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sábado, 4 de novembro de 2017

Lutero como discípulo de Paulo e o cristianismo como religião do ressentimento. Entrevista especial com Andreas Urs Sommer, ihu.unisinos.

Lutero como discípulo de Paulo e o cristianismo como religião do ressentimento. Entrevista especial com Andreas Urs Sommer

Revista ihu on-line

Por: Márcia Junges | Tradução: Walter O. Schlupp | 04 Novembro 2017

“Em suas primeiras obras, Nietzsche, cujo pai era pastor luterano, apresentava uma relação bastante positiva com Lutero; em O Nascimento da Tragédia ele o coloca como pioneiro da cosmovisão dionisíaca. A par do seu distanciamento com seu mentor de outrora, Richard Wagner, Nietzsche vai se distanciando de Lutero. Agora o Reformador se apresenta como representante de uma cosmovisão retrógrada, como valentão da colônia e provinciano chauvinista alemão, até mesmo como restaurador de um cristianismo que, na verdade, já está fadado ao ocaso, como inimigo das ciências e da autoemancipação da pessoa humana.” A afirmação é de Andreas Urs Sommer, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

E acrescenta: “Também Paulo só recebe um papel central na obra tardia de Nietzsche. Ali ele é o inventor propriamente dito do cristianismo, “gênio do ódio”, que teria conseguido transformar a mensagem de Jesus numa religião do ressentimento de primeira categoria. Nisso, Nietzsche considera Lutero discípulo de Paulo, porém sem lhe atribuir a mesma importância: sua influência histórica teria sido de séculos, enquanto a de Paulo, de milênios.” Paulo seria o protagonista e Lutero, o “continuador dessa total inversão de intuições originariamente jesuínas.”

Andreas Urs Sommer | Foto: Friburg University

Andreas Urs Sommer é filósofo, professor catedrático de Filosofia, área de Filosofia da Cultura e especificamente Friedrich Nietzsche, na Universidade Albert Ludwig em Freiburg, Alemanha. Estudou nas Universidades de Basel, Göttingen e Freiburg. Publicou inúmeras obras, mais recentemente Nietzsche und die Folgen [Nietzsche e as Consequências] (Stuttgart: J. B. Metzler, 2017).

A entrevista é publicada na revista IHU On-Line, no. 514, cujo tema de capa é Lutero e a Reforma. 500 anos depois. Um debate.
Confira a entrevista.

IHU On-Line - A partir da crítica formulada por Nietzsche, quem é Lutero e o que é o Luteranismo?

Andreas Urs Sommer - Em primeiro lugar surpreende quão multifacetadas são as imagens que Nietzsche [1] tem de Lutero [2]. De forma alguma é possível aplicar a elas um denominador comum. Em suas primeiras obras, Nietzsche, cujo pai era pastor luterano, apresentava uma relação bastante positiva com Lutero; em O Nascimento da Tragédia ele o coloca como pioneiro da cosmovisão dionisíaca. A par do seu distanciamento com seu mentor de outrora, Richard Wagner [3], Nietzsche vai se distanciando de Lutero. Agora o Reformador se apresenta como representante de uma cosmovisão retrógrada, como valentão da colônia e provinciano chauvinista alemão, até mesmo como restaurador de um cristianismo que, na verdade, já está fadado ao ocaso, como inimigo das ciências e da autoemancipação da pessoa humana. Por outro lado, Nietzsche continua tendo em alta estima a tradução da Bíblia por Lutero; ele chega a imitar o jeitão do alemão bíblico de Lutero em sua obra Assim falou Zaratustra. Em suas obras tardias, Nietzsche acaba elaborando uma oposição sistemática entre Reforma [4] e Renascença.

IHU On-Line - Por que Nietzsche compreende a Renascença como uma transvaloração dos valores cristãos?
Andreas Urs Sommer - Para o Nietzsche tardio, a Renascença se constitui na tentativa de romper a moral escravista judaico-cristã que já prevalece há dois mil anos. As virtudes cristãs da negação do mundo, do ficar voltado para o além, da submissão e da compaixão teriam sido substituídas, com a Renascença, pela afirmação do mundo, orientação para o aquém, pela altivez e grandiosidade. Para Nietzsche, a Renascença, em seus grandes feitos culturais bem como em sua crueldade por vezes exorbitante, teria colocado no centro o grande indivíduo, para assim emancipá-lo da consciência suja cristã.

IHU On-Line - E qual é a razão pela qual Nietzsche diz que Lutero perdeu a grande chance de evitar a decadência alemã quando impediu a Renascença?
Andreas Urs Sommer - Em O Anticristo Nietzsche expõe o conflito histórico-universal entre a Renascença e a Reforma; Lutero aparece como o verdadeiro destruidor da emancipação dos vínculos cristãos que a Renascença conseguira. Renascença e Reforma, portanto, não são vistas como geralmente ocorre na historiografia iluminista, como movimentos paralelos de uma libertação dos grilhões medievais, e sim como estando em contradição irreconciliável. Para Nietzsche, Lutero agora é representante resoluto do retrocesso para o embaraço escravista moral cristão. Lutero – e com ele os alemães – levariam a culpa de ainda não nos termos livrado há muito do jugo do cristianismo.
IHU On-Line - Que paralelos podem ser traçados entre a crítica nietzschiana a Paulo de Tarso [5] e Lutero? Quais são seus contextos e diferenças fundamentais?

A teologia de Lutero resolutamente quer ser uma teologia da cruz
Andreas Urs Sommer - Também Paulo só recebe um papel central na obra tardia de Nietzsche. Ali ele é o inventor propriamente dito do cristianismo, “gênio do ódio”, que teria conseguido transformar a mensagem de Jesus numa religião do ressentimento de primeira categoria. Nisso, Nietzsche considera Lutero discípulo de Paulo, porém sem lhe atribuir a mesma importância: sua influência histórica teria sido de séculos, enquanto a de Paulo, de milênios.

IHU On-Line - De acordo com Nietzsche, o único cristão morreu na cruz. A partir dessa afirmação, como se pode entender o tipo de cristianismo sistematizado por Paulo e a sua Reforma, proposta por Lutero?
Andreas Urs Sommer - Com efeito, Nietzsche, em sua obra tardia, retira Jesus de Nazaré do contexto geral de decadência da história universal com a qual ele descreve a história judaico-cristã. Jesus teria sido o único cristão autêntico, que teria ensinado não uma nova fé, mas uma nova “prática”, qual seja, de abandonar todas as distâncias no sentimento. Os conceitos de Jesus teriam sido pura linguagem simbólica, que nada teria a ver com doutrinas de fé. Os próprios discípulos diretos já não teriam entendido seu mestre, o “grande simbolista”; com a eclesialização do cristianismo teria ocorrido a total perversão do modelo jesuíno. Paulo é o protagonista, e Lutero, o continuador dessa total inversão de intuições originariamente jesuínas.

IHU On-Line - Se pensarmos que Nietzsche contrapõe Dionísio ao Crucificado, como entender o empreendimento de Lutero ao retirar Jesus da cruz e assim o representar nessa religião?
Andreas Urs Sommer - A oposição entre Dionísio e o crucificado com que Nietzsche opera em suas manifestações tardias não é a oposição entre o helênico deus do vinho e o Jesus de Nazaré com quem Nietzsche simpatiza nessa contraposição. O “crucificado” é o Cristo da doutrina paulina eclesiástica, aquilo em que a dogmática o transformou: o filho de Deus que morreu pelos pecados do mundo. A teologia de Lutero resolutamente quer ser uma teologia da cruz. Para Nietzsche, esta é uma expressão da perversa divinização do sofrimento, a qual ele combate de todas as formas possíveis, porque ela ao mesmo tempo acompanha uma autodegradação, autodiminuição da pessoa humana. Também Dionísio é o deus do sofrimento, porém o qual, na construção de Nietzsche (trata-se de um deus fictício), diferentemente do deus cristão luterano, afirma positivamente o mundo e não degrada as pessoas a miseráveis pecadores.

IHU On-Line - Em que medida a formação luterana de Nietzsche é um aspecto importante a ser analisado em sua crítica a essa religião?
Andreas Urs Sommer - Com certeza a socialização luterana de Nietzsche desempenha certo papel ao se tentar reconstruir a imagem que ele faz de Lutero. Além de se ter criado numa casa pastoral luterana, se fosse pelo desejo da família, ele próprio também deveria ter-se tornado pastor luterano, tendo inclusive iniciado o estudo de teologia. Lutero, de certo modo, fazia parte do DNA social e mental de Nietzsche. Mas o que chama a atenção é que ele nunca estudou Lutero a fundo, com exceção da tradução da Bíblia, mas obteve suas informações exclusivamente de segunda mão. Ele sempre adaptava seu Lutero às demandas filosóficas e polêmicas do momento.

IHU On-Line - Qual foi a recepção e repercussão da crítica nietzschiana em seu tempo?
Depois, quem simpatizou com a crítica de Nietzsche a Lutero foram principalmente autores católicos, que pretendiam destacar quão prejudicial Lutero teria sido; para tanto inesperadamente encontraram em Nietzsche uma testemunha a calhar.
Andreas Urs Sommer - Inicialmente a repercussão da crítica fundamental de Nietzsche a Lutero foi bastante reservada. Posteriormente foram principalmente teólogos protestantes que se esforçaram em processá-la, na tentativa de demonstrar o quanto Nietzsche teria mal-entendido Lutero, ou que Lutero e Nietzsche em suas críticas na verdade estariam muito mais de acordo entre si do que o próprio Nietzsche pensava. Depois, quem simpatizou com a crítica de Nietzsche a Lutero foram principalmente autores católicos, que pretendiam destacar quão prejudicial Lutero teria sido; para tanto inesperadamente encontraram em Nietzsche uma testemunha a calhar.

IHU On-Line - Qual é o sentido da Reforma no contexto da filosofia da cultura, empreendida pelo filósofo?
Andreas Urs Sommer - Na filosofia mais abrangente da cultura de Nietzsche, Lutero e a Reforma são peças de um jogo que, dependendo da necessidade do momento, podem ser utilizadas de diversas maneiras. A crítica de Nietzsche à Reforma tem um elemento eminentemente provocador, uma vez que boa parte dos leitores de Nietzsche prezava muito a Reforma, de modo que acabaram se sentindo contrariados por ele. O desprezo pela Reforma também mostra o quanto Nietzsche rejeita uma historiografia do progresso: a história não é algo que simplesmente vai evoluindo para melhor, uma evolução na qual a Reforma até pudesse ser um marco.

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Andreas Urs Sommer - Sem dúvida a crítica de Nietzsche a Lutero e à Reforma é de considerável interesse para a historiografia do espírito humano. Porém é legítimo perguntar também até que ponto ela ainda se justifica na atualidade. Na Alemanha reina uma euforia luterana instaurada pela igreja e pelo estado, que encontra pouco respaldo na realidade histórica. Dizem que Lutero preparou o caminho para o Iluminismo esclarecedor, em vez de enxergar nele justamente o inimigo declarado da autodeterminação humana individual. Neste ponto Nietzsche pode nos ajudar a obter uma visão bem mais sóbria, mesmo que ele próprio também não tenha argumentado como historiador bem informado e sereno, e sim como polemista das ideias políticas.

Notas:
[1] Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo alemão, conhecido por seus conceitos além-do-homem, transvaloração dos valores, niilismo, vontade de poder e eterno retorno. A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da edição número 127 da IHU On-Line, de 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo do martelo e do crepúsculo. A edição 15 dos Cadernos IHU em formação é intitulada O pensamento de Friedrich Nietzsche. Confira, também, a entrevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, intitulada O biologismo radical de Nietzsche não pode ser minimizado, na qual discute ideias de sua conferência A crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da diferença - Pré-evento do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana. Na edição 330 da revista IHU On-Line, de 24-5-2010, leia a entrevista Nietzsche, o pensamento trágico e a afirmação da totalidade da existência, concedida pelo professor Oswaldo Giacoia. Na edição 388, de 9-4-2012, leia a entrevista O amor fati como resposta à tirania do sentido, com Danilo Bilate. Na edição 513, de 16-10-2017, leia a entrevista Uma política de vida ao invés de uma política sobre a vida. A biopolítica afirmativa de Nietzsche. (Nota da IHU On-Line)
[2] Martinho Lutero (1483-1546): teólogo alemão, considerado o pai espiritual da Reforma Protestante. Foi o autor da primeira tradução da Bíblia para o alemão. Além da qualidade da tradução, foi amplamente divulgada em decorrência da sua difusão por meio da imprensa, desenvolvida por Gutemberg em 1453. (Nota da IHU On-Line)
[3] Richard Wagner (1813-1883): compositor alemão, considerado amplamente como um dos expoentes do romantismo na música. Como compositor de óperas, criou um novo estilo, grandioso, cuja influência sobre a música foi forte a ponto de os músicos de seu tempo e posteriores serem classificados como wagnerianos ou não-wagnerianos. (Nota da IHU On-Line)
[4] Reforma Protestante: movimento reformista cristão liderado por Martinho Lutero, autor das 95 teses pregadas na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, na Alemanha, em 31 de outubro de 1517, propondo uma reforma na doutrina do catolicismo romano. Lutero foi apoiado por vários religiosos e governantes europeus. Em resposta, a Igreja Católica Romana implementou a Contrarreforma ou Reforma Católica, iniciada no Concílio de Trento. Em decorrência destes fatos, ocorreu a divisão da chamada Igreja do Ocidente entre os católicos romanos e os protestantes. Confira a edição 280 da IHU On-Line, de 3-11-2008, intitulada Lutero. Reformador da Teologia, da Igreja e criador da língua alemã. (Nota da IHU On-Line)
[5] Paulo de Tarso (3-66 d.C.): nascido em Tarso, na Cilícia, hoje Turquia, era originariamente chamado de Saulo. Entretanto, é mais conhecido como São Paulo, o Apóstolo. É considerado por muitos cristãos como o mais importante discípulo de Jesus e, depois de Jesus, a figura mais importante no desenvolvimento do Cristianismo nascente. Paulo de Tarso é um apóstolo diferente dos demais. Primeiro porque, ao contrário dos outros, não conheceu Jesus pessoalmente. Antes de sua conversão, se dedicava à perseguição dos primeiros discípulos de Jesus na região de Jerusalém. Em uma dessas missões, quando se dirigia a Damasco, teve uma visão de Jesus envolto numa grande luz e ficou cego. A visão foi recuperada após três dias por Ananias, que o batizou como cristão. A partir deste encontro, Paulo começou a pregar o Cristianismo. Ele era um homem culto, frequentou uma escola em Jerusalém, fez carreira no Templo (era fariseu), onde foi sacerdote. Era educado em duas culturas: a grega e a judaica. Paulo fez muito pela difusão do Cristianismo entre os gentios e é considerado uma das principais fontes da doutrina da Igreja. As suas Epístolas formam uma seção fundamental do Novo Testamento. Afirma-se que foi ele quem verdadeiramente transformou o Cristianismo em uma nova religião, superando a anterior condição de seita do Judaísmo. A IHU On-Line 175, de 10-4-2006, dedicou sua capa ao tema Paulo de Tarso e a contemporaneidade, assim como a edição 286, de 22-12-2008, Paulo de Tarso: a sua relevância atual Também são dedicadas ao religioso a edição 32 dos Cadernos IHU em formação, Paulo de Tarso desafia a Igreja de hoje a um novo sentido de realidade, e a edição 55 dos Cadernos Teologia Pública, São Paulo contra as mulheres? Afirmação e declínio da mulher cristã no século I. (Nota da IHU On-Line)

Federação de Associações de Juízes para a Democracia da América Latina e Caribe. Atibaia (São Paulo) de 14 a 17 de setembro, 2006

5º Seminário Internacional Independência Judicial e Direitos Humanos
Federação de Associações de Juízes para a Democracia da América Latina e Caribe.
Atibaia (São Paulo) de 14 a 17 de setembro, 2006.

Dr. Roberto Romano/ Unicamp

Rousseau, creio, disse uma vez : ´a criança que conhece apenas seus pais, não os conhece bem´. Este pensamento deixa-se aplicar a muitos outros conhecimentos, na verdade, a todos os que não possuem uma natureza pura: quem nada entende além da química, nada entende, inclusive dela”. ([1])


A epígrafe remete para o problema das relações entre disciplinas, sobretudo quando se trata de se propor uma análise dos cursos de Direito. Os enunciados sobre Rousseau e a criança cabem perfeitamente em reflexões sobre a oportunidade de se instaurar um novo setor de ensino em nossa Universidade. Mas tal curso possui, na ordem universitária, uma antigüidade que ajudou a definir o mundo atual e trouxe para a vida política, econômica, societária, paradoxos temíveis tanto no saber quanto na existência coletiva. A tradição do ensino e da prática do direito, além de sua pesquisa e ordenamento teórico, produziu formas legais complexas e só  analisáveis com refinados e poderosos instrumentos heurísticos unidos a enorme erudição. Examinar o curso de Direito significa seguir caminhos pisados durante séculos pelos seres humanos, com a necessidade premente de adaptar tais sendas à carências do nosso mundo e do Brasil contemporâneo. 

Um crítico das instituições universitárias, Imanuel Kant, sublinha a essência do ensino jurídico de modo claro e insofismável. Trata-se em tal atividade acadêmica de “buscar as leis que garantem o meu e o teu (se o docente procede como é preciso, como funcionário do Estado) encontrando-as não na razão mas no Código oficialmente promulgado, e este último tem a sanção da autoridade suprema. Não podemos com legitimidade pedir  ao seu estudioso que prove a sua verdade e seu bom fundamento, nem defendê-las contra as objeções da razão. Pois elas são, de início, ordenamentos que tornam justa uma coisa. Quanto a pesquisar se tais ordenamentos são eles mesmos justos, esta é uma questão que os juristas devem fortemente recusar como contrária ao bom senso. Seria ridículo querer escapar à obediência de uma vontade externa e suprema sob pretexto de que esta última não se coaduna com a razão. Pois o respeito devido ao governo consiste precisamente no fato de que ele não deixa aos governados a liberdade de julgar sobre o justo e o injusto, segundo suas próprias concepções, mas segundo a prescrição do poder legislativo”. ([2])
Em conflito permanente com o setor da Filosofia (que no século 18 ainda sintetizava a maior parte dos estudos sobre a natureza e a vida humana, incluindo as matemáticas, a física e demais campos), as três Faculdades “superiores” (Teologia, Medicina, Direito) seriam produzidas fora do campo inter-disciplinar  reunido sob o nome da “amizade pelo saber”. Como as três faculdades privilegiadas pelo governo permitem a obediência à lei positiva, o povo a elas se acostumou e, longe de querer a autonomia da vontade e do juízo, propostas para a vida moral e para a pesquisa científica (filosófica…) os que pagam impostos exigem coisas “práticas” do ensino universitário. “Todas as suas conversas fiadas” —Kant põe tais frases na boca do cidadão comum— “filósofos, eu  as conheço há muito tempo. Mais eis o que desejo saber de vós enquanto sábios: como poderei, mesmo sendo um bandido, obter no entanto,  pouco antes do fechamento das portas, um bilhete de entrada para o reino celeste; como ganhar meu processo mesmo que esteja errado; como, mesmo que use e abuse descuidadamente as minhas forças físicas, permanecer sadio e viver muito tempo?”. ([3])
 No item dedicado especialmente ao conflito entre a Filosofia e a Faculdade de Direito, Kant lança a ponta mais acerada contra os efeitos, na vida civil, do manuseio dos juristas pelos governantes. O pensador afirmara anteriormente que o povo, nos governos despóticos, “deseja ser dirigido, isto é, na linguagem dos demagogos) enganado. Mas ele não quer ser dirigido pelos cientistas universitários (sua sabedoria é por demais elevada para ele) mas por seus agentes que sabem fazer, pelos eclesiásticos, funcionários da justiça, médicos. Tais práticos têm para si as presunções mais vantajosas. O governo, que só pode agir sobre o povo por seu intermédio, é ele mesmo treinado a impôr às Faculdades uma teoria que não saiu do puro saber dos cientistas, mas se estabeleceu em razão da influência que, por ela, seus agentes de negócios podem exercer sobre o povo”. ([4])

“Agentes de negócios” (Geschätmänner), certamente esta não é a marca de um ser livre e que colabora para a autonomia do juízo e da vontade cidadã.  Como garantir a obediência e, ao mesmo tempo, a livre força volitiva de um povo? “Nossos políticos, no campo em que são influentes” dizem que “é preciso tomar os homens tal como eles são e nunca como os pedantes que ignoram o mundo, ou como os bons sonhadores, imaginam que eles devem ser. Em vez de afirmar ´como eles são´, deveriam melhor dizer ´o que nós os fizemos´ por um constrangimento injusto, por desígnios pérfidos sugeridos ao governo. Nós os fizemos com a cabeça dura e inclinados à rebelião; logo, sem dúvida, quando o governo relaxa um pouco as rédeas, tristes consequências se produzem, as quais justificam as predições desses homens de Estado, supostamente sagazes”. ([5]) Teólogos, médicos e juristas são  “instrumentos de governo” (Werkzeug der Regierung) e servem aos políticos para que estes garantam sua influência sobre a população. Tal costume universitário é condenado por Kant em proveito da livre pesquisa e da autonomia cidadã.
O juízo do grande pensador ético não é róseo quando se trata do curso de direito. Evidentemente as  falhas dessa Faculdade derivam, na sua maioria, dos alvos políticos e governamentais. Kant sublinha o conúbio entre os interesses dos políticos e os interesses particulares,  num Estado que não se pauta pela autonomia. Para o cidadão imerso no mercado, por exemplo, o importante na prática do direito é o lucro, não importa se para conseguí-lo as regras da justiça e do direito devam ser “adaptadas” aos seus alvos comerciais. Outro lado grave da crítica kantiana às faculdades “superiores” é que elas representam, contra a pesquisa científica, o lado não autônomo da Universidade. Elas são dirigidas pelos Ministérios que impõem os estatutos, os manuais de ensino, a censura. Com isso, tais escolas ameaçam diretamente a pesquisa livre e autônoma nos campi. Territórios isolados nas universidades, elas não partilham os progressos dos saberes trazidos pelas ciências. Estas só conseguem progredir porque se baseiam na liberdade de investigação. Muita cautela, portanto, deve ser empregada —se as análises kantianas sobre o curso de direito ainda valem— quando se imagina instaurar um curso de direito numa universidade estatal contemporânea.     
Enquanto Imanuel Kant se volta contra o excessivo apego aos interesses menores do comércio e do controle dos corpos pelo governo, outro pensador do século dezoito investe contra o arcaísmo da Faculdade de Direito com seu apego à uma forma de ensino e pesquisa desligada dos problemas contemporâneos. “Nossa faculdade de direito é miserável. Não se lê aí uma palavra do direito francês; tampouco do direito das gentes, como se ele não existisse em absoluto; nada de nosso código nem civil nem criminal; nada de nosso processo; nada de leis; nada de nossos costumes; nada tampouco dos ofícios e dos contratos. — Do que se ocupam pois? — Ocupam-se do direito romano em todos os seus ramos, direito que não tem quase nenhuma relação com o nosso; de modo que aquele que acaba de ser condecorado com uma borla de doutor em direito encontra-se tão impedido se alguém lhe corrompe a filha, lhe rapta a mulher ou lhe contesta a propriedade de seu campo, quanto o último dos cidadãos. Todos os seus belos conhecimentos lhe seriam infinitamente úteis se ele se chamasse Mévio ou Semprônio e se nós retrogradássemos aos tempos de Honório ou de Arcádio. É ai que ele pleitearia superiormente a sua causa. Sob Luis XVI, ele é tão tolo como o habitante de Chaillot, e bem mais tolo que o camponês da Baixa Normandia. A faculdade de direito não habita mais um velho edifício gótico; mas ela fala godo debaixo das soberbas arcadas do edifício moderno que se lhe erigiu”. ([6] )  
No Conflito das Faculdades Kant é mais demolidor do que preocupado em edificar um novo curriculum de direito. Já Diderot (trata-se de um plano encomendado por Catarina 2, para uma Universidade russa) apresenta o curriculum ideal para o referido curso. A modéstia dos meios financeiros é suprida pelo filósofo com a modéstia do agenciamento humano. Em sua universidade o curso de direito seria ministrado apenas por oito professores: um para o direito natural, um para a história da legislação, um para as instituições do direito das gentes, um para os Institutos de Justiniano, dois para o direito civil nacional, um para o direito eclesiástico em geral e ao mesmo tempo para o direito nacional, um para o processo civil e criminal. O curso seria cumprido em quatro anos e, em cada ano, os estudantes seriam instruídos por dois professores.
No primeiro ano, dedicado ao direito natural ([7]) e à história da legislação, o professor deveria levar o ensino mais longe do que o oferecido aos alunos no curso de moral que precedeu sua entrada nessa escola. Puffendorf (Dos deveres do Homem e do Cidadão) e Burlamaqui (Direito Natural) são sugeridos por Diderot como fontes a serem usadas. O ensino da legislação seria dedicado às leis da Grécia e de Roma, além das de outras nações antigas. A fontes bibliográficas incluiriam Antoine Thysius (Das repúblicas mais célebres), Ubbon Emmius (A antiga Grécia esclarecida), Heineccius (História do Direito Romano) e Hoffmann (também História do Direito Romano).
No segundo ano seriam ministrados o ensino do direito das gentes e das Institutas de Justiniano. ([8]) O professor deveria concentrar-se na doutrina dos contratos devido a importância basilar dos romanos neste setor. No terceiro ano viria o direito civil nacional, antigo e moderno, e o direito eclesiástico. No quarto ano, novamente o direito civil acrescido do criminal e do processo civil. Cada passagem de um ano para outro deveria ser antecipada por um exame público dos alunos, exames cuja severidade deveria ser absoluta. Neles, tanto estudantes quanto mestres estariam em perene emulação. No fim do curso, antes de pretender o ingresso num tribunal, seria obrigatório rigoroso exame perante o corpo junto ao qual o candidato deseja operar. Todos os cidadãos, de todas as condições, assistiriam tais exames, também vigiados pelos representantes do Estado. Os professores deveriam permanecer sempre nos quadros da mesma disciplina, para que pudessem aperfeiçoar ao máximo a sua técnica e conhecimentos.
E vem a parte “prática” da proposta. Todo professor, após 15 anos de trabalho sem desvios, deveria ser aposentado honrosamente. Ele poderia entrar e ter assento nos diferentes tribunais da magistratura, o que seria lisonjeiro para ele e útil para o tribunal, “que por essa política continuaria a recrutar incessantemente homens que teriam prestado suas provas de probidade e de luzes na ciência das leis”. No campo do governo, um especialista em direito natural e das gentes seriam útil na diplomacia. E seguem-se outras justificativas para o apelo do governo aos egressos da carreira juridico-universitária. ([9]) Note-se que a especialização (Direito, Medicina, etc) dar-se-ia após um curso comum no qual os rudimentos do essencial, no saber humanístico e científico, seriam passados aos estudantes. Também importa notar que Diderot não aceita na vida universitária uma especialização excessiva : “O objeto de uma escola pública não é de modo algum produzir um homem profundo, em qualquer gênero que seja; mas iniciá-lo em um grande número de conhecimentos cuja ignorância lhe seria prejudicial em todos os estados da vida, e mais ou menos vergonhosa em alguns. A ignorância das leis seria perniciosa em um magistrado. Seria vergonhoso que ele fosse mal habilitado na verdadeira eloqüência. A pessoa entra ignorante na escola e sai escolar; a gente se faz mestre por si mesma, dirigindo toda a sua capacidade natural e toda a sua aplicação para um objeto particular. O que se deve obter de uma escola pública? Bons elementos”. ([10])

No século 19, apesar de todos os esforços dos intelectuais que ajudaram a definir o direito democrático, em especial na França revolucionária, o lugar do ensino jurídico na universidade ainda era percebido de maneira negativa, de modo muito próximo à crítica de Kant. Quando se tratou, na Alemanha, de instituir a Universidade de Berlim, vários projetos foram consultados pelos responsáveis. Embora a escolha tenha recaido sobre o plano de Humboldt, algumas propostas foram marcantes no processo. Dentre elas, a do jacobino Fichte, admirador da Revolução Francêsa e seu propagandista na Alemanha. ([11]) Neste autor, como seria inevitável num discípulo de Kant, a faculdade de direito é vista de maneira extremamente crítica, na companhia da Medicina e Teologia. Importa notar que a maior reprovação às referidas escolas vem do fato de que elas, segundo Fichte, ter-se-iam isolado do estudo e da estrutura mais ampla do saber acadêmico, transformando-se numa espécie de universidade no interior da universidade.
“As três faculdades pretensamente superiores”, escreve Fichte, “teriam prosperado há bom tempo se, ao considerar sua verdadeira essência, elas tivessem reconhecido a si mesmas no todo coerente do saber e se, por conseguinte, não tivessem colocado a si mesmas, em se gloriando de sua necessidade prática e de seu favor junto à multidão, como uma realidade independente e eminente, mas pelo contrário se subordinassem a este conjunto coerente e, com a humildade que convem, tivessem reconhecido sua dependência. Na medida em que desprezaram as demais, foram desprezadas e os estudantes de outros domínios não tiveram nenhum conhecimento daquilo que elas desejavam possuir exclusivamente para si mesmas —foi então muito prejudicial tanto ao seu estudo quanto ao saber em geral na sua totalidade.” ([12])

Após indicar a auto-suficiência da escola jurídica, o seu isolamento das demais disciplinas científicas e humanística, Fichte apresenta o que deveria ser, no seu entendimento, o alvo dos estudos jurídicos. “A matéria científica da jurisprudência é um capítulo da história e do modo pelo qual foi tratada até hoje, ela é apenas um fragmento desse capítulo. Ela deveria ser uma história da formação e do desenvolvimento do conceito de direito entre os homens (Fichte sublinha, RR), conceito do direito que, ele mesmo, independentemente desta história, enquanto soberano (Fichte sublinha, RR), não como servidor (ainda é Fichte quem sublinha, RR), já deveria ter sido descoberto pelo filosofar. Na perspectiva habitual, puramente prática, que lhe é assinalada em primeiro plano  —apenas formar juízes, o que é uma tarefa subordinada— ela é a história desta formação do conceito nos países em que vivemos e no máximo, sob os romanos, e nisto ela é apenas um fragmento. Mas seu alvo prático último é  formar o legislador e, neste ângulo, o capítulo inteiro poderia ser-lhe bem necessário. Pois embora o que deveria ser uma lei seja conhecido absolutamente a priori, no entanto a arte de descobrir a figura particular desta lei para cada época e adaptá-la a ela deveria exigir neste assunto a experiência da época, conhecida em sua totalidade”.
Assim, uma formação correta exige que o ensino do direito não se limite a um fragmento teórico ou prático (estudar a jurisprudência ou o direito romano, de um lado, ou formar os “operadores do direito”, de outro). O ensino deve abranger capítulos inteiros do livro onde foi escrita a história, livro que contem as ciências físicas, as matemáticas, e as humanidades. Enquanto o ensino do direito estiver preso em si mesmo, sem o trato com outros ângulos da cultura, ele será fragmentário e, por isto mesmo, não verdadeiro e sem condições de ser aceito pelas demais áreas de pesquisa. Outro requisito é que ele deve saber unir a tradição do direito, o direito romano por exemplo, ao que se passa aqui e agora. O culto de uma lei ou conjunto de leis sem historicidade é vazio e sem maior significado cultural.
Para que serve o ensino do direito, no mundo coletivo ? Para formar operadores do direito e legisladores. Ambas as profissões, no entanto, escreve Fichte, “são aplicações práticas da história. Assim, a jurisprudência tem como sua enciclopédia primeira a enciclopédia da história, enquanto esta é um solo no qual ela repousa. Ela é a utilização científica do entendimento nela implicada e ela, na sua prática mais elevada é propriamente a arte de engendrar  uma história e, seguramente, uma história mais feliz do que a executada até hoje. Mas o preparo para a aplicação prática na vida cai fora do domínio da escola, e neste ponto seria preciso mandar os jovens para os colégios de exercício, sob a vigilância dos quais  —mas não sob a responsabilidade dos magistrados a quem seriam confiados— eles se preparassem para a futura administração dos assuntos”. Os estudos jurídicos seriam dirigidos por uma Comissão de enciclopedistas (como Fichte os definiu acima) que se encarregariam da formação prática, independemente da escola jurídica. Finalmente, os cursos de direito deveriam instituir curricula menos extensos do que os anteriores, visto que seria encorajado o princípio da pesquisa em união com o todo acadêmico.
Mesmo com esse sentido, o direito passou a ser visto com desdém pelos filósofos posteriores a Fichte. Schelling ([13]) enxergava em semelhante ensino apenas o elemento empírico, sem possibilidade alguma de elevá-lo ao plano do conceito científico. Ele deveria ser exposto aos estudantes na medida mesma em que era praticado nos assuntos particulares e públicos, diante dos tribunais. Seu estudo não poderia se mesclar à filosofia, profanando-a. Depois das críticas de Kant ao ensino jurídico, pensa Schelling, vieram os kantianos com o desejo de usar a filosofia como serva de uma “ciência do direito” (aspas usadas por Schelling) e também de reformular o direito natural. “Esta maneira de filosofar revela-se apenas como uma corrida aos conceitos, pouco importa sua natureza, desde que se trate de um detalhe, para que o sujeito que colocou a sua mão sobre eles, pelo trabalho que se dá para arrancar bem ou mal todo o resto a partir desse ponto particular, possa dar a ilusão de um sistema próprio, mas que logo será suplantado por um outro sistema igualmente original, etc”. Condenado à prática e à empiria, o direito não poderia ser elevado à condição das outras ciências universitárias. Como se nota, o curso de direito é visto com muitas reticências depois de Kant.
Os malentendidos entre a universidade e os cursos jurídicos e sobretudo as oposições entre a filosofia e o setor do direito foram exacerbados com Hegel.([14]) É mesmo possível dizer que existem duas filosofias do direito : a dos juristas e a dos filósofos. A influência hegeliana no campo da filosofia do direito filosófica foi enorme, mas pequena entre a praticada pelos juristas. Como consequência, os mesmos juristas aumentaram o seu interesse por I. Kant. Este último foi estratégico, por exemplo, na Escola do Direito Histórico (Gustav Hugo, Carl von Savigny e outros). Mesmo no século 20, pode-se dizer que o grande interesse dos juristas foi dirigido a Kant e não a Hegel. Isto se deve à pouca informação do mesmo Hegel em partes relevantes como o direito romano, contentando-se o filósofo com obras secundárias. Além disso, outras contradições entre o pensamento dos juristas e o do hegelianismo, no plano especulativo, levaram ao alheiamento recíproco das partes, em proveito do kantismo. Os trabalhos de Hans Kelsen são amostra deste itinerário. Mas no esforço de fornecer ao direito um fundamento científico, terminou-se por novamente isolá-lo do conjunto acadêmico constituído pelas outras disciplinas do espírito, o que vai na contramão da crítica kantiana ao ensino jurídico de seu tempo.
Não apenas no campo do transcendentalismo (kantiano ou idealista) o embate entre o ensino jurídico e o próprio estatuto da doutrina do direito encontrou críticas pesadas. Emile Durkheim, quando em viagem à Alemanha, ao encontrar os cursos de direito no interior da vida pública e universitária, fez algumas considerações pouco elogiosas sobre o ensino jurídico, não apenas germânico mas europeu. O ensino das ciências em geral e do direito em particular, escreve Durkheim, não leva adiante a pedagogia da ética. Desse modo, diz ele, “é assustador que façamos tão pouco esforço para produzir uma opinião pública esclarecida, quando esta última é o soberano poder entre nós”. Os políticos, acrescenta, na sua maioria vêm das Faculdades de Direito, mas nada aprendem alí sobre sobre “a natureza da lei, dos códigos morais, costumes, religiões, o papel e as relações entre as várias funções do organismo social”. ([15]) Ou seja: os políticos frequentam escolas de direito que não lhes ensinam as bases dos saberes sociais mais amplos. Daí, não agem sobre a opinião pública, soberana na democracia, deixando-a ao sabor dos eventos e sem acesso aos caminhos éticos necessários. Como não foram educados para a ética, também ignoram a mesma ética nos seus tratos públicos e com a opinião das massas. 


Nas idas e vindas do trato das escolas de direito com a universidade e, mais particularmente, com a disciplina que se encarrega de prover uma visão de totalidade para o mundo ético, artístico e científico —a filosofia— nota-se uma constante: o fechamento do ensino jurídico em suas próprias fronteiras, de onde saem estudantes e docentes para rápidas incursões no mundo da política, dos laboratórios, do artesanato artístico. Deste modo, não surpreende que em  universidades como a Unicamp, o projeto de instauração de um curso de direito esteja marcando passo desde 1982, sem que por ele se empolguem os pesquisadores do campus na sua totalidade. Qual razão existiria para produzir um curso jurídico novo, se a prática deste mesmo curso seria a da plena auto-suficiência no interior da universidade? Qual o proveito epistemológico, metodológico, prático enfim, seria dele extraído, se o seu conteúdo não adentra para territórios que interessam as ciências exatas, as tecnológicas, as humanidades e a própria medicina? Existem problemas jurídicos gravíssimos em todas essas áreas do saber, tanto nos obstáculos ao seu desenvolvimento (a genética os conhece em profusão) como na normatização legal dos mesmos (patentes, direitos autorais, etc). Mas o modelo imperante nos cursos jurídicos mais influentes no país ainda não oferecem elos inter-disciplinares com os demais campos do saber, de modo que o curso de direito seria apena uma escola a mais na estrutura universitária.


Retorne-se à epigrafe inicial. Ela foi colhida em recentíssimo artigo dedicado à reforma do ensino jurídico na Alemanha em nossos dias.  ([16]) Nela é dito, na verdade, que o curso jurídico dedicado apenas ao estudo das leis e das técnicas forenses ou ligadas ao Direito, não ensina sequer a lei, porque não a entende. Para conseguir tal alvo é preciso pesquisar a sociedade, o Estado, as instituições religiosas, políticas, econômicas, a psicologia das massas e uma infinidade de elementos definidos nas outras ordens de estudo. Num país cuja tradição de ensino jurídico e de críticas sobre o lugar deste setor na Universidade é muito rica e polifacetada (os exemplos acima são poucos e escolhidos) é importante verificar o interesse na modificação do que poder-se-ia chamar de ratio studiorum sem nenhum receio. Os autores propõem a adequação dos cursos jurídicos aos desafios do século 21, tendo em vista a sua maior eficácia e rigor acadêmico. O ponto de partida das medidas a serem implementadas é encontrado na Universidade de Bremen, na qual ocorreria, segundo os mesmos autores, uma exemplar interação dos cientistas políticos, sociólogos, economistas e filósofos nos trabalhos pedagógicos e de pesquisa na área do direito. Aquela universidade, existente na história alemã anterior, foi fechada em 1810 por Napoleão e substituida no mesmo ano pela Universidade Humboldt. Na última parte do século 20, aquele campus se distinguiu por deixar a estrita especialização e assumir uma agressiva política de esforço inter-disciplinar, o que causou impacto em todo o setor acadêmico na Alemanha.




[1] Georg Christoph Lichtenberg, Professor de  matemática e de ciências naturais na Universidade de  Göttingen (1742-1799). Rousseau hat, glaube ich, gesagt: Ein Kind, das bloß seine Eltern kennt, kennt auch die nicht recht. Dieser Gedanke lässt sich [auf] viele andere Kenntnisse, ja auf alle anwenden, die nicht ganz reiner Natur sind: Wer nichts als Chemie versteht, versteht auch die nicht recht.

[2] Kant, Imanuel: Der Streit der Fakultäten, “Eigentümlichkeit Der Juristenfakultät” in I. Kant Werkausgabe (Frankfurt Am Main, Suhrkamp Verlag, 1977), Band XI, 1. Página 287.
[3] Kant, I. op. cit. páginas 293-294.
[4] Idem, página
[5] Kant, idem, ibid, página 352.
[6] Denis Diderot: “Plan d´une université” in Versini, L (Ed.), Oeuvres (Paris, Robert Laffont, 1995), T. III, Politique, página 422. Sigo a excelente tradução de J. Guinsburg in Diderot, Obras (São Paulo, Ed. Perspectiva, 2000), T. I, Filosofia e Política, página 274.
[7]   “Dentre todas as noções da moral, a de direito natural é uma das mais difíceis de se determinar. Principios que podem ajudar a resolver tamanha dificuldade : 1) se o homem não é completamente livre, não haverá nem bondade nem maldade raciocinada. Importa, pois, estabelecer solidamente a realidade da liberdade, bem distinta do que é voluntário. 2) o homem que faz a um outro o que não gostaria que lhe fizessem, deve confessar sua maldade, ou conceder a todos a mesma autoridade que ele arroga para si. 3) Quais criticas poderíamos portanto fazer ao homem atormentado por paixões tão violentas que a vida se tornaria para ele um peso oneroso, se não as satisfaz, e que para adquirir o direito de dipôr da existência alheia, lhes abandona a sua . 4 ) é preciso apresentar a este homem o verdadeiro e o justo, raciocinando com ele. 5) E lhe responder  que não existe nenhuma autoridade para forçar os outros a aceitar o mercado que lhes oferece, e que o próprio mercado é injusto. 6) Mas quem poderá decidir o que é justo ou injusto? As vontades particulares são suspeitas, a geral é sempre boa. 7) É esta vontade que deve fixar os limites de todos os deveres. Tudo o que cenceberdes será bom, sublime, se pertence ao interesse geral. Onde consultar esta vontade? Nos princípios do direito escrito, nas ações sociais dos povos selvagens, etc. Consequências deste principio: a vontade geral é sempre a melhor”. Encyclopédie, verbete “Direito Natural”.
[8] No verbete “Direito” da Encyclopédie, são enumerados e discutidos os vários segmentos do direito, tanto no que diz respeito ao mundo civil, quanto ao que se relaciona com o direito político e internacional. Embora o artigo não tenha sido escrito por Diderot, quem conhece o modus operandi do filósofo enquanto editor da obra sabe que a revisão e a elaboração final do texto passaram por ele.
[9] Diderot, op. cit. página 476 e seguintes. Edição Guinsburg, página 363 e seguintes.
[10] Diderot, op. cit, página 428; Guinsburg, página282.
[11] Cf. Joh. Gottl. Fichte: Beitrag zur Berichtigung der Urteile des Publikums über die französische Revolution (Hamburg, Felix Meiner Verlag, 1973). Há tradução francêsa : Considérations sur la Révolution Française (Paris, Payot Ed, 1989).
[12] Fichte, J.G : “Plano Dedutivo de um Estabelecimento de Ensino Superior a ser fundado em Berlim, que estaria em íntima união com a Academia de Ciências” in Philosophies de l´Université. L´Idéalisme allemand et la question de l ´université. Schelling, Fichte, Schleiermacher, Humboldt, Hegel. (Paris, Payot, 1979), página 195.
[13] Schelling, F.W.J. : “Lições sobre o método dos estudos acadêmicos” in Philosophies de l` Université, ed, cit, páginas 128-129.
[14] Cf. Gardies, Jean-Louis: “Alguns malentendidos entre Hegel e os Juristas”, in Hegel et la Philosophie du Droit.  Ensaios por E. Weil, K.-H. Ilting, E. Fleischmann, B. Bourgeois, J.l. Gardies (Paris, PUF, 1979), página 131 e seguintes.
[15] Cf. Lukes, Seteven: Émile Durkheim, his life and work (London, Penguin Books, 1977), página 88.
[16] Leibfried, Stephan, Möllers, Christoph, Schmied, Christoph, Zumbansen, Peer::Redefining the Traditional Pillars of German Legal Studies and Setting the Stage for Contemporary Interdisciplinary Research” in German Law Journal,  Review of Developments in German, European and International Jurisprudence, número 8 (August 2006) no site http://www.germanlawjournal.com/



sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Entenda como a corrupção arruinou o estado do Rio de Janeiro Correio Braziliense. 03/11/2017

Entenda como a corrupção arruinou o estado do Rio de Janeiro

Após a polêmica levantada pelo ministro da Justiça, Torquato Jardim, sobre possíveis relações da polícia carioca com o crime organizado, Michel Temer e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, colocaram panos quentes na situação

Minervino Junior/CB/D.A Press

O Rio de Janeiro está em decomposição. E as ruínas desse esfacelamento chegam a Brasília. O estado fluminense é simbólico na crise que vive o país. Dos conflitos éticos aos econômicos, da insegurança à calamidade na saúde. Das cifras astronômicas gastas com as Olimpíadas de 2016 à falta de merenda nas escolas. Os problemas do Rio vão muito além das críticas do ministro da Justiça, Torquato Jardim, à polícia carioca. Eles sintetizam a deterioração de um país mergulhado em escândalos de corrupção. De uma rica nação, que tenta se reerguer após a mais longa recessão. Para superar os obstáculos e evitar maiores desgastes entre as esferas do poder, será necessário um esforço conjunto entre os governos federal e estadual. E o primeiro passo começou ontem, com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), admitindo que o auxiliar do presidente da República, Michel Temer, tenha dito verdades por linhas tortas.
 
 
Durante viagem oficial à Itália, Maia, em tom mais ponderado, avaliou que as declarações de Torquato são pertinentes, mas questionou a maneira usada pelo colega. “Acho que ele falou muita verdade ali, só que não sei se foi da forma adequada. Eu acho que, talvez, aquela entrevista valesse depois de uma ação da polícia, com meses de investigação, pegando aqueles que estão boicotando as ações de segurança no Rio”, disse o presidente da Câmara ao jornal Folha de S.Paulo. Na quarta-feira, Maia classificou as palavras do ministro como “infantis” e “irresponsáveis”.

O recuo do democrata, pré-candidato à reeleição, foi vista, nos bastidores, como uma reconexão com a maioria da sociedade carioca, que concorda com a afirmação de Torquato. À imprensa, o ministro afirmou que há uma associação de policiais do Rio em cargos de comando com o crime organizado. Agora, não somente Maia, como também Temer procuram colocar panos quentes sobre a polêmica. Pessoas próximas do peemedebista garantem que ele pediu ao auxiliar que evite dar novas declarações sobre o assunto. O Palácio do Planalto quer evitar atritos com o presidente da Câmara, pensando nas agendas econômicas que devem entrar em breve em votação.

Rodrigo Maia, por sua vez, tenta evitar desgaste com Temer. A fatura pela permanência do peemedebista na Presidência ainda está sendo paga, como a Medida Provisória que prevê a permissão para que o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) tenha acesso aos fundos regionais de desenvolvimento. O chefe do Executivo Federal também assinou um contrato de R$ 652 milhões para obras no Rio. Os esforços entre Câmara e Planalto, no entanto, estão concentrados na reforma da Previdência. Maia não esconde o desejo de aprovar o texto, que dependerá de uma ampla articulação entre os dois Poderes.

A agenda das reformas, no entanto, é apenas o começo para um longo processo de recuperação da crise moral, ética e econômica do Rio. Afinal, a Cidade Maravilhosa precisa enfrentar notórios percalços, como a crise entre os representantes políticos e a escalada da violência pública. Nada menos do que dois ex-governadores cariocas, Anthony Garotinho e Sérgio Cabral Filho, estão presos. O atual, Luiz Fernando Pezão, é acusado de receber via caixa dois dinheiro de propina nas eleições de 2014. Cinco conselheiros do Tribunal de Contas do Rio, que deveriam zelar pela aprovação das contas, são investigados por corrupção.

São exemplos de nomes fortes que surgiram na política da capital fluminense, ganharam projeção nacional e, hoje, não representam nada além de um estado em frangalhos. Doutor em filosofia e professor de Ética Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Roberto Romano avalia que a decadência do Rio de Janeiro não é nova, tendo surgido com a migração da capital do Brasil do Rio para Brasília. “Essa mudança criou um vácuo de poder e de capacidade, inclusive, de manusear recursos. Assim, os cariocas, acostumados a ter dinheiro e poder, perderam os dois. Essa lacuna precisou ser preenchida”, avaliou, justificando a origem das relações entre bandidos e autoridades locais.

A simbiose entre autoridades públicas e os grandes nomes do jogo do bicho, do tráfico é algo antigo, ressalta Romano. “Sempre foi comum ver os donos de negócios escusos nos palanques tentando eleger candidatos. Aí entra a velha tradição brasileira de trocar favor. Como eu, você e todos os brasileiros vimos ultimamente, essa tradição continua funcionando com força total”, acrescentou.

No meio do embate sobre a eficácia da polícia carioca, um triste incidente aconteceu ontem: o menino de 3 anos que foi atingido, na última quarta-feira, por uma bala perdida enquanto brincava no sofá de casa teve a morte cerebral declarada. Um dia antes, o policial Rafael Santa Ana Corrêa foi assassinato em uma drogaria. O cabo foi o 114º integrante da Polícia do Rio de Janeiro morto em 2017.

Silêncio

O poder carioca resolveu contra-atacar e processará o ministro da Justiça, Torquato Jardim. Do governador do Rio, Luiz Fernando Pezão aos comandantes da Polícia Militar, todos questionam as declarações dadas por Torquato de que a cúpula da PM está controlada pelo crime organizado. Questionado, o presidente Michel Temer preferiu não se envolver na polêmica para não dar mais espaço à crise.

O silêncio que permeia o Planalto também chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), que deve julgar a interpelação proposta por Pezão. Para o ministro Marco Aurélio Mello, é necessário aguardar os desdobramentos antes de qualquer declaração. “Não posso comentar esse caso porque um de nós (ministros) pode acabar sendo relator”, disse. O Correio também entrou em contato com Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, que preferiram não se manifestar sobre o assunto.

O senador Lindbergh Farias (PT-RJ), no entanto, rompeu a falta de expressividade dos poderosos e disse que “todo mundo que mora no Rio de Janeiro sabe que as palavras do ministro são verdade”. Outros integrantes do parlamento que concordam com Torquato dizem que, embora ele esteja certo, foi imprudente e exagerado.
 

Estado em deterioração

Entre as unidades da federação, o Rio de Janeiro é, talvez, a que mais personifica a escancarada crise ética, moral e econômica que assola o país. Entenda os principais atores e fatos que o levaram à atual situação:

Corrupção
Desvio de recursos públicos, recebimento de propina, lavagem de dinheiro e participação em organização criminosa são alguns dos delitos pelos quais representantes públicos do Rio foram condenados ou acusados.

» Anthony Garotinho: o ex-governador foi condenado a 9 anos e 11 meses de prisão por corrupção eleitoral, associação criminosa, supressão de documento público e coação. A avaliação da Justiça é de que ele comprou votos para a mulher, Rosinha Garotinha, ser reeleita à prefeitura fluminense, em 2016. Ele chegou a ser detido, mas, por decisão do STJ, aguarda julgamento de recurso em liberdade.

» Sérgio Cabral Filho: o ex-governador foi condenado a 45 anos e 2 meses de prisão, considerado como o “grande líder da organização
criminosa” que possibilitou o desvio de milhões dos cofres públicos do estado. Cabral está preso desde novembro do ano passado no complexo penitenciário de Gericinó, em Bangu. Ex-diretores da construtora Odebrecht apontam pagamentos de R$ 94 milhões a ele, que também é suspeito de ter recebido propina durante as Olimpíadas e de ter comprado votos para escolher o Rio como a sede do evento. Uma família ligada a ele foi presa por desvio de recursos da merenda escolar.
 
» Eduardo Cunha: o ex-presidente da Câmara dos Deputados e um dos mais influentes políticos 
do Rio de Janeiro foi condenado a 15 anos e 4 meses de prisão por corrupção passiva devido a solicitação e recebimento de vantagem indevida no contrato de exploração de petróleo em Benin, na África. Cunha está detido em Curitiba desde outubro do ano passado.
 
» Luiz Fernando Pezão: o atual governador do Rio é acusado de recebimento de propina da Odebrecht nas eleições de 2014. Ex-presidente da construtora Odebrecht afirma que teria pagado, via caixa 2, R$ 20,3 milhões na campanha eleitoral.
 
» Jorge Picciani e conselheiros do TCE: cinco conselheiros do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro foram presos por suspeita de recebimento de propina de 1% sobre valores de contratos de empreiteiras. As investigações apontam que eles recebiam dinheiro para fazer vista grossa e aprovar obras, como a do Maracanã e a da linha 4 do metrô. O presidente da Assembleia Legislativa do Rio, Jorge Picciani, foi alvo de condução coercitiva para prestar depoimento após ter o nome citado em acordo de delação por um ex-conselheiro.

Economia
A crise que estourou em 2015 só escancarou o desequilíbrio das contas públicas do Rio. Antes disso, o governo já vinha elevando muito os gastos públicos, inclusive com servidores, ancorado na valorização do barril de petróleo no mercado externo. Uma lei de 2003 previa o pagamento de aposentadorias com uso dos royalties, mas o arrefecimento da atividade econômica e a queda do preço do barril provocaram queda nas receitas, enquanto os gastos se mantiveram em crescimento, principalmente o da Previdência.

Segurança pública, saúde, educação
O orçamento comprometido pela crise econômica provocou um efeito cascata altamente danoso e negativo sobre os serviços públicos. Policiais passaram a ter menos incentivos, o sistema de saúde entrou em colapso, com deficit de médicos, insumos, medicamentos e atrasos em atendimentos. A educação seguiu o mesmo caminho: organizações não governamentais acusam a secretaria estadual de fechar turmas.