura judaica e grega que o moldaram. Assim, não se recobrem totalmente os personagens angélicos e suas atribuições, em Dionísio Areopagita e no poeta inglês. Na hierarquia celeste, os anjos ocupam os lugares mais próximos do Altíssimo, idéia ampliada por Milton com todos os recursos culturais a seu dispôr.
A soberba une-se de imediato à política angélica no Paraíso Perdido. Lúcifer, o glorioso, desejou “ombrear com Deus, se Deus se lhe opusesse” e “do Onipotente contra o Império e trono/Fez audaz e ímpia guerra”. Sua marca, desde então, encontra-se na “Soberba, empedernida, ódio constante”. Na queda, ele traz o sinal do medo, algo próximo em demasia ao exercício político: “De sua coma fúlgido privado; Ou quando posto por detrás da lua, /E envolto no pavor de escuro eclipse,/Desastroso crepúsculo derrama/Pela metade do orbe, e os reis consterna/Em seu poder temendo algum desfalque./Obscurecido, mesmo assim fulgura/Mais que os outros arcanjos, seus consócios;/Mas dos raios profundas cicatrizes/Aram-lhe o rosto macerado, aonde/Mil cuidados contínuos se aposentam/Sob o ouropel de intrépida coragem/De ultriz tenção, de refletido orgulho”. Nas suas falas aos dirigidos, anjos de escalão menor na via ascendente dos seres, o monarca do inferno é soberbo orador, em todos os sentidos. Domina a retórica com maestria e nela exibe sua plena arrogância. Diante do silêncio temeroso do exército maligno, que teme assaltar o trono divino, “Com orgulho monárquico se expressa : ´Dos céus prole sublime, empíreos tronos, /Sois intrépidos, sim! mas não estranho/Que hoje o silêncio e hesitação vos prendam./ É dilatado e aspérrimo o caminho/ Que à luz do Empíreo vai das trevas do Orco”. As indicações do orgulho luciferino são múltiplas, ao longo do poema. Todas conduzem ao mesmo ponto : “Guerrear nos Céus, dos Céus o Rei supremo,/ De lá me arrojam a ambição, o orgulho,/ Mas…ai de mim! por quê ? Justo e benigno, / De tal retribuição credor não era,/Ele que o ser me deu, que nessa altura/Me colocou imerso em brilho, em glória”.
No sistema doutrinário de John Milton, a recta ratio encarna-se na pessoa do Cristo, sinômino de harmonia e de paz, enquanto Satan é a razão que delira e arma laços para os demais seres. Como diz um comentador, “Cristo é o Logos da cristandade neo-platônica e o agente executivo de Deus, ao mesmo tempo abolindo a rebelião e criando o universo e o homem de acordo com a sua ´grande Idéia`” (Bush, D., 1977: 167). Assim, o sistema do mundo e do poder exigem a soberania da razão e da vontade racional sobre as paixões, sobretudo contra a libido dominandi. A grande raiz de todos os males sociais ou éticos encontra-se no orgulho. O mesmo comentador chega a enunciar que “o orgulho e a presunção constituem o tema inteiro de Milton”. Para tudo resumir, “o orgulho que aspira para além dos limites e das necessidades humanas, o desejo de poder pelo conhecimento é o motivo que se encontra em toda a tentação de Eva por Satan”. Deste modo, Milton teria diagnosticado, na pessoa de Lúcifer, os males todos de nossa modernidade, com o naturalismo, o liberalismo sem peias, o orgulho irreligioso. Ele também mostrou “a vontade de potência, pública e privada, a presunção intelectual, o desejo egoista, buscando seus fins pelo uso da força e da fraude e destruindo a ordem divina e natural no mundo e na alma”. (Id. Ibid., 171-174)
Um trecho do poema suscita debates acalorados entre os comentadores. Trata-se dos versos onde Cristo se dirige à primeira pessoa da Trindade dizendo: “Omnipotente Pai, razão te assiste/Para te rires de teus vãos contrários/E seguro tratares com desprezo/Seus tumultos e ardis, inúteis, fátuos.” O riso divino não é novidade alguma na época. Recordemos Pascal: na célebre 11ª Carta a um Provincial encontra-se toda uma teologia do riso contra a presunção tola e orgulhosa dos homens. Segundo Pascal, a própria divindade criou o riso para colocar Adão no seu devido lugar: “nas primeiras palavras ditas por Deus ao homem após a Queda, encontra-se uma caçoada e uma ironia picante (…) pois seguindo-se a desobediência de Adão (…) parece pelas Escrituras que Deus, em castigo, tornou-o sujeito à morte e após tê-lo reduzido à miserável condição devida ao pecado, riu-se dele (…) com palavras de brincadeira, `Eis que o homem tornou-se um de nós`. Ironia cruel e sensível pela qual Deus o espetou vivamente”. Deste modo, o riso foi merecido pelo homem, a quem Pascal nomeia, em italiano, ridicolosissimo eroe !.
O riso divino levanta a questão: todo o Paraíso Perdido armaria uma enorme comédia na qual anjos e homens seriam apenas e tão-somente heróis superlativamente ridículos? Esta possibilidade não é alheia à cultura ocidental anterior a Milton. Nas Leis, Platão pede que imaginemos seres vivos, como nós, espécies de marionetes fabricadas pelos deuses: “fomos produzidos para o seu divertimento, ou para um fim sério? Não o sabemos.”. E. Curtius lembra que Lutero usou, para designar a justificação, o termo Spiel Gottes quando se trata dos homens. Se tragédia ou comédia, não está ao alcance do homem decidir o sentido último da existência. Robert Burton, a grande fonte moderna sobre a melancolia, ao falar dos demônios, lembra o dito platônico: ludus deorum sumus. (Burton, R., 2001: 326)
É possível enxergar no Paraíso Perdido as duas faces, a cômica e a trágica. O melhor seria percebê-lo como terrível tragicomédia35 na qual o sentido existencial se perde ou se ganha, conforme a situação do sujeito. C.S. Lewis, em ensaio clássico sobre o Satan de Milton afirma o primeiro traço —o ridículo— como chave hermenêutica. Razão em demasia conduz à loucura. É assim que Lúcifer —o ente em cuja consciência mais se depositou a luz da razão— ensandeceu por completo. Sua razão é louca. Este é o significado da epígrafe de seu texto, posta por Lewis: …le genti dolorosi/ C´hanno perduto il ben de l ´intelleto. (Dante).
Essa lembrança do verso dantesco, devida a C.S. Lewis, tem enormes razões históricas atrás de si, sobretudo no campo da medicina imediatamente anterior ao poema de Milton. Ao estudar a prática terapêutica do século 16, Jean Ceard discute os nexos entre melancolia e influência diabólica. O melancólico é triste como Lúcifer, mas “se o diabo pode teoricamente nos aplicar mil doenças, ele no entanto tem predileção pelas que ofendem o cérebro e os nervos”. Se perseguirmos esta via, o demônio de Milton experimenta o seu próprio mal, pois é melancólico e perdeu o siso. Ceard lista os acometidos pela enfermidade na Bíblia, sobretudo nos escritos cristãos. Ali encontramos um lunático epiléptico (Mateus, 17, 14 ss), um maníaco licântropo (Lucas, 8, 27 ss), um outro doente de “convulsão da espinha” (Lucas, 13, ss). O diabo prefere “as doenças de nervos e do cérebro, o que deve nos alertar para certo número de representações pouco conscientes e incompletamente formuladas”.
Desde remotas épocas a forma literária em O Paraíso Perdido confunde os analistas. Juizos categóricos conduzem a recusas e a teses problemáticas, como a de Hegel: “Milton parece, tendo-se em conta a sua época, um modelo digno de admiração, seja pela cultura reunida por meio do estudo da antiguidade, seja pela correta elegância da expressão. Ele, no entanto, é absolutamente inferior a Dante na profundidade de conteúdo, na energia, na originalidade da invenção e fatura e particularmente pela objetividade épica. De fato, de um lado o conflito e a catástrofe do Paraíso Perdido pende para um caráter dramático, de outro (…) a tendência lírica e didascalico-moral constitui um traço peculiar de se afastar muito do assunto, no que diz respeito à forma original”. Cf. GWF Hegel, Estetica, Trad. N. Merker e n. Vaccaro, (Milano, Eunaudi, 1976, T. 2), p. 1241. Os “defeitos” encontrados por Hegel são pequenos, se o diagnóstico do filósofo é comparado a outras exegeses.
Fernel, para quem a loucura, fruto do jogo dos humores, consiste na “depravação do funcionamento da faculdade principal da alma que reside na substância cerebral como em seu domicílio” e cujo nome latino é desipientia e os gregos são paraphrosyne e paranóia, ou seja, mentis alienatio. A melancolia ao mesmo tempo provoca e destrói o intelecto, “ela é o seu aliado mais eficaz e seu inimigo mais terrível” (Ceard). Segundo Jean Taxil, outro médico da época, “os corpos que o diabo possui interiormente são melancólicos, pois é o humor a verdadeira sede, no qual o diabo se apraz, e do qual ele produz tão estranhos efeitos”. O próprio diabo é melancólico e o poder diabólico é coberto pelo manto da melancolia...
Roberto Romano
Existem valores perenes na luta em prol dos direitos humanos. Como em tudo o que é finito, tais valores possuem o seu lado oposto, os quais não raro os arruinam. Impossível pensar a humanidade sem a técnica e a ciência. Mas é necessário olhar para os desvios acarretados por semelhantes forças. Vejamos um traço grave, antigo mas que hoje preocupa os que defendem direitos, as intervenções técnicas no corpo humano, implicados nos avanços da engenharia eletrônica. Como é sempre possível esperar, tais investigações ligam-se ao fato guerreiro. Recordemos os antigos elos entre pesquisa médica e o treino para a guerra, traço comum entre ciência e morte nas batalhas. O tema assume característica nuclear nas culturas que iniciaram a nossa ética e política.
Passamos, no mundo ocidental, por tentativas de conseguir o “apuro” da ordem humana. Os esportes () a educação física uniram-se, não raro, à tentativa de “melhorar a raça”. E os “inferiores” (os pobres habitantes das montanhas norte-americanas, os judeus, os ciganos, os homossexuais, os asiáticos, os negros) sofreram uma guerra de extermínio cujo nome é eugenia. () Não me deterei muito, agora, em tal aspecto.
Importa, do ponto de vista ético lembrar a tecnologia de controle de corpos e de almas aplicada em campanhas de extermínio dos “inaptos” (assim decretam os “superiores”) para a vida no planeta. As pesquisas médicas, de engenharia e genética em nossos dias podem seguir (isto não é necessário, nem está definido na essência do saber científico) o rumo iniciado pela antiga e renitente história do “aperfeiçoamento” dos pretensos superiores e das ameaças contra os supostos inferiores. Existe a tentação de reduzir o ato educacional ao “apuro” e disciplina, à seleção dos “melhores”. Mas é possível sugerir caminhos diferentes na ética e na ciência. Esta última, mais as técnicas, não se destinam apenas à tarefa que frutificou na guerra ocidental ou nas lutas pela eugenia. Recordo a análise de um pensador de nossos dias, em livro ainda recente.
Massimo De Carolis discute a engenharia cognitiva e biológica e tenta fugir de um risco comum às análises favoráveis ou contrárias às ciências e técnicas. É redutor, no seu entender, todo exame que elude o fato de que os significados do mundo humano podem ser compreendidos cientificamente. E para tal fim, é necessário que a informação sobre a humanidade seja tão acessível quanto a informação sobre os demais campos da natureza. Existe, constata ele, informação e existe rumor (palavra com sentido ou palavrório, diriam os filósofos clássicos).
Os homens compreendem informações e rumores no interior da natureza e no seu campo específico. Eles distinguem a si mesmos do ambiente natural. E captam sentidos sobre a sua vida. Nesta faina, De Carolis distingue três aspectos essenciais: a performatividade, a virtualidade, a auto-referência. A performatividade é o poder de constituir um sentido por um ato fundador. A virtualidade é a marca dos eventos de sentido nunca estabelecidos definitivamente, mas re-definidos sempre, em novos nexos entre signo e rumor. Auto-referência é a força de representar a si mesmo e distinguir a si mesmo do mundo externo.
Hoje somos praticamente presos da técnica que permite transmitir informações –esta inclui a Internet mas soma a mídia, o cinema, etc.– que atenua o sentido e a liberdade. No aperfeiçoamento corporal, máquinas são oferecidas como substitutas eficazes da ação volitiva, tendem a dispensar os intentos humanos. O Estado e o mercado dispensam entes voluntariosos que decidem este ou aquele rumo coletivo. A política econômica e a política representam automatismos que operam como se fossem instrumentos infalíveis.
As guerras são vividas como espetáculo televisivo ou fílmico pelos que não as sentem no corpo, pelo menos nos seus primeiros instantes. O treino para o automatismo conduz às mesmas atitudes dos antigos gregos diante dos outros povos e culturas, vistos como estranhos, perigosos e inferiores. É “natural” que eles sejam vencidos em batalhas “científicas”, com bombas “inteligentes”. Mas um traço pouco discutido, neste âmbito, é o nexo entre a ciência, o ensino e a guerra. Vejamos um exemplo.
Em 1983 E. Pozzi analisa a tendência ao controle maquinal das atividades lúdicas e do esporte. Refiro-me ao artigo intitulado “Giochi di guerra e tempi di pace”. O texto examina a espacialização do tempo cujos exemplos mais relevantes, no mundo contemporâneo, são os jogos de guerra e o esporte. As duas formas de diversão expõem formas da consciência ética automatizada e prestes a ser movida no interesse do extermínio dos “inferiores”.
Os jogos de guerra surgem com o Estado moderno, entendido e praticado como imensa fábrica de controle político. Desde Platão a idéia de que o universo físico e humano são artefatos produzidos com arte e técnica, os quais devem ser dirigidos por sábios competentes, habita as mais importantes teorias políticas. Basta que se pense em Thomas Hobbes. O Estado-máquina é desafio importante: não por acaso Platão o ideou contra a democracia ateniense, lugar onde nasce a nossa imaginação política. Confiantes na eficácia da polis dirigida por sábios, contra a instabilidade das massas, o pensamento assumiu o cálculo e a eficácia que instauram o Estado e se oferecem para Max Weber na figura do “Estado fábrica” onde todas as conexões são artificiais e mecânicas. A essência burocrática seria o resultado lógico dos séculos de razão mecânica .
André Leroi -Gourhan () em Evolução e técnica () examina as artes de fabricação, aquisição ou consumo. Ali ele expõe o quanto o elemento tecnológico define a vida social e mostra a vida forjada pela técnica como um sistema onde, dado um traço os demais se definem, com maior ou menor densidade e coerência. O sistema de ciências e técnicas ergue-se contra o acaso. Assim, "o processo humano, surgido dos constrangimentos biológicos, desenvolvendo-se na ordem dos signos, apressado pela indústria e figurado pelas técnicas da comunicação, é processo cumulativo. O passado da espécie condiciona o futuro da etnia". ()
Os movimentos tecnológicos e científicos são conquistas milenares: a postura ereta, a linguagem, a imaginação, a memória.
Tal é a constante no movimento evolutivo. “O técnico comporta-se frente à matéria, que ele ataca, em função de certos meios de atividade, do mesmo jeito que o ser vivo, no interior de seu meio”. Só há produção para o ente vivo, para a técnica, para as sociedades, sob constrangimento. A evolução transforma o constrangimento em tendência adquirida pela espécie. As faculdades do cérebro e das mãos, em milênios, se tornam tendências inconscientes, mas ativas nas sociedades. O instrumento é conseqüência da mão. "O homem não é um resultado, ele é um produto, e mesmo seu produto, um ser que soube e pode acomodar sua contingência, aproveitar a si mesmo e ao meio". A humanidade vive, desde época remota, no "meio técnico" cuja tendência é substituir o natural.
Nenhuma técnica existe isolada e toda sociedade é politécnica. O instrumento ou processo ausente num coletivo humano encontra-se em outro, premido à sua invenção pelos desafios naturais. São fatos diferentes “ter” um instrumento e “fixar” o mesmo instrumento. Só na segunda via o objeto é “digerido” pelo meio, “integrado ao seu capital, porque é harmônico à politécnica preexistente ao grupo.” (Guérin). () Entre a vida e a morte, o instrumento técnico possibilita uma tripla sequência comportamental (agressão, aquisição, alimentação), de preensão (lábio-dental, digito-palmar, interdigital e projeção), de percussão (dentária, manual, unguear). ()
Para quem se apresta a olhar o ente humano com as lentes da etnologia, portanto, nada surpreende quando se trata de perceber os acréscimos trazidos ao corpo e à mente pelas próteses avançadas de nossos dias. Se nós mesmos somos o resultado técnico de nossa atividade corporal, quando novos instrumentos auxiliam a aumentar nossa força e poder sobre o universo e sobre a sociedade, tal fenômeno inscreve-se numa continuidade milenar, durante a qual produzimos o que entendemos como homo sapiens.
Permanece, no entanto, o problema ético sempre espantoso: as melhorias que fazemos em nossa estrutura somática e funcional têm mão dupla. Elas podem nos conduzir para o convívio que nos refina em termos éticos, estéticos, religiosos, científicos, ou à destruição dos que julgamos estrangeiros, inferiores, bárbaros. É semelhante ponto o examinado no livro pungente de Jonathan D. Moreno, Mind Wars, brain research and National Defense. ()
Filho de famoso pesquisador que definiu parâmetros de saber médico durante a Segunda Guerra Mundial, Moreno começa seu relato com um episódio significativo. O pai, Jacob Levy Moreno serviu muito às Forças Armadas, britânicas ou norte-americanas, com a sociometria () a psicoterapia de grupo, o psicodrama. Nada disso ele escondeu dos leitores em sua Autobiografia (). Enfermeiros foram assim treinados para conseguir maior eficiência na sua luta contra a morte dos que lutaram na Segunda Guerra Mundial. Soldados também receberam treino segundo as técnicas criadas por Moreno, para aumentar a sua capacidade letífera. Este é o núcleo da pesquisa de Jonathan D. Moreno: o uso das técnicas para ampliar, sem medidas, a força de abate dos soldados norte-americanos. Tais procedimentos são descritos minuciosamente pelo autor, dando-nos a certeza de que de fato já vivemos em pleno “Brave New World”.
Quando criança Jonathan nota, certo dia, que um grupo de jovens, quase adolescentes, chega à sua casa em ônibus escolar e segue para o laboratório do pai. Anos mais tarde ele pergunta à sua genitora o motivo da visita inusitada. E fica sabendo que as quase crianças serviram para testar o LSD. O fascínio com a droga veio de pesquisadores que trabalhavam em Harvard, que estudavam a droga desde 1950. O primeiro ponto ética controverso, portanto, reside nos experimentos com seres humanos, jovens e inexperientes. O segundo, é a pesquisa ter sido conduzida em segredo. E o terceiro é grave como os anteriores: a pesquisa era, em parte mais do que considerável, feita em prol das agência encarregadas pela segurança nacional. Como diz Moreno: os sonhos de Thimothy Leary, um guru do tipo hippie que desejava mudar a sociedade com a droga em questão “could trace their roots to America’s early cold war defense establishment”. ()
Anos depois, o filho encontra-se em posição de pesquisa em bioética, numa faculdade de medicina, para trabalhar em certo Comitê Presidencial para o estudo de experimentos em radiação, com as seqüelas nos seres humanos, patrocinados pelo governo norte-americano desde 1940. Seu trabalho seria acompanhar a história secreta (classified) do financiamento oficial em experimentos humanos. Dessa maneira, percebeu as conexões entre o uso do LSD e outros meios de influência sobre o cérebro e a CIA e o Pentágono, pelo menos desde 1960. O interesse anterior, também descobriu ele rapidamente, dos mesmos organismos de espionagem e de guerra, continuam no campo da neurociência.
Pouco a pouco Moreno amealhou dados sobre a defesa nacional e seus financiamentos, e a pesquisa em neurociência. Um outro fato significativo em termos éticos grande parte dos cientistas, brilhantes, pouco sabia sobre a origem dos financiamentos globais de suas investigações, ou imaginavam que o nexo entre financiamento e o que faziam pouco trazia para ser pensado no campo prudencial. Quando recolheu dados suficientes que lhe permitiam dizer que o vínculo entre segurança nacional e pesquisas em neurociência, neurofarmacologia e áreas conexas era extenso e em crescimento, ele notou também que poucos discutiam “many fascinating ethical and policy issues that might emerge from this relationship”.
Não temos condições de indicar, aqui, os elementos técnicos implicados nas intervenções sobre corpos humanos, inicialmente dos guerreiros, expostos por Moreno. Basta, no entanto, assinalar os perigos éticos e políticos neles consubstanciados, que implicam gravíssimos crimes contra os direitos humanos, individuais e coletivos. A leitura de Mind Wars deveria ser obrigatória pelos que, no Brasil, se interessam pelo futuro da humanidade.Um outro livro de Moreno que merece análise é Risco Indevido ()
Nele, o autor mostra o quanto os governos, não apenas o dos EUA, mas de muitos países, privilegiam pesquisas em seus próprios cidadãos (experimentos das ordens biológicas, químicas, atômicas) tendo em vista a "segurança nacional". Os direitos dos que servem para tais experimentos são atingidos profundamente. Moreno descreve o uso de militares e civis, incluindo crianças, em tais pesquisas. Pacientes foram submetidos a toxinas biológicas ou químicas, a explosões nucleares –oftalmologistas mediam os efeitos da radiação nos olhos, variando a distância do foco. Outros casos descritos, envolvendo LSD e mescalina, tinham como alvo saber se os inimigos, sob aqueles elementos, ficariam desarmados, ou não. Os inúmeros casos mostram que os direitos dos submetidos foram ignorados e violados intencionalmente pelos poderes e pelos pesquisadores, sempre em nome da segurança nacional. Tais experiências foram feitas, mesmo depois de instaurado o Código de Ética médica da American Medical Association e depois do Código de Ética de Nuremberg cujo núcleo lógico e deontológico rezava: "O consentimento voluntário do sujeito humano é absolutamente essencial"
Em data recente tivemos outra notícia sobre ética médica e atos contrários à democracia. Os EUA pediram desculpas à Guatemala pelas experiências realizadas em prostitutas e doentes mentais naquele país por volta de 1940. Tais agressões aos corpos alheios, cometidas pelos aventais brancos, foram efetuadas sem consentimento e consciência das vítimas.
Em 1940, médicos que deveriam cuidar dos seres humanos os destruíram. “Usarei meu poder para socorro do adoecido, segundo o melhor da minha habilidade e juízo; evitarei, com ele, ferir ou enganar todo e qualquer homem”, diz o juramento de Hipócrates. Aqueles médicos infectaram de propósito, com gonorréia e sífilis, 1.500 pessoas na Guatemala. “Estamos escandalizadas por saber que essa pesquisa ocorreu sob o disfarce de ação de saúde pública”, dizem agora as secretárias de Estado dos EUA, Hillary Clinton, e a da Saúde, Kathleen Sebelius. “Sentimos muito e pedimos desculpas a todos os infectados na pesquisa”. Barack Obama pediu perdão ao presidente da Guatemala, Alvaro Colom. “Regulamentos sobre pesquisas médicas em humanos nos EUA hoje proíbem esse tipo de violação terrível”, disseram Hillary e Sebelius. Elas afirmaram que será feita uma investigação sobre o caso, especialistas internacionais farão um relatório sobre padrões éticos nas pesquisas médicas.
Na mesma época, pouco mais tarde, no próprio território norte-americano “pesquisas” eram feitas em humanos por médicos com olhar - diz a pensadora Elizabeth de Fontenay - frio como o escalpelo. No caderno de horrores intitulado Risco Indevido, um especialista na bioética, respeitado hoje nos EUA por organismos do governo e da sociedade, inclui mesmo oftalmologistas encarregados de verificar o que ocorreria com os olhos de soldados expostos à radiação atômica. A data? 1950 em diante. () Moreno recompõe, rumo ao pior, os círculos dantescos do Inferno. Notemos que todos os crimes indicados têm um denominador comum: falta de alma dos pesquisadores e segredo.
Mas os dias de hoje trazem eventos terríveis, no campo da experimentação com seres humanos. Não falarei aqui dos médicos que ajudaram nos procedimentos de tortura em regimes ditatoriais como o da Grécia, do Brasil e de outras partes do mundo. Mas o elo entre pesquisa e guerra ainda trará muitos sofrimentos para a humanidade. Vejamos, para terminar, uma notícia recente publicada na Folha de São Paulo
"Psicólogos reproduziram teste da década de 1960 (Reuters). Psicólogos conseguiram reproduzir um experimento clássico dos anos 1960, mostrando que a maioria das pessoas aceita infligir dor em outras quando recebe ordens de alguém em posição de autoridade.No novo estudo, 70% dos participantes convidados a ajudar um cientista aceitavam aplicar choques num voluntário, que deveria ser punido cada vez que errava uma resposta de uma prova oral. Mesmo quando o homem se contorcia (na verdade era um ator fingindo dor), as pessoas continuavam a aumentar a voltagem da "punição", a pedido do pesquisador."Se você colocar as pessoas em certas situações, elas vão agir de maneira perturbadora", diz Jerry Burger, da Universidade de Santa Clara (EUA). A versão original do experimento, de 1961, foi feita por Stanley Milgram, da Universidade Yale, de Connecticut. Ele verificou que, mesmo depois de ouvir um ator gritar de dor no nível de 150 volts, 82,5% dos participantes continuaram a dar os choques -a maioria até o nível máximo de 450 volts. Até hoje, ninguém tinha replicado o experimento em razão do trauma sofrido por voluntários que acreditavam estar lesionando as pessoas. Burger, então, decidiu parar em 150 volts no estudo com 29 homens e as 41 mulheres. Quando soldados foram pegos torturando prisioneiros no Iraque, alguns alegaram que o ato teria sido fruto dessa obediência irrestrita. Burger, porém, nega que esse evento possa ser totalmente explicado com os voluntários de seu teste."Não é que haja algo errado com essas pessoas", diz. "A idéia que vem dos anos 1960 é que, de alguma forma, elas têm essa característica de serem mais propensas a obedecer."
Jonathan Moreno relata em Minds Wars algo similar. Um pesquisador afamado de Harvard, Henry Murray, psicólogo chefe do Office of Strategic Services, que chegou a ser indicado ao Nobel e amigo do pai de Moreno, realizou experiências com jovens de sua faculdade, a partir das informações sobre a experiência da humilhação, aplicada pela China e Coréia em prisioneiros. Os EUA desejavam adquirir o know how daquela técnica. Parece que até hoje não a aprenderam na totalidade, visto que ainda praticam afogamentos simulados para encontrar a verdade. Mas fiquemos com o psicólogo dos anos 60 do século vinte. Ele dizia aos jovens estudantes que eles deveriam fazer um texto com o seu pensamento sobre a vida, a cultura, a sociedade. E afirmava que tais escritos seriam examinados por colegas estudantes de direito de Harvard. Quando chegava o dia, os jovens eram introduzidos em salas absolutamente vazias, brilhantes e brancas, sem outro recurso senão o seu texto. Eles o liam e depois eram massacrados pelos melhores professores de direito de Harvard, que usavam de todos os recursos científicos do direito e da retórica para reduzir a nada os argumentos juvenís. O experimento durou anos, com a mesma turma sendo massacrada de modos vários. Um dos estudantes, formado com louvor e depois doutorado também com louvor, se dirigiu para a Universidade de Berkeley, onde ensinou alguns tempos. Depois sumiu e o mundo ficou sabendo dele por meios sinistros. Ele era Ted Kaczynski, o Unabomber, que lançou manifestos contra a técnica na internet para justificar atentados violentos.
Nunca devemos nos permitir a falta de saberes em matérias que implicam reduzir seres humanos ao estatuto de máquinas e, no mesmo golpe, permitir o aniquilamento dos julgados “inferiores” pelos que, saciados de saberes científicos mas ignorantes dos fundamentos éticos, movem as máquinas de guerra e de conquista no século 21.
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Homossexualidade, Metafísica e Morte. A honra masculina e o Direito de Matar.
Roberto Romano
CURSO DE CAPACITAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS E DIVERSIDADE SEXUAL PARA GESTORES PÚBLICOS DO ESTADO DE SÃO PAULO (14/12/2007). Palestra proferida no Auditório da OAB/SP (Largo da Polvora).
Existem ilusões sobre a democracia grega espalhadas no pensamento acadêmico e político. Existem ilusões sobre a atitude grega diante do homossexualismo, aceitas sem análises cautelosas, inclusive entre homossexuais. Tais ilusões, penso, em vez de ajudarem a construir sistemas de justiça, alimentam mitos sobre os indivíduos e os grupos que levam ao assassinato dos que não se enquadram nos efetivos ideais gregos de vida natural. Espero que no fim da minha fala, estes pontos fiquem mais claros.
Na revista Diké, prestigiosa pela escolha dos colaboradores e relevância dos temas expostos, Robert Wallace analisa o problema da atimia no direito grego, em especial no período clássico. Aquela figura é acolhida pelos tribunais de Atenas e apoiada amplamente pela sociedade inclusiva. Trata-se de grave restrição aos direitos civis dos acusados de crimes e delitos hoje separados na ordem legal. (1) Wallace menciona, na coletânea de leis sobre a atimia, o comentário de Esquino com as cinco causas que podem gerar a perda dos direitos cidadãos. Esquino acusa Timarcos que, supostamente, “vivia coberto de vergonha [ou seja, como prostituto masculino] e a lei o proibe de falar ao povo”. A ordem legal citada por Esquino proclama que “Se algum ateniense prostituir sua pessoa, não será permitido o seu acesso ao cargo de um dos nove arcontes, nem o exercício do sacerdócio, nem a função de advogado (syndikos) para o povo, nenhuma magistratura, no país ou no estrangeiro, tanto os cargos preenchidos por sorteio ou eleição; ele não pode entrar nos debates nem se apresentar nos sacrifícios públicos; quando os cidadãos usarem guirlandas, ele não poderá fazer o mesmo; e não poderá ultrapassar os limites da Agora”. (2) Detalhe fundamental a ser anotado com muita cautela. Os processos registram, em casos semelhantes: quem perdia assim os direitos, não tinham a sua culpa declarada pelos tribunais. Bastava a desconfiança para definir a pena. Daí a expressão de juristas modernos de que aquelas pessoas seriam “atimoi não declarados culpados”. Um autor, MacDowell, (3) diz que os prostitutos masculinos deviam “evitar o exercício dos direitos cidadãos, ao serem tidos como atimoi, pois eles seriam processados se ignorassem tal determinação. “A pena era a morte”. A dokimasia, exame para ingresso e saída dos cargos públicos, define que “a atimia (perda dos direitos) pode caber como pena aos acusados de prostituição, mas só para os políticos, não para os cidadãos privados”, afirma S.C. Todd (4) Este “só” não tranquiliza ninguém, porque o grego, segundo Aristóteles, é animal político. As penas de atimia eram aplicadas, em casos diferentes da prostituição, aos magistrados que, sem deixar o cargo, não pagavam ao Estado os seus débitos aos tribunais e à Assembléia. Também os cidadãos que, chamados para integrar o exército, não compareciam, eram submetidos à plena atimia.
O que eram as timai que ordenavam o termo negativo, atimia? Elas resumiam a honra pública que permitia acesso aos cargos, aos tribunais, ao povo reunido em asssembléia. Atimia era imposta aos covardes na guerra, aos que não protegiam seus familiares, sobretudo menores, aos devedores do erário oficial. Atimia pode ser ser hereditária. A maior ou menor abrangência da perda dos direitos era decidida caso a caso. Autores indicam que no cotidiano certas penas de atimia eram quase ignoradas pela população, como nos débitos de cidadãos privados para com o erário público. E temos também o caso dos promotores públicos que, se não conseguissem convencer pelo menos um quinto dos juízes e jurados, ou eram proibidos de tratar novamente de causas públicas ou eram, pelo menos, multados pesadamente.
Quando se fala em democracia grega é preciso, portanto, muita cautela. A referida forma de poder não apresenta as determinações definidas hoje na semântica e prática política ou jurídica. Como vimos no caso da atimia, a permanência no coletivo cidadão era restrita e, não raro, dependia das lutas e acusações feitas por adversários, sem garantias duradouras dos direitos. Não por acaso Aristófanes e Platão, representantes da aristocracia, notaram defeitos gravíssimos na ordem democrática, assistidos de razão plena. Também Tucídides mostra, com uma lógica férrea, que a democracia na Grécia seguiu o caminho perigoso da ambição imperial, para satisfazer a fome de mando e de riquezas dos cidadãos. As Vespas de Aristófanes mostram com minúcia o quanto a justiça se transforma, na democracia helênica, em assalto aos cofres públicos e aos cargos da justiça, em troca de salários, posição social e política. Não erra muito quem afirma da ordem democrática grega, que nas suas cidades Estado o efetivo era um clube de homens, proprietários, xenófobos e arrogantes.
O acesso ao sistema legal ateniense, bem como em outras áreas da vida política, comenta um especialista em direito e história jurídica da Grécia, eram prerrogativas dos cidadãos. Note-se que mesmo o termo “as atenienses” não existia, mas apenas “os atenienses” (oi Athenaioi). Para ser cidadão, era preciso antes de 451 AC, ter pai ateniense e mãe livre. Depois, a qualificação se tornou mais exigente, sendo necessário que pai e mãe tivessem nascido gregos. O âmbito das mulheres era a casa. Como diz Clitemnestra a Agamenon, “no mundo você domina, na casa, mando eu”. Só os homens poderiam ter cargos públicos, participar da Assembléia, servir como juízes ou promotores, advogados ou testemunhas. Em casos de inquérito sobre homicídios, as mulheres poderiam comparecer, mas pouca documentação sobre isto pode ser citada. Para toda ação legal, a mulher era representada por um adulto homem, o seu Kyrios (guardião, mas com tradução melhor como Senhor) que poderia ser seu pai, antes do casamento, ou seu marido. Se acusada judicialmente, o processo seguia contra ela e seu Kyrios. Evidências eram dadas, no tribunal, pelo marido. Pode-se aquilatar, portanto, o que significa a atimia entre os gregos. Trata-se de perder a condição de homem, de Kyrios. O atimos é o que não tem honra, sendo a honra uma das propriedades essenciais dos homens. A atimia apenava sobretudo os covardes na guerra. Os atimoi não tinham proteção segura para a sua vida e bens. (5)
No caso da homossexualidade, a proibição que, infringida leva à atimia é a venda do próprio corpo para uso sexual de outro homem. A atitude passiva conduz o indivíduo ao estatuto feminino, o que lhe retira, ipso facto, a prerrogativa cidadã. Para bem compreender semelhante ponto, não basta compulsar as leis atenienses e os costumes. A Grécia legou ao Ocidente uma visão masculinizante da sociedade, algo que ainda hoje permite aos entes do gênero masculino dominar amplos setores institucionais e religiosos, como é o caso da Igreja Católica. Não se trata apenas de hábitos, mas de concepções racionalizadas até mesmo em termos metafísicos. Em Aristóteles, o mestre de boa parte da teologia cristã via Tomás de Aquino, o útero é o orgão essencial da mulher. Mas ele não produz semente fértil pois a mulher gere e não gera o embrião. Procriar um garoto é sinal de perfeito acabamento. Já o contrário é signo de fraqueza. (6) Segundo Aristóteles, os termos “macho” e “fêmea” mostram que a “natureza da terra é algo feminino e por isto ela é chamada ‘mãe’, mas “o céu e o Sol são geradores e pais”. (Geração dos Animais, 716a). O princípio (arché) encontra-se no macho e produz movimento, geração. É bom lembrar que o termo arché conota, de modo relevante, o poder político. O poderoso mobiliza os fundamentos da natureza e da polis. Os Archontes eram os magistrados que garantiam a ordem e a estabilidade estatal. A fêmea teria em si a hylé (o princípio da matéria). O macho geraria em outro e a fêmea em si mesma. Assim, macho e fêmea diferem pela sua própria estrutura ontológica. Na fêmea, o útero seria a peça essencial, no macho os testículos e o pênis. “A relação macho/fêmea”, diz Aristóteles, “é naturalmente do superior ao inferior, o macho governa, a fêmea obedece” (Política, 1254b). A semente masculina supre o principio ativo da geração e, pois, da alma racional e sensitiva. A mulher seria “um macho infértil (…) ou deformado, a descarga menstrual é semente, mas em condição impura (…) falta-lhe o princípio da alma” (Geração dos Animais, 737 a). (7)
Podemos agora analisar a semântica da palavra atimia, que joga indivíduos masculinos para fora da lei e do gênero que a natureza lhes deu. Timós, nas suas significações mais arcaicas conota ao mesmo tempo os pensamentos e as emoções, ambos regulado pelo diafragma, entendido como “freio” do corpo e das ações.(8) Assim, o timós equivale ao logos, a razão que tudo controla e freia. Assim, o homem que possui um timós intacto, não corrompido, apresenta não apenas coragem, mas também o controle racional da coragem, o que é próprio do logos. O preceito da parresia, da fala livre do cidadão na Assembléia, exige que o indivíduo não seja impedido de falar pela vergonha, pelas paixões, pela chantagem, pela falta de vergonha. Quando vende seu corpo, vende também a coragem, a razão, a vergonha, a honra. E não pode ser partícipe de nenhum direito, porque o direito é palavra utilizada publicamente e em particular, sem impedimentos. Temos a chave para entender em parte a pena de atimia. Negociar o corpo e assumir o papel passivo é para o adulto ateniense passar para o lado feminino, sem ter útero. Se a mulher é “macho infértil” para Aristóteles, o macho que assume o papel da mulher, numa compra e venda de seu corpo, não consegue substituir o corpo feminino na geração de filhos. Se a mulher é ser humano imperfeito, o homem prostituido nega em si mesmo a sua própria natureza.
Se levarmos em conta os enunciados de Michel Foucaul e de Keneth Dover, (9) seria de se pensar que os gregos consideram a homossexualidade ativa como perfeitamente “natural”. Mas não se pode eludir o fato de que adotar uma atitude submissa e passiva desabilita o indivíduo masculino para a cidadania livre e coberta pelos direitos. (10) Foucault avança a tese de que na Grécia o homoerotismo é visto como natural, não existindo a bivalência homossexual/heterosexual e que não existiria, portanto, prática ética ou legal de normatização neste campo. O tema é mais complicado. É certo que os gregos tinham consciência das ambiguidades e conflitos entre leis e costumes, e que as primeiras variavam de uma cidade Estado a outra. Umas proibiam a pederastia, outras a autorizavam. Platão, no Simpósio, põe na fala de Pausanias a sentença de que em Atenas as leis e costumes ligados à pederastia são definidos como o que é próprio à poikilia (multicolorido, intrincado, com muitas saídas), pois naquela cidade ao mesmo tempo eram censurados e aprovados os fatos daquele campo ético e jurídico. Poikilia é noção usada na República platônica para descrédito do regime democrático. Nesta forma política, diz o filósofo, a mais bela de todas, as opiniões políticas são multicoloridas, não fazem unidade alguma. Tal regime é comparado por Platão às vestimentas dos atores que, ao entrar na cidade, atraem as crianças e as mulheres com seus mantos de retalhos bordados em matizes berrantes. (11) O regime proposto na República e nas Leis afasta-se deste carnaval opinativo, foge do gosto estético e político do povo, das mulheres e crianças. A poikilia agrada aos olhos, mas afasta o pensamento da justiça e da verdade. Do regime democrático, com esta festa sensual, o resultado só poderia ser a violência tirânica. Assim, quando o Pausanias de Platão diz que as leis atenienses sobre a pederastia e homossexualidade pertencem ao campo da poikilia, ele afirma que os cidadãos e governantes de Atenas não conseguiram estabelecer leis e costumes racionais, escrevem leis não unitárias em termos de condenação ou consentimento da homossexualidade. Note-se que Platão é bem menos excludente da mulher no âmbito político do que Aristóteles.
As leis atenienses reguladoras do homoerotismo podem ser agrupadas em três categorias (12) : leis sobre a prostituição, leis sobre a educação e as provisões sobre atentados sexuais. As primeiras: o cidadão era posto na atimia se tivesse vendido seu corpo para o prazer sexual de um homem, o vendedor poderia estar na idade adulta ou na infância. Se o garoto era alugado pelo genitor, irmão, parentes ou qualquer responsável legal por ele, tais pessoas respondiam a processo penal. Na educação: leis detalhadas protegiam os estudantes do assédio adulto. As escolas, por exemplo, não poderiam abrir suas portas antes da luz solar ou depois do entardecer. A terceira lei liga-se à hybris (insulto, ultraje, abuso). Costuma-se traduzir hybris por desmesura. Esta é uma das suas significações, na arrogância do rico e do poderoso contra o pobre e fraco. Mas hybris pode ser aplicada a todo comportamento masculino que abusa do mais fraco (mulher, criança, estrangeiro, escravo) para seu prazer e auto-indulgência. É o caso do abuso do macho adulto contra um menino.Importa recordar, dizem os comentadores, que os nomes ligados à hybris e ao verbo hubrysein possuem forte conotação sexual. Voltemos a Aristóteles. Para ele, a hubrys é todo comportamento que desonra e envergonha a vítima para o prazer ou gratificação do ofensor (Retórica 1378 b). É com base neste ponto que Esquino afirma, ao comentar a lei, que no caso da ofensa por hubrys a desonra cai sobre a vítima, mesmo que ela não tenha consentido. Temos casos semelhantes em nossos dias, no Brasil e em países árabes. Aqui, uma menina a quem se acusou de prostituição foi posta em cela com machos adultos. Segundo a maior parte das autoridades públicas por ela responsáveis, a culpa seria dela. Em país árabe, uma jovem foi violentada por vários machos adultos e condenada a receber a chibata, por “atentado ao decoro”. Como se nota, a Grécia ensinou muita coisa aos nossos tempos. É bom lembrar que só temos conhecimento da filosofia e das leis gregas porque os árabes guardaram seus manuscritos e os transmitiram ao Ocidente. Eles conhecem as bases do que fazem.
A lógica da atimia, portanto, é evitar a desonra dos jovens e futuros cidadãos atenienses, todos másculos geradores de familias, o que seria frustrado caso um indivíduo que se vendeu ou foi vendido por seus responsáveis penetrasse o círculo fechado da política. Entende-se também o peso da acusação contra Sócrates, condenado a beber cicuta por impiedade (asebeia) e por corromper os jovens de Atenas. A pena de morte era destinada a quem se aproveitasse, por hybris, dos jovens escolares. A honra masculina, como indica um comentador, seja na pessoa própria, seja na mulher ou filhos é “jogo de soma zero: o aumento da honra de um homem dá-se às expensas de outros”. A proibição da venda, para fins eróticos, do corpo masculino tem implicações éticas relevantes, se notarmos que a honra na cultura grega é o correlato da noção de vergonha, pudor, Aidós. Assim como o guerreiro covarde não sente vergonha da fuga, abandona o seu dever de proteção aos seus familiares e aos demais membros da cidadania, também o homem (ou menino) que se entrega a um adulto masculino em troca de presentes e dinheiro perderia a vergonha como experiência ética fundamental. Assim sendo, a corrupção do prostituido, além de colocá-lo no falso papel de mulher, o que seria um ato duplamente contrário à natureza, faria desaparecer os laços de respeito entre pessoas e de respeito próprio. (13)
Essa noção de honra e de valor, que abomina a traição dos elementos masculinos quando passam ao lado da mulher, sobretudo da prostituta, justifica os movimentos antigos e modernos voltados à aniquilação dos homossexuais. Religiosos de quase todas as confissões e seitas, os fascismos e o nazismo, acentuaram o par verginha/honra para estigmatizar o “crime contra a natureza”, punível com a morte ou o exílio da cidadania. Hoje os nazistas que se escondem sob os nomes do “neo-nazismo”, ou dos seus herdeiros carecas ou não, aplicam a lei supostamente mais antiga e mais digna da ética masculinizante. E sua sentença é de morte, como as estatísticas fazem notar no mundo e no Brasil. Passo à análise de um detalhe de nossa formação social, para evidenciar o quanto é árduo modificar o costume do morticínio praticado contra os diferentes em termos de opção sexual.
É preciso notar a duplicidade evidenciada na violência da honra, tal como herdada por nós do pensamento antigo. A violência é espiritual e física. As duas são distintas, mas unem-se quando se trata de impor um modo coletivo de administrar vidas e mortes. Cito Maria Sylvia Carvalho Franco em Homens livres na Ordem Escravocrata,(14) que recolhe a violência aparentemente gratuita (estudada em processos crime do século 19 ) de nossa formação social. Até hoje, por motivos fúteis na superfície, milhares de mortes são cometidas em defesa da honra. A simples recusa de uma bebida no bar pode tolher uma existência. A autora segue do aparentemente irracional para a estrutura da sociedade. Ela mostra que a violência em nossa terra surge de um modo particular na geração do lucro em larga escala, explorando-se mão-de obra como os mecanismos pessoais (que mobilizam a “honra”), nas relações de compadrio e favor. Tais mecanismos de controle perpassam também as forças institucionais (o “público”). Sendo a mão de obra escassa, as relações de compadrio e favor, onde supostamente há igualdade entre proprietários e não proprietários (o patrão/padrinho e o dependente) atenuam os abusos dos patrões sobre os seus “compadres”, pois ambos são unidos por um pacto tácito de “proteção mútua”. O fazendeiro paternalista mata o seu concorrente e rival fazendeiro, e manda destruir os que ameaçam sua fazenda, os sem propriedade territorial. Para isto, ele conta com os “compadres” pobres. Dificilmente ele manda matar os seus protegidos. Se isto ocorresse com freqüência, seria perdida a mão de obra e as almas sobre as quais domina.
Comentando Carvalho Franco, Alba Zaluar diz que o estudo do coronelismo aponta “os laços morais fortes entre o coronel e seus seguidores, especialmente os consagrados pelo compadrio. Os jagunços que formavam a sua guarda não o protegiam dos seguidores, mas dos seus rivais fazendeiros. É claro que isto não eliminava totalmente as relações de força e a violência, usadas sempre que um conflito interpessoal (frise-se aqui o pessoal) dividisse patrões e clientes, ou colocasse em campos opostos os homens livres da sociedade escravocrata (Carvalho Franco), mas a sua articulação com esses vínculos morais conformavam uma situação bem diferente da atual, onde a violência articula-se com os princípios do individualismo egoísta do mercado” (15)
Desde o início, temos as dominações físicas e anímicas “privadas”, postas acima da lei estatal, o “público”. As relações de compadrio e favor são universais da vida brasileira, ampliadas ao plano político, definindo o Estado, sobretudo nos Parlamentos e nos Executivos. No século 19, a parca mão de obra obstaculiza o abuso absoluto da dominação. O fazendeiro, por força da concorrência econômica e política, mata outros fazendeiros. Mas para a “sua” gente ele é “pai”. Em nossos dias, afirma Zaluar, “na versão atualizada, o clientelismo brasileiro aproxima-se do empregado pelas máquinas políticas -o bossismo americano- que se valem do poder de compra do dinheiro (e não mais de laços éticos, como o compadrio) e cujo efeito corruptor é conhecido. “Por isso o ‘chefe’, ‘o cabeça’ o que ‘está na frente’ (termos todos usados pelos populares, para designar os chefes do tráfico de drogas) é tido como um patrão fársico, sem as qualidades morais atribuídas ao patrão no registro tradicional. Não tem autoridade nem induz ao respeito, mas consegue obediência através do medo pelo seu poder (ou o de perseguir seus desafetos uma vez eleito, no caso dos políticos, ou pelo poder de fogo de sua quadrilha, no caso dos empresários do crime). O seu caráter despótico é revelado pelos nomes usados para designá-lo: ‘homem’, porque os que a ele se submetem adquirem características do feminino; ‘cabeça’, porque, estando acima dos outros, é o único que pensa, age, e é portanto livre, os outros são seus meros escravos”. Nas relações políticas e sociais brasileiras, continua Zaluar, “por ter que se submeter a poderes não legitimados que usam e abusam da força, os homens tornam-se suscetíveis a qualquer provocação, interpretada como ameaça à sua honra e integridade masculina”.
A mesma futilidade de motivos indicada por Carvalho Franco nos homens livres no Brasil escravocrata, nota-se agora nos jovens pobres e de cor. “Pelos dados do Ministério da Saúde, no Município do Rio de Janeiro, em 1988, o número de mortes por causas externas (6008) ficava em terceiro lugar, só perdendo para as mortes por doenças do aparelho circulatório (19.482) e neoplasmas (6.323). (…) Na média geral brasileira, morrem quatro homens para cada mulher e, em alguns municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro, essa taxa diferenciada atinge o valor de 15 homens para cada mulher. A partir de 1987, os homicídios (intencionais ou dolosos) passaram à frente das mortes por acidente de trânsito (culposos) e hoje os supera em cerca de 30%, afetando principalmente os jovens pobres e de cor que estão deixando a escola”. É preciso ter presente que as mortes são de jovens, na sua maioria, adolescentes ou na verdade crianças, promessas calcinadas de vida. Termina Alba Zaluar: “Nos países em que a lei, em vez de impor limites ao dinheiro, deixa-se seduzir por ele, o acúmulo de riquezas e dos instrumentos de violência são fundamentais para capacitar as pessoas na resolução de conflitos. Pois, se a Justiça não funciona, as armas de fogo são extremamente eficazes para destruir desafetos e rivais, para dominar as vítimas, para amedrontar possíveis testemunhas e criar respeito entre comparsas e policiais, garantindo a impunidade”.
Em data recente, um governador da Paraíba deu o exemplo cabal do fato evocado pela antropóloga, evidenciando o comportamento “público” e a violência dos políticos machistas. Para vingar sua honra, ele entrou num restaurante e sem nenhuma hesitação se dirigiu à mesa de um adversário. Sem cuidados com a lei ou a segurança dos presentes, deu um tiro na boca do antagonista. O princípio da honra também surge como traço definidor da masculinidade, nas lutas ocorridas entre os empregados das quadrilhas. Valor universal e abstrato que pode ser atribuído aos atos mais loucos, a honra faz com que indivíduos não hesitem em matar o semelhante. Os motivos destas mortes definem o lugar da pessoa na produção do lucro. A honra, temeridade na aceitação de riscos letais, determina a hierarquia do sujeito no bando. Unida à capacidade de liderança e à inteligência, honra garante a liderança e parte do botim. A questão da honra foi muito estudada em termos históricos, sociológicos e antropológicos. Ela ajuda a explicar sistemas aparentemente “irracionais” de vida social, como a violenta nobreza européia, particularmente a germânica, com o uso do duelo . Norberto Elias, sobretudo no livro Os Alemães, expõe esta mazela que ajudou muito a criar a ética da qual brotou o nazismo germânico.
Zaluar indica a contribuição do Estado brasileiro para a violência. Com a república, “o novo governo queria marcar uma revolução moral no país por meio da separação rígida entre trabalho regular e penoso, pai de todas as virtudes, e o ócio, mãe de todos os vícios. Os republicanos jacobinos, que desejavam dar uma feição moralista e repressiva ao trabalho, foram os principais mentores desta política que resultou na repressão às formas de expressão cultural dos brasileiros negros e mulatos, assim como na detenção dos classificados como vadios e desordeiros. Nos cálculos de Boris Fausto, os números de detidos desta forma correspondiam a 86% de todas as prisões entre 1912 e 1916. Os que haviam cometido crimes, assim definidos no Código Penal, eram cerca de 14% deste todo. E o que é mais importante, enquanto os brasileiros (em geral negros e mulatos) eram tachados logo de vadios, os estrangeiros continuavam sendo considerados bons trabalhadores e iam presos por desordem”.
O Estado produz “bandidos”, os “vadios”, na maioria negros ou mulatos. Todos desonrados e declarados incapazes para a cidadania. Produzindo os atimoi ao proclamar normas contra a vadiagem, sem investir em educação e em políticas sociais conseqüentes, o poder canaliza para os chefes da droga mão de obra abundante e barata, a qual não tem a proteção legal. De modo oposto ao dos fazendeiros do século 19 os empresários da droga possuem incontáveis braços sem qualificações educacionais ou técnicas. As massas são exploradas num instante e moídas por matadores profissionais. A indução sistemática, por parte da mídia, produz o resto.
Se a honra do ser humano masculino é tomada como absoluto na sociedade, se ela permite a ética do assassinato de mulheres indefesas, ela também assegura o controle de bandidos sobre bandidos, constitue um código que se afasta de qualquer lei civilizada. E ademais, os assassinatos de homossexuais, inquietantes no Brasil, seguem a lógica de Aristóteles. É correto anular seres masculinos que traem o seu gênero e o ameaçam no papel feminino. O homossexual masculino, sobretudo o que se prostitui, como na Grécia, tomba na atimia, na pena de morte executada pelos supostos seres perfeitos. O que apavora os másculos auto-imaginados como normais, é que os traidores, os homoeróticos, guardam aspectos da masculinidade, não raro a coragem, a razão, a força física. Isto inquieta porque, desde Aristóteles, as mulheres verdadeiras devem ser governadas porque são fracas e alheias ao logos. Não apenas Aristóteles, mas Hegel, o grande inspirador das modernas ideologias totalitárias, o estalinismo e o fascismo, assume tal atitude que nega o direito aos não homens. Basta abrir as Lições sobre a Filosofia do Direito hegelianas: “As mulheres”, diz o autor, “podem ser cultivadas mas não foram feitas para as ciências mais nobres, nem para a filosofia, nem para certas formas artísticas, que exigem o universal. As mulheres podem ter penamentos, gosto, elegância, mas o Ideal não lhes é acessível. A diferença entre o homem e a mulher é semelhante à do animal face à planta. O animal corresponde mais ao temperamento masculino, a planta mais ao feminino. A mulher se desenvolve mais quietamente, pois se mantêm sobre o fundamento da unidade sensível indeterminada. Se as mulheres estão no ápice do governo, o Estado corre perigo, pois elas não agem segundo as exigências do universal, mas segundo inclinações e opiniões contingentes”. (Filosofia do Direito, § 166 e nota).
Para terminar e mostrando o quanto a atimia e a metafisica dos sexos enunciada por Aristóteles não correspondem ao real histórico, cito um dos maiores especialistas da prática militar na Grécia, Victor Davis Hanson. Ao comentar a coesão das forças militares ocidentais, nas quais o compromisso dos soldados entre sí é mais relevante para a sobrevivência dos exércitos do que as ordens burocráticas do quartel general e dos governos, Hanson escreve as seguintes palavras: “As ligações extraordinariamente fortes entre os hoplitas constituiam simplesmente as relações normais de quase todos os combatentes nas falanges da maioria das cidades gregas, Elas não pressupõem treinamento especializado excepcional ou esforço concentrado para formar um corpo de elite. (…) Em toda a Grécia é provado que as amizades homosexuais eram fator que contribuia para o moral de uma unidade. em Esparta, por exemplo, a separação dos sexos na jovem idade bem como as atitudes próprias dos outros gregos sobre o papel das mulheres resultavam em relações homossexuais circunscritas à vida dos acampamentos. Sem nenhuma dúvida, ligações tão fortes persistiam nos campos de batalhas e devem explicar o heroismo espartano, particularmente nas gloriosas derrotas que vão das Termópilas (480) a Leutres (371) onde homens preferem a morte à vergonha da fuga. Não temos exemplo mais extremo entre os Dórios, mas em Tebas: o batalhão sagrado composto de 150 duplas de homosexuais, coisa desconhecida mesmo em Esparta, combateu heroicamente durante 50 anos em batalhas terríveis da cidade. O batalhão foi exterminado até o último homem em Queronéia (338). Filipe da Macedônia ficou espantado com o espetáculo dos montes de cadáveres empilhados dois a dois”. (16)
Encerrando e à vista da atimia aplicada em acusados de prostituição (não raro sem provas, apenas para afastar concorrentes aos cargos públicos) vale citar Cohen, que segui em boa parte desta palestra, mas agora em outro trabalho. “Como vimos, de um lado os processos por ofensas públicas em Atenas eram informados por idéias sobre o crime, a punição e o domínio da lei, todos familiares aos leitores modernos em sua adesão a noções de julgamentos imparciais dispensados em nome da lei para corrigir e prevenir prejuízos à comunidade como um todo. De outro lado, a incorporação de elementos de auto-ajuda, procedimentos sumários, execução sem inquéritom julgamentos baseados no caráter, riqueza, importância política e privilégios públicos das partes, nos desafia a entender porque a compreensão do crime e castigo na Atenas democrática difere muito da nossa. E difere não porque seu sistema legal era corrupto, primitivo, ou incompetente, mas porque o entendimento ateniense dos conceitos de justiça, democracia, e domínio da lei difere, em importantes pontos, fundamentalmente dos nossos” (17)
Mudando os nomes, a fábula narra a história do Brasil e de sua justiça.
NOTAS
1)“Unconvicted or potential atimoi in Ancient Athens”, pp. 63-78. Além do artigo escrito por Wallace, toda a revista merece acurado exame e reflexão. Cf. Eva Cantarella (ed.), Dike. Rivista di storia del diritto Greco ed ellenistico, vol. I-IV. (Milano,Edizioni Universitarie di Lettere Economia Diritto, 1998-2001).
2)O texto encontra-se, com pequenas diferenças de tradução, em Arnaoutoglou, Ilias: Leis da Grécia Antiga (São Paulo, Ed. Odysseus, 2003), p. 76.
3) Cf. Douglas M. MacDowell: The Law in Classical Athens (Ithaca, Cornell University Press, 1978).
4) The Shape of Athenian Law (Oxford, University Press, 1993) pp. 107-116.
5) Cf. Christopher Carey: Trials from Classical Athens (London/New York, Routledge, 1997), pp. 8,187 e 202, com a citação de Demóstenes, que acusa Neaira.
6) Cf. Knibiehler, Y. e Fouquet, Cath. : La femme et les médecins (Paris, Hachette, 1983), p. 33.
7) Cf. Roberto Romano: “A mulher e a desrazão ocidental” in Lux in Tenebris (Campinas, Ed. Unicamp, 1987), pp. 126-127.
8) Cf. Richard Broxton Onians : The Origins of European Thought. about the Body, the mind, the soul, the world, time and fate. New interpretations of Greek, Roman and kindred evidence also of some basic Jewish and Christian beliefs. (Cambridge, University Press, 1954).
9) Michel Foucault: L´usage des plaisirs (Paris, Gallimard, 1984), pp. 47-62; Dover, Keneth : Greek Homosexuality (London, Duckworth, 1979) pp. 60,81,109.
10) Cf. David Cohen : Law, sexuality and society, the enforcement of morals in classical Athens (Cambridge, University Press, 1994), p. 171.
11) “Esta é a mais bela das constituições; como um agasalho de muitas cores, bordado com muitas cores, assim ela, aparecerá como a mais bela, como uma confusão colorida. É seguramente provável que, a semelhança das crianças e mulheres quando olham objetos multicoloridos, este regime será considerado por muitos como o mais belo de todos” [..kallistê hautê tôn politeiôn einai: hôsper himation poikilon pasin anthesi pepoikilmenon, houtô kai hautê pasin êthesin pepoikilmenê kallistê an phainoito. kai isôs men, ên d' egô, kai tautên, hôsper hoi paides te kai hai gunaikes ta poikila theômenoi, kallistên an polloi krineian]. República, VIII, 556 e. Segundo o Dicionário de G. Liddlel & R. Scott, “poikilos” significa “many-coloured, spotted, mottled, pied, dappled”.
12) David Cohen, op. cit. pp. 175 e ss.
13) Cf. Douglas L. Cairns: Aidós The Psychology and Ethics of Honour and Shame in Ancient Greek Literature (Clarendon Press, 1993).
14) São Paulo, Unesp, 1997.
15) Alba Zaluar: “A Autoridade, o Chefe e o Bandido: Dilemas e Saídas Educacionais”, Unicamp, mimeografado. Os trabalhos da antropóloga, que pesquisa o problema do tráfico nas favelas cariocas, não raro com risco de vida, são recomendáveis quando se trata de analisar a violência no Brasil.
16) Cf. The Western Way of War, infrantry battle in classical Greece, uso a tradução francêsa : Le modele occidental de la guerre (Paris, Les Belles Lettres, 1990), pp. 167-168.
17) “Crime, punishment and the rule of law in Classical Athens” in The Cambridge Companion to Ancient Greek Law. Michel Gagarin e David Cohen (Ed. (Cambridge, University Press2005), pp. 234-235.
quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007
Raison d´État em Maquiavel e Spinoza.
Apresento abaixo uma outra versão do texto sobre Razão de Estado. Como trata-se de um trabalho em andamento, cada uma das versões traz algo novo, somado a materiais antigos. No caso de Spinoza e Raison d´État, a questão é polêmica. Aceito, no entanto, as propostas de Christian Lazzeri, para quem se é verdade não se encontrar indicação explícita do problema nos textos do filósofo, naõ deixa de ser verdadeira a tese de que neles a questão integra o próprio nervo dos argumentos. Leia-se: "Spinoza et le problème de la raison d´État" in Zarka, Y.Charles: Raison et déraison d´État (PUF, Paris, 1994), página 369 e seguintes. Um debate aproximado a este encontra-se no site Foglio Spinoziano. Naquele lugar publiquei o artigo "A igualdade. Considerações críticas".
Razão de Estado em Maquiavel e Spinoza.
Roberto Romano/Unicamp
Um aspecto relevante de qualquer estudo político em nosso tempo encontra-se na razão de Estado. Toda a agenda do terrorismo estatal ou de grupos anônimos passa pelos temas tradicionais do segredo, da ação que se põe acima ou ao lado das leis comuns, dos alvos só definidos pelos governantes ou líderes políticos, e que permanecem longe da vista dos governados. Para bem definir a razão de Estado é de bom alvitre examinarmos a idéia oposta à ela, a noção democrática da transparência. Em O Caldeirão de Medéia (1) apresento um capítulo inteiro sobre aquela realidade. Mostro alí algumas dificuldades do regime político, democrático no qual os atos e pensamentos dos governantes seriam visíveis para os cidadãos. A idéia do século 18 sobre o poder transparente é uma esperança, sempre renovada e desmentida, dos movimentos que pretendem instaurar a justiça e o respeito aos indivíduos e grupos no mundo de hoje. À visibilidade do mando estatal, sempre foi oposta à razão de Estado, cujos defensores elogiam o segredo dos mecanismos políticos como salvaguarda de qualquer comunhão política, democrática ou aristocrática, monárquica ou tirânica.
O segredo é o mais importante componente do controle político. Elias Canetti, em Massa e Poder, apresenta considerações lúcidas sobre este ponto. Jean-Pierre Chrétien Gony, num estudo sobre o assunto também o discute em minúcia. (2) É um paradoxo que a política, por excelência o campo do que deve ser público, aberto aos sentidos de todos, tenha se encaminhado, sobretudo após o século 16 e 17, rumo ao secreto e ali se aninhe até os nossos dias. O segredo passa a ser algo que todo político deve usar e seu conhecimento vem da frequentação dos poderosos somada à leitura dos grandes teóricos dos Arcana imperii, sobretudo Tácito, Tibério, Maquiavel. Afiança Goni que o segredo une-se ao elogio da mentira e da duplicidade. A partir da caricatura de Maquiavel, o chamado “maquiavelismo” (3) tudo deixa de ser sagrado, inclusive a religião. Como diz um autor citado por Goni, “nada ajuda mais os negócios de um principe do que a crença de sua união com Deus”. (4) A verdade do Estado torna-se mentira para o cidadão, o que ajuda a separar de modo radical o soberano e os súditos. O segredo surge neste intervalo. Goni cita um psicanalista contemporâneo que analisa a própria etimologia do termo “segredo”, que viria do latim secernere, separar, dividir, afastar. (5) A ruptura na sociedade moderna, com a instauração do Estado, abre o campo para o exercicio separado do poder, longe dos olhos e demais sentidos comuns. A tese assumida a seguir por Goni, a da paranóia do governante, extraída de Theodor Adorno (tanto nas Minima Moralia quanto na Dialética das Luzes), merece um exame apurado. Ao discutir esse problema, também apresentei algumas reflexões que, penso, devem ser discutidas. (6) A idéia principal é a seguinte: tendo sido o poder, na era da razão de Estado, concentrado na pessoa do principe, as ameaças que o poder antigo resolvia, exorcizava, afastava, controlava, voltam-se contra o novo soberano. O segredo é o modo de proteger, simbolica ou realmente, o paranóico que assume o lugar central do mando. Todos tornam-se seus inimigos e são perigosos para o Estado. Este é um modo terrível de se entender o famoso L´État c´est moi, com a noção de lesa majestade. Tintas religiosas nessa experiência trazem a marca do Cristo, quando surge após a ressurreição: Noli me tangere. A pessoa real é intocável sobretudo quando se trata de revoltas e rebeliões, possíveis assassinatos dos dirigentes.
A moral do governante, a partir da ruptura trazida pelo segredo, não é uma anti-moral, mas uma outra moral. Esta distinção feita por Goni é relevante. A atuação do príncipe não pode abolir a moral comum. Esta é estratégica até mesmo para que opere a “outra moral”. Ocorre uma assimetria, ou uma oposição múltipla entre as duas morais. Mas nunca abolição da primeira, a do povo comum. A teoria do golpe de Estado é o grande exemplo. Nele, nem tudo é abolido na vida politica habitual, mas invertido. Um indivíduo ou grupo que pensava dar o golpe, o recebe, enquanto outro, que se julgava em segurança porque providenciara a insegurança de seus concorrentes, morre. Na frase de Naudé, “tudo no golpe de Estado se faz noite, no obscuro, entre brumas e trevas”. Goni aponta um lado especialmente grave nessas frases: no golpe, como nas missas satânicas, não é abolida a canônica religiosa ortodoxa. Ela é invertida. Entre a moral comum e a dos poderosos há uma inversão diabólica, mas a primeira não some. A distância entre ambas, no entanto, é incomensurável. E a distância marca a emergência do segredo. O governante deve saber e ouvir tudo. O governado deve ignorar quase tudo na vida estatal.
Num texto atribuido ao cardeal Mazarino, mas de autoria incerta, o grande assunto é o do segredo. Refiro-me ao livro Breviarium Politicorum secundum Rubricas Mazarinicas, publicado em 1684. (7) Alí, o culto do segredo atinge uma altura que tende a se confirmar, ampliada mais fortemente, nos tempos modernos. Nas observações de Macchia, apresentador italiano do texto : “Se a razão de Estado significa razão de domínio, aquele termo pode também aludir (...) a uma ´profunda, intima e secreta lei ou privilégio dado à contemplação da segurança naquela senhoria, à qual Tacito deu o nome de arcana imperii”.
O segredo é a alma da razão de Estado. O estadista gostaria de ser o único a dele gozar. Se pode ler porque foi alfabetizado, o mais cômodo para o poderoso seria que todos os cidadãos fossem analfabetos. O ideal do rei erudito é simultâneo à idéia de razão de Estado. Vigora antes, em boa parcela dos governantes da Idade Média a noção de que as letra são incompatíveis com o mando secular . No século 12, Salisbury defende a ilustração dos príncipes, mas o rei romano Conrado 3 lhe responde: “rex litteratus est quasi asinus coronatus”. Mesmo assim, pode-se ler, numa obra prima da política medieval, a tese que só floresce após os tratados sobre o “espelho dos príncipes” : Rex illiteratus est quasi asinus coronatus (Policraticus, Livro IV, Cap. VI). A passagem recolhida por E. Curtius (8) indica a mutação estratégica na imagem do príncipe, ocorrida com a Renascença. A partir daquele período, toda uma arte de redigir e de ler documentos secretos, a qual utiliza desde símbolos até a linguagem cifrada em termos semiológicos, conduz a afastar dos olhos cidadãos o que se passa no intimo dos palácios governamentais. Do mesmo modo, também se desenvolveu a técnica que permite decifrar documentos secretos, redigidos pelos cidadãos que podem se insurgir contra os poderosos ou de outros dirigentes de Estado, amigos ou inimigos. Hobbes utiliza uma imagem eloquente para descrever esta situação: “os espiões são como os raios de luz para a alma humana, no discernimento dos objetos visíveis”. Eles formam delicadas redes que unem pele e olhos e permitem aos reis inimigos dirigir-se rápida e certeiramente para seus limites extremos, na tarefa que consiste em devorar os assaltantes da teia republicana. Reis aranha têm o direito e a obrigação de digerir inimigos externos ou internos. (9)
Nos artifícios utilizados para decifrar ou esconder os intentos governamentais, recebem destaque os trabalhos encomendados pelo Imperador Maximiliano de Absburgo a de João de Trittenheim, sobretudo o livro Polygraphia, cum clave seu enunclatorio (1518). Nele, se define um método e exemplos de escrita secreta para uso de reis e ministros. Interessante é a técnica de revelar escondendo ou de esconder revelando. A escrita secreta tem uma face que pode ser entendida por qualquer leitor. Mas apenas quem possui a chave de leitura pode atingir o seu enunciado real. A técnica se parece muito às utilizadas em pintura, sobretudo na anamorfose, algo muito importante a partir do século 16. O político, no entender dos estadistas, durante os séculos 16 e 17, deve agir sempre nos limites do que pode ser visto e do que pode ser entendido. Mesmo autores que escreveram contra a tirania na época, como Torquato Aceto, operaram nas fronteiras do visível e do invisível. Se estamos num reino persegue as pessoas livres, estas devem saber simular e dissimular muito bem seus propósitos aos juízes e policiais mandados pelo governante, de modo a não serem vítimas do poder. Esta é a Dissimulazione onesta, segundo Torquato Aceto.
Francis Bacon, no ensaio Of Simulation and Dissimulation, mostra que a segunda é uma forma política ou de sabedoria. Cabe ao coração forte, ou à mente forte, “conhecer quando deve ser dita a verdade, e fazê-lo. Pois se um homem tem esta penetração de juízo, através do qual ele pode discernir quais coisas devem permanecer abertas, e quais secretas, e o que deve ser mostrado em meia luz, e para quem e quando (estas são, de fato, a arte do Estado, e as artes da vida, como Tacito as chama), para ele, um hábito de dissimulação é uma pobreza. Existem três gráus neste ato de esconder e velar o ser de um homem. O primeiro é a reserva e o segredo. Quando uma pessoa mantem sem observação ou sem cuidados o que ele é. O segundo, a dissimulação, no negativo, quando ela deixa surgir sinais e argumentos, que indicam que ela não é o que é. O terceiro, simulação no afirmativo, quando ela, industriosamente e de modo expresso, finge ser o que ela não é. Para o primeiro caso, temos o segredo. Esta é a virtude do confessor. E com certeza, o segredo tem muitas confissões. Para quem se abre, dizemos que é um falador ou um tagarela? Mas se uma pessoa é pensada como secreta, ela suscita a descoberta. Assim, mistérios são devidos ao segredo. Mas os gárrulos que falam sobre o que conhecem, falarão sobre o que não conhecem. O segundo é dissimulação. Esta segue do segredo como por necessidade. Quem deve ser secreto, deve dissimular em algum gráu. Porque os homens são tão astutos, e não suportam que um homem permananeça sem decidir entre eles. Assim, nenhum homem pode permanecer secreto, sem dissimular pelo menos um pouco. Para o terceiro, a simulação e profissão falsa, julgo-a mais culposa e menos política, exceto em grandes e raras matérias. Um costume geral de simulação sendo vício, faz com que a simulação seja ampliada para outras coisas”. E continua Bacon: “As grandes vantagens da simulação e da dissimulação são três. Primeiro, fazer com que a oposição adormeça possibilitando surpreendê-la. Pois onde as intenções de um homem são publicadas ocorre um barulho para convocar as pessoas contra ele. A segunda é proporcionar a determinada pessoa uma tranqüila privacidade no retiro de si mesma. Pois se alguém dá uma declaração, deve ir adiante ou comete falta. A terceira vantagem é descobrir melhor a mente alheia. Pois quem abre a si mesmo dificilmente verá aberto para si o campo do adversário. Existem também três desvantagens. Primeira: a simulação e a dissimulação trazem consigo uma exibição de medo, o que prejudica todos os negócios. Segunda: ela confunde pessoas que poderiam, de outro modo, cooperar com um indivíduo, e faz com que ele fique solitário, caminhe sozinho rumo aos seus fins. O terceiro e maior inconveniente é retirar da pessoa o principal instrumento de ação, a confiança e a fé”.
A última frase de Bacon é vital quando se trata da governabilidade em regime não tirânico. Sem a fé pública, a razão de Estado torna-se pura propaganda ou força. Se as individualidades livres precisam dissimular nos governos tirânicos, estes últimos precisam ainda mais da dissimulação para apanhar seus inimigos ocultos. Assim, comenta Macchia, o político que serve à razão de Estado deve possuir o hábito de viver com o segredo, com o “steganós, aquilo que é escondido, oculto”, chegando à esteganografia. Trata-se de toda uma concepção da própria natureza como grande guardiã de coisas ocultas que devem ser arrancadas com arte e técnica. Sendo a natureza uma astuta fonte de segredos, apenas chegando até eles poder-se-ia atingir a natureza humana, que a integra.
O mesmo Francis Bacon citado acima deu um exemplo fantástico da arte de arrancar sigilosas estruturas naturais. É preciso, dizia ele, “torturar a natureza, para que ela conte os seus segredos”. Não é preciso dizer muito mais sobre esta tecnologia do poder que vai do gabinete do principe ao laboratório do cientista e passa pelas mãos do policial. É algo que pode nos inquietar sabermos que a idéia de verdade, que define boa parte do nosso ideário filosófico e jurídico, tem origem na palavra basanos, pedra de toque para atingir o veraz na tortura. Os antigos gregos usavam o termo para designar a pedra que servia para definir a pureza do ouro. Depois seu uso foi extendido para denotar um teste ou triagem, determinar se alguem era fidedigno. A tortura assim designada serve para extrair tudo o que é escondido, oculto. A tortura traz à luz os veios secretos da natureza. Num livro importante sobre todo esse aspecto, Page du Bois escreve coisas lancinantes sobre este lado pouco estudado da filosofia ocidental. (10)
Tanto o cientista quanto o filósofo usam técnicas de desocultamento que eles partilham com os governantes. Estes últimos arrancam de seus inimigos internos ou externos, através da astúcia, das técnicas como a esteganografia ou de outros refinamentos e violências como a tortura, a “verdade”, meio eficaz de mando. Uma técnica muito usada, desde o século 16, foi a leitura das expressões dos rostos. Em um estudo sobre Descartes intitulado “A razão sonhadora”, analiso este prisma. (11) Antoine Mizauld, em 1565, escreveu um livro para ajudar as pessoas a “julgar incontinenti o natural de cada um apenas pela inspeção da face e dos seus lineamentos”. Como indica Macchia, Mazzarino (ou o pseudo-Mazzarino) ensinava, com base nesta técnica, a distinguir o indivíduo astucioso, pois este possuiria uma saliência na fronte, na altura pouco acima do nariz. O mentiroso teria, ao rir, duas saliências nas bochechas. Assim, o poderoso segue a tentativa de descobrir os intentos secretos de seus inimigos ou liderados nos menores gestos, nas mais tranqüílas situações. Não apenas os olhos eram movidos nesta descoberta: todos os sentidos entravam na economia do desvelamento. O padre jesuita Athanasius Kircher ideou, para as paredes dos palácios, orelhas artificiais que levariam até o gabinete do principe as conversas de súditos, embaixadores, etc. Trata-se de uma economia global do corpo a serviço da razão secreta do Estado. A situação perfeita, para os governantes, seria a de plena transparência dos inimigos e dirigidos, e a sua plena obscuridade própria.
O cuidado com o segredo atingiu o ápice no século 17. Um exemplo pode ilustrar esta situação, quando a burguesia francêsa pediu prestações de contas aos ministros das finanças reais, no instante em que este últimos solicitavam mais recursos para as guerras. A declaração do voto do clero é sintomática. Segundo os sacerdotes, as finanças seriam como o Santissimo Sacramento, escondido no altar. Apenas os padres e os iniciados poderiam deitar os olhos sobre elas. Caso oposto, sacrilegio e perigo rondariam o Estado. A temática do segredo, pois, define todo um aspecto da razão de Estado, incluindo a religião econômica, que hoje é a mais católica e abarca o mundo inteiro.
Afinal, o que é razão de Estado? Um analista diz que ela se assemelha ao jogo viciado. O governante que apela para a razão de Estado para validar atos e tratados opostos às leis comuns do país, age como o jogador desonesto ou mau perdedor : quando as regras do jogo não lhe são favoráveis, ele usa a trapaça do segredo e quebra todas a sequência da partida. Deste modo, ele arranca dos cidadãos a confiança, a fé pública, base mesma da instituição do Estado. (12) Esta metáfora do jogo e das regras é uma das mais antigas da filosofia política. No exato século em que a razão de Estado se firmou, um dos filósofos mais agudos da modernidade, Blaise Pascal, construiu toda uma moral, uma política, uma teologia com aquela base. A vida humana é jogo. E as regras supremas são de acesso dificil aos homens. Só Deus joga com absoluta certeza. E ganha sempre. No caso humano, tudo é incerto, sobretudo no campo das leis e da política. Esta antropologia, que hoje volta a ser um assunto de interesse filosófico e político, é nuclear na história do pensamento moderno. (13) Nesta vertente, é importante a idéia do cálculo como elemento básico da política, plataforma da razão de Estado. Um governante que sabe calcular as suas oportunidades e as de seus inimigos, tem condições de, pelo menos, desrespeitar sem muitos prejuízos as regras “normais” do jogo diplomático, bélico, ou de política interna, como por exemplo nas escolhas para os dirigentes, nas eleições.
A razão de Estado, assevera Lazzeri, não se confunde de imediato com a tirania. Mesmo dirigentes de Estados democráticos podem seguir as suas sendas, ou serem tentados a segui-las. Constituições liberais modernas deixam brechas para o seu uso, em capítulos sobre a segurança pública, etc. Lazzeri vai mais fundo e indica, sem análise é certo, que a própria Declaração dos Direitos do Homem está “cheia de concessões por onde deslizam sem dificuldades desejos despóticos” da razão de Estado.
Outro aspecto importante: a razão de Estado, além dos conhecimentos e técnicas mais rudimentares, como as que indiquei acima, incorporou ao seu procedimento o saber quantitativo e qualitativo sobre a sociedade moderna. O programa desta atitude encontra-se no século 16, sobretudo nas obras de Francis Bacon. É dele a noção de que knowledge and power meet in one, banalizada no Brasil como “saber é poder”. Não se trata disto. O Estado, pensava Bacon, precisa instituir e organizar saberes sobre a natureza e os homens, de modo a agir com eficácia na sua expansão e domínio. Um Estado sem saberes é frágil, um Estado com saberes e com força física é poderoso. Esta receita, como temos consciência, serviu muito à Inglaterra, em toda a sua expansão colonial pelo mundo, das Américas à Asia.
Como indica Lazzeri, a razão de Estado une-se à idéia de que “nada presidirá mais eficazmente os destinos de um Estado do que o conhecimento de suas qualidades específicas: seu povo, sua geografia, seu tempo, seus recursos, sua organização econômica e o modo de aprimorá-la. O governo da razão de Estado se apoiará num saber pouco a pouco instituido numa teoria moderna do político e finalmente conduzido ao conteúdo firme de uma ciência da administração e de seus efeitos sobre a sociedade da qual o mercantilismo, o cameralismo, a estatística e as teorias da polícia constituem o núcleo duro. A razão de Estado remete para uma outra forma, então, de racionalidade governamental e de técnica de governo”.O conhecimento técnico e político ajuda a definir o “olhar soberano”, com o qual os dirigentes inspecionam o corpo social, para manter o mando.
Haveria, pois, uma diferença essencial entre a razão do governante e a dos governados. O primeiro pode enxergar, graças aos informes e saberes de todas as ordens, trazidos pela máquina do poder, realidades inacessíveis aos segundos. É contra esta doutrina que se levantam todas as perspectivas democráticas modernas, a começar por Spinoza. Os pensadores democratas, como Diderot, Condorcet e outros, propõem que os cidadãos sejam educados ao máximo, e possam acompanhar mesmo os cálculos economicos e políticos do Estado. Ao mesmo tempo, pregam a mais ampla liberdade de imprensa e de debate, para que as informações não fiquem restritas ao seleto número dos dirigentes. Este aspecto também foi tratado por mim no primeiro texto de O Caldeirão de Medéia, de mesmo nome, que resulta de um seminário feito na Câmara dos Deputados, em Brasilia, na sua Comissão de Ciência e de Tecnologia.
A idéia de razão de Estado é vulgarmente atribuída a Maquiavel, mas é preciso moderar muito esta enunciação. O trecho mais célebre, neste sentido, é aquele onde o escritor florentino afirma ser “necessário a um príncipe, se deseja se conservar, aprender a não poder ser bom, e usar dele segundo a necessidade (secondo la necessita)”. (Principe, capítulo 15). E mais : “Estando o principe necessitado de usar a besta, deve escolher dentre elas a reposa e o leão, porque o leão não se defende dos laços e a raposa não se defende dos lobos. Necessita, pois, o principe, ser raposa para conhecer os laços e leão para espantar os lobos. Os que se apoiam apenas no leão não entendem (a arte de governar). Não pode, nem deve, portanto, um senhor prudente observar a fé jurada quando tal observância se torna contrária e passou a ocasião que obrigou a fazer a promessa. Se os homens fossem bons, este preceito não o seria; mas como eles são perversos e não guardaram sua fé jurada contigo, não tens porque guardá-la em relação a eles. Nunca faltam a um principe ocasiões legítimas de coonestar a inobservância”. E finalmente, ainda no Principe: “para manter o Estado o principe, sobretudo se for um principe novo, precisará operar contra a fé, contra a caridade, contra a humanidade, contra a religião. E se necessita que tenha um animo disposto a tornar-se segundo mandem os ventos e mudanças da fortuna e, não separar-se do bem se puder faze-lo, mas saber entrar no mal se é necessário”.
Estas sentenças ressoam nos Discursos sobre a primeira decada de Tito Livio: “quando se delibera acerca da saúde da pátria, não deve-se deixar que prevaleçam considerações de justiça ou injustiça, piedade ou crueldade, honra ou ignominia mas, deixando de lado qualquer consideração outra, seguir por inteiro o partido que lhe salve a vida e lhe conserve a liberdade”. A corrupção dos homens é fato constante e universal, mesmo nos que foram educados para o bem. Há uma persistência das paixões : “em todas as cidades e em todos os povos há e sempre houve sempre os mesmos desejos e humores, de tal modo que é fácil para quem examina com diligência as coisas passadas, prever em toda república o futuro e aplicar os remédios empregados pelos antigos ou, caso não encontre nenhum empregado por eles, imaginar outros novos segundo o parecido dos acontecimentos”. (Discorsi, livro I).
A desconfiança de Maquiavel na ética do povo tem fundamentos sólidos. Ética, como sabemos, é o conjunto de atitudes, hábitos, que se tornaram costumeiros e deixaram até mesmo de ser conscientes, sendo assumidos como “naturais” e inquestionáveis. Muito do que se disse no século 17 e 18, e até mesmo em nossos dias, sobre o “preconceito”, tem esta base. O povo adere às práticas e valores antigos. Assim, escreve Maquiavel, para mudar hábitos arraigados e sólidos é preciso dissimular, fngir que a sua essência permanece quando medidas para a sua mudança são implementadas pelos governantes. Se o principe fosse contra os hábitos populares, dificilmente ele se manteria. Mas se pouco a pouco ele muda as formas e as instituições, então consegue mudar a ética do povo. Assim, diz Maquiavel: “quem deseja reformar o estado de uma cidade e quer ser aceito e manter a satisfação de todo mundo, necessita conservar pelo menos a sombra dos modos antigos, de tal jeito que possa parecer ao povo que não houve mudança nas ordens, embora na realidade as novas sejam inteiramente distintas das velhas. Porque a grande maioria dos homens se contenta com as aparências como se fossem realidades e amiúde se deixa influenciar mais pelas coisas que parecem do que por aquelas que são”. (Discorsi, livro I).
Francis Bacon, para citá-lo novamente, mostra-se atento aos conselhos de Maquiavel. Nos Ensaios, o item Of Innovations afirma : “Seguramente, todo remédio é uma inovação; e quem não aplica novos remédios, deve esperar novos males. Pois o tempo é o maior inovador, e se o tempo certamente altera todas as coisas para pior, a sabedoria e o conselho não as alteram para melhor, qual será o fim? É verdade, o que é posto pelo costume, embora não seja bom, pelo menos se mantem (...) a inovação é coisa turbulenta e quem reverencia muito o passado receia as coisas novas. As inovações dos homens deveriam seguir o próprio tempo, o qual inova muito, mas mansamente, por gráus difíceis de serem percebidos. (...) É também muito bom não experimentar nos Estados, exceto quando a necessidade for urgente, ou a utilidade evidente. E deve-se estar atento, de que é reforma que traz a mudança, e não o desejo de mudança, que pretende tudo reformar. Finalmente, a novidade, embora não deva ser rejeitada, deve ser suspeita. Como diz a Escritura, que contemplemos a antiga estrada, e depois olhemos ao nosso redor, e descobriremos o caminho certo para nele seguir”. O povo deseja novidades mas rejeita as que o coloquem na incerteza de saber quem manda. De um modo ou de outro, a massa tem opiniões que não devem servir como paradigma do governante.
O problema da ética enquanto costume é dos mais graves dentre os que surgem no âmbito político. Não se muda uma forma de vida, por mais desastrosa que ela seja, quando é antiga e aceita como “natural”, de um só golpe. Um povo acostumado a determinadas leis, ou a certas maneiras de comando nas instituições de Estado ou religiosas, encara com desconfiança as inovações, dado que se habituou às fórmulas arcaicas que integram, por assim dizer, a sua alma. Se este é um perigo eminente na recepção das ciências, das técnicas e da filosofia, se isto faz com que renovadores artísticos sejam mal vistos nos inícios de suas carreiras ou de suas propostas, o hábito pode derrubar regimes com inspiração dmeocrática. Este problema pode explicar o paradoxo de Rousseau, o qual dizia ser preciso forçar os homens à vida livre. Examinemos esse ponto num avisado analista dos costumes, Michel de Montaigne. Trata-se do capítulo 22, Livro I dos Ensaios. “Sobre o costume e de não mudar facilmente uma lei recebida”.
Montaigne, com o estilo saboroso habitual, inicia o capítulo com um exemplo eloquente. “O que seria o costume?” Alguém, diz o filósofo, o definiu muito bem com o símile de uma senhora camponêsa que aprendeu a acariciar um bezerrinho entre seus braços. Ela ficou acostumada a fazer isto, mesmo quando o bicho se transformou num grande boi. Esta é uma verdade, fala Montaigne, porque o costume é uma violenta e traiçoeira professora. O costume se abriga em nós pouco a pouco, escondido, e nos impõe sua autoridade. No início ele pode ser suave e doce, e isto nos tranquiliza. Mas no fim mostra um rosto tirânico e furioso, contra o qual sequer temos a liberdade de erguer os olhos. E vemos, assustados, que ele destrói todas as regras da natureza. Vem a seguir uma série de costumes que se tornaram comuns, por mais atrozes que eles tenham sido no início. Antes, entretanto, Montaigne cita Platão e os médicos. Nesta matéria, muitos deixam a arte médica, ou política, em proveito da autoridade costumeira, ética.
Assim, entregues ao costumes e à opinião, muitos cometem desatinos, por hábito adquirido. Um rei que acostumou seu estômago a ingerir veneno, uma rapariga cujo hábito é comer aranhas, alguns povos que ingeriam gafanhotos, formigas, morcêgos, lagartos, sapos. Para certos povos, as carnes européias eram mortais e venenosas. Qual a causa da citação desses costumes estranhos? É porque, afiança Montaigne, o costume torna os nossos sentidos abestalhados (hebetés). O filósofo refere-se aqui ao conceito de sensibilidade mental e corporal trazido dos gregos. Uma pessoa marcada pela ausência de sensibilidade, no termo grego, é anaisthêtos. Quanto mais alguém perde a sensibilidade para os matizes do real, mais está acostumado a ver em preto e branco, menos percebe o mundo como ele é ou pode ser. Mais se aferra ao costume e mais é dele vítima, antes de ser algoz dos outros. O costume faz com que os ouvidos, os olhos, não percebam a natureza e os homens na sua medida própria, mas segundo a régua dos preconceitos. Em certas situações, o costume muda até a percepção. Um soldado se acostuma ao barulho dos canhões enquanto para as demais pessoas ele é insuportável. Um sino que bate todo dia integra a rotina, apesar do seu incômodo para os não acostumados. Platão censurou um menino, porque ele jogava com nozes. Resposta da criança: “tu me censuras por pouca coisa”. Réplica de Platão: “o costume não é pouca coisa” (anedota narrada por Diógenes Laércio).
Os piores costumes, os que definem as piores éticas, acrescenta Montaigne, nascem no berço. Aqui, Montaigne apenas amplia o que leu em Platão. Nosso primeiro governo está nas mãos das babás. Estas são complacentes com nossos mais agressivos instintos. Mas não apenas elas, pais e mães facilitam péssimos costumes, deixando que eles entrem em nossa alma e corpo. A mãe que assiste, tranquila ou maravilhada, o pimpolho torcer o pescoço de um frango, ferir um cão ou gato, o pai que é tolo o bastante por tomar como futura prova de virilidade quando enxerga seu filho insultar um transeunte ou empregado que não podem se defender, ou quando nota que ele engana com trapaças os seus companheiros, todos esses comportamentos engendram tiranos. Aqueles pais regam as sementes da crueldade e da traição. Com o crescimento das sementes malditas, vem a força dos costumes adquiridos. Pior é quando os pais desculpam violências dizendo que elas são feitas por crianças frágeis e inocentes. É preciso, diz Montaigne ainda seguindo Platão, ensinar as crianças a odiar os vícios de sua própria contextura, ensinar o quanto eles são disformes, para que elas deles fujam, não só do exterior, mas do fundo do coração. Platão dizia que ensinar era tingir almas com a tintura das leis. É preciso que as leis esteja marcadas de modo indelével nas almas. Caso contrário, o respeito da lei será apenas exterior. A lei deve ser gravada no coração dos homens.
A política que se baseia apenas nos costumes é insana. Nenhuma fantasia terrível, arrisca dizer Montaigne, deixa de encontrar exemplos anteriores que a torne possível. Os costumes são relativos e diferem de povo a povo. Mas eles imperam em todos eles. Mesmo as leis da consciência, que dizemos nascer da natureza, brotam dos costumes. Cada um venera internamente as opiniões e mores aprovados e recebidos ao seu redor, e deles não se separa sem remorsos. O principal efeito do costume é nos dominar de tal modo, que ele entra em nós e raciocina em nós as suas ordens. Alimentamos esse domínio desde a infância, quando foram infundidas as suas sementes em nós, por nossos pais. E pensamos tudo aquilo que está fora dos costumes, é estranho à razão. Deus sabe, afiança Montaigne, o quanto isto é desarrazoadamente freqüente. Raros costumes trazem o bem coletivo. É verdade que povos nutridos de liberdade e autonomia, consideram toda outra forma de governo contrária à natureza. Mas os que se acostumaram à monarquia fazem o mesmo. Montaigne chama a atenção para o problema da opinião pública. E cita o texto platônico das Leis. Neste, o grande inimigo da opinião pensa, num paradoxo, que ela pode ser usada para impedir atos contrários à natureza, como o parricidio, a homosexualidade, etc. Yvon Brès, em trabalho sobre a psicologia de Platão, indica bem o quanto o filósofo ateniense foi realista no uso da retórica para persuadir massas. Desde o vinho, recomendado como preparador da persuasão, até o teatro, tudo o que pudesse causar horror ao crime deveria ser utilizado pelos governantes para determinar o rumo da consciência pública. No livro 8 (838 c) das Leis, Platão discute o incesto . No comentário de Yvon Brès: “se cada homem pudesse experimentar diante de todo menino ou menina o mesmo sentimento de retenção que tem diante de um filho, um irmão, uma filha ou irmã, a lei moral se beneficiaria com a força desta `lei não escrita´ que se opõe ao incesto. Ora esta força vem de uma espécie de unanimidade: desde nossa idade mais tenra, vemos a comédia e a tragédia nos representar o comportamento de Tieste, de Édipo e de Macareu como abominável; nós os vemos dando-se a morte quando descobrem e grandeza de sua falta . E Megilos, [personagem das Leis] aprova: sim, a opinião pública tem verdadeiramente uma força extraordinária”. (14)
Explicita Montaigne, ao discutir o mesmo problema a eficácia da a receita platônica, segundo a qual as mais belas filhas não atrairiam o amor dos pais, nem os irmãos mais excelentes em beleza, o amor das irmãs. As fábulas mesmas de Tieste, Edipo, Macareu, infundiriam, com o prazer de seu canto, esta crença útil no macio cérebro das crianças. Assim, mudanças dos costumes podem ser saudáveis, desde que introduzidas pelos magistrados, com o devido controle. Esta lição platônica é extraída, pois, pelo cético Montaigne. A religião cristã, diz ele, tem todas as marcas de extrema utilidade e justiça. Mas nenhuma delas é mais aparente, do que a exata recomendação da obediência ao magistrado e a manutenção da ordem pública. Deus não destruiu, para nos salvar, a ordem política. Assim, as inovações devem ser feitas de modo controlado para evitar as opiniões antigas e apaixonadas das massas indiscretas.
Toda essa espécie de platonismo que define boa parte do pensamento de Maquiavel e de seus leitores, como Bacon, ou contemporâneos como Montaigne, é agudo na desconfiança da doxa que impera entre o povo. O que não o impede o Florentino, leitor de muitos outros antigos além de Platão, de romper o ideal de um Estado pequeno, com número restrito de cidadãos e cujo espaço é restrito. Assim, embora deseje um Estado sem rupturas internas, ele não aceita a tese platônica da cidade com apenas 5040 membros, ou a cidade aristotélica na qual todos os cidadãos se conhecem. Ele escreve: “tendo organizado uma república capaz de manter-se sem ampliação, se a necessidade a conduz a ampliar-se, veremos que seus fundamentos cedem e a república se arruina a seguir. E, por outra parte, se o céu a favorecesse de tal modo que não tivesse ela de guerrear, nasceria disto um ócio que a tornaria efeminada ou dividida, coisas que, juntas ou separadamente, causariam sua ruina. Como não se pode, pois, encontrar um justo meio nisto, nem equilibrá-lo, é conveniente escolher, ao organizar uma república, o caminho mais honroso e ordená-la de tal modo que, mesmo que a necessidade a obrigue a ampliar-se, possa ser capaz de se conservar ocupada”. (Discorsi) (15)
A razão de Estado, nessa leitura, baseia-se no conhecimento das paixões humanas, por parte do principe, e no imperativo de não seguir a cabeça do povo, preso às formas éticas injustificadas e à opinião. Novamente, há bons elementos platônicos no diagnóstico feito por ele sobre a saúde da república e sobre o papel que nela desempenha o povo. Ainda nos Discorsi podemos ler: “O quão erradas são muitas vezes as opiniões dos homens é coisa que viram e verão todos os que testemunharam as suas deliberações, as quais, a menos que estejam dirigidas por homens excelentes, são muitas vezes contrárias a toda verdade. Mas como nas repúblicas corrompidas, sobretudo em períodos de paz e tranqüilidade, os homens superiores são aborrecidos, seja por inveja ou por ambição dos outros, segue-se daí que se dá preferência ao que o erro comum julga como bom ou ao que sugerem homens que são mais desejosos de conseguir o favor geral do que o bem comum”.
Como dominar a multidão indiscreta e crédula? O remédio situa-se no mesmo plano da doença, no principio homeopático do semelhante para curar o semelhante. Se a massa só acredita no que parece e não busca o que é, para dominá-la é preciso encontrar “um homem grave e digno e com autoridade, que se oponha a ela....concluo, pois, que não existe meio mais seguro de acalmar a multidão excitada do que a presença de algum homem de aparência imponente e que será respeitado”. (Discorsi). Os liderados obedecem porque enxergam seus iguais obedecendo. A imitação, a mimesis descrita por Platão e pelos antigos, é vital na ordem do governo. Como a massa é sempre semelhante aos seus governantes, adianta Maquiavel, “Lorenzo de Medicis confirma esta idéia dizendo: ´o que faz o senhor, o fazem os muitos, pois todos os olhos estão fixados no que o senhor faz ”. O senhor faz uma coisa diante dos liderados, mas precisa, tem necessidade, de fazer outra coisa longe de seus olhos. Aí estaria a base da razão de Estado.
A palavra mais utilizada por Maquiavel é “necessidade”. Nela unem-se a perversão humana, a tolice da massa, as variações da fortuna e a urgência dos momentos particulares. Tudo isso para manter o Estado. Esta doutrina, afiança Lazzeri, foi combatida no século mesmo de Maquiavel por pensadores que defendiam os padrões morais antigos. Seria este o caso de Innocent Gentillet (1576). O texto de Gentillet, hoje publicado como Anti-Maquiavel, tem como título em 1576 o seguinte: Discurso sobre os meios de bem governar e manter em boa paz um reino ou outro principado. Dividido em tres partes, a saber, do Conselho, da Religião, e da Polícia que deve manter um principe. Contra Nicolau Maquiavel, Florentino. (16) Gentillet coloca a arte de bem governar contra a ragion di stato. Esta expressão, no entanto, não foi cunhada por Maquiavel, ela vem de Guicciardini que a emprega como ragione degli Stati. Na indicação de Maurizio Viroli : “nos inícios da segunda década do século, o conflito entre razão legal e moral e o interesse do Estado, começou a ser exposto não como uma divergência entre razão e prática do Estado, mas como um conflito entre razão moral e legal e outra ´razão, a ´razão de Estado´. O conceito de ´razão de Estado aparece pela primeira vez em Francesco Guicciardini, no Dialogo de reggimento di Firenze composto entre 1521 e 1524. Citando o exemplo dos cidadãos de Genova que não libertaram os prisioneiros feitos na batalha de Meloria em 1284, assim causando irreparável dano nos seus inimigos de Pisa, Bernardo del Nero argumenta que os de Genova fizeram uma crueldade que a consciência moral nunca poderia aprovar. No entanto, desde que todos os Estados, —com a única exceção das repúblicas no interior de seu próprio território— estão erguidas em nada mais do que a violência, para preservá-las é necessário apelar para a violência sempre e sempre. E Bernardo del Nero conclui o seguinte : 'quando falo em assassinato ou em manter os de Pisa na prisão, eu talvez não fale como cristão, falo de acordo com a razão e a prática dos Estados [secondo la ragione e l'uso degli stati]'. Ele fala, portanto, e trata-se de uma nota importante, que ninguém que desconheça isto é desculpável perante Deus porque —como dizem os frades— mostra ‘ígnorância crassa’. Quem reconhece o ponto não pode dizer que é razoável ouvir a consciência pessoal em um caso e desprezá-la em outro. (…) É dificil viver no mundo sem ofender a Deus. É preciso falar realisticamente sobre as coisas, tal como elas são de fato”. (17)
As críticas a Maquiavel são ampliadas até que em 1589 ele é atacado pelo jesuita Giovanni Botero (18) secretário de Roberto Bellarmino, o idealizador da soberania indireta do poder religioso contra o Estado, muito criticado por Hobbes, Filmer e outros teóricos do pensamento absolutista sobre o Estado.
Assim, passam a existir duas formas de razão de Estado: a atribuída, com fundamentos ou não, a Maquiavel e a que se define nos programas dos jesuítas, eles mesmos acusados de maquiavelismo. É fascinantes acompanhar, dos inícios da Companhia de Jesus aos nossos dias, a suspeita que ela desperta em católicos, protestantes, liberais, anarquistas, comunistas. Ainda nos séculos 19 e 20, os anarquistas enxergavam nas idéias do marxismo sobre o partido uma imitação da Companhia de Jesus, inclusive, segundo Alain Besançon, nas “tenebrosas manobras” jesuíticas praticadas pelos que formariam mais tarde o Partido bolchevique. Bakunine acusou Netchaev, antes disto, de organizar a máquina revolucionária segundo “os sistema de Loyola e de Maquiavel”. Leão Trostky, em 1938, num estudo importante intitulado “A nossa moral e a deles”, compara o partido bolchevique e a Companhia, ambos, segundo o revolucionário, marcados pela degenerescência burocrática. (19)
Existe uma tese, a dominante, sobre as bases da doutrina antimaquiavélica, sobretudo a católica. Ela seria uma tentativa de conservar, custasse o que custasse, a base política feudal, predominante na Idade Média. Creio que Lazzeri tem razão quando indica que este juízo deve ser corrigido. Autor eu mesmo de um estudo sobre a Igreja Católica (20) e analista do pensamento conservador (21) percebi que a conservação proposta pelo catolicismo não se encontra sobretudo nas formas de Estado, mas na manutenção do religioso como poder. Assim, o compromisso da Igreja não se define, em termos absolutos, com esta ou aquela determinação social, política, jurídica. Os doutrinadores do seu mando colocam-se sempre no horizonte da prudente mudança segundo os tempos, mesmo que alguns deles se aferrem a formas e conteúdos ultrapassados. O conservadorismo religioso não rompe com novas maneiras de governar, ou administrar o Estado. Pelo contrário. A própria Igreja realiza, em seu modo de governo interno, modificações modernizadoras relevantes. É possível que uma instituição seja conservadora no plano do seu pensamento, sem definir-se como oposta à modernização. Este prisma já foi analisado por Max Weber, de modo estratégico. Assim, quando na Contra reforma a Igreja adequou a sua visão de si mesma e de seu mando, com Roberto Bellarmino e a soberania indireta do Sumo Pontífice, ela na verdade inovou diante das suas doutrinas medievais, sobretudo das que, no máximo declínio do poder do Papa, num espasmo, exigia para este as chaves dos reinos mundano e espiritual. (22) Com o Concilio de Trento, a Igreja renovou profundamente suas doutrinas e práticas, não retroagiu para a Idade Média, mas encontrou um novo modus vivendi com os poderes terrestres.
É tal Igreja que assistiu a expansão das doutrinas de Spinoza sobre o Estado e a liberdade civil, contra as pretensões do mando teológico-politico.
GÊNESE E INSTABILIDADE DOS REGIMES POLÍTICOS EM SPINOZA.
A doutrina política de Spinoza liga-se à teoria das paixões. Ela pode ser lida, nos mínimos detalhes, na Ética. A paixão compreendida permite entender também as causas e fundamentos da sociedade política e das instituições. (23) É a partir das paixões que Spinoza entende as disfunções institucionais encontradas na origem da auto-destruição das sociedades políticas. As paixões geram o Estado e podem destruí-lo. Com esta plataforma, analisemos as propostas indicadas por Spinoza para remediar a marcha da dissolução da sociedade política. Sendo o filósofo um defensor da democracia, os remédios por ele sugeridos integram a auto-regulagem das disfunções institucionais. Como toda a sua filosofia, da natureza ao conhecimento e deste à administração das paixões, é imanente (as mudanças não vêm de fora, de uma divindade ou de valores eternos), e monista, qualquer solução externa, em vez de remediar um status quo em declínio serve, na verdade, para piorá-lo. É por esse motivo que as teses teológico-políticas desgastam ainda mais o Estado, conduzindo-o à guerra das religiões, tão comuns no século 17 europeu.
Tomemos o artigo 7 do Capitulo I do Tratado Político: “Visto que todos os homens, bárbaros ou cultivados, formam em toda parte costumes que se dão um estatuto civil, não é dos ensinos da razão, mas da natureza comum dos homens, isto é, da sua condição, que é preciso as causas e os fundamentos naturais dos Estados…”. (24) Quando Spinoza fala em “condição comum dos homens”, refere-se a eles como seres apaixonados. Mas submetidos a quais paixões? Todo o Tratado Político pressupõe que os homens desejam necessáriamente bens materiais. Trata-se da avaritia, paixão universal e constante. (TP, X/6). Eles também são necessariamente supersticiosos. “Concluo, portanto, dizendo que os vícios inerentes ao estado de paz (…) não devem ser combatidos diretamente, mas de modo indireto, colocando-se princípios fundamentais de modo que o maior número se esforce não de viver sábiamente (isto é impossível) mas se deixe dirigir pelas afecções das quais o Estado arranca mais benefícios. É preciso tender sobretudo a fazer com os ricos sejam senão ecônomos, pelo menos que eles desejem aumentar suas riquezas. Pois não há dúvida que se esta avidez (avaritia) que é uma paixão universal, e constante, seja alimentada pelo desejo de glória, a maioria se aplicará com maior zelo a aumentar a sua riqueza sem os meios desonrosos , o ter que eles podem pretender serem bem considerados evitando a vergonha (ignomínia)”. (25) O desejo de possuir bens materiais, na sua origem, é exposto na primeira metade do livro III da Ética.
“Toda a coisa se esforça, enquanto está em si, por perseverar no seu ser”. (Etica, III/4-9) (26) Quando esse esforço (conatus) é favorecido por causas externas, ele se transforma em alegria (E, III, 11) (27) Se o nosso corpo aumenta ou diminui sua potência de agir, a idéia desta coisa aumenta e diminui, aumenta ou reduz a potência da nossa mente. (28) Quando a alegria é seguida da causa exterior que lhe atribuimos, ela torna-se amor por esta causa externa (E, III, 12-13) Amor é a alegria seguida da idéia de uma causa externa, ódio a tristeza seguida da idéia da causa externa. Quem ama se esforça necessariamente por ter presente e conservar a coisa que ama, quem odeia se esforça por destruir a coisa que odeia. Se amamos algo, nos apegamos incondicionalmente e queremos nos apropriar e conservá-lo, portanto. Nós nos alienamos inteiramente nele. Esta alienação pode passar da coisa que nos alegra para outras, a ela ligadas em nossa mente. Assim ocorre com os meios para conseguí-la no futuro, como é o caso do dinheiro ou da terra.
Para conseguir o necessário para todos os indivíduos, as forças de cada um deles não bastariam se os homens não se prestassem serviços mútuos. O dinheiro tornou-se instrumento com o qual nos proporcionamos todas as coisas, sendo ele o resumo de todas as riquezas, tanto que sua imagem ocupa ordináriamente mais do que todas as outras coisas nas almas vulgares. Elas não podem imaginar nenhum tipo de alegria, senão acompanhando como causa a idéia da moeda. Este, no entanto, é um vício nos que estão à busca de dinheiro, não por necessidade nem para prover as necessidades vitais, mas porque aprenderam a arte variada de enriquecer e se honram de possuir. Eles dão ao corpo o seu pasto, segundo o costume, mas tentando poupar, porque acreditam perdida toda parte de seus bens dispendida para a conservação do corpo. Para os que conhecem o verdadeiro uso da moeda, e regulam sua riqueza segundo as necessidades apenas, eles vivem contentes com pouco. (29)
No Apêndice do livro I da Ética, mostra-se como semelhante teoria do amor permite explicar a origem de nossa crença em divindades antropomórficas. Deus existe necessariamente. Ele é único. Ele age apenas pela necessidade de sua natureza. Ele é a causa livre de todas as coisas. Tudo é em Deus e depende dele, nada pode ser concebido nem ser sem Ele. Tudo foi prederminado por Deus, não por livre vontade, por um beneplácito absoluto, mas pela sua natureza absoluta, ou seja, por sua potência infinita. Os homens imaginam que todas as coisas da natureza agem, como eles, tendo em vista um fim. E imaginam que Deus dirige tudo para uma finalidade. Deus fez o homem para que ele lhe prestasse culto. Isto é um preconceito. Todos nascem sem o conhecimento das causas das coisas e todos têm apetite de buscar o que lhes é útil. O que está em sua consciência. Daí,
1) os homens imaginam ser livres, porque têm consciência de sua volições e de seu apetite e não pensam, mesmo em sonho, nas causas que os dispõem a apetecer e a querer, não possuindo delas nenhum conhecimento.
2) Eles agem sempre tendo em vista um fim, o útil que lhes apetece. Eles se esforçam sempre e unicamente para conhecer as causas finais das coisas completadas e se colocam em repouso quando delas são informados, não tendo mais razões de se inquietar.
3) Se não podem conseguir tais razões finais dos outros, refletem sobre os fins pelos quais são determinados em ações semelhantes, e assim julgam os outros por eles. Como encontram em si mesmos e fora de si meios que ajudam para atingir o que é útil (olhos para ver, dentes para mastigar, ervas e animais como alimento, Sol para iluminar, mar para produzir peixes) eles chegam a considerar tudo o que está no interior da natureza enquanto meio para seu uso. Como tais meios não são produzidos por eles, persuadem-se da existência de um ou vários diretores da natureza (Naturae rectores) dotados da liberdade humana, que provêm as suas necessidades e tudo colocam ao seu uso.
4) Como ignoram a compleição daqueles seres, julgam-na segundo a sua própria e admitem que os deuses dirigem tudo para uso dos homens, afim de que eles se apeguem às divindades e para serem honrados pelos humanos. E todos, projetando a sua própria compleição, inventaram no seu engenho diversos meios de cultuar Deus, com o fim de serem amados por Ele acima de todos os demais. E assim, obter que Ele dirigisse a natureza inteira em proveito de seu desejo cego e de sua insaciável avidez (avaritia).
5) Tal preconceito se transforma em superstição e lança raizes profundas na mente humana. Tentanto dizer que a natureza nada faz em vão (segundo a sua economia, na qual eles são o fim), nada mais provam que os deuses e a natureza deliram como eles. Como a natureza comporta furacões, tempestades, terremotos, etc. coisa naturais, tanto quanto as que servem utilmente aos homens, este tentam inverter toda a fábrica natural, inventando uma outra. E admitem que os juizos divinos transcendem os humanos e, portanto, a verdade nunca seria acessível a eles. Isto seria assim, se as matemáticas ocupadas não com os fins mas apenas com as essências e propriedades das figuras, não apresentassem uma outra norma da verdade, permitindo perceber os preconceitos comuns e chegar ao conhecimento verdadeiro das coisas.
Além da Ética, o Prefácio do Tratado Teológico Político analisa o mecanismo pelo qual quando somos presas do medo (E, III/18 e Escólio 2) tal crença se transforma em superstição (E, III, 50 e Escólio). Tanto o Estado quanto as superstições, como a avaritia, a fome de bens, são explicados pela teoria das paixões. Donde a alienação explicada por Spinoza é dupla: ela é econômica e ideológica. No artigo 5 do capítulo I do Tratado Político Spinoza resume as teoria das relações humanas apaixonadas, tal como a expôs na segunda metade do livro III da Ética. As paixões analisadas são a piedade, a ambição da glória, a ambição de mando e a inveja. Todas têm uma origem comum : a imitação afetiva, cuja dedução é dada na Ética III/27. “Se imaginamos que uma coisa semelhante (simile) a nós e diante da qual não experimentamos nenhum afecção de nenhum modo, experimenta alguma afecção, experimentamos por isto mesmo uma afecção semelhante. As imagens das coisas são afecções do corpo humano, cujas idéias nos representam os corpos externos como se estivessem presentes em nós, ou seja, cuja idéia envolve a natureza de nosso corpo e ao mesmo tempo a natureza presente de um corpo externo. Se a natureza do corpo externo é simile à do nosso corpo, a idéia do corpo externo que imaginamos, envolve uma afecção do nosso corpo similar à do corpo externo. Por conseguinte, se imaginamos algum semelhante a nós afetado de alguma afecção, esta imaginação envolve um afecção similar do nosso corpo. É por isso que imaginamos que se uma coisa similar a nós experimenta alguma afecção, experimentamos uma afecção similar à sua. Se, pelo contrário, tivessemos ódio uma coisa similar a nós, experimentariamos, na medida de nosso ódio uma afecção contrária e não semelhante à sua”. (30) Quando vemos alguem sofrer, partilhamos a sua dor (é a piedade, E. III/27) e queremos socorrê-lo (é a benevolência, E III/27, corolário 3). Se conseguimos socorrê-lo e ele se alegra e, pois, nos alegramos com a idéia de nós mesmos como causa (é a glória, E III/30 e escólio) e como se trata de um sentimento muito agradável, desejamos, para reproduzi-lo, continuar na ajuda aos outros (é a ambição da glória, E III/29 e escólio).
Mas se desejamos fazer alguém feliz, não queremos no entanto lhe sacrificar nossos desejos próprios. Nos esforçamos, pois, para resolver esta contradição, e tentamos converter o outro aos nossos próprios valores, obrigando-o a amar o que amamos e a odiar o que odiamos (E, III/31 e corolário): a ambição de glória se transforma em ambição de mando (E, III/31 escólio) e esta ambição de mando pode gerar a pior das intolerâncias (Id), em especial a ideológica, a intolerância supersticiosa. Se conseguimos fazer alguém gostar do que queremos que ele goste, se ele se apossa de alguma dessas coisas e com ela se alegra, e se esta coisa só pode ser possuida por um indivíduo, desejamos delas gozar sozinhos e, por conseguinte, dele arrancá-la, esta é a inveja (E, III/3 e escólio) que se manifesta sobretudo em matéria econômica. Mas quando conseguimos privar o outro daquilo que o alegrava, ele fica triste, temos piedade dele e o ciclo recomeça.
No artigo I do capitulo VI do Tratado Político Spinoza afirma que os homens vivem em sociedade política não devido à razão, mas pelas paixões, como a do medo. Ele cita o artigo 9 do Capitulo III, onde mostrou que os homens se unem quando o medo que sentiam em comum se transforma em indignação. Esta é uma forma de imitação afetiva (Ética III/27, corolário 1): ela é o ódio experimentado por quem faz mal a um ser similar a nós, e sentimos isso por imitação dos sentimentos da vítima. Imagine-se o estado de natureza, com um indivíduo que não consegue comida. Por piedade ou desejo de glória, alguns o socorrem. Se a ajuda é eficaz, sua piedade ou ambição de glória se transforma em ambição de mando e de inveja, e começa a agressão contra o “socorrido” que não aceita ser mandado ou não aceita falar sempre do socorro, para glória do seu “salvador”. Alguns que, até então, apenas assistiam aquelas cenas, se indignam com o mal que lhe é feito e o ajudam. E isto se complica e se repete muitas vezes. O agredido se torna agressor e vice-versa, levando consigo grupos e coletivos de agressores e de agredidos. E aumenta a indignação geral. E cada um se beneficiará e também será prejudicado pelas agressões. Cada um tem medo de todos e espera obter ajuda de todos. Uma só coisa suscita em todos o medo e a esperança: o poder coletivo. (TP, III/3). Mas todos julgam esta situação intolerável e se dispõe a ajudar cada um que julga ser vítima de agressão. Cada vez que um entra em conflito, cada um deles pede socorro aos outros, e os que se julgam mais semelhantes ao agredido, agredirão os seus agressores. Até que o consenso imponha normas comuns para reprimir massiçamente os que as violam e proteger quem as respeita. Há então uma potência coletiva da multidão que assegura os obedientes e ameaça os não conformistas. Temos o embrião da soberania política, porque, segundo Spinoza, a soberania é “o direito que se define pela potência da multidão” (TP, II/17).
“Este direito que define a potência da multidão, costumeiramente chama-se poder público (imperium), e ele possui absolutamente este poder, o qual, por consenso comum cuida da coisa pública e estabelece, interpreta, e abole as leis, defende as cidades, decida a guerra e a paz. Se tal cuidado pertence a uma assembléia (concilium) composta de toda a multidão, então trata-se da democracia. Se a assembléia se compõe de algumas pessoas de escol, aristocracia. E se o cuidado da coisa pública e por consequência o poder pertence a um só, monarquia”. (31)
Não basta que a massa popular se una e se torne mais forte do que os indivíduos que a compõem. É preciso que tal poder seja reposto, de modo a poder agir com eficácia no presente e no futuro. Esta é a tarefa da institucionalização do poder. Quais são os problemas mais urgentes da institucionalização ?
1) O comando. O coletivo é uno. Mas quem o dirige? Existem muitos candidatos (TP, VII/5) “É certo…que ninguem gosta de ser governado, mas de governar. Ninguém cede voluntariamente o mando para outrem (…) É evidente que a massa do povo jamais transferiria seu direito a um pequeno número de homens, ou a um só, se ela pudesse concordar consigo mesma e se as discussões que se levantam com frequência nas grandes assembléias não gerassem sedições. A massa do povo não transferirá jamais livremente a um rei o que lhe é impossível guardar em seu poder, o direito de acabar às discussões e tomar uma rápida decisão. Se ocorre com frequência que se escolha um rei devido à guerra, porque os reis são mais eximios na guerra, está aí uma tolice porque, para guerrear com maior eficácia, consente-se à servidão na paz , supondo-se que a paz reine num Estado onde o soberano poder foi confiado a um só devido apenas pela guerra e porque o chefe mostra principalmente na guerra seu valor (alí ele é proveitoso para todos). Num Estado democrático, no entanto, tem-se o fato notável de que o seu valor é bem maior na paz do que na guerra. Mas qualquer que seja a razão pela qual se escolhe um rei, ele não pode, sozinho saber o que é útil ao Estado (…) ele precisa de conselheiros em grande número dentre os cidadãos….”. (32) Assim que se forma o poder político cada um, por ambição de mando, deseja participar dele o mais possível. Seguem-se os conflitos que decidem a sorte do coletivo.
2) A ideologia. Não basta saber quem comanda, é preciso saber o que será comandado. O que o bem e o mal? (TP, II/18). Como os homens se batem porque não têm os mesmos valores, pois cada um tende a seguir seu próprio engenho (ingenio) e cada um quer impor as suas noções aos outros, o coletivo só pode sobreviver se a autoridade politica conseguir fazer aceitar, de modo estável, um sistema comum de valores. Como os valores dependem das superstições pessais, é institucionalizada a superstição. Um atributo do Estado é decidir quais religiões são autorizadas e quais proibidas. (TP, III/10).
3) A Propriedade. Trata-se da segunda fonte de conflitos, a inveja econômica. Como disputam as mesmas coisas, quando elas só podem ser possuídas por um apenas (é particularmente o caso da terra), o grupo sobrevive apenas se o soberano definir com precisão quem tem direito a que, ou o que pertence a cada um (TP, II/23). Para isto, ele precisa fazer com que sejam obedecidos o regime da propriedade. Tais problemas são péssimamente resolvidos, o que gera toda espécie de disfunção institucional, que, em prazo longo, acabam destruindo o Estado.
Disfunções da política, o primeiro principio geral:
Não se pode obrigar os homens a fazer qualquer coisa, é impossível fazê-los algo sem esperança de recompensa ou ameaça de castigo. Eles não podem ser obrigados a voar. Também a pura repressão não adianta para fazê-los crer em coisas absurdas, a não desejar o que amam, amar o que odeiam. Os soberanos necessariamente devem obedecer tais limites. É impossível alterar a natureza humana e fazer com que homens deixem de ser homens.
Aqui, é preciso recordar o monismo de Spinoza. Existe apenas uma Substância (Deus ou Natureza), da qual somos modificações. A nossa força vem da substância divina, infinita. Assim, quanto mais próximos de Deus (mais pensamos e agimos segundo as leis natuais/divinas) mais livres somos. Querer nos fazer agir ou pensar contra a nossa natureza é colocar uma força finita (a de homens, poderosos mas homens) contra uma força infinita na qual nos movemos. Um poderoso pode tentar fazer com que um indivíduo isolado atue contra sua natureza. Ele não consegue e pode apenas dobrar a lingua do seu objeto de ódio, mas jamais a sua mente. Se o indivíduo une-se a outros, com rapidez de tempo e chega à simultaneidade na união, a força coletiva é maior do que a do tirano. Assim, quando os indivíduos estão separados porque não seguem a lei e a força divinas (naturais) eles podem ser dominados pela tirania. Mas ao se unirem, aproximam-se do poder natural divino, aproximam-se do infinito. E podem vencer o tirano.
Segundo princípio geral:
Quando os dirigentes ignoram e desrespeitam a força natural divina que está neles e nos dirigidos, ultrapassando imagináriamente os limites do direito natural, catástrofes surgem para eles e para o Estado. Quanto mais reprimem, mais temor inspiram. O medo é uma tristeza (Etica, III/18-Escólio 2), que implica em ódio contra os que tememos. Se os dirigentes não sabem se manter em limites, mesmo na repressão, erguem a indignação geral, a máquina das paixões que instaurou a sociedade política, e que pode causar a sua dissolução (TP,III/9 e IV/4). Quando todos percebem que podem contar com a ajuda dos outros, porque todos estão indignados contra o mal feito contra alguns ou muitos, unem-se contra o dirigente que, no limite, é derrubado. “A Esperança é uma alegria inconstante, nascida da imagem de uma coisa futura ou passada cuja saída é considerada duvidosa. O Medo, pelo contrário, é uma Tristeza inconstante nascido da imagem de uma coisa duvidosa. Se dessas afecções extraimos a dúvida, a Esperança torna-se Segurança, e o Medo desespero. Entendo uma Alegria ou uma Tristeza nascida da imagem de uma coisa passada, cuja saída foi tida por nós como duvidosa. O remorso é a Tristeza oposta ao gáudio.”
E vem a aplicação geral : “Quando se trata de medida que provoque indignação geral, obedecendo a natureza, os homens unir-se-ão contra ela, seja devido a um medo comum seja por desejo de vingança de algum malefício comum e, visto que o direito da Cidade é definido pela potência comum da multidão, é certo que a potência e direito da Cidade diminuem, pois foram fornecidas razões para que se forme uma liga conspirativa. A Cidade certamente enfrenta perigos e deve temê-los; como no Estado de natureza um homem depende mais de si mesmo quanto mais razões tem de temer, também a Cidade, pertence pertence menos a si mesma quanto mais tem a temer.” (33) Quando ocorrem as situações de medo? Em qual hora os governantes e governados sentem aquela paixão de modo decisivo? Matheron cita alguns casos ilustrativos.
1/ Uma hipótese: os homens sairam neste instante do estado natural e acabam de instituir a sociedade política, sem nunca ter a experiência anterior de um Estado. Esta hipótese é falsa, visto que não é possível, na filosofia de Spinoza, chegar ao “primeiro” instrumento técnico (o martelo) ou ao “primeiro” instrumento técnico da política ou do saber científico. É o que já se pode ler no Tratado da Reforma do Intelecto: “[…] precisamos indicar a Via ou Método por onde chegaremos a conhecer tão verdadeiramente as coisas que precisamos conhecer. Para isto é reciso observar de inicio que não haverá aqui busca ao infinito: para encontrar o melhor método pelo qual procuraríamos a verdade, não precisamos de um método para buscar este método e para buscar este segundo método não precisaremos de um terceiro e assim ao infinito. Pois daquele modo nunca chegaríamos ao conhecimento da verdade e a nenhum conhecimento. É o mesmo que ocorre com os instrumentos materiais, que daria lugar ao mesmo raciocínio. Para forjar o ferro, com efeito, é preciso um martelo e para ter um martelo é preciso fazê-lo. Para isto, um novo martelo, e outros instrumentos são necessários e, para ter aqueles instrumentos, outros ainda ao infinito. E assim poder-se-ia provar que os homens não têm nenhum poder de forjar o ferro. Na realidade puderam, com instrumentos naturais, chegar aquele invento, embora penosamente e de maneira imperfeita, vencendo tarefas com procedimentos fáceis. Uma vez tendo-as acabado, executaram outras mais difíceis com menor esforço e mais perfeitamente e assim indo por gráus dos trabalhos mais simples aos instrumentos, destes instrumentos a outros trabalhos e instrumentos, num progresso constante, e chegaram a executar tantos trabalhos difíceis, com pouco esforço. Assim também o intelecto com sua força natural produz para si mesmo instrumentos mentais que aumentam a sua força para executar outros trabalhos intelectuais, desses últimos ele extrai outros instrumentos, ou seja, o poder de empurrar para mais longe sua pesquisa, e continua assim a progredir até chegar ápice da sabedoria”. (34)
Assim como não existe a regressão ao “primeiro martelo” ou ao “primeiro método”, também não existe regressão à “primeira coletividade política”. Com isto, Spinoza dá um tiro mortal nos programas conservadores que indicam uma “comunidade” perfeita no início da Humanidade. Este coletivo jamais existiu. Com prudência política, pode-se apenas recolher e aperfeiçoar no presente e no futuro o que os homens fizaram no passado. E com o monismo, não existe fora da natureza nenhum modelo ou paradigma da “boa” sociedade política. Nota-se que o neo-platonismo ou mesmo o platonismo são descartados por Spinoza neste passo. Se temos um coletivo que nunca possuiu Estado ou política, qual soberania ele dará a si mesmo? Depende do regime a que estavam habituados “antes” de retornar ao estado de natureza. Os judeus habituados à escravidão no Egito, não podiam viver em democracia. (TTP, V).
O Capítulo V, do Tratado Teológico Político apresenta razões gerais do poder político e logo a seguir deduz as consequências para os Hebreus recem saídos do Egito. “A sociedade é útil e necessária no mais alto ponto, não apenas porque protege contra os inimigos, mas também porque ela permite reunir um grande número de comodidas. Se os homens não desejassem se ajudar mútuamente, a habilidade técnica e o tempo lhes fariam igualmente falta para manter sua vida e conservá-la tanto quanto possível. [Recordemos a Ética : “o esforço para se conservar é o primeiro e único fundamento da virtude”] . Ninguém teria o tempo e as forças necessárias se fosse preciso arar, semear, colher, moer, cozer, tecer, costurar e efetuar muitos outros trabalhos úteis à manutenção da vida. Isto, para nada fazer das artes e ciências, que são supremamente necessárias para a perfeição da natureza humana e para sua felicidade. Vemos, com efeito, que os que vivem como barbaros, sem civilização, conduzir uma vida miserável e quase animal, e no entanto o pouco que eles possuem, miseravel e grosseiro, eles só o conseguem prestando-se mútuo socorro. Se homens fossem dispostos pela natureza de modo que só desejassem o que ensina a verdadeira Razão, a sociedade não precisaria de lei nenhuma, bastaria esclarecer absolutamente os mesmos homens com ensinos morais para que eles mesmos fizessem e com alma liberal o que é verdadeiramente útil. Mas é bem diferente a disposição da natureza humana; todos observam seu interesse, mas não seguindo o ensino da reta razão ; o mais frequente que os homens sejam arrastados por seu apetite apenas de prazer e as paixões (que não se preocupam com o futuro e só dão conta de si mesmas) que eles desejam algum objeto e o julgam útil. Daí que nenhuma sociedade pode subsistir sem um poder de comando e uma força, e por conseguinte sem as leis que moderam e constrangem o apetite do prazer e as paixões sem freio. Contudo a natureza humana não suporta ser constrangida absolutamente, e como diz Seneca o Trágico : “ninguém exerceu muito tempo um poder violento, um poder moderado perdura”. Enquanto, com efeito, os homens agem apenas por medo, fazem o que é mais contrário à sua vontade, e não consideram de nenhum modo a utilidade e a necessidade da ação, mas só se preocupam em salvar sua cabeça e não se expor aos suplícios. Bem mais, é-lhes impossível não sentir prazer com o mal e com o prejuízo do governante que tem poder sobre ele, mesmo em seu detrimento, de não lhe desejar malefícios e fazer-lhe tanto mal quanto possam. Nada existe mais difícil enfim, do que arrancar dos homens uma liberdade , após tê-la concedido.
Segue-se que toda reunião humana deve, se é possível, instituir um poder que pertença à coletividade de modo que todos sejam levados a obedecer a si mesmos e não aos seus similes. Se o poder pertence apenas a alguns, ou a um só, este último deve ter algo superior à natureza humana, ou pelo menos deve se esforçar para fazer com que o vulga creia nisso. Em segundo, leis deverão ser estabelecidas em todo Estado de modo que os homens sejam contidos menos pelo medo do que pela esperança de algum bem particularmente desejado. Assim, cada um cumprirá seu mister com ardor.Finalmente, dado que a obediência consiste no fato de se executa ordens por submissão apenas à autoridade do chefe que comanda, vê-se que ela não tem lugar nenhum numa sociedade onde o poder pertence a todos e onde as leis são estabelecidas por consentimento comum. Seja numa sociedade assim, pu em outra sociedade, as leis aumentem em número ou diminuam, o povo permanece sempre livre igualmente, pois não age por submissão a autoridade alheia, mas pelo seu próprio consentimento. Ocorre algo muito diferente quanto um só detem o poder absoluto. Então, todos, sem nenhuma exceção, executam as ordens do poder por submissão à autoridade de um só. A menos que os homens sejam amestrados a desde o princípio a ficarem presos à palavra do chefe que comanda, será muito difícil para ele, em caso de necessidade, instituir leis novas e arrancar do povo uma liberdade concedida certa vez.
Depois dessas considerações gerais, voltemos à organização política dos Hebreus. Quando sairam do Egito, eles não eram obrigados pelo direito de nenhuma nação, e podiam estabelecer leis novas segundo melhor lhes aprouvesse, ou seja, constituir um direito novo, fundar seu Estado onde escolhessem e ocupar as terras que desejassem. Eles não estavam preparados para estabelecer regras de direito e exercitar o poder coletivamente pois todos possuiam um engenho grosseiro e deprimido pela servidao sofrida. O poder precisou ficar, pois, nas mãos de um só, capaz de comandar os outros, de constrangê-los pela força, de prescrever enfim leis e interpretá-las. Este poder, Moisés pôde fácilmente continuar a detê-lo porque estava acima dos outros por uma virtude divina como ele persuadiu o povo e mostrou por numerosos testemunhos (Exodo, capitulo 14, último versículo, [“E Jeová salvou Israel naquele dia das mãos do egípcios; e Israel viu os egipcios mortos no mar. E Israel viu a grande obra que Deus fez contra os egipcios, e o povo temeu Jeová: e eles acreditaram em Jeová e no seu servo Moisés”] e capítulo XIX, versiculo 9). Ele estabeleceu portanto, e impôs regras de direito pela virtude divina que o distinguia. Mas tomou o maior cuidado de fazer o povo cumprir o seu ofício, menos por medo do que expontâneamente. Duas razões principais o constrangeram : de início, a insubmissão natural do povo (que não suportava ser dominado apenas pela força) e a ameaça de guerra que exigia, para ser feliz, que os soldados fossem conduzidos mais pela persuasão do que pelos castigos e ameaças. Desse modo, com efeito, cada um se esforçou de se distinguir pela coragem e grandeza de alma do que escapar apenas do suplício”.
Como no estado de natureza “absoluto” hipotético, ninguém era superior a outros, a primeira suposta forma de regime soberano é a democracia. No estado de natureza ninguém comanda duravelmente ninguém, ninguém se impõe pela sua força ou prestígio. A ambição de mandar e a inveja está em todos, sem nenhum constrangimento, impede que a autoridade seja dada apenas a um só ou a alguns. Logo, apenas a assembléia inteira do povo. A democracia é a solução mais simples, mais lógica, “mais natural” (TTP, XVI)
Mesmo os hebreus, na situação posterior ao Egito, experimentam as bases da ordem democrática. “Dado que os Hebreus não transferiram para ninguém o seu direito, mas todos eles, como numa democracia, renunciaram ao seu direito, e clamaram numa só voz que fariam tudo aquilo que Deus dissesse (sem nenhum mediador expresso), segue-se por conseguinte em virtude desse pacto, que todos ficaram completamente iguais, no direito de interpelar Deus, de receber e de interpretar leis e de participar em todas as tarefas da administração do Estado”. (TTP, Capítulo 17). (35) No Estado proposto pelo filósofo, as formas democráticas exigem a igualdade plena dos cidadãos. (36) Para perceber o radicalismo da idéia, precisamos tecer alguns considerandos sobre o direito natural e discutir as suas teses sobre os vínculos dos homens com Deus e entre si.
A doutrina de Spinoza é contrária à teoria de Hobbes. O próprio pensador enunciou as principais oposições entre ambos: “a diferença consiste em que eu mantenho sempre o direito natural e que só concedo numa cidade qualquer direito ao soberano sobre os dirigidos na medida em que, pela potência, ele é mais forte do que eles; é a continuação do estado de natureza”. (37) Ao contrário de Hobbes, no instante em que se institui a soberania nenhum indivíduo abdica do direito natural em prol de um arbitro posto acima da reunião societária. A igualdade entre dirigidos e dirigentes é garantida, modificando-se apenas o âmbito e a força das pessoas e funções. No Estado democrático “ninguém transfere o seu direito natural para um outro, a ponto deste nunca mais precisar de o consultar; transfere-o, sim, para a maioria da sociedade , de que ele próprio faz parte. Portanto, nessa medida, todos se mantêm iguais, tal como acontecia antes, no estado de natureza
Spinoza, longe de exigir o combate às paixões, ou de recusar a sensibilidade humana, afirma a preponderância das mesmas na vida e na política. A paixão do medo não será atenuada por uma ascese ou exercício racional. Ela apenas será afastada com o aumento da potência de uma outra paixão, a trazida pela alegria. Para o pensador judeu se quisermos pensar a política precisamos reunir no intelecto os extremos da tristeza e da alegria. Quando temos a imagem de algo o consideramos presente, mesmo que ele não exista. E o imaginamos como passado ou futuro, apenas enquanto a sua imagem está unida à imagem do tempo pretérito ou que virá. Considerada em si mesma, a imagem de algo é a mesma, seja unida ao passado, seja ao futuro, ou ao presente. Em qualquer daquelas situações, a alegria ou tristeza será a mesma. Coisa passada ou futura: enquanto somos ou seremos afetados por ela, se algo que comemos nos fez mal, ou nos fará, etc. Nosso corpo não experimenta nenhuma afecção que exclua a existência da coisa, porque ele é afetado pela imagem da coisa, como se ela estivesse presente. Como temos várias experiências, quando consideramos uma coisa passada ou presente flutuamos e não conseguimos nos manter firmes, vendo como duvidosa a resolução do dilema que nos ameaça. As afeccões nascidas das imagens que flutuam em nós, também flutuam segundo as imagens de coisas diversas, até que tenhamos adquirido alguma certeza para a solução do nosso relacionamento com a coisa. Assim, podemos conhecer a esperança, o medo (Metus), a segurança (Securitas), o desespero, o contentamento (Gaudium) e o remorso. “Esperança é alegria inconstante nascida da imagem de algo futuro ou passado cuja saída consideramos duvidosa. O medo, pelo contrário, é uma tristeza inconstante nascida igualmente da imagem de algo duvidoso. Se destas afecções extrairmos a dúvida, a esperança se transforma em segurança, e o medo se transforma em desespero. Falo de uma alegria ou tristeza nascidas da imagem de algo que nos afetou de medo e de esperança. O gaudio é uma alegria nascida da imagem de algo passado cuja saida foi considerada por nós como duvidosa. O remorso é a tristeza oposta ao gáudio”.
A partir desse conceito de flutuação da alma, vejamos o que enuncia o Tratado Teológico-Político: “Se os homens fossem capazes de governar toda a conduta de sua vida por um objetivo regrado, se a fortuna lhes fosse sempre favorável, sua alma estaria livre de toda superstição. Mas como eles estão sempre postos num estado incômodo que não lhes pemite tomar nenhuma resolução razoável, como eles flutuam quase sempre miseravelmente entre a esperança e o medo, por bens incertos que não sabem desejar com medida, seu pensamento abre-se sempre à mais extrema credulidade. Ele oscila na incerteza. O menor impulso o joga em mil direções diversas, e as agitações da esperança e do medo aumentam mais a sua inconstancia. De resto, observemos os homens em outros encontros, nós os veremos confiantes no futuro e cheios de jactancia e orgulho”. E novamente no Tratado Teológico-Politico : “Ninguém viu os homens sem notar que, ao estarem na prosperidade, todos se gabam, tão ignorantes quanto possam ser, de uma sabedoria tal que julgariam uma injúria receber um conselho. No dia da adversidade, surpreendidos, não sabem qual partido escolher: vemos que eles mendigam ao primeiro que aparece, e por mais inepto, absurdo e frívolo que se imagine um conselho assim, eles o seguem cegamente. Mas logo, a partir da menor aparência, recomeçam a esperar um futuro melhor ou temer as piores infelicidades.
Que lhes ocorra, com efeito, quando estão presas do medo, algo que lhes recorde um bem ou mal passados, eles dizem logo que o futuro será propicio ou funesto. E cem vezes enganados pelo evento, eles não deixam de acreditar nos bons e maus presságios. Se testemunham um fenomeno extraordinário e que os fere de admiração, aos seus olhos trata-se de um prodígio que anuncia a colera dos deuses, do Ser Supremo. E não dobrar sua colera através de preces e sacrificios, é uma impiedade para estes homens conduzidos pela superstição e que desconhecem a religião. Eles querem que toda a natureza seja cumplice de seus delírios e ficções ridículas, eles a interpretam de mil modos maravilhosos”. O medo é desejo de evitar o mal maior que tememos por outro menor. (Ética, 3, 39). Assim, definem-se todos os passos seguintes na Ética, como a audácia, desejo que excita alguem a fazer alguma ação correndo o perigo que os seus semelhantes temem enfrentar. A pusilaminidade é o desejo reduzido pelo medo do perigo que as pessoas semelhantes ousam enfrentar. A pusilaminidade é só o medo de um mal que a maioria não costuma temer. Por isto, Spinoza, não a coloca entre as afecções do desejo. A explica apenas, porque ela se opõe realmente à audácia, tendo em vista o desejo que ela reduz. “A consternação diz-se daquele cujo desejo de evitar um mal é reduzido pelo espanto do mal de que ele tem medo. Consternação seria um modo de pusilaminidade. Mas ela nasce de um duplo medo e pode ser definida mais comodamente como o medo que contem de tal jeito um homem ferido de estupor ou flutuante, que ele não pode afastar o mal de si. Digo ferido de estupor, enquanto concebemos seu desejo de afastar o mal como reduzido pelo espanto. Digo flutuante, enquanto concebemos este desejo como reduzido pelo medo. Medo de um outro mal que também o atormenta. Donde vem que ele não saiba qual dos dois contornar”.
É útil aos homens atar relações entre si, forjar liames que os tornam mais aptos a constituir, juntos, um só todo e fazer sem restrições o que contribui para afirmar as amizades. (Ética, livro 4, capitulo 12). A concórdia, nasce da justiça, equidade, honestidade. Os homens suportam dificilmente além do que é iniquo e injusto, o que se considera vergonhoso. Eles suportam mal testemunharem o desprezo dos costumes recebidos no Estado. Na mesma Ética, livro 4, capítulo 16 lemos : “a concórdia, ordinariamente tem por origem o medo, mas sem boa fé (sed sine fide)”. Acrescentemos que o medo nasce da impotência da alma e não pertence ao uso da razão, não mais do que piedade, embora esta última tenha a aparência da moral. Retenhamos a expressão, “sem boa fé”. Ela é estratégica para entender a tese de Spinoza, eivada de maquiavelismo, na questão do pacto social e do direito natural. O pacto, para ser válido, e durável, deve seguir algumas condições. “É uma lei universal da natureza que ninguém renuncia ao que considera ser um bem, salvo na esperança de um bem maior, ou no medo que resulte indiretamente num prejuizo. Ninguém aceita um mal, a não ser para evitar um pior, ou na esperança de um bem. Trata-se daquilo que ele considera melhor ou pior, sem necessariamente o seja de fato. Esta lei está escrita em caracteres tão fundos na natureza humana, que é preciso considerá-la entre as verdades eternas, das quais ninguem pode fugir”. Consequência: ninguém pode prometer, sem engôdo, alienar-se do direito do qual goza em todos os domínios, (38) nem se decidir a manter esta promessa, a menos que tenha medo de um mal maior ou esperança num bem. “Um ladrão me constrange a lhe prometer a lhe entregar tudo o que é meu. Meu direito natural é determinado apenas pela minha força. Se posso escapar do ladrão por uma promessa enganosa, estou autorizado pelo direito natural. No meu interior, posso perfeitamente não ter a intenção de manter a promessa. Ou se prometo a alguém que passarei vinte dias sem comer. Se percebo a estupidez desta promessa, estou na obrigação de escolher entre dois males, o menor”. Dentre as fontes de Spinoza, neste passo, uma é certa: Maquiavel, na Primeira Década de Tito Livio, livro 3, capítulo 42: “não existe vergonha em violar as promessas arrancadas pela força. Serão rompidas sem desonra as convenções pelas quais se empenhou a nação todas as vezes que a força que a obrigou a contratá-la não existe mais”.
No Artigo 5 do capitulo 1 do Tratado Politico, pode-se ler que as relações entre os homens ou a unidade em forma social trazem o selo de origem das paixões. A piedade, ambição de glória, ambição de dominação, inveja. “Só pelo fato de sua constituição, eles lamentam os seus semelhantes infelizes, e os invejam quando felizes, inclinando-se à vingança e pouco à misericórdia, cada um querendo fazer com que os demais adotem a sua regra pessoal de vida, aprovar o que aprova, recusar o que rejeita. Tais homens querem, assim, ser os primeiros, entram em rivalidade, e tentam, na medida de seu poder, esmagar uns aos outros. O vencedor, após a luta, se gloria mais de ter causado prejuízo ao outro, do que ter ganho algo para si. Sem dúvida, assim agindo, todos permanecem convictos de que a religião lhes ensina algo diferente. Ela ensina a amar seu próximo como a si mesmo, isto é, se fazer tão ardente campeão do direito do outro quanto do seu. Mas esta convicção, como vimos, não tem efeito sobre os sentimentos. No máximo, ela influi na hora da morte, quando a doença triunfou sobre os sentimentos e o ser humano jaz inerme, ou nas igrejas, onde os homens não têm relações entre si. Mas ela não prevalece no tribunal nem nas casas dos poderosos, enquanto a sua necessidade seria certamente sentida. É verdade que a razão é capaz de combater sentimentos e moderá-los consideravelmente. Entretanto, a via indicada pela razão nos pareceu muito árdua. Não iremos, pois, acariciar a ilusão de que seria possível conduzir a multidão, nem os homens públicos, a viver segundo a disciplina exclusiva da razão. Neste caso, estaríamos sonhando com uma poética da idade do ouro, uma história fabulosa”. As paixões que definem a política têm origem comum naquilo que Alexandre Matheron chama, seguindo o próprio Spinoza, “imitação afetiva”, deduzida na Ética, 3, 27. O item imediatamente anterior à proposição 27, refere-se ao orgulho, alegria que nasce do fato de que um indivíduo se estime de modo mais do que o justo, ele se considera melhor do que é. Aliás, o orgulho é definido como delírio, porque nele o homem sonha com os olhos abertos. Nele o indivíduo julga poder tudo o que abarca a sua imaginação. A partir daí, Spinoza diz que “da imaginação que uma coisa semelhante a nós (e que antes nos era indiferente) prova por nós algum afeto, também nós experimentamos, por isto mesmo, um afeto semelhante.” Para demonstrar essa tese, Spinoza indica que as imagens são afeccões do corpo humano, cujas idéias nos representam os corpos externos como se fossem presentes a nós. Estas ideias envolvem a natureza de nosso corpo e ao mesmo tempo (simul) a natureza presente de um corpo exterior. Se a natureza de um corpo exterior é semelhante à de nosso corpo, a idéia do corpo exterior que imaginamos envolverá uma afecção de nosso corpo semelhante à do corpo exterior. Por conseguinte, se imaginamos alguém semelhante a nós afetado de alguma afecção, esta imaginação envolverá uma afecção semelhante de nosso corpo. Pelo próprio fato de imaginarmos que alguma coisa semelhante a nós experimenta alguma afecção, experimentamos uma afecção semelhante à sua. Se, ao contrário, odiássemos uma coisa semelhante a nós, experimentaríamos na medida de nosso ódio uma afecção contrária e não semelhante à sua. E no escólio: “Esta imitação das afecções, quando ela ocorre diante da tristeza, chama-se comiseração, mas se é à respeito de um desejo, ela torna-se emulação, que nada mais é que o desejo de uma coisa engendrado em nós pelo motivo de que imaginamos que outros seres semelhantes a nós também a desejam”.
Indica um comentador italiano de Spinoza (Tiziano Salari “Spinoza e il mimetismo del desiderio”) (39) a grande superioridade da intuição spinozana sobre as cartesianas, a de sujeitar as paixões, que eram discutidas como separadas uma da outra, a um principio unificador: o desejo (Paixões da almacupiditas), como “a própria essência do homem, enquanto ela é concebida como determinada a fazer algo por um afeto qualquer, dado nela”. Desejo é o apetite com consciência de si mesmo, é o fazer coisas que sirvam para a conservação de si. (Cf. Ética, 3, Definição das Afecções). O mimetismo do desejo funda a comunidade política e nesta fundação o medo adquire relevo. Segundo Lucia Nocentini (“I fondamenti naturali della civitas. La concezione spinoziana dello Stato, individuo di individui”), a união estatal forma uma individualidade, só distinta das individualidades que a compõem em quantidade e força. O indivíduo Estado (imperium) e o complexo da individualidade político social (Civitas) se cortam, segundo um duplo relacionamento. Ao mesmo tempo que as subjetividades concretas determinam a existência do Estado e o setor governante e institucional, segundo uma linha ascendente, de modo paralelo os institutos descem até às subjetividades concretas segundo uma comunicação biunivoca de cujo equilíbrio dependem a sobrevivência e a estabilidade de todo o corpo social. (40) Há uma relação de reciprocidade : “Para conservar a si mesmos os individuos precisam uns dos outros; devem pois ser conduzidos, através da busca de seus próprios interesses, a desejar a conservação do Estado” (Tratado Político, VII, 4, 22; VIII, 24, 31; X, 6). Sua constituição natural, diz Spinoza, conduz os homens a procurar apaixonadamente o interesse próprio e a julgar a justiça das leis com parcialidade, segundo elas contribuam ou não para preservar o crescimento de seus bens. Sabe-se também que eles só tornam-se campeões da causa alheia na medida em que acreditam, por este meio, defender seus próprios negócios. E “reciprocamente o Estado, para se conservar, deve tender a conservar os individuos, garantindo-lhes a segurança que é a condição fundamental da obediência civica: em um Estado dominado pela anarquia, ou sujeito à potência dos seus inimigos, desaparece a lealdade. (Tratado Político., X, 9-10; e todo o cap. VI)” . Em verdade, se um corpo político pode assegurar sua eterna conservação, diz Spinoza, quando analisa a aristocracia, será necessariamente aquele cuja legislação, uma vez estabelecida sob forma conveniente, permanece protegida contra todo atentado. Pois a legislação é a alma do Estado. Se ela dura, o Estado de seu lado preserva-se. Ora, qual deve ser a legislação para resistir a todas as mudanças? Ela deve se apoiar ao mesmo tempo sobre a razão e sobre a disposição apaixonada própria aos humanos. Se ela só tivesse o sustento da razão, seria fraca e sucumbiria facilmente. Jogo das paixões. Um sentimento é vencido por outro. “Não se vê, com frequência, o medo da morte ser vencido pela violência de um desejo aos bens externos? Ou então alegar-se-ia, os que fogem com medo do inimigo não seriam mais detidos por nenhum outro medo? Eles se precipitam nos rios ou penetram num braseiro, para evitar o ferro do inimigo. Uma nação pode ser bem organizada e suas leis excelentes, tanto quanto se quiser. Entretanto, assim como demonstra a história, os habitantes são por vezes tomados (em situações críticas para o Estado de um terror pânico (terrore quodam panico) que nada mais enxerga senão o medo (metus) que se experimenta no presente. Sem nenhuma consideração pelo futuro, nem pela simples legalidade, todos os olhos se dirigem para um homem de guerra famoso. Ele é desligado da obediência comum às leis, decisão desastrosa lhe prolonga o seu comando ao exército e a salvação coletiva é totalmente posta em suas mãos. A resposta a toda esta objeção do pânico, é fácil. Numa coletividade pública bem organizada, um terror daquele gênero não teria nascido sem motivo verdadeiro. De modo que o terror e a confusão, se estalam numa tal república, só decorreriam de uma causa, imprevisível mesmo para a maior sabedoria”.
O corpo político, como os demais corpos vivos é sujeito a coisas externas e à instabilidade interna. (41) Estas ações podem aumentar o seu conatus ou dominuí-lo. Este é o tema do capítulo 10 do Tratado Político. “Desde que os homens…se fazem dirigir pelas paixões mais do que pela razão, uma multidão de pessoas é conduzida, por natureza, a unir-se com numa só mente, não dirigida pela razão, mas por algum afeto comum, ou seja (como dissemos no artigo 9 do capitulo 3), por uma esperança comum, ou medo ou desejo, de vingar um dano. Porque de fato o medo da solidão é ínsita em todos os homens, do momento em que nenhum deles, por si só, tem força para defender-se e dar-se o necessário para viver, assim, os homens tendem, por natureza, ao estado civil, e não ocorre nunca que eles o destruam totalmente” (TP, VI, 1).
Quais paixões entram em jogo no espaço político quando este último se instaura? A piedade, a ambição da glória, a ambição do domínio e a inveja. Todas possuem uma origem comum : a imitação afetiva, cuja dedução encontra-se no livro 3 da Ética. (42). Quando imaginamos —a imaginação, como vimos, possui estatuto privilegiado na política de Spinoza (43)— que um ser igual a nós experimenta certo sentimento, também o experimentamos. Se vemos alguem sofrer, partilhamos a sua dor e queremos aliviá-lo. Se o fazemos com sucesso, ele se alegra e nos alegramos com ele, ou melhor, nos alegramos com a imagem que está em nossa mente de que somos a causa de sua alegria. Tal sentimento é agradável e desejamos repetí-lo, o que nos joga na tentativa de sempre ajudar os outros. Aqui temos a base da busca incessante da glória, uma ambição primitiva. Mas se queremos ajudar, também queremos atingir nossa própria felicidade. E isto pode ser algo contraditório. Entre os desejos dos demais e os nossos, imaginamos que os últimos são eminentes. Assim, de pessoas que fazem o bem aos outros desejamos, como segundo passo, convertê-los aos nossos desejos e tentamos obrigá-los a gostar do que gostamos e odiar o que odiamos. A ambição de glória se transmuta em ambição de mando, com a sua corrente de males como a intolerância, o pior deles na vida em comum. Se não conseguimos dobrar o desejo alheio em proveito do nosso, passamos a odiar quem assim resiste a nós. Se conseguimos vencê-lo, caso ele se aproprie de uma coisa que prezamos e se alegre com isso, desejamos a sua posse para nós mesmos e dele retirar o gozo. Estamos jogados em plena inveja, a qual se manifesta sobretudo nas matérias econômicas. Quando conseguimos privar o indivíduo dos bens que invejamos ele se entristece, temos dele piedade e o círculo das paixões recomeça, definindo cada vez mais ódio, inveja, desejos em relações complexas que se tornam como que elementos a priori de uma vida comum.
A quantidade de paixões em jogo na política obscurece alguns fatos essenciais para a manutenção da república, e nela a racionalidade ocupa lugar mínimo. Se a corrente apaixonada conduz ao inferno da intolerância, inveja, mandonismo, o único passo eficaz para atenuar o círculo enunciado acima e que permite entender a instauração pública também encontra-se na paixão. Os indivíduos concordam em viver na comunidade porque todos têm medo. Este ponto é comum em Hobbes e Spinoza. (44) O medo impulsiona, no plano da imitação afetiva, as pessoas a se indignarem ao perceber que alguém prejudica um ser que é seu igual. Sentimos indignação por mimesis dos sentimentos da vítima, como vimos acima. Se, no estado de natureza um homem sente fome, um ou vários, por piedade ou ambição de glória o ajudam. Se o auxilio é eficaz, a piedade ou ambição de glória se transformam em dominação e inveja. Define-se melhor a agressividade. E os que enxergam esta agressividade se indignam e começa o ciclo das indignações que movem os indivíduos. Nele, ou alguém é visto como vítima da agressão ou agressor que merece indignação. Neste circuito violento cada um teme o outro e quer obter ajuda de todos os demais. O limite do circulo encontra-se na esperança de todos no auxilio do coletivo inteiro contra seu direto agressor ou suposto inimigo. Assim, todos imaginam que instaurar uma potência coletiva possibilita o seu melhor socorro. Note-se que a igualdade é um pressuposto da instauração republicana, segundo Spinoza. Como afirma Matheron, no texto que sigo ao pé da letra, “a cada vez que dois indivíduos entrarão em conflito, cada um deles clamará pela ajuda de todos os demais, e cada um dos outros, respondendo ao chamado e imitando os sentimentos de alguns dos adversários que será o mais semelhante a ele (Matheron sublinha), se indignará e lutará contra o que lhe parecerá menos: contra aquele cujos valores serão mais divergentes dos seus ou que possuirá mais coisas dos ques possuidas por ele. O adversário que mais se afastar da norma majoritária (o que menos se parecer aos outros) será pois esmagado e dissuadido de recomeçar”. (45) Esse é o primeiro passo para a instauração da república. A igualdade define a base do Estado. Mas tal realidade apresenta problemas, todos vinculados às paixões, de árdua resolução. A primeira aporia reside no mando. O coletivo é força única, superior aos indivíduos. Quem dirige aquela força? Muitos desejam comandar e poucos obedecer. Com a força coletiva, a ambição do mando se expande e com ela a inveja do poder usufruido pelos demais. Neste passo, não se trata apenas de impor aos outros os desejos e opiniões próprios ou de invejar seus bens materiais. Agora a paixão se complexifica, pois além dos desejos primordiais, ela é carregada de aspectos políticos. Como resolver as paixões contraditórias que se tornaram assim saturadas de sempre novos elementos ? A solução torna-se ainda mais difícil porque não se trata apenas, na comunidade, de saber quem manda, mas o que ele manda. Torna-se preciso saber o que é o bem e o mal para a república. Assim, aparecem as lutas sobre as opiniões e para impôr de modo estável, ao todo idéias éticas, um sistema comum de valores. Como neste momento primitivo da república todos são dominados pela imaginação e não desenvolveram a racionalidade conceitual, todos pensam segundo os padrões imaginativos, todos são supersticiosos. Trata-se de escolher dentre as superstições particulares ou grupais a mais forte, a que será institucionalizada pelo coletivo em forma de culto e noções religiosas autorizadas. Mas não ficamos apenas no plano da imaginação religiosa. O mais árduo é encaminhar a questão da propriedade, pois uma das fontes dos conflitos reside na inveja econômica. Os homens disputam as mesmas coisas quando elas não podem ser possuidas por um deles apenas (a questão da terra é a mais grave). A república só permanece se o soberano define com precisão quem tem direito a que, ou o que pertence a cada um e se ele impõe um regime da propriedade.
Todos os problemas mencionados acima, pensa Spinoza, são resolvidos sempre de modo precário. O filósofo, que não pensa exibir um modelo ideal do Estado, indica alguns princípios de prudência política para garantir a estabilidade republicana. O primeiro princípio prudencial, do qual já falamos, diz que os governantes devem ter consciência de que os homens, quando entram no plano político, não renunciam aos seus direitos naturais (como vimos na carta de Spinoza a Jarig Jelles) e que existem limites para o seu mando. Como só entram no campo da política movidos pelas paixões e não por um cálculo racional (ao contrário do que expõe Hobbes) os indivíduos só obedecem ou desobedecem se forem incentivados pelo medo de castigos ou esperança de recompensas. Mas tanto o medo quanto a esperança devem ser relativos a algo que esteja ao seu alcance. Não é possível obrigar os dirigidos a voar (na época isto era uma ordem impossivel de ser cumprida) ou a acreditar naquilos que lhes parece absurdo ou a não querer o que amam ou amar quem lhes faz mal e odiar os quem lhes causa o bem. Resumo de Matheron: “é impossível ir contra a natureza humana e fazer com que os homens deixem de serem homens”. Se os governantes esquecem essa regra prudencial e exigem o impossível dos dirigidos, eles causam medo neles. Mas o medo traz a tristeza e esta produz ódio pela pessoa que tememos. Se os dirigentes não assumem a prudência máxima na repressão (sobretudo neste caso, em que ela é desprovida de razões) o medo se transforma em ódio e indignação contra eles. Ou seja: o mecanismo que serviu para edificar a república serve também para dissolvê-la. Quando os dirigidos não percebem nenhuma segurança na política e constatam as injustiças mútuas impunes e as injustiças dos dirigentes também impunes, sendo os dirigentes arrogantes e orgulhosos, eles não aceitam mais obedecer e sua indignação está pronta para se transformar em revolta que pode destituir não só os dirigentes mais dissolver o Estado.
Spinoza analisa as formas de regime que poderiam impedir o retorno ao estado de natureza como resultado da arrogância ou imprudência dos governantes. No Tratado Político, o filósofo discute a monarquia, a aristocracia, a democracia mostrando as suas forças e fraquezas. Para que o regime político seja eficaz e se mantenha (o ensino vem de Maquiavel), é preciso que ele consiga se auto-regular, remediando os erros dos governantes e do povo. São desse tipo as medidas prudenciais que podem servir para a diminuição dos conflitos. No setor econômico Spinoza propõe a nacionalização do solo. “Nacionalização não significa coletivização. O que Spinoza diz é que a terra pertencerá ao Estado e que este a alugará aos particulares, os quais a explorarão individualmente e venderão os produtos no mercado. Eles serão locatários, não proprietários. A diferença é enorme. Assim será evitada a imobilização dos capitais na compra de terras” (Matheron). Deste modo, “o acesso ao solo será facilitado ao máximo. Mas será facilitado sob uma tal forma que a terra, deixando de ser objeto de um investimento financeiro, deixará ao mesmo tempo de ser objeto de um investimento afetivo” (idem). Note-se que a marcha do pensamento político de Spinoza vai da igualdade natural à igualdade jurídica com medidas de prudência que permitam sempre repor a igualdade. As medidas sobre a apropriação do solo marcam este ponto. A igualdade não é atribuida ao Estado e ao soberano de modo absoluto e total. “A oposição do ´direito de natureza´ (jus naturale) e da ´lei da natureza´ (lex naturalis), que constitui um dos núcleos da filosofia política hobbesiana (Leviathan, Cap. 14) é anulada por Spinoza. Neste, vida e razão, longe de se oporem, mutuamente se enriquecem”.(46)
Como vimos, o perigo de dissolução do Estado é mais interno do que externo, devendo-se sobretudo à imprudente arrogância dos dirigentes que rompem a igualdade civil e política em seu proveito. Como, para Spinoza, o princípio e fundamento da virtude e da vida é a força possuida por todos os indivíduos de conservar a si mesmos e se expandir, o regime que mais garante esta segurança e expansão é a democracia. “O Estado democrático é a resposta racional às necessidades naturais. Na sua constituição são determinantes quer a razão quer a natureza. Mas só com a razão se constrói uma verdadeira solidariedade, só ela estabiliza. Por ela percebemos que os diferentes poderes nada mais são do que manifestações parcelares de uma potência comum”. (47) Conditio sine qua non dessa forma de Estado é a idéia spinozana do divino e da natureza. Deus, ou natureza, é a substância única, com infinitos atributos, dentre os quais nós conhecemos a extensão e o pensamento (que nos constituem). Os atributos combinam-se de infinitos modos, o que é a nossa efetividade, pois somos indivíduos que existem naqueles atributos. Deus é imanente em toda a natureza e em nós. Não existe entre nós e Deus nenhuma transcendência e todos estamos —se fosse possível usar esta imagem— situados numa igual distância em relação à natureza comum e à divindade. A democracia é o regime mais natural porque não existe, nos vínculos entre a natureza e nós nenhuma hierarquia metafísica, ao modo grego, cristão ou judaico. Essa idéia da igualdade causou um abalo que persiste até hoje nas teorias políticas do Ocidente. Não por acaso o pensamento spinozano jaz sob as teses democraticas das Luzes. (48)
Ao contrário do pensamento que afirma a igualdade radical dos entes humanos, na perspectiva spinozana, as doutrinas cristãs ergueram um sistema hierárquico que postula a desigualdade como fundamento e alvo do político.Um dos maiores pilares do pensamento católico é Tomás de Aquino. Nele, a noção do universo como imensa hierarquia verticalizada que desce do Senhor, atravessa os arcanjos e anjos, chega aos sacerdotes e passa aos leigos poderosos para atingir os ínfimos da natura, define a doutrina cósmica e cívica, espinha dorsal do catolicismo religioso e político. Essa doutrina tem origem neo-platônica, em Dionisio o pseudo-areopagita. Deus encontra- se além de todos os nossos sentidos e apenas pelos intermediários entre Ele e nós recebemos as suas bençãos. A hierarquia encontra-se na mais funda determinação do ser. É o que diz o teólogo e filósofo Paul Tillich, ao citar em Dionísio o “sistema sagrado onde os graus referem-se ao saber e à eficácia”. E arremata o pensador : “Isto caracteriza todo o pensamento católico em grande extensão; ele não é apenas ontológico, mas também epistemológico; existem graus não apenas no ser, mas também no conhecimento”. (49) Há, neste sentido, uma via para cima e uma via para baixo da escala e cada ente encontra-se num lugar certo e determinado desde sempre. Deus está além de todos os nomes que a teologia lhe atribui, além do espírito, além do Bem, numa “indizível obscuridade”. Dada esta transcendência absoluta, a hierarquia celeste é a emanação de sua luz. Quanto mais próxima d´Ele, mais a entidade se ilumina, quanto mais distante, mais escura. Os homens não podem perceber a luz divina, porque ela é tão intensa que os cega. Assim, os intermediários angélicos são o caminho para o fulgor Eterno. A Igreja Católica exibe na sua forma de governo e de pensamento social este imaginário metafísico. (50) É impossível quebrar a escala hierárquica dos anjos aos homens. Trata-se de responder à pergunta central de todo pensamento político sobre a teodicéia: “Porque, se Deus fez todas as coisas, ele não as fez todas iguais?”. Agostinho apresentou a sua fórmula: non essent omnia, si essent aequalia (se todas as coisas fossem iguais, nada seriam). Cada coisa ocupa um lugar na escada dos seres, da mais humilde à excelsa.(51) A queda do arcanjo luminoso apenas destrói na aparência, jamais na essência, a ordem universal. Lúcifer engana-se e procura enganar os homens sobre o poder divino. Há um heliotropismo essencial no pensamento católico onde a hierarquia insere-se com perfeição. Embora cada ser tenha o seu lugar natural, os homens possuem o livre arbítrio (algo que trouxe lutas penosas para a Igreja, desde Agostinho até Jansenius e Pascal). Assim, retoma-se na Igreja a tese de Platão de que “o divino não é culpado” pelos nossos males. O mal não pode ser atribuído ao Absoluto. “Deus”, afirma Tomás de Aquino, “não quer que se faça o mal, nem quer que não se faça; o que Ele quer é permitir que se faça, e isto é bom” (Summa Theologia, 1 q. 19 a 9). O espelho terrestre foi embaçado pelo hálito pestilento do mal, mas pode ser limpo e resplandecer novamente. A criaturas atingem a perfeição no campo iluminado pelo brilho divino. No capítulo sobre a luz e a visão dos homens, Aquino refuta o simile entre os últimos e o morcego “que não pode ver o mais visível, o Sol, por causa precisamente do excesso de luz”.Os homens não nasceram para a lamentável escuridão e seu alvo é a perfeita alegria da vista: “como a suprema felicidade do homem consiste na mais elevada de suas operações, a do intelecto, se este nunca pudesse ver a essência divina, segue-se que o homem nunca alcançaria a felicidade, ou que esta é algo distinto de Deus, o que se opõe à fé (…) uma coisa é tanto mais perfeita, quanto mais se une ao princípio”. Assim, “os bem aventurados vêem a essência divina” (Summa 1 q. 12 a 1). Mas como pode o homem unir-se ao divino? Os anjos e a sua hierarquia, espelhada na hierarquia eclesiástica, dão a primeira resposta. A segunda (a que trouxe maiores violências no debate cristão, sobretudo entre os jansenistas e calvinistas) é explicitada por Tomás de Aquino: “é indispensável que, em virtude da Graça, seja-lhe concedido o poder intelectual e este acréscimo de poder é o que chamamos iluminação do intelecto, bem como chamamos luz ao objeto inteligível. Esta é a luz de que fala o Apocalipse referindo-se à sociedade dos bem aventurados que vêem a Deus, que a claridade de Deus a ilumina e graças a esta luz se fazem deiformes, isto é, semelhantes a Deus (idest Deo similes)” (Summa, 1 q. 12 a 5). Os entes humanos, pela Graça, tornam-se iguais a Deus na contemplação beatífica, na transcendência eterna. (52) A igualdade entre eles não é possível, visto que em cada um dos indivíduos humanos há uma relação especial com Deus mediata pela cooperação de cada um deles com a Graça divina, o que indica uma proximidade maior ou menor entre a consciência e Deus.
Para que possa existir visão divina, a luz deve ser percebida segundo graus, não de imediato. A doutrina sobre o poder político exige a tese dos graus de visibilidade contemplativa, o que prepara o óbice maior que se instala entre o pensamento católico e as modernas idéias democráticas sobre a igualdade, onde o divino transcendente é posto fora do trato político ou, como dizia Laplace a Napoleão Bonaparte quando este ao folhear o texto sobre a Mecânica Celeste, perguntou ao cientista sobre Deus: “Je n'ai pas eu besoin de cette hypothèse”. O tema da secularização cultural e política produziu oceanos de livros e não pode ser discutido aqui. Mas certamente é preciso analisar, quando falamos da igualdade, a quebra com os pressupostos religiosos aristocráticos e a nova ordem democrática que se instaura. Um dos comentários mais belos sobre o assunto foi realizado por Erich Auerbach sobre a Divina Comédia. A unidade daquele poema que sintetiza o pensamento ético cristão, “descansa sobre o tema geral, sobre o status animarum post mortem; este deve ser, como sentença divina final, uma unidade perfeitamente ordenada, tanto como sistema teórico, quanto como realidade prática e, portanto, também como criação estética; deve representar a unidade da ordem divina de uma forma ainda mais pura e atual do que o mundo terreno, ou algo que nele acontece, pois que o Além, ainda que inacabado até o Juízo Final, não apresenta, na medida em que o faz o mundo terreno, desenvolvimento, potencialidade e provisoriedade, mas é o ato completo do plano divino. A ordem unitária do Além, assim como Dant no-la apresenta, é tangível da maneira mais imediata como sistema moral, na repartição das almas nos três reinos e suas subdivisões: o sistema segue em tudo a ética aristotélico-tomista”. (53)
Spinoza e a Razão de Estado
Visto que o mundo europeu se expande no século 17, e que as fronteiras nacionais são melhor definidas pelos Estados, o problema da igualdade entre os cidadãos torna-se agudo. A hierarquia, a que define precedências no feudalismo e nos primeiros inícios do Estado, tomba a cada avanço do poder real. O poder assume uma nova ordem de referências e novos privilégios, todos referidos ao comando do Rei. Dos impostos à justiça, desta às normas legais, incluindo-se o poder militar e de polícia concentram-se no ministério que responde diretamente ao soberano. Embora renitentes, as formas aristocráticas cedem lugar à ascensão burguesa e inicia-se uma espécie de condominio do Estado pelos vários segmentos sócio-econômicos e políticos. Se o poder do rei é sinônimo de universalidade que abarca todos os particulares, coloca-se o problema da relativa distância de cada indivíduo ou setor em relação ao núcleo do poder. Desloca-se a hierarquia que se fundamenta no sagrado, o qual por sua vez sancionou, autorizou e exigiu as três ordens feudais (clero, nobreza, os comuns). Os nexos entre dirigidos e governantes se ordenam cada vez mais horizontalmente : quanto mais próximo da corte, mais influência, quanto mais distante, menor capacidade de influir. A hierarquia cede, lenta e seguramente, à distinção entre capital e provincia. Na primeira, instala-se a cabeça do Estado e o aparato diplomático, administrativo, militar, policial e intelectual (a máquina de propaganda do monarca). (54) Na segunda, fica a resistência à máquina do poder.
Tomemos um campeão do conservadorismo, Alexis de Tocqueville. Ele analisa o crivo da igualização crescente na França e na Europa como uma das marcas essenciais das Revoluções Francêsa e Americana. No Ancien Régime o Estado existe em parâmetros diferentes dos encontráveis na Idade Média. A realeza possui “outras prerrogativas, tem um outro lugar (…) é a administração do Estado que se amplia para todas as partes sobre os restos dos poderes locais; a hierarquia dos funcionários substitui sempre mais o governo dos nobres. Todos estes novos poderes agem segundo procedimentos e máximas que os homens da idade média não conheceram ou reprovaram, e que se relacionam a um estado de sociedade do qual não tinham sequer a idéia”. (55) Surge “a igualdade diante da lei, a igualdade dos cargos, a liberdade de imprensa, a publicidade dos debates, princípios novos ignorados pela sociedade medieval.” Trata-se de uma “nova ordem social e política, mais uniforme e simples, que tinha por base a igualdade de condições”. (56)
O poder real, para estabelecer seu poderio, enfrenta o poder dos municípios. Em quase toda a Europa, mas particularmente na França, a liberdade municipal, diz Toquecville, sobreviveu ao feudalismo. Em nações como a alemã e italiana, com caraceterísticas diversas, resistiram ao poder central várias cidades que eram pequenos Estados e cuja potência era maior ou menor conforme o jogo da guerra, da diplomacia, etc. Florença, cidade de Maquiavel, era uma cidade-Estado. O poder das urbes foi atenuado no feudalismo, sendo que alguns centros quase foram dissolvidos. Uma característica do Estado renascente é que ele encontra nas capitais e nas cidades maiores e mais ricas, seu ponto de apoio na reconquista de prerrogativas antes destinadas ao clero e aos nobres.
Tocqueville mostra o quanto foi importante para o centro do Estado sufocar a potência das cidades para impor a sua burocracia e a igualdade de todos diante do Rei. Mesmo no feudalismo, muitas cidades estratégicas mantiveram a prerrogativa de governar a si mesmas. Nelas, os magistrados eram eleitos, sendo responsáveis diante da população. A vida urbana é pública e ativa, as cidades se orgulham de seus direitos e são muito ciosas em relação a eles. (57) As eleições foram abolidas por volta de 1692. As funções municipais se transformaram nos offices, cargos vendidos pelo rei, em algumas cidades, a alguns habitantes para que governassem perpétuamente. Com o fim da liberdade, veio o sacrifício material. Afirma o autor que a transformação dos cargos, de eleitos para vendidos pelo rei, a primeira instituição a ser prejudicada, em detrimento dos cidadãos, foi a justiça. “A boa justiça”, diz Tocqueville, tem como condição “a completa independência do juiz”. Quando ela foi independente, foi possível encontrar responsabildiade, subordinação e zelo pela coisa pública. Os governos do monarca sabiam o quanto lhes seria prejudicial aplicar à sua administração a receita que impunham às cidades: seus cargos de intendentes e subdelegados nunca foram postos como ofícios venais.
Assim, “Luis XI restringiu as liberdades municipais porque seu caráter democrático lhe dava medo; Luis XIV as destruiu sem as temer. (…) Na realidade, eles queriam menos abolir tais liberdades, do que traficá-las e as aboliram foi, por assim dizer, sem pensar, por puro expediente financeiro”. O direito de eleger seus magistrados é vendido e arrancado das cidades pelos reis. Quando elas se acostumam às liberdades, o rei as retira, para revendê-las. E o rei confessa o fundamento fiscal desse comércio sem nenhum rubor. Diz o Edito de 1722 : “as necessidades de nossas finanças nos obrigam a buscar os meios mais seguros de aliviá-las”. (58) Tocqueville cita um Intendente que envia carta ao Controlador Geral em 1764: “Estou espantado com a enormidade das finanças pagas em todos os tempos para resgatar os ofícios municipais. O montante desta finança, empregada em obras úteis, seria proveitoso para a cidade que, pelo contrário, sentiu apenas o peso da autoridade e dos privilégios desses ofícios”. E finaliza Tocqueville: “Esta espécie de mercadoria se avilta cada vez mais, à medida que a autoridade municipal se subordina mais ao poder central”.
Enquanto ainda no século XV a Assembléia geral do municipio era composta por todo o povo, no fim do século XVII esta prática era rarefeita. No século XVIII o governo e as decisões estavam nas mãos dos notáveis, o povo se desinteressa pelos negócios municipais e “vive como estrangeiro no interior de seus próprios muros”. No século XVIII o governo municipal degenera em pequena oligarquia, “algumas familias conduziam neles os negócios, tendo em vista fins particulares, longe do olhar público e sem serem responsáveis diante dele: trata-se de uma doença espraiada por toda a França”. As cidades perdem a possibilidade de “impor concessões, decidir contributos, hipotecar,vender, disputar judicialmente, controlar seus bens, os administrar, empregar o excedentes de sua receita, sem ordens do conselho sob relatório do intendente. Todos os trabalhos são executados sob supervisão do conselho e aprovados por sua ordem”. Deste modo, os oficiais dos municipios, com os cargos comprados “sentem convenientemente o seu nada” diante do poder do Rei. “O último dos agentes reais, o sub-delegado os fazia obedecer aos mínimos caprichos. Com frequência, ele os multava; os aprisionava; pois as garantias que, em outros lugares, defendiam ainda os cidadãos contra o arbítrio, não mais existiam alí”.
Paro por aqui e assinalo que os capítulos seguintes do livro são importantes sobretudo para nós, os brasileiros, pois ele trata da independência do poder judiciário. Mas fiquemos no problema da igualdade. As urbes medievais eram assinaladas pela sua desigual força, poder, prerrogativas. O poder Estatal tentou igualizá-las, tornando-as centros desprovidos de força, venais, em favor do mando concentrado na capital. Os cidadãos que tinha direitos, desiguais mais direitos, passam a serem nutridos pelo castigo e pelas multas, além das taxas contra as quais não era possível recorrer. A burocracia real sufoca a independência dos municípios.
Passemos agora ao problema do mal no mundo humano. Os comentadores do século 20, entre eles Leo Strauss, Ernst Cassirer e outros, criticam Maquiavel por ter este tratado a ética e a política, com o mal no seu interior, “para usar as palavras de Spinoza, como se fossem linhas , planos, ou sólidos. Ele não ataca os principios da moralidade; mas ele não pode encontrar uso para eles na vida política”. (59) No caso de Spinoza, o problema do mal pode ser notado na Ética e, quando se trata do mal político, na Quarta Parte. (60) Interessa sublinhar que neste ponto da exposição, Spinoza trata ao mesmo tempo do antigo problema trazido pela noção de paradigma moral e político, ligados ambos à noção do que é perfeito e imperfeito, ruim e bom, certo e incorreto.
O que é a sociedade senão o vínculo de indivíduos humanos ? E o que são estes últimos senão um feixe complexo de paixões as mais diversas e conflitantes? Ao encarar tal jogo inextricável dos apetites humanos, filósofos como Platão empreendem estabelecer um governo das afecções pelo pensamento racional. Sigo agora as sugestões já antigas de Pierre Louis, num estudo precioso sobre as metáforas de Platão. (61) Segundo as Leis, a alma é anterior ao corpo (Leis, 892a, 896 b e c), deste modo ela naturalmente ela tem uma autoridade frente a ele, autoridade similar à do senhor diante do escravo. “Deus fez mais antiga a alma do que o corpo tanto pela idade quanto pela virtude de comandar como senhora, e o corpo para obedecer” (Timeu, 34 c). Interessa notar que o mando indicado no Timeu é de ordem despótica. O corpo é submetido à servidão (já o próprio título de Spinoza na Quarta Parte da Ética remete a este plano) e à obediência (Fedon, 80 a). Os prazeres do corpo são próprios ao que é servil (Fedro, 258 e). Isto estabelece uma hierarquia entre corpo e alma. E tal hierarquia não sendo respeitada, ocorre uma guerra permanente das afecções contra a alma despótica. A maior parte dos indivíduos são escravos do corpo (ou seja, são escravos de um escravo) (Fédon, 66 c d). Nesta passagem, afirma-se explícitamente que “as guerras, as dissenções, as batalhas, são trazidas pelo corpo e pelos seus desejos; pois é devido à posse das riquezas que se produzem todas as guerras, e, se nós somos obrigados a possuir riquezas, isto é por causa do corpo, somos como escravos prestes a serví-lo”. (62) O corpo é um peso que torna lenta a alma (Fedon, 81 c; Fedro 248 c, 256 b), como se fossem chumbo nela preso (República, 519 b).
Na dialética do senhor e do escravo, a alma está sujeita ao corpo por vínculos que a prendem (Fedon, 64 e, entre vários lugares). No Fedon, trata-se de cadeias de um prisioneiro enquanto no Timeu (73 d) são amarras de um navio. No Fédon, também, são pregos que fixam-na ou ainda no Fedro (250 c) são liames que ligam o corpo e a alma como a ostra é presa à sua crosta. Em especial, e isto possue relevância para que se pense a diferença entre platonismo e spinozismo, o corpo pode ser para a alma um túmulo (Górgias 493 a). Outras imagens menos sombrias são usadas por Platão, como a do corpo enquanto terreno no qual a alma semeia e se enraíza. O corpo pode ser comparado a um templo onde habita a alma, um ser divino (Leis, 869 b).
A psicologia que reside nessas imagens indica o sentido das metáforas platônicas sobre os embates ocorridos no ser humano, quando se trata das paixões. Platão distingue na parte irracional (alogiston) da alma dois instintos, a colera ou instinto de defesa (timoeidés) e o desejo (epitimétikon). Ela é um monstro triplo (República 588 c), sendo que o elemento irascível é comparado a um leão. Ainda na República (411 b) o timós representa os “tendões” da alma. Certas práticas imoderadas da música, podem afrouxá-los ou endurecê-los. Na mesma passagem, o timós é um metal que a música pode fundir. Finalmente, o timós é um fogo que pode ser extinto. Uma alma corajosa entregue sem medida à música torna-se rápida para encolerecer e lenta para diminuir seu ardor. (República, 411 c).
Junto ao leão, o timós, que não raro torna-se aliado da razão (República 440 b) a parte apetitiva da alma é uma besta fera e selvagem (tériodés te kai agrion), um bicho que é preciso nutrir, mas deixar bem preso. Neste campo, o desejo é comparado por Platão à fome ou sede. A democracia, lugar dos desejos irrefreados, é similar na sua sede de liberdade aos homens atendidos por péssimos servidores de vinho, os seus dirigentes. Nela, os cidadãos se embriagam de liberdade. Finalmente o desejo é comparado à uma corrente que carrega os homens. “Quando os desejos seguem violentamente rumo a um único objeto, sabemos, suponho, que eles têm menor força para tudo o mai, como uma corrente desviada numa só direção” (República, 485 d).
Quando se trata da questão do Mal, Platão também personifica os defeitos humanos. Na República, os defeitos são hóspedes que se instalam na alma do tirano como num albergue (580 a), enquanto a injustiça é um hóspede indesejável (367 a). A injustiça, o desprezo das leis, a desmesura são personalizadas na República (424 d, 610 e). O próprio Mal é um ser vivo correndo atrás dos humanos, mais rápido do que a morte (Apologia de Sócrates, 39 b). O malvado é uma fera selvagem, o filósofo no meio da multidão ignorante do bem é similar a um homem acuado por bichos ferozes (República, 496 d). Trasímaco é apresentado assim, antes de se jogar na discussão sobre a justiça e o direito do mais forte (República, 336 b-e). Na mesma República (588 b-e) a imagem é aplicada ao malvado, no sentido do monstro triplo. Conservar a calma é permanecer sóbrio (Fedro, 230 e). Quem perde o controle está bêbado de amor (Fedro, 240 e), de prazer (Critias, 121 a), de medo (Leis, 639 a-b). A alma serena é como um mar calmo (Fedon, 84 a). Mas tal calma é adquirida numa guerra contra os vícios. A virtude é um combate contra as paixões e os prazeres (Laches, 191 d).
Tendo-se em vista essas imagens do mal, pode-se passar ao problema do Estado (63), exposto como um organismo. Nas Leis, o Ateniense nota que um regime político, como um corpo, tem muitas ocasiões para se desagregar (945 c). O mundo político onde os cidadãos desrespeitam a justiça e a moral, é doente, e o malvado é uma peste (Protágoras, 322 d, República 552 c). A sociedade adoece quando mal governada, ou quando a discórdia a estraçalha. A grandeza de Atenas sob Péricles é descrita como um inchaço doentio (Górgias, 518 e 519 a, República, 372 a). Tal doença torna a sociedade fraca. Um máu governo é um corpo fraco, que o menor abalo externo basta para adoecer (República, 556 e). O legislador deve cuidar da saúde do corpo político, como um médico, para lhe dar ou conservar a saúde. Ou então, ele é o dirigente de um navio, um piloto, no meio das ondas causadas pelos outros Estados. Quando faltam os pilotos, os passageiros do Estado sentem a flutuação do mar e têm medo, insegurança. (Leis, 758 a).
Paremos essa resenha, baseada na exploração minuciosa de Pierre Louis, e retornemos ao texto spinozano. Embora Spinoza leve em conta os problemas apresentados por Platão (e pela ordem moral imperante no Ocidente), ele apresenta uma reversão perceptível de imediato no diagnóstico do Estado, do regime político, do mal e das afecções humanas. Sigamos a parte Quarta da Ética desde o começo.
Se Platão indica que a alma deve governar despóticamente os desejos, sendo estes últimos servos dela, quando indivíduos ou povos não dominam assim as suas paixões, eles se tornam escravos de escravos. Spinoza parece seguir o mesmo pensamento quando afirma ser a servidão humana a impotência para governar, ou moderar as afecções. Quando submetido às afecções, o homem não é sui iuris, não segue a sua própria lei (não é autônomo, diria um kantiano) mas obedece a Fortuna, cujo poder sobre ele é tal que o constrange a, mesmo vendo o melhor, seguir o pior.
Spinoza propõe-se, logo, explicar a causa desse estado em que o indivíduo, atônito, não consegue unir o que é melhor com a sua ação, mas obedece o pior mesmo ao ver o melhor. O “melhor” seria o que o tornaria sui iuris, o “pior” o que o joga na incerteza externa da Fortuna. Os leitores de Maquiavel percebem que os termos usados por Spinoza são extraídos da análise executada pelo Florentino sobre o poder, o problema da sua manutenção ou perda. Como analisar o mando político e o controle das paixões, sem discutir as teses tradicionais sobre a perfeição e a imperfeição do Estado e dos indivíduos, do bem e do mal que os ameaçam ou salvam ? Para entendermos todo esse movimento noético, recordemos o vínculo entre o mal e o poder, em Platão, como os apresentamos acima. É nuclear, para entendermos a política platônica a ser recusada por Spinoza, discutirmos a noção de paradigma.
"Paradigma" surge num campo da língua grega que se liga deiknumi, cujo sentido é "mostrar", "demonstrar", "indicar". Quando acrescido da partícula "para", significa "mostrar, fornecer um modelo". Termo importante na técnica dos oradores. (64) A raiz deik-, por sua vez, refere-se ao ato de "mostrar mediante a palavra", mostrar "o que deve ser", donde a conseqüência de união com dike a lei, a regra. (65) Uma interpretação do pensamento platônico, pelo menos em determinadas passagens, coloca o paradigma como ilustração de uma evidência sensível que remete para uma necessidade inteligível. (66)
A noção de paradigma cobre, na Antiguidade, os campos hoje distantes da ciência, da técnica, das artes. A filosofia deu-lhe vários estatutos, todos eles capitais para as atitudes éticas herdadas por nós. Na expressão grega, paradeigma tem a ressonância de modelo, exemplo, plano de arquiteto. Em Heródoto (5, 62), o termo é usado para indicar o esforço dos atenienses na construção do templo, em Delfos: "sendo muito ricos e, como seus pais, homens de reputação, eles trabalharam no templo para que ele tivesse uma forma mais bela do que a posta no paradigma". (67) O contexto dessa passagem de Heródoto é de luta política contra o despotismo. Nela, o elemento político une-se à ética e à estética.
Em Platão, o termo refere-se, entre vários reflexos semânticos, ao modelo do pintor. Na República (500e), Sócrates discute com Adimantos sobre o homem ético e sábio, cujo pensamento está fixado nas coisas eternas e verdadeiras. Um tal homem não tem lazer para inspecionar as mesquinharias dos indivíduos comuns mas dirige seus olhos para o eterno, com sua ordem imutável. Quanto mais admira as coisas eternas, mais ele se produz à sua semelhança e assimila a si mesmo a elas. Após várias considerações sobre o povo, e seu modo inconstante de viver e opinar, Sócrates retoma a tese de que, à semelhança do homem reto, a cidade apenas será feliz "se as suas linhas forem traçadas por artistas em pintura, os quais usam o paradigma celeste". (68) No mesmo diálogo, de 591c até 592b, lemos que o homem reto une à saúde física a justiça sapiente, operando de modo a estabelecer harmonia entre sua alma e seu corpo. Desse modo, ele será o músico verdadeiro, afastando a desmedida que impera na multidão, no relativo às riquezas. Ele enxerga a harmonia de sua alma, fuge do excesso ou da falta de bens. Tal homem fará, com prazer, em público ou em privado, tudo o que não dissolva o hábito (de hexis, donde "ética") de sua alma. Assim, ele não irá voluntariamente se misturar à política. Sua participação será dirigida para a cidade, não a de seu nascimento, mas a que é descrita na República, "cujo modelo (paradigma), talvez esteja no céu, para quem deseja contemplá-la e se tornar seu cidadão. Mas não faz diferença alguma se ela existe agora ou se ela está sempre se tornando. A política dessa cidade sempre será apenas dele, e de nenhum outro". E assim termina o livro 9 da mais eminente obra sobre ética e política de nossa cultura. No trecho, encontramos vinculados exemplos das artes, da música entre outras, com a busca da medida ética e cívica. Platão julga ser necessário forçar o homem reto e sábio a se comprometer com a vida política, mesmo que ele, voluntariamente, respire melhor na celeste harmonia.
No Timeu, o filósofo distingue, na teorização do universo, o que sempre é e não tem devir e o que está em devir e nunca é. O primeiro pode ser captado pelo pensamento com a ajuda da razão, pois é idêntico a si mesmo, enquanto o outro é conjecturável pela opinião com a ajuda da sensação desprovida de razão, pois é gerada e perece. Aliás, tudo o que nasce deve necessariamente nascer de uma causa, pois nada pode, sem causa, nascer. Assim, pois, quando o operário (demiurgo) que forma um objeto, com os olhos fixos no imutável, toma um modelo (paradigma) desse tipo, aquele objeto, executado desse modo, deve necessariamente ser belo; mas sempre que ele olha para o que vem à existência e usa um modelo (paradigma) produzido, o objeto assim executado não será belo (28 a-c). E Platão passa a discutir o Demiurgo ou Pai do cosmos, interrogando "qual modelo (paradigma) foi usado pelo Arquiteto para construí-lo? Foi o que é sempre idêntico a si mesmo e uniforme, ou segundo o que vem à existência? Ora, se o cosmos é belo e seu construtor é bom, é claro que ele fixou os olhos no que sempre é". Portanto, "ele construiu o cosmos segundo o modelo do perceptível pelo pensamento e pela razão, e, pois, é idêntico a si mesmo". (69)
Segundo Henri Martin, a presença constante do termo "paradigma" reforça a interpretação do pensamento platônico segundo a qual, para ele, com exceção de uma só essência, a indivisível e imutável, todas as demais essências das coisas nada oferecem de estável, sendo, portanto, estranhas ao domínio da ciência. O demiurgo, o fabricante do cosmos a partir das idéias que ele contempla, e da matéria preexistente, é descrito no Timeu em várias formas de trabalho técnico e artístico. Ele é um modelador de cera, um operário que recorta a madeira, um construtor que sintetiza todos os elementos, um fabricante (poietés). (70) Nem é preciso recordar a polissemia de poietés, no transcurso da história ocidental. Fala-se muito do ódio platônico aos artistas. Mas não se toma em suficiente conta as expressões da beleza no artifício chamado cosmos, resultado de um trabalho artístico. Conhecemos os lugares comuns da história da filosofia sobre Platão, "inimigo das artes" e defensor da ciência. Todas as modernas objeções à teoria platônica da arte estão centradas na assertiva de que o seu racionalismo o impede de reconhecer o caráter específico da criação artística. Ele é acusado de modelar a arte segundo a ciência, a qual deve copiar a natureza do modo mais verdadeiro possível. Diz-se ter ele esquecido que a arte verdadeira não copia uma realidade existente, mas cria uma nova realidade que brota da fantasia própria ao artista, e que o caráter espontâneo dessa expressão garante o valor independente das puras qualidades estéticas. Não irei ampliar este ponto, bem discutido por W.J. Verdenius. (71)
Hans-Georg Gadamer, analisa o Timeu e retoma a idéia de Platão de que o paradigma deve ser único, porque ele serve ao demiurgo para moldar o universo, o qual tudo inclui em si mesmo. Entre o paradigma e as suas cópias, estas são múltiplas, haveria uma diferença importante. Sobretudo após a moderna hegemonia romântica, que potenciou o cristianismo, para o qual o universo é criado por Deus a partir do nada, (72) foi desvalorizado o difícil trabalho do "poeta" demiurgo, que luta com a matéria rebelde e fluente para construir um artefato. O mundo da arte, como o da religião, invoca um Deus onipotente, o qual "cria" o universo ex nihilo. Essa idéia, aplicada ao gênio romântico, afastou os termos "modelo", "imitação", e outros, essenciais no argumento platônico.
De Platão aos nossos dias, encontramos nas teorizações sobre a natureza, a sociedade, o homem, paradigmas extraídos especialmente do nosso próprio corpo, ou dos instrumentos por nós produzidos. Ou projetamos o cosmos e o social como imenso corpo, e ampliamos ao máximo o modelo do organismo, ou ideamos o universo na figura de refinada máquina, construída por um demiurgo, cujo ato devemos repetir. À linhagem mecânica, de Platão a Hobbes e aos philosophes das Luzes, contrapõe-se a seqüência orgânica, seguindo de Aristóteles aos estóicos, e deles aos românticos. Evidentemente, nenhum desses paradigmas foi utilizado, sempre, de modo unívoco ou sem "contaminações", pelo seu oposto. Nem tudo em Aristóteles é "orgânico". Georges Canguilhem mostra as dificuldades encontradas, nesse sentido, para se definir uma ou outra perspectiva. (73)
No Renascimento teve enorme impulso o paradigma instrumental, mecânico, o que repercutiu até no século XX. Entre inumeráveis exemplos, tomemos o do matemático Henri de Monantheuil, que apresentou, na trilha do Timeu, Deus como um mechanikos e mechanopoios, com o resultado de que o mundo seria "a máquina mais eficaz, sólida e bela de todas as máquinas" (Mundus enim hic machina est, quidem machinarum maxima, efficacissima, firmissima, formosissima). (74)
Mas voltemos a Platão, e ao nexo entre paradigma e conceito. Como vimos, o paradigma abarca figuras instrumentais, ofícios, técnicas, para tentar uma aproximação da realidade. Naquela palavra, temos uma gama de ressonâncias plásticas, científicas, jurídicas, éticas. Nos próprios textos platônicos, especialmente no Timeu, toda a imagética mecânica não exclui figuras de ordem vital. (75)
Passada a inspeção do conceito de paradigma, voltemos ao texto da Quarta parte da spinozana. O filósofo toma como fio condutor de sua análise das afecções e da ordem política, tendo como foco o problema do mal, o fato da produção técnica e artística segundo paradigmas. “Quem faz uma coisa e a terminou diz que ela está perfeita. E não apenas ele, mas todos os que tiverem conhecimento exato da intenção do autor de tal obra e o seu fim, ou que acredita ter semelhante conhecimento. Por exemplo: se alguém enxerga uma obra não acabada e sabe que o fim do seu autor é construir uma casa, dirá que a casa está imperfeita. Dirá no entanto que está perfeita, quando perceber que a obra chegou ao fim que o autor queria efetivar. Mas se alguém vê uma obra, nunca tendo visto coisa igual e desconhecendo o fim do do artista (opificis), não poderá saber se a obra está perfeita ou imperfeita.”. Ética.
A raison d´État, portanto, encontra-se na urgência de ser refeita a máquina da instituição política, segundo os seus interesses próprios e nunca segundo os interesses de outros engenhos estatais. "A força para conservar a si mesmo é o supremo e único fundamento da virtude" (Ética). O que vale para os indivíduos, impera nos Estados. A razão, no caso, é a forma e o ato pelos quais um povo, caso o regime seja democrático, alguns dirigentes em caso de aristocracia ou oligarquia, ou um monarca cuida de conservar intacto o mecanismo e a força do Estado em seu proveito, durante o maior tempo possível. Todas as astúcias podem e devem ser movidas neste empenho, desde que não sejam colocadas contra o povo. A raison d´État, no sentido spinozano, difere portanto das outras doutrinas sobre o tema, mas continua fiel à lógica maquiavélica, repúblicana. A novida é que ela é democrática. Se isto é algo possível, ainda estamos longe de concluir, positiva ou negativamente. Pelo que parece, o movimento da racionalidade estatal contemporânea segue mais rumo à desrazão, do que à razão de Estado.
Notas
(1) “A transparência democrática, esperanças e ilusões” in O Caldeirão de Medéia (São Paulo, Editora Perspectiva, 2001).
(2) Cf. “Institutio arcanae. Théorie de l´institution du secret et fondement de la politique”. In Lazzeri, Christian, e Reynié, D. : Le pouvoir de la raison d´état. Paris, PUF, 1992, pp. 135 e ss.
(3) O termo e o plano político aberto por ele foi exaustiva e profundamente estudado por Claude Lefort, Machiavel, le travail de l´oeuvre, Paris, Gallimard, 1973.
(4) René de Criziers, Le Tacite français avec des réflexions chrétiennes et politiques sur la vie des rois de France. Paris, 1648, citado por Goni, p. 139.
(5) Análise de A. Lévy, “Évaluation étymologique et sémantique du moto `secret`. in Du secret. Nouvelle revue de psychanalise. 14, 1876. Goni, p. 137.)
(6) Cf. “A razão terrorista”, in Mosaico, Revista da Fundação João Pinheiro, fevereiro de 2002, incluído acima nesta coletânea.
(7) Edição italiana de Giovanni Macchia: Breviario dei Politici, secondo il Cardinale Mazzarino. Milano, Rizzoli Ed., 1981.
(8) Cf. Curtius, E. : La littérature et le moyen âge latin. Paris, PUF, 1956, p. 219.
(9) Analiso extensamente este ponto num capítulo de meu livro Lux in Tenebris, intitulado “Massa, poder e morte”. São Paulo, Ed. Unicamp, 1987, pp. 23 e ss. Quanto aos textos sobre a escrita secreta, é possível consultar alguns escrito na internet, como o Steganographia de João de Trittenheim . Cf. http://www.esotericarchives.com/tritheim/stegano.htm
(10) Cf. Torture and Truth. London, Routledge Ed., 1991.
(11) Roberto Romano, O Caldeirão de Medéia. pp. 139 e ss. em especial pp. 140-141.
(12) Cf. Lazzeri, Christian e Reynié, Dominique: “Introduction” ao livro La raison d´Etat: politique et rationalité. Paris, PUF, 1992, pp. 9 e ss.
(13) Lembro apenas três textos fundamentais para se entender uma parte deste rico pensamento: o volume de Laurent Thirouin, Le hasard et les règles. Le modèle du jeu dans la pensée de Pascal. Paris, Vrin, 1991, e o pequeno grande livro de Gerard Lebrun, BlaisePascal, Coleção Encanto Radical, São Paulo, Brasiliense, 1983, além do clássico de Sainte Beuve, Port Royal, Paris, Gallimard. 3 volumes.
(14) Cf. Brès, Yvon. La Psychologie de Platon, Paris, PUF, 1973. sobretudo pp. 362 e ss. Brès comparar a técnica platônica à dos “persuasores escondidos”, que operam no mercado econômico e político de nossos tempos. Cf. Vance Packard, The Hidden persuaders, NY, David and Co., 1957. Tradução francesa : La persuasion clandestine, Paris Calman Levy, 1958.
(15) Cf. Barnes. H. E. e Becker, H. : Historia del Pensamiento Social. trad. Vicente Herreo, Mexico, FCE, 1945, V. I. pp. 311 e ss.
(16) Uso a edição de C. Edward Rathé, Anti-Machiavel, Droz, Genève, 1968.
(17) Cf. Viroli, Maurizio. Machiavelli (Oxford University Press, 1998), p. 49. Viroli cita Guicciardini, no Diálogo sobre o Governo de Florença. Importante também a nota do mesmo Viroli sobre a idéia de Estado em Maquiavel, segundo os comentadores de hoje: “O significado da palavra stato foi discutido em vasta literatura acadêmica. Em contraste com a opinião de Francesco Ercole, La politica di Machiavelli ( Rome: ARE, 1926), 123-42, Fredi Chiappelli afirma que ´no Principe,o genuino tratado político de Maquiavel, a palavra stato denota, com poucas exceções, a organização política do povo sobre um território independente da forma particular de governo ou regime —ou seja, a moderna noção abstrata de Estado; ver Studi sul linguaggio di Machiavelli ( Florence: Le Monnier, 1952), 59-68. Uma opinião oposta é sugerida por Jack H. Hexter, o qual sustenta que o Principe não contem a concepção do Estado como um corpo político abstrato que transcende os indivíduos que o compõe ou governam; cf. The Vision of Politics on the Eve of the Reformation: More, Machiavelli, and Seyssel ( New York: Basic Books, 1973), 150-78. Cf. também Quentin Skinner, "'The State'", in Terence Ball, James Farr, and Rusell L. Hanson (eds.) Political Innovation and Conceptual Change ( Cambridge: Cambridge University Press, 1989), 90-131.” Viroli, Machiavelli, nota 33, op. cit.
(18) Della ragion di Stato, Veneza, 1589.Cf a edição sob os cuidados de Chiara Continisio, Roma, Donzelli Editore, 1997. Cf. também M. Senellart, Machiavélisme et raison d´Etat, Paris, PUF, 1989.
(19) Sobre a história dessas aproximações entre Maquiavel e a Companhia de Jesus, leia-se Michel Leroy, Le Mythe Jésuite. De Béranger à Michelet. Paris, PUF, 1992. Também, Basançon, Alain: Les origines intellectuelles du léninisme. Paris, Calman Lévy, 1977.
(20) Roberto Romano : Brasil, Igreja contra Estado, SP, Kayrós, 1979.
(21) Roberto Romano. Conservadorismo romântico origem do totalitarismo. SP, Ed. Unesp 1997 (1a ed. SP, Brasiliense, 1981) e Roberto Romano, “O pensamento conservador” in O Caldeirão de Medéia, SP, Perspectiva, 2001, pp. 247 e ss.
(22) Cf. Watt, John A. : The Theory of Papal Monarchy in the Thirteenth Century. The contribution of the canonists. NY, Fordham University Press, 1965. Também Robinson, I.S. The Papacy, 1073-1198. Continuity and Innovation. NY, Cambridge University Press, 1993. Também Tellenbach, G. The Church in Western Europe from the tenth to the early twelfth century. NY, Cambridge, 1996. Cf. Roberto Romano “Igreja domesticadora de massas?” e “Lembra-te de que és homem: governantes e juízes no Policraticus de Jean Salisbury”, in O Caldeirão de Medéia. ed. cit.
(23) Cf. As teses desenvolvidas a partir de agora devem-se a Alexandre Matheron, especialista na filosofia política spinozana, em escrito longo e rigoroso coletado no livro de Christian Lazzeri e Dominique Reynié: La raison d´État, politique et rationalité (Paris, PUF, 1992).
(24) “Denique quia omnes homines, sive barbari sive culti sint, consuetudines ubique iungunt et statum aliquem civilem formant, ideo imperii causae et fundamenta naturalia non ex rationis documentis petenda, sed ex hominum communi natura seu conditione deducenda sunt, quod in sequenti capite facere constitui.”
(25) “Concludo itaque, communia illa pacis vitia, de quibus hic loquimur, nunquam directe, sed indirecte prohibenda esse, talia scilicet imperii fundamenta iaciendo, quibus fiat, ut plerique, non quidem sapienter vivere studeant (nam hoc impossibile est), sed ut iis ducantur affectibus, ex quibus reipublicae maior sit utilitas. Atque adeo huic rei maxime studendum, ut divites si non parci, avari tamen sint. Nam non dubium est, quin, si hic avaritiae affectus, qui universalis est et constans, gloriae cupidine foveatur, plerique rei suae sine ignominia augendae summum ponant studium, quo honores adipiscantur et summum dedecus vitent.”.
(26) “Unaquaeque res, quantum in se est, in suo esse perseverare conatur”. Ética, Tradução Aphhun, páginas 260-261 e portuguêsa, página 275.
(27) “Quicquid Corporis nostri agendi potentiam auget, vel minuit, juvat vel coercet, ejusdem rei idea Mentis nostrae cogitandi potentiam auget vel minuit, juvat vel coercet”.
(28) Escólio da proposição: “entendo por alegria a paixão pela qual a mente passa a uma perfeição maior, por tristeza a paixão pela qual a mente passa a uma perfeição menor.” (Aphhun, páginas 266-267 e seguintes ; portuguêsa página 278 e seguintes).
(29) Faço, nas passagens acima, uma paráfrase do próprio Spinoza. Cf. Apphun, páginas 162-163.
(30) Escólio: “Esta imitação (imitatio) das afecções, quando ocorre diante de uma tristeza, chama-se comiseração, mas quando diante de um desejo, torna-se emulação, que nada mais é do que o desejo de uma coisa, engendrado em nós por termos imaginado que outros seres similares a nós têm dela o desejo.”
(31) “ Hoc ius, quod multitudinis potentia definitur, imperium appellari solet. Atque hoc is absolute tenet, qui curam reipublicae ex communi consensu habet, nempe iura statuendi, interpretandi et abolendi, urbes muniendi, de bello et pace decernendi, etc. Quod si haec cura ad concilium pertineat, quod ex communi multitudine componitur, tum imperium democratia appellatur, si autem ex quibusdam tantum selectis, aristocratia, et si denique reipublicae cura et consequenter imperium penes unum sit, tum monarchia appellatur.”
(32) “Praeterea certum est, unumquemque malle regere, quam regi. “Nemo enim volens imperium alteri concedit(…) Ac proinde patet, quod multitudo integra nunquam ius suum in paucos aut unum transferet, si inter ipsam convenire possit, nec ex controversiis, quae plerumque in magnis conciliis excitantur, in seditiones ire. Atque adeo multitudo id libere tantummodo in regem transfert, quod absolute in potestate ipsa habere nequit, hoc est, controversiarum diremptionem et in decernendo expeditionem. Nam quod saepe etiam fit, ut rex belli causa eligatur, quia scilicet bellum a regibus multo felicius geritur, inscitia sane est, nimirum quod, ut bellum felicius gerant, in pace servire velint; si quidem pax eo in imperio potest concipi, cuius summa potestas sola belli causa in unum translata est, qui propterea virtutem suam et quid omnes in ipso uno habeant, maxime in bello ostendere potest; cum contra imperium democraticum hoc praecipuum habeat, quod eius virtus multo magis in pace, quam in bello valet. Sed quacumque de causa rex eligatur, ipse solus, ut iam diximus, quid imperio utile sit, scire nequit; sed ad hoc, ut in praeced. art. ostendimus, necesse est, ut plures cives consiliarios habeat…”
(33) TP, III/9 : “Tertio denique considerandum venit, ad civitatis ius ea minus pertinere, quae plurimi indignantur. Nam certum est, homines naturae ductu in unum conspirare, vel propter communem metum vel desiderio damnum aliquod commune ulciscendi; et quia ius civitatis communi multitudinis potentia definitur, certum est, potentiam civitatis et ius eatenus minui, quatenus ipsa causas praebet, ut plures in unum conspirent. Habet certe civitas quaedam sibi metuenda, et sicut unusquisque civis, sive homo in statu naturali, sic civitas eo minus sui iuris est, quo maiorem timendi causam habet”
(34) “[…] tradenda est via et methodus, qua res, quae sunt cognoscendae, tali cognitione cognoscamus. Quod ut fiat, venit prius considerandum, quod hic non dabitur inquisitio in infinitum ; scilicet ut inveniatur optima methodus verum investigandi, non opus est alia methodo, ut methodus veri investigandi investigetur ; et ut secunda methodus investigetur, non opus est alia tertia, et sic in infinitum. Tali enim modo nunquam ad veri cognitionem, imo ad nullam cognitionem perveniretur. Hoc vero eodem modo se habet, ac se habent instrumenta corporea, ubi eodem modo liceret argumentari. Nam ut ferrum cudatur, malleo opus est, et ut malleus habeatur, eum fieri necessum est ; ad quod alio malleo, aliisque instrumentis opus est, quae etiam ut habeantur, aliis opus erit instrumentis, et sic in infinitum ; et hoc modo frustra aliquis probare conaretur, homines nullam habere potestatem ferrum cudendi. Sed quemadmodum homines initio innatis instrumentis quaedam facillima, quamvis laboriose et imperfecte, facere quiverunt, iisque confectis alia difficiliora minori labore, et perfectius confecerunt, et sic gradatim ab operibus simplicissimis ad instrumenta, et ab instrumentis ad alia opera, et instrumenta pergendo eo pervenerunt, ut tot et tam difficilia parvo labore perficiant, sic etiam intellectus vi sua nativa facit sibi instrumenta intellectualia, quibus alias vires acquirit ad alia opera intellectualia, et ex iis operibus alia instrumenta seu potestatem ulterius investigandi ; et sic gradatim pergit, donec sapientiae culmen attingat.”
(35) Tratado Teológico-Político, Capítulo 17. Oeuvres complètes de Spinoza, Paris, Gallimard (La Pleiade), 1954. No caso desta citação, cf. p. 905.
(36) Para a história e os fundamentos gregos da igualdade, cf. Ada Neschke-Hentschke: Platonisme Politique et Droit Naturel. Contributions à une archéologie de la culture politique européenne. Louvain/Paris, Édtions de l ´Institut Supérieur de Philosophie, Université Louvain-la-Neuve, 1995.
(37) Cf. Carta a Jarig Jelles (02/06/1674). Ed. cit. p. 1286.
(38) “Spinoza considera cada indivíduo como tendo transferido todos o seu poder e portanto omne jus suum, à comunidade, a qual possui absoluto poder sobre todos os homens (Tratado Teológico-Político, capítulo 16, Tratado Político, capítulos 3 e 4). Mas a autoridade do Estado é limitada pelo menos pela lei natural com seu próprio poder. Não pode ser o caso realmente de nenhuma ordem, nem pode o dirigido realmente transferir tudo, porque ele permanece homem, um ser espitirual e moralmente livre. Mais especialmente, o indivíduo reserva para si mesmo o poder de pensar o que gosta e expressar suas opiniões oralmente ou por escrito. Mas onde o poder de Estado acaba, acaba também o seu direito; e a razão, que sempre considera seu próprio interesse, impele o Estado a limitar a si mesmo, para que ele não perca o seu poder, e o seu direito, devido à resistência. Nesta via o Estado consegue um conhecimento do ´ditado da razão´ —o seu verdadeiro objeto não é a dominação, mas a liberdade (Tratado Teológico-Político, capítulos 16, 17,).
(39) Este e outros importantes textos do autor podem ser encontrados no Foglio Spinoziano Cf. http://www.fogliospinoziano.it/articoli.htm
(40) Lucia Nocentini in http://www.fogliospinoziano.it/ethica_bull.htm. Retomo aqui, literalmente, os passos de meu artigo “A igualdade, considerações críticas”, publicado no Foglio Spinoziano e na Revista Brasileira de Direito Constitucional.
(41) Nocentini cita Matheron: “Nenhuma diferença, por conseguinte, entre as leis jurídicas e as leis físicas: umas e outras são as regras uniformes pelas quais se exprime a vida de uma essência individual (…) o imperium, não mais do que o homem, não é império num império; mas, como o homem, e como não importa qual ser, ele constitui uma totalidade fechada em si e dotada, por esta razão, de uma autonomia relativa (…) compreendemos, assim, as relações entretidas pelo indivíduo humano com o indivíduo Estado onde ele se itegra. Estas relações são duplas. De uma parte, os súditos são a causa imanente da sociedade política (…) Este movimento ascensional pode se efetuar mais ou menos bem, mas sua parada completa significaria a destruição do corpo social. Se o Estado existe, em definitivo, é apenas na medida em que os seus membros o desejam; que eles deixem de aceitá-lo, e logo ele desaparecerá. Mas de outro lado, o Estado, uma vez produzido, apresenta se aos súditos sob a forma da transcendência (…)Transcendência e imanência (…) devem achar um justo equilibrio. Tal é o papel das instituições (…) Um excesso de imanência nos conduziria ao estado de natureza. Um excessso de transcendência igualmente, pois ele significaria tirania, descontentamento e revolta”. Cfr. A. MATHERON, Individu et communnauté chez Spinoza, Paris, Les Editions de Minuit, 1969, pp. 348, 350. O debate sobre o “maquiavelismo” de Spinoza consome imensos rios de tinta. Para uma discussão recente, leia-se Paolo Cristofolini, 'Spinoza e l’acutissimo fiorentino' (2001) publicado na internet: http://www.fogliospinoziano.it/artic9b. Veja -se a consideração crítica deste trabalho em Wim Klever: “Imperium Aeternum. Spinoza‘s Critique of Machiavelli and it‘s source in Van den Enden”, mesmo endereço eletronico.
(42) Cf. Matheron A. op. cit. p. 143. As ilações que faço a seguir são retomadas totalmente deste comentador.
(43) Cf. Laux, Henri: Imagination et Religion chez Spinoza. La potentia dans l ´Histoire. Paris, Vrin, 1993.
(44) É banal entre os comentadores de Hobbes a análise centrada nesse ponto batido, muito batido na política do filósofo. No Brasil, leia-se o texto de Renato Janine Ribeiro, Ao leitor sem medo, SP. Brasiliense, 1984.
(45) Matheron, p. 145.
(46) Maria Luisa Ribeiro Ferreira, op. cit. p. 504.
(47) Idem, ibid. p. 517.
(48) Cf. Verniere, Paul. Spinoza et la pensée francaise avant la revolution, (Paris, PUF, 1954).
(49) Esta certeza foi enunciada de maneira peremptória por Jacques Maritain em sua obra maior intitulada Distinguer pour unir, les degrés du savoir. Sobre este eminente autor, cf. Roberto Romano, “Maritain filósofo dos matizes” in Corpo e Cristal, Marx romântico (RJ, Ed. Guanabara, 1987), pp. 141 e ss.
(50) Estudo há bom tempo esta doutrina hierárquica. Considero os seus detalhes desde a minha tese de doutoramento sobre a Igreja e a política (Cf. Roberto Romano, Brasil: Igreja contra Estado, SP, Kayrós Ed. 1979). Ainda julgo insuficientes os elementos teóricos para publicar um livro sobre o tema. Mas penso que ele é essencial para se entender os pressupostos da política católica, tanto no interior quanto no relacionamento da Igreja com a sociedade civil e política. Desde Lorenzo Valla, o estudo desse autor foi modificado, a partir do seu próprio nome. A partir das análises filológicas de Valla, a lenda que envolveu a suposta presença de Dionisio no areópago, quando Paulo de Tarso pregou aos incrédulos gregos o Cristo. Todo o tema é difícil e fascinante, mas não posso desenvolver, aqui, os seus meandros. Os leitores que desejem informações sobre o assunto, leiam os textos do próprio Dionísio. Uso para os fins deste trabalho a edição dirigida por Maurice de Gandillac, Oeuvres complètes du Pseudo-Denys, l´Aréopagite (Paris, Aubier, 1943), e também a edição magistral da Hierarquia Celeste (Cf. Roques, René, Heil, Günter, et Maurice Gandillac : Denys l ´Aréopagite, L´Hierarchie céleste, Paris, Cerf, 1958). Para uma síntese compreensiva do problema, cf. Paul Tillich : A History of Christian Thought. From its Judaic and Hellenistic Origins to Existentialism (NY, Touchstone Book, 1967).
(51) Ainda hoje um livro sugestivo é o escrito por Arthur O. Levejoy: The Great Chain of Being (Cambridge, Harvard University Press, 1936 e 1964). Para o assunto tratado neste ponto de minha exposição, cf. o capítulo III, “The chain of being and some internal conflicts in medieval thought”, pp. 67 e ss.
(52) Uma análise mais ampla desta problemática é feita por mim em trabalho já antigo : Cf. “Lux in Tenebris. Franciscanos e Dominicanos, utopia democrática”, in Lux in Tenebris. Meditações sobre Filosofia e Cultura. SãPaulo, Unicamp Ed., 1987, pp. 31 e ss.
(53) Cf. “Farinata e Cavalcante” in Mimesis. A representação da Realidade na Literatura Ocidental. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971, pp. 161-162.
(54) Cf. Burke, Peter : A fabricação do Rei. A construção da imagem pública de Luis XIV. (RJ, Zahar Ed., 1994).
(55) Cf. L´Ancien régime et la Révolution (Paris, Gallimard, 1967), páginas 77-78.
(56) Op.cit. páginas 78- 80.
(57) Op. cit. capítulo III: “Comment ce qu´on appelle aujourd´hui la tutelle administrative est une institution de l ´ancien régime”, página 110 e seguintes.
(58) Na Regência de Filipe d´Orleans, com o caixa vazio, o primeiro ministro nomeado em 1722, Cardeal Dubois, tentou todo tipo de artificio para encher os cofres reais. Entre outros, estavam as artimanhas ficanceiras de Law, que desejou instalar o monopólio das finanças e do comércio para o Estado, cujos lucros diminuiriam as dívidas reais. Em 1716, foi criado o Banco Geral (Banque Générale) com capital predominante do governo francês. Mais tarde, criou-se o Banco Real (Banque Royale), com notas garantidas pelo rei. Um empreendimentos de Law era a Companhia Perpétua das Indias (1719). Toda a sua operação dependia dos negócios da Louisiana, cuja força foi super-dimensionada por Law e por seus propagandistas. Com a especulação, as ações da companhia subiram ao máximo mas em 1720 houve a desconfiança do mercado, caindo as ações em 1720. O Estado quase faliu.
(59) Cf. Cassirer, Ernst: The Myth of the State (New Haven/London, Yale University Press, 1956), página 143.
(60) “Da servidão Humana, ou da força das afecções”.
(61) Cf. Louis, Pierre: Les Métaphores de Platon. (Rennes, Imprimeries Réunies, 1945), páginas 113 e seguintes. Todas as indicações que faço a seguir derivam desta fonte.
(62) Uso a tradução do Fedon proposta por Leon Robin: Oeuvres Complètes de Platon (Paris, Gallimard, Ed. Pléiade, 1950), Volume I, página 778.
(63) Sigo sempre o comentário de Pierre Louis, sem nada acrescentar nestes passos.
(64) Cf. Chantraine, P. : Dictionnaire étymologique de la langue grecque (Paris, Klinksieck, 1983), página 257.
(65) Cf. Benveniste, E. : Vocabulario de las instituciones indoeuropeas. (Madrid, Taurus, 1983), páginas 301 e 303.
(66) Cf. Goldschmidt, V. : Les dialogues de Platon. Structure et methode dialectique. (Paris, PUF, 1947), página 207.
(67) Cito segundo a tradução de A.D. Godley, na Loeb Classical Library: Herodotus (Cambridge, Harvard University Press, 1971), Volume III, páginas 66 e 67.
(68) Sigo a tradução de P. Shorey na Loeb Clasical Library, Plato in 12 volumes, The Republic, T.VI, II, páginas 68 a 71.
(69) Cito segundo a tradução de H. Martin: Le Timée de Platon (Paris, Vrin, 1981), págnas 82 a 85.
(70) Cf. Brisson, L. : Le Même et l ´Autre dans la structure ontologique du Timée de Platon (Paris, Klincksieck, 1974), página 31 e seguintes.
(71) “Plato´s doctrine of artistic imitation” in Vlastos, Gregory: Plato. A collection of critical Essays. Ethics, politics, and philosophy of art and religion. Volume 2, (Notre Dame, University Press, 1971), página 259 e seguintes.
(72) A operação mental cristã, baseada no platonismo médio (inaugurado no primeiro século antes de Cristo por Antíoco, e desenvolvido em sentido místico por Numenius), extrai certos elementos do texto platônico, deixando outros na sombra. No caso do Timeu, sobretudo de 28c, trecho que estamos apreciando, há um deslizamento semântico, quando se vai do texto platônico aos padres da Igreja. "Em Platão, o texto designa o Demiurgo, distinto do Bem. Ora, o médio platonismo identifica um e outro: o Deus criador é o Deus supremo". Clemente de Alexandria, padre apologeta, atribui ao filósofo grego a crença "na criação do mundo ex nihilo". Cito Jean Daniélou: Message évangélique et culture hellénistique. (Tournai: Desclée & Co., 1961), página 104 ss.
(73) “Devemos, na realidade, fazer descer até Aristóteles a assimilação do organismo a certa máquina (...) Aristóteles encontrou, na construção das máquinas de guerra, como as catapultas, a permissão de assimilar a movimentos mecânicos automáticos os movimentos dos animais. (...) Ele assimila efetivamente os órgãos do movimento animal aos `organa', ou seja, partes de máquinas de guerra, por exemplo, o braço de uma catapulta que vai lançar o projetil (...) Ele foi fiel, neste ponto, a Platão, o qual, no Timeu, definiu o movimento das vértebras como se fossem os de gonzos". Cf. Canguilhem, G. "Machine et organisme", in: La connaissance de la vie (Paris.Vrin, 1980) páginas 107-108.
(74) Henricus Monantholius: Aristotelis mechanicam Graeca emendata, latina facta, et comentariis illustrata (Paris, 1599), citado por Bredekamp, Horst: Nostalgia dell´antico e fascino della macchina. Il futuro della storia dell´arte. (Milano, Il Saggiatore, 1996), páginas 48 e 136.
(75) Taylor, A.E. : Plato, the man and his work. (NY, Meridian Books, 1957), página 41 e seguintes.