O Sol Negro da Noite.
Uma análise filosófica do Cântico dos Cânticos
Roberto Romano/Unicamp
O título desta alocução produz estranheza.
No mundo de hoje, o religioso bate em retirada diante das ciências e das técnicas,
o universo indica soluções imanentes para sua gênese e desenvolvimento,
dispensando, como disse um dia Laplace a Napoleão, a “hipótese Deus”. Isto, no
plano dos cientistas. Na vida cotidiana, o sagrado se comercializa nas televisões,
vende milagres sem graça ou beleza, num prosaísmo inaudito. Entre os físicos e
pastores eletrônicos, resta pouco espaço para o exercício filosófico e sua irmã
gêmea mas rival, a poesia. Unir, como se anunciou, os cantares de Salomão, um sábio
poeta, e filosofia, parece tarefa desprovida de sentido.
Quero centrar minha fala no seguinte
problema : o que significa “ler” um poema bíblico ? Como este labor foi realizado
na vida cristã, enquanto herança do mundo judaico ? Em primeiro lugar, evocarei
algumas formas de exegese que enlaçam filosofia e poesia bíblica. Depois,
indicarei a técnica de leitura mais prestigiosa na vida eclesiástica, desde o
catolicismo até a experiência protestante. Terminarei indicando o rompimento
com este método, no pensamento filosófico moderno, especialmente em Spinoza .
Antes, indico a dificuldade de todos os
que desejam abarcar sinóticamente, nas obras capitais da humanidade, como os escritos
bíblicos, os versos homéricos, as fantasias dantescas, o elemento filosófico, o
religioso, o poético. Luciano, o grande satírico sírio, dizia ter inventado um
gênero sério-cômico, e que este, para o leitor desavisado, poderia parecer um
monstro.
Unir o diverso é dificil para todo
intelecto que deseja pensar a vida humana, mistura complexa do Mesmo e do
Outro, de harmonia e guerra dos opostos. Bem diz Holderlin, poeta e filósofo
translúcido : “Como o canto do rouxinol no escuro, o concerto do mundo só é
ouvido divinamente na dor mais profunda”. Ou seja, palintonos harmonie, na
frase de outro poeta e filósofo, Heráclito de Éfeso, tensa concórdia do
pensamento. Quem observa as várias formas do ser humano, afirma ainda Hölderlin,
“só encontra dissonâncias, música demasiado surda, barulhenta, salvo na ingênua
limitação infantil, cujas melodias ainda permanecem totalmente puras”.
Quando assistimos as guerras suscitadas
pelas interpretações estanques e dogmáticas dos textos sagrados em diversas
culturas, o espanto se apossa de nossa alma. Como foi possível, em nome de
tamanha beleza, gerar tão grande ódio ? Como surgiram a Inquisição, os
holocaustos, as sentenças de morte como a que se desferiu contra Salomon
Rushdie? Outra vez, a palavra do mesmo Hölderlin: “o ser humano … está dividido
gravemente, apresenta a imagem de um tamanho caos, que a vertigem se apossa de
todos os capazes de ver e sentir. Mas a Beleza, expulsa da vida, se refugia nas
elevações do espírito”. Paz e luta, segundo o poeta, alarido e silêncio, tudo
conspira para a epifania do Belo, eternamente suspenso e iminente. “Tudo
ocorre” proclama o artesão maior do verso, “pelo desejo, tudo acaba na Paz (…)
as dissonâncias do mundo são como brigas de amantes. A reconciliação está na
luta, tudo o que foi separado se reúne”.
Neste sentido, Hölderlin não está longe de
Hegel. Este, proclama na sua Estética : “ Mesmo na dor mais profunda e na
extrema dilaceração do ânimo, não deve faltar a reconciliação consigo mesmo,
que até nas lágrimas e no sofrimento conserva o traço da certeza quieta e
feliz. A dor permanece bela numa alma profunda, como até no Arlequim ainda
dominam a graça e a gentileza”. Temos, nos dois grandes espírito modernos, o
desejo de reconciliação dos opostos, movido pelo pensamento filosófico e pelo
impulso poético. Mas podemos descer um pouco mais no tempo, utilizando a imagem
hegeliana da pintura, para falar de um autor que uniu, diretamente, filosofia e
poemas bíblicos, sem esquecer Homero, Virgilio, e tantos outros nomes da
cultura greco-latina.
Referindo-se à unidade, na Divina Comédia,
entre filosofia e poesia, avança uma notável analista do trabalho dantesco : a
separação do escrito em duas partes rivais, doutrina e versos, “mata o poema.
Fora do corpo, a mão não é mais a mão, o olho não é mais o olho, dizia Aristóteles,
que Dante chama o ‘mestre dos que sabem’ e que tinha pleno domínio das divisões
e distinções. Mais vale comparar a obra poética de Dante a um destes trípticos
em madeira dos quais os pintores flamengos nos deixaram os modelos; o elemento
poético e o elemento doutrinal são pelo menos tão inseparáveis em Dante, quanto
a madeira e a pintura no tríptico”. A autora relativiza, logo a seguir, esta
imagem, porque muito estática. E compara o nexo entre filosofia e poema como o entretido
num corpo vivo : “a doutrina cumpre o papel de esqueleto,a poesia é a carne que
o reveste. Doutrina e poesia são indispensáveis para explicar a beleza da
obra”. [1]
Assim, é possível e necessário pensar o
poema, filosoficamente, mas também reconhecer na filosofia a força poética. E
ambos os lados convergem quando se trata de refletir intelectualmente sobre uma
poesia religiosa. É o que eu tentarei fazer aqui, sabendo que irei falir, por
falta de tempo e de saberes. Tomarei, inicialmente, a interpretação alegórica
dos textos bíblicos, sobretudo do Cântico dos cânticos. Desenvolverei este modo
pelo qual a Igreja e seus pensadores interrogaram a escrita sagrada. Depois,
indicarei como, após Spinoza, esta leitura perde a validade explicativa, em
termos filosóficos, sendo conduzida ao plano da simples imaginação, afastada do
intelecto. Indicarei que esta ruptura entre acúmulo teórico e poético liberta a
poesia das amarras filosóficas, mas empobrece os dois campos do pensamento.
Finalmente, analisarei como a filosofia romântica lutou contra o
intelectualismo das Luzes, defendendo a imaginação e o sentimento poético do
mundo.
Escutemos o belo início do poema atribuído
a Salomão, na lingua que mais serviu a Igreja, do seu nascimento até os nossos
dias. “Osculetur me osculo oris sui; quia meliora sunt ubera tua vino,
fragantia unguentis optimis”. [2] Os senhores ouvem este suspiro erótico : “Que
me beije com beijos de sua boca! Teus amores são melhores do que o vinho, o
odor dos teus perfumes é suave”. [3] Sabemos a sequência decor. O jogo de
cores, centrado na figura da amada, é o ponto sublime destes versos : “Nigra
sum sed formosa…sicut tabernacula Cedar, sicut pelles Salomonis”. “Sou morena”,
diz cautelosamente a Biblia de Jerusalém, mas por que se recusa a palavra
certa? “Sou negra, mas formosa, filhas de Jerusalém, como as tendas de Cedar,
como os pavilhões de Salomão”. Certo, a pele escura é fruto da exposição ao sol
da jovem férvida, o que indicaria seu estatuto de escrava. Mas num poema, não
vale também notar os processos de produção imanente ? A menina é negra como as
tendas, tecidas com pelos de cabra escura. Ela mesma, pois, é um tecido onde a
cor é marca distintiva. Negra e formosa. Quantos preconceitos de ordem étnica e
cultural seriam corrigidos, se os ouvidos atentassem para a matéria dos textos
!
Elizabeth de Fontenay, num lancinante
livro sobre Diderot e o materialismo, mostra até que ponto foi a cultura
“branca” e “cristã” na sua loucura. Ela relata o caso de Sara Bartmann, uma
hotentote que serviu como cobaia de observação para os “cultos” machos e
cientistas do século 19, que nela viam um ser próximo do macaco, dando-lhe o
apelido satírico “Venus Hottentote”. Isto, para ressaltar a beleza da Venus
grega. Esta última seria kalipígea, a hotentote seria esteatopígia. Os senhores
sabem o que isto significa. Além desta parte, que mostraria “científicamente” a
suposta inferioridade da negra, o nariz, os lábios, tudo foi medido para
demonstrar a sua falta de humanidade. Morta Sara Bartmann, seu corpo foi doado
ao Museu de História Natural, onde seu esqueleto se conservou. Fontenay indica
que hotentotes eram mostrados no Jardin d’acclimatation de Paris desde 1888, até
o século 20. Eles também eram exibidos, para gáudio da “civilizada” e
“caridosa” platéia, nos Folies Bergere. Massa vulgar e cientistas refinados,
todos viam na alteridade da cor e da figura dos membros, o sinônimo divertido
de um ser humano apenas na aparência.
Cito Fontenay : “vemos estes professores
de zoologia, observando durante três dias, em suas quatro faces, esta mulher imóvel
e nua, que posa para quatro desenhistas, tendo a superfície de seu corpo
vigiada pelos olhares-escalpelo. Esta lição de anatomia à flor da pele e o
relatório posterior, mereceriam constituir uma figura determinante na história
do olhar do euro-macho”.[4] Não é de admirar que um povo assim, “civilizado”,
tenha visto como “normal” o massacre de milhões de indivíduos “inferiores”, a
partir de “sinais” físicos “evidentes” de sua inferioridade. Não se diga que os
nazistas foram os únicos culpados nesta história. Os euro-machos, os
americano-machos, até hoje produzem concursos de “beleza”, onde mulheres
passivas se submetem ao olhar escalpelo, para saber qual o tipo mais adequado
para reproduzir seus filhos.
Recentemente, no Brasil, uma besta fera do
meio artístico elogiou Hitler quando exprimia seus desejos da fêmea ideal para
gerar seus filhotes. A entrevista, todos os senhores a leram na revista Veja.
Outro bárbaro, agora na direção de pequenas empresas, referiu-se à uma senadora
da república, cuja cor é negra, em termos baixos, repercutindo milênios de
preconceitos estéticos.
Sou negra, mas formosa : “foi o sol que me
queimou”. Sim, o sol queima. Mas a recusa da cor negra queima ainda mais
fortemente os que a ostentam. O Brasil, os Estados Unidos da América, são
terras calcinadas e secas, neste sentido. A cor não é obstáculo para as vista
extasiada do amante : “És bela, minha amada, e não tens um só defeito !”.
“Que me beije com beijos de sua boca!”.
Embora todas as edições contemporâneas do texto insistam em indicar o caráter não
alegórico do poema, o qual seria o canto do puro amor, distante do ascetismo
estéril e da lascívia pecaminosa, por isto representando uma figura do
mandamento divino, “crescei e multiplicai-vos”, as culturas judaicas e cristãs
tiveram particular predileção por este poema erótico para invocar o enlace
amoroso entre Deus e os homens, reunidos em Israel, ou na Igreja. Esta exegese
antiga predominou até o século 19. Mesmo hoje, muitos escritores religiosos
acentuam o texto como um outro modo de falar (alegoria…) sobre o vínculo entre
o divino e o humano.
A base cristã do método alegórico, para
ler os escritos do Antigo Testamento, encontra-se em São Paulo, na Primeira Epístola
aos Coríntios: “Haec autem omnia in figura contingebant illis : scripta sunt
autem ad correptionem nostram, in quos fines saeculorum devenerunt”. Na Biblia
de Jerusalém : “Estas coisas lhes aconteceram para servir de exemplo e foram
escritas para nossa instrução, nós que fomos atingidos pelo fim dos tempos”.
Desaparece, no texto português, o termo “figura”, substituído por “exemplo”. O
valor semântico pode ser próximo, mas ele realiza um “sequestro”, como diria
Haroldo de Campos, da história alegórica que seguiu-se na cristandade, já herança
de técnicas interpretativas judaicas.
Como expõe de forma segura De Lubac [5] o
pensamento medieval, a partir de uma longa herança greco-latina, entendeu o
texto bíblico, e sobretudo o Cântico dos cânticos, como figura, indicando que
na Bíblia tudo é profético, alegórico, típico. Tudo, nela, é sinal de mistério
: as palavras, as sílabas, as letras, as partículas, o menor iota, a própria
pontuação. O venerável Beda, lê, seguindo São Paulo, que “omnia” (tudo), “não
significa apenas todos os fatos e todas as palavras, mas ainda os lugares, os
tempos, as situações, as circunstâncias”. Outro doutor cristão dizia que tudo,
no Antigo Testamento, era “figura”, porque tudo estaria referido a nós. A história
de Israel inteira torna-se, com sua tradição escrita e oral, profecia do tempo
cristão.
Na verdade, esse caminho interpretativo
teve início nos pensadores judeus. Não é apenas no Cântico dos cânticos que se
usa a imagem do vínculo conjugal para descrever as relações tumultuadas entre
Deus e homens, entre Javé e Israel. Encontramos este traço em Isaías (5, 1 e
seguintes) onde Israel é chamado de “prostituta” pelo profeta, em lugar do
antigo amor. Se o povo se arrepender, “como o noivo se alegra da noiva, assim
de ti se alegrará o teu Deus” (Isaías, 62, 5). Deus canta o amor nupcial entre
Ele e seu povo em Jeremias : “Lembro-me de ti, da tua afeição quando eras
jovem, e do teu amor quando noiva, e de como me seguias no deserto…” (2. 2). E
também em Oséias : “Desposar-te-ei comigo em fidelidade, e conhecerás ao
Senhor” (2, 20). [6]
A figura conjugal é nuclear na hermenêutica
judaica, sobretudo a recebida pela Igreja cristã. A idéia das “núpcias
sagradas” tem papel importante no Zohar e na Kabala. No Zohar, trata-se da reunião
de dois Sefiroth, do aspecto feminino e masculino em Deus. O símbolo da união
conjugal entre Deus e Israel, entre Deus e a alma, é muito importante.
No Cântico dos cânticos, os leitores
judeus ou cristãos viram aflorar o sentido mais atraente do mistério. Quem o lê,
se possui muita sabedoria, nele enxerga o que está oculto. Se não possui saber
e prudência, nele percebe apenas a superfície. Se o leitor é “carnal”, ele só
apalpa as dobras do texto sagrado. Se é “espiritual”, ele penetra os seus
inesgotáveis sentidos, atingindo o Santo dos Santos, lugar onde o divino se
revela ao que o ama. No século XII, o Cântico dos Cânticos é o texto mais
comentado da Biblia, sobretudo pelos cristãos. Segundo o Rabi Yossé, o rei
Salomão o entoou enquanto construía o Templo, e todos os mundos inferiores e
superiores celebraram cantos de louvor, cujo ápice é o Cântico dos Cânticos.
Este canto abarcaria a Thora, o Gênesis, o segredo dos Patriarcas. Ele
relataria, sob forma velada, todos os fatos importantes da história israelita,
como os Dez Mandamentos, a Aliança, a travessia do deserto, a chegada em
Israel, a construção do Templo, o exílio na Babilônia, e a liberdade final. O Cântico
dos cânticos celebraria o “sabbah” derradeiro, o “dia dos dias”, que reúne o
presente, o passado, o futuro.
Segundo Rabbi Eliezer, quando Deus formou
o mundo, ele fez com a mão direita o céu, e com a esquerda, a terra, criou
anjos para cantar os cânticos diurnos, e outros anjos para cantar a noite.
Quando os homens repetem o Cântico dos Cânticos, eles seguem os anjos, unindo
suas vozes e renovando a terra. O Rabbi Neemias disse que “Feliz é o homem que
penetra nos segredos do Cântico dos cânticos”. Assim, ele vai até o fundo da
Thora, chega à sapiência e eleva diante de Deus o presente, o passado, o
futuro.
O Cântico dos cânticos não integrava,
primitivamente, os textos canônicos da Biblia. Nele, Deus nunca é mencionado. O
Rabi Aquiba (século II) conseguiu faze-lo entrar no canon. Escreveu o mesmo
Rabi : “Toda a Biblia é santa, mas o Cântico dos cânticos é sacrossanto (Kôdesh
Kôdeshim)”.
Na Igreja, a coletânea de poemas foi
prezada de modo intenso. Mas a sua exegese era difícil e perigosa. São
Bernardo, num sermão sobre a Epifania, ao explicar o Evangelho das nupcias de
Caná, disse que o esposo designa o Cristo, e a esposa somos nós. Todos somos
uma esposa diante do divino. Em seu comentário explícito sobre o Cântico dos cânticos
(nos Sermões 8, 9, 10), São Bernardo leva adiante a figura conjugal. Ao
comentar o enunciado “Que ele me beije com um beijo de sua boca”, o mesmo
exegeta compara a experiência deste “beijo espiritual” a um maná secreto, a um
signo de amor. O beijo, para ele, significa a efusão do Espírito Santo.
Trata-se de uma luz que traz conhecimento, mas que também oferta o fogo amoroso.
A esposa é a nossa alma sedenta de Deus. Ela ama com tamanho ardor que esquece
a sublime majestade de seu amante. Segundo Bernardo, o Cântico dos cânticos
pode parecer erótico, mas é, na verdade, espiritual. Os seios da esposa, por
exemplo, aleitam as “almas novas”, as que começam apenas a procurar Deus.
Só há uma identidade entre o homem da
carne, preso ao erotismo humano, e o homem espiritual : eles nunca estão
saciados. Quem deseja riquezas, nunca se sacia, quem aspira pelo poder, nunca
se sacia, quem tem fome de Deus, sente sua fome aumentar quanto mais próximo
está do divino. O poema, pois, é um conjunto de signos, símbolos, que permite
passar do homem carnal ao espiritual, do visível ao invisível. O divino e o
terrestre, embora diferentes em dignidade, se encontram e se amam. O mundo não
se prostituiu totalmente. A alma esposa não despreza a criação, mas a valoriza.
Ela espera o dia do Juízo Final, quando haverá o encontro dos dois extremos, o
humano e o divino. Neste dia, serão unidos o exterior e o íntimo, e não mais
haverá masculino ou feminino.
Na piedade cristã, Maria é chamada a
Esposa e a Mãe de Deus, mãe do Rei e sua esposa (Mater Regis et Sponsa), esposa
do Senhor (Sponsa Domini), o templo do Espirito Santo (Spiritus sancti
templum). Ela simboliza a esposa perfeita. São Bernardo chama a Virgem de mãe e
filha de seu Filho, o que ecoa em Dante, no Paraíso : “Vergine madre, figlia
del tuo figlio (…) Nel ventre tuo si raccese l’amore, per lo cui caldo ne
l’eterna pace/ cosi `e germinato questo fiore”.[7] Todos estes pontos citam
direta ou indiretamente o Cântico dos cânticos, inclusive num perigoso
cruzamento com o incesto. Basta lembrar os verso seguintes : “Quis mihi det te
fratem meum sugentem ubera matris meae, ut inveniam te foris et deosculer te et
iam me nemo despiciat?” ( “Ah! Se fosses meu irmão, amamentado aos seios da
minha mãe! Encontrando-te fora, eu te beijaria, sem ninguém me desprezar”).
O Cântico dos cânticos apresenta uma
filosofia, a dos “santos dos santos” que corresponde à idade perfeita da vida
espiritual. Através do poema, somos conduzidos à união entre Eterno e tempo,
entre Deus e nosso espírito. Por que um poema, cheio de signos e símbolos ?
Porque, para atingir Deus, é preciso passar pela carne. O próprio Deus se fez
carne, na figura de Cristo. Não poderíamos falar com Deus sem este meio visível
e erótico. Uma linguagem puramente espiritual seria inaudível para nós. Adianta
São Bernardo : “Assim como é impossível compreender um discurso grego ou latino
se não se conhece o grego ou o latim, também para aquele que não ama, o amor é
uma língua bárbara” (Sermão 79, sobre o Cântico dos cânticos).
Não apenas em sentido laudatório se
compara a Virgem Maria, figura da Igreja, à esposa do Cântico dos Cânticos na
Idade Média e no início da moderna. Tomemos um trecho do Paraíso dantesco :
“Cosí si fa la pelle bianca nera/ nel primo aspetto della bella figlia/ di quel
ch’apporta mane e lascia sera” (Canto 27). (“Assim se faz negra a pele branca,
da bela filha o primeiro rosto, daquele que traz a manhã e deixa a noite”).
Lembremos que este Canto se inicia com Dante que ataca Bonifácio 8, o papa
simoníaco, comerciante de Cristo e de sua Igreja, promotor da prostituição das
coisas santas, usurpando o lugar de São Pedro. Erich Auerbach, analisa a
passagem num texto intitulado “Pelles Salomonis” [8] , e remete para o
pensamento do homem medieval, douto ou não. Cito Auerbach diretamente : “os
motivos ‘bela filha’, ‘pele branca’, ‘negra’, ‘sol’, contêm para o leitor
medieval uma referência à passagem dos Cânticos, o verso ‘Nigra sum sed
formosa, filiae Jerusalem, sicut tabernaculum Cedar, sicut pelles Salomonis’(…)
A alusão é tanto mais evidente, com certeza para o leitor medieval, não para nós,
quanto se pensa que no Canto 27 inteiro do Paraíso o tema é a corrupção da vida
da Igreja (com a cólera e a vergonha que isto suscita). Este tema está ligado
constantemente ao da mudança ou perda da cor (versos 13-15, 19-21, 28-36)”.
Semelhante mudança de cor liga-se, no
mesmo Canto à crítica dos que prostituiam a Igreja, esposa de Deus : “Non fu la
sposa di Cristo allevata/ del sangue mio, di Lin, di quel di Cleto, per essere
ad acquisto l’oro usata; ma, per acquisto d’esto viver lieto” (“Não foi a
esposa de Cristo alimentada com meu sangue, com o de Lino e de Cleto (papas mártires,
como Pedro), para ser usada na conquista de ouro, mas para a conquista deste
viver feliz”). Os padres e o papa simoníaco tornam-se negros, enquanto a Igreja
deveria ser alva. O comentário de Auerbach é eloqüente : ninguém, antes de
Alighieri, “teria dito que no seu tempo a corrupção da Igreja tinha provocado
um obscurecimento do céu semelhante ao que existiu durante a Paixão de Cristo e
que a perversão da sociedade humana era produzida pela falta do poder imperial.
Estas idéias eram suas, e de ninguém mais, e por isto ele usou motivos como
filha, pele, descolorir, quando estas vinham ao seu encontro, para ajudá-lo em
seu propósito. Deste modo, ele ofereceu uma variante ou combinação nova da
interpretação tradicional : a sociedade humana (“sponsa Christi”. “a bela
filha”) perde sua cor diante do esposo”.
Quando me referi ao nascimento do método
alegórico, disse que os tradudores da Biblia de Jerusalém tomaram o termo
“figura” por um outro, o de “exemplo”. Ocorre que na edição grega e latina da
1a Epistola aos Coríntios, os termos empregados são “tipo” e “figura”. São
Paulo escreve numa lingua já trabalhada por séculos onde se recolheram as
culturas grega e latina, de Platão, no mínimo, até os estóicos, passando por
Aristóteles. Neles, os termos “figura” e “tipo” já haviam sido estabelecidos na
metafísica, na ética, na retórica, na gramática, adquirindo sentidos polissêmicos,
cada vez mais amplos e abstratos. “Figura” tinha adquirido, por exemplo na
poesia de Ovídio, um significado retórico preciso, em tom irônico. Estava próxima,
tal palavra, de “fantasia”.
Nos escritores cristãos, entretanto,
“figura”, sem deixar os vários sentidos plásticos anteriores, passou a indicar
algo verdadeiro : “figura é o mesmo sentido literal ou o fato referido, o
cumprimento futuro nele indicado, e também é a ‘veritas’ Deste modo, ‘figura’
aparece como termo médio entre ‘letra-história’ e ‘veritas’”. “Exemplum” é
apenas um dos significados de figura, no campo da interpretação alegórica cristã,
a qual, embora unida às formas anteriores de alegorismo, como o filosófico de
Filon de Alexandria, tinha uma “carne”, justamente o fato de sua inserção no
tempo. Uma “figura” pretérita unia-se à uma outra, presente ou futura, dando
sentido à existência dos homens nos inúmeros lugares do tempo. Estas “figuras”,
apresentadas plasticamente nos poemas bíblicos, como o Cântico dos Cânticos,
tiveram eficácia de convencimento.
Conforme diz Auerbach : esse modo de
apresentar o Eterno no tempo, através do poético, “conjugava exemplarmente a
força prático-política da fé com aquelas poéticamente criadoras e transformava
a concepção hebraica da ressurreição de Moisés no Messias num sistema de
profecia real (…) E assim o Antigo Testamento ganhou uma nova atualidade dramático-concreta
enquanto perdia a força da Lei e a peculiaridade histórico-popular”.[9] Dentre
os monumentos poéticos cristãos que marcam nosso espírito, ampliando o tema do
casamento e dos Cânticos dos cânticos, está a Divina Comédia, como vimos antes.
Nesta, também vimos, a poesia une-se, como carne aos ossos, à um conjunto
doutrinário filosófico que pretende atingir o verdadeiro através da figura, por
seu meio, e não rompendo com a figura, com o tipo, com a imagem.
Assim, escreve Auerbach em outro livro, “O
Antigo Testamento se transforma numa sucessão de pre-figurações isoladas, Adão
pode pode tornar-se não só uma figura, mas um profeta figural de Cristo”. Em
contrapartida, “Maria é o jardim (…) a origem da água viva do Cântico dos Cânticos”.
[10]
Tal modo de pensar, filosófica a teológicamente,
permaneceu até o Renascimento, sendo gradativamente abandonado a partir das
pesquisas dos filólogos e historiadores laicizantes, cuja liderança cabe, sem dúvida,
a Lorenzo Valla. Os modernos interpretes do texto bíblico tendem a atenuar ao máximo
este figurativismo alegórico, separando a figura do seu intento de exprimir,
sob forma velada, a verdade. Talvez um dos últimos dos grandes autores da era
renascentista a utilizar esta via, com fortes sinais de neo-platonismo, tenha
sido Giordano Bruno, preocupado com a unidade do cosmos, a imagem e a memória.
Na sua obra “De umbris idearum”, Bruno inicia uma seção capital sobre o nexo
entre nossa inteligência e memória e o Deus único, citando o Cântico dos Cânticos:
“Sub umbra illius quem desideraveram sedi…”. (”Sentei-me à sombra daquele que
eu amo”) (2, 3). Comenta Francis Yates, no seu livro sobre a Arte da Memória :
“Devemos nos sentar à sombra do bom e do verdadeiro. Para lá dirigir os
sentimentos através dos sentidos interiores, através das imagens que se
encontram no interior do espírito humano, isto é sentar-se à sombra”. Deste
modo, “dentro da natureza tudo está em tudo. No intelecto, tudo está em tudo. E
a memória pode memorizar tudo, a partir de tudo”. [11]
O trabalho moderno, na interpretação filosófica
e teológica dos textos bíblicos, deu-se a partir de Lorenzo Valla, de Erasmo
[12] , e de Lutero, seguidores de Valla, de modos distintos, mas todos com
desconfianças e críticas ao alegorismo. O primeiro, em nome do rigor filológico
e do decorum literário, o segundo, especialmente pelo seu programa de seguir
apenas a Escritura. Os reformadores criticaram nos “papistas” a sua
“liberalidade alegorizante” como sacrilégio. Do lado católico não tanto
ortodoxo, como no filósofo Pascal, se defendeu o método antigo. Pascal afirma
que “São Paulo ensinou aos homens que todas aquelas coisas tinham acontecido em
figura”. E Pierre Nicole, um dos autores da Logica e da Gramática de
Port-Royal, textos fundamentais de filosofia clássica, num prefácio escrito
para o livro intitulado Explicação do Cântico dos Cânticos (de M. Hamon),
defendeu o alegorismo.
Mas essa atitude se enfraqueceu, como o
demonstra o Pe. De Lubac. Além disto, continua De Lubac, “a ofensiva dos
cientistas vinha reforçar mais e mais, num outro terreno, a atitude da
Reforma”. A crise instalada na Renascença, e que piorou no século 17, atingiu
seu ponto máximo com as Luzes, no século 18. Em 1727, no livro Notas Anexas
sobre a Carta de um Prior a um de seus Amigos, encontramos uma frase
importante, criticando o alegorismo anterior : “Que abuso fazer depender a
inteligência da Escritura do grau de imaginação, e da maior ou menor facilidade
que se tem para colher relações e conveniências”. Temos aqui, na pena de um católico,
algo que, se dito por um discípulo de Spinoza, levantaria gritos contra a
ruptura entre ciência e sinal, entre imaginação e intelecto. Spinoza deu o
ponto de partida mais grave neste rumo. Doravante, uma coisa é a Biblia, com
sua poesia e ditames morais baseados no medo e na esperança, ou seja, na
imaginação. Outra, é a filosofia ou a ciência, com base matemática, controlando
o mais possível o imaginário poético e religioso, em proveito do saber.
Spinoza, com sua leitura da Biblia, causou
um verdadeiro furacão na Europa judaica e cristã. Expulso da Sinagoga, ele não
foi bem acolhido, muito pelo contrário, por católicos e protestantes. Sua influência
foi decisiva nos principais teóricos do século 18 e 19, estando seu pensamento
na própria gênese das reflexões materialistas, atéias, ou simplesmente agnósticas
de um Denis Diderot, Jean-Jacques Rousseau, Voltaire, etc. Com Spinoza, enuncia
Paul Vernière, um dos maiores conhecedores das Luzes e da filosofia
diderotiana, “A Biblia não era mais o Livro, mas um livro trazido à medida
humana e que, à semelhança de um texto de Orígenes ou de Salústio, deveria ser
submetido a minuciosas investigações históricas e filológicas”. O tratamento
Spinozano para os textos bíblicos passa pela questão da lingua (o hebraico e no
que tange aos últimos livros do canon, o aramaico), pela semântica, comparando
os textos e encontrando o sentido exato das palavras, sua acepção literal e
metafórica, pela história do povo hebreu, a biografias dos autores, a transmissão
das obras, as diferentes lições e como se estabeleceu o próprio canon.
Claro que o método spinozano, com raízes
no renascimento, nos pensadores mais independentes do judaísmo e do
cristianismo, exigiu resposta da Igreja. Esta cometeria suicidio, diz Vernière,
se admitisse que a Biblia, base da crença e fundamento de suas decisões, fosse
submetida ao destino das obras humanas, como os poemas homéricos. Se a
Escritura nada mais fosse do que uma reunião confusa de mito, história e
literatura judaica, como justificar a Revelação cristã ? Toda a história da
filosofia cristã, e da exegese, passou a ter em Spinoza o seu inimigo mortal.
[13]
Uma característica do método alegórico é o
vínculo entre pensamento filosófico e imaginação poética. Spinoza rompe esta
solidariedade. Para ele, como afirma a sua Ética (no Apêndice), “todas as noções
que o vulgo tem o hábito de fazer uso para explicar a natureza são apenas modos
de imaginar, e nada revelam da natureza de nenhuma coisa, mas apenas a
constituição da imaginação”. Ou seja, quando lemos um comentário alegórico ou
poético dos textos bíblicos, aprendemos mais sobre a cabeça do comentarista, os
seus medos, os seus desejos, as suas formas de imaginar, do que algo sobre a
lingua, a história, o sentido do próprio texto bíblico. Os próprios escritores
do texto sacro, profetas, sábios, ou poetas, não são dotados, segundo Spinoza,
“de um pensamento mais perfeito, mas de um poder de imaginar mais vivo”.
(TTP,II).
Os que se distinguem pela imaginação,
afirma o filósofo, “são menos aptos para conhecer as coisas pelo intelecto
puro, e, pelo contrário, os que são superiores no intelecto e o cultivam por
preferência, tem um poder de imaginar mais temperado, mais dominado e, como
domado para que ele não seja confundido com o intelecto”. Como a simples
imaginação não envolve, por sua natureza, o que é certo, a profecia –e os
demais escrito bíblicos, sobretudo os poéticos– não poderia “por si mesma,
envolver certeza, pois ela depende apenas da imaginação”.(TTP, II). O texto da
Biblia apresenta um signo, um índice como prova de verdade. Este signo, pensa
Spinoza, é exterior ao intelecto, e só pode ser forjado pela imaginação, a qual
depende de figuras. Como neste plano tudo é incerto, a polissemia da exegese
alegórico-poética marca a falta de ciência e de verdade. Esta, para Spinoza, não
depende de nenhum signo, e o verdadeiro é o índice de si mesmo e do falso. Se
um poeta bíblico, ou profeta, é refinado, suas imagens serão refinadas, mas não
podemos esperar que elas nos tragam conhecimento físico, histórico, matemático.
O que significam as bodas de Caná para o
comentador alegórico ? Infinitas coisas, entre as quais, o elo erótico entre
Deus e os homens. O que significam as mesmas bodas para Spinoza ? Nelas, o
milagre da mudança da água em vinho é recurso poético, imaginário de pessoas
sedentas de vinho e de maravilhas que relatam o que lhes ia na alma, enquanto
desejo. Assim, toda a Biblia, no AT e no NT, tem um estilo persuasivo que entra
na economia das paixões. “Se a Escritura narrasse”, diz Spinoza (TTP, IV), “a
ruina de um estado segundo os modos dos historiadores políticos, isto não
comoveria de nenhum jeito a multidão. O efeito, entretanto, é muito grande,
quando se pinta o que ocorreu com um estilo poético, e quando se relaciona tudo
a Deus, como a Biblia tem o costume de fazer. Quando, pois, a Escritura narra
que a terra ficou estéril devido ao pecado dos homens, ou que cegos são curados
pela fé, estes relatos não nos devem comover, como também quando ela conta que
devido aos pecados dos homens Deus se irritou, ficou triste, se arrependeu do
bem prometido ou já feito, ou ainda que Deus se lembra de sua promessa diante
de um signo e muitas outras histórias que são invenções poéticas ou exprimem as
opiniões e os preconceitos do narrador”. (TTP, VI).
A Escritura ensina a plebe a obedecer
ditames morais. E ela o faz usando uma lingua poética onde entram todos os
recursos da retórica, fazendo apelo aos sentimentos humanos e jogando estes últimos
sobre Deus, como se este fosse apenas um super-homem, e como se ele não
ultrapassasse nossa imaginação, só podendo ser captado pelo intelecto superior.
O juízo de Spinoza sobre o escrito poético
deu a este último uma liberdade diante do teológico-doutrinário. Mas contribuiu
para a ruptura entre poesia e ciência, algo que se agravou na secularização dos
século 18 e começos do dezenove. A filosofia gelada, pensam os críticos deste
divórcio entre o sentido estético e o científico, acabou com a polissemia do
signo e do símbolo mitológicos. Newton, com seu prisma que reduz as cores numa
série material de conbinações físicas, retirou do arco-iris todo o seu encanto.
O maior ataque ao pensamento que afasta
intelecto/ciência e imaginação/poesia veio com o romantismo, ampliação dos
trabalhos de Edmund Burke, sobretudo nas Considerações sobre a Revolução
Francesa, uma continuidade das análises sobre o sublime, pelo mesmo autor.
Estas, como sabemos, vincaram a estética filosófica de I.Kant, do idealismo
transcendental de Schelling e de Hegel, e foram nucleares nos textos românticos
contra as Luzes e a ciência mecânica. Como resultado do pensamento que separa
imaginação e intelecto, o mundo tornara-se desencantado.
Citemos Novalis, o maior poeta do
romantismo : com a dessacralização da Biblia e do mundo físico, “os deuses
desapareceram, e com eles seu cortejo -a natureza esgotou-se e perdeu a vida–
foi amarrada à férrea cadeia do número árido e à estrita medida. A floração
luxuriante dos viventes reduziu-se a palavras obscuras, feitas de poeira e
vento. Desapareceram a fé evocadora e sua celeste companheira, a imaginação (…)
a luz deixou de ser a morada e o símbolo celeste dos deuses -eles envolveram-se
no véu da Noite”.[14] Com a filosofia do século 18 e 19, herdeiro de Spinoza e
do racionalismo clássico, Deus morreu e o mundo foi mecanizado.Contra este
desencanto, o pensamento romântico apelou para as nupcias entre racionalidade e
fantasia, reabilitando a imaginação. Desde esta época, já nos inícios do século
19, o pensamento mágico foi a tônica na defesa do poético e na luta contra a físico-matemática
que se basearia em necessidades, e que teria retirado todo traço humano da vida
social e política.
As formas alegóricas, no século dezoito,
tornaram-se cada vez mais intectualizadas, frias, secas. Isto, em todas as
artes. Diderot é quase uma exceção, com seu colega inimigo, Rousseau, neste
campo. A escrita destes dois filósofo tem carne, cores, sons, imagens profusas
[15]. Por este motivo, ambos são indicados enquanto antecipadores do
romantismo, ou simplesmente como românticos. Claro que este é um modo estranho
de retirar ambos os pensadores de seu tempo, cometendo um anacronismo que apaga
outros traços de seu trabalho. Mas a presença de um imaginário rico, capaz de
erguer o pensamento e a fantasia à altura do sublime, tornou o par Diderot e
Rousseau o mais presente no labor romântico, nas escritas de Goethe, Schiller,
Herder, e outros.
Num mundo desencantado pelo número, os românticos
tentaram romper o prestígio da alegoria intelectualizada, ressaltando as
virtudes regeneradoras dos símbolos. Quem melhor enuncia isto, é Albert Beguin,
no seu belo texto sobre A Alma romântica e o Sonho . No universo romântico, “os
sons, as cores, os perfumes respondem-se mútuamente, os objetos se transfiguram
sem cessar e deixam sua aparência. As flores se transformam em nuvens, as
estrelas caem sobre o solo e espalham-se em corolas magníficas; as pérolas de
neve se transmutam em olhos de pássaros, caem em lágrimas no espaço e formam
ali as brumas. O gelo se transforma em névoa, neve, luz; um caminho aberto pela
charrua estende-se sobre a terra e acaba num oceano com horizontes vaporosos.
De uma lágrima nasce uma onda, a qual engendra um navio. Seres tornam-se pura música.
Os pensamentos do sonhador bastam para mudar toda a paisagem, abrir portas
fechadas, e um grande lírio, súbito, se transforma no símbolo da serpente,
conselheira do Mal”.
É nesse quadro onírico e simbólico que os
poderes da magia e do encantamento fizeram Novalis, como disse, o maior poeta
romântico alemão, ressuscitar, nos versos e na dor, o Cântico dos Cânticos.
Muitos dos senhores conhecem a biografia do poeta. Matemático, geólogo, ele
viveu nos círculos próximos do primeiro romantismo. Encontrou uma jovem de
quinze anos, Sofia, em 1794. Ficaram juntos no verão de 1795 e, breve, uma doença
mortal a destruiu em 1797. Novalis cantou esta morte até a sua própria, num
desejo de união com Sofia que se realizou em 1801, quando o poeta atingiu os 29
anos. Novalis escreveu sobre física, matemática, metalurgia, e muitos outros
assuntos, sempre tentando realizar o programa romântico de uma transmutação do
mecanicismo newtoniano e das Luzes. O que nos importa, é a sua guinada para o
desejo de Sofia morta/viva, e sua retomada do Cântico dos Cânticos.
Nesse rumo, o conjunto fundamental é dado
pelos Hinos à Noite. Neles, unem-se a recusa das Luzes burguesas e a busca de
Sofia. Esta oposição entre noite e dia é marca romântica de primeira plana.
Ainda em Fitzgerald, tanto no Great Gatsby quanto no Tender is the Night, temos
o delírio em busca de paz e tranquilidade, só garantidas no interior do sonho e
da escuridão. Os Hinos à Noite estão embebidos de erotismo e volúpia. Aliás,
para Novalis, num de seus “Fragmentos”, “a religião cristã é a verdadeira
religião da volúpia. Nada nos estimula mais a amar nosso Deus do que o pecado.
Mais nos sentimos pecadores, mais somos cristãos. O pecado, como o amor, só têm
como razão de ser na união absoluta com a divindade” (Fragmento III). Esta tese
vem de Lutero. É o famoso “Pecca fortiter”, da carta escrita pelo Reformador a
Melanchton (1-09-1521) : se existe a Graça divina, e se o cristão nela
acredita, e não vê nela apenas uma fábula, logo, ele deve saber que Deus não
salva pecadores inexistentes, mas reais. É preciso, pois, ser pecador, e pecar
fortemente. Mais firmemente, entretanto, vêm a fé e a esperança no Cristo, “o
vencedor do pecado e da morte!”.
O sexto Hino de Novalis acaba com a evocação
direta do Cântico dos Cânticos : “Desçamos rumo à noiva, rumo a Jesus Cristo, o
Bem amado. Coragem, o entardecer tomba sobre os corações amantes e piedosos. Um
sonho, quebrando nossas cadeias, nos mergulha no seio do Pai”. Trata-se da
antiga alegoria, já mencionada por mim, do amor entre a Igreja e o Cristo, unio
mystica ou connubium mysticum. Avni [16] coloca em paralelo os versos de
Novalis e os dos Cânticos. Entre muitos, vejamos os seguintes : “terna amorosa
– gracioso sol da Noite– … reduzido numa substância aérea, eu misturo meu ser
no teu, numa união mais íntima, para que dure eternamente a nossa noite de
nupcias” (Canto I). E depois : “Teus sóis possuem olhos amigos, que me reconheçam
?” (Canto IV). Nos Cânticos : “Quem é aquela que surge….clara como o sol?”. “O
que foi santificado pelo contacto amoroso escoa, num estado fluido e sutil, por
canais subterrâneos que o arrastam para um outro mundo e o misturam, como um
aroma impalpável, à substância de seus mortos, bem amados”. (Canto IV). Cântico
: “Tu és …como a água viva”. Se fossemos comparar todas as passagens dos Hinos
novalianos esgotaríamos mil e uma noites. Desejo finalizar, apontando a ruptura
desse imaginário com a filosofia das Luzes, o que deu início ao pensamento mágico
romântico, hoje banalizado e reduzido a produto comercial, produzindo lucro
para charlatães.
Para aquilatar o abismo entre esse
reavivamento dos Cânticos dos cânticos e a filosofia das luzes, basta que se
indique, primeiro, a Flauta Mágica de Mozart : nela, Sarastro é pai das luzes,
sábio, enfrentado pela Rainha da Noite, vingativa e odiosa mulher que só
promete morte no seu canto. Jean Starobinski mostrou, no belo 1789 ou os
Emblemas da Razão, o quanto a ópera é dominada pela figura masculina, numa
retomada intelectual e metafísica que põe o homem como superior à mulher, esta última
sendo uma criança (Pamina) ingênua a ser educada por Sarastro e por Tamino. O
romantismo valorizou a mulher como agente, bom ou mal, mas deu-lhe a primeira
autonomia moderna, contra o pensamento aristotélico que a definiu como homem
inacabado.
Há um movimento plagiotrópico, termo
cunhado por Haroldo de Campos, que vem dos mais antigos poemas hebraicos e
greco-latinos, até o romantismo filosófico e poético. Vimos a insistência de
Novalis no sol escuro da noite, e notamos que as imagens solares são extraídas
do enlace amoroso, posto no Cântico dos Cânticos. Ocorre um vínculo perfeito
entre o imaginário onírico de Shakespeare, visto como “bárbaro” pelos filósofos
do século 18, especialmente por Voltaire (Diderot é exceção neste juízo
negativo) e o romantismo. Não por acaso, o pensamento romântico foi o que mais
ajudou a reabilitar o poeta renascentista inglês. No caso do Cântico dos Cânticos,
o tema do desencontro entre amada e amante, e o encontro num leito onde se
dorme (dormir é um modo de morrer), repercute em Romeu e Julieta, trazendo
figuras mais tarde assumidas pelos românticos, em especial por Novalis.
Lembremos o Cântico : “Em meu leito, pela
noite, procurei o amado de minha alma. Procurei-o e não o encontrei”. A última
frase constitui uma anáfora importante “ : “Procurei-o e não o encontrei”, logo
adiante. Tendo agarrado o seu amor, Sulamita pede às filhas de Jerusalém : “não
o desperteis, não o acordeis, até que ele o queira”. Tomemos Romeu e Julieta :
“se o amor é cego, ele concorda melhor com a noite. Vem noite severa, tu, sóbria
matrona, toda vestida de negro, ensina-me a perder uma partida já ganha”. E
mais : “Vem, noite; – vem Romeu, tu dia na noite”. O grito doloroso de Julieta
ecoa pelo universo : “Vem, noite gentil …. dá-me Romeu; e quando ele morrer,
toma-o e corta-o em pequenas estrelas, e ele tornará tão bela a face do céu,
que todo mundo se apaixonará pela noite, e não mais dirigirá orações ao sol
brilhante”. Há um encontro, em Shakespeare, entre o erotismo poético de origem
grega e bíblica. Se acreditarmos em Diógenes Laércio, Platão escreveu um poema
para um amante seu, morto muito jovem, cujo nome era Astro: “Admiras os astros,
meu Astro. Queria ser o firmamento celeste, para possuir todos os seus olhos
para te observar! Outrora brilhavas entre os vivos como a estrela da manhã.
Morreste, mas brilhas entre os mortos como a estrela do anoitecer”.[17]
Em Novalis, o amor impossível, nostalgia
do que poderia ter sido, desejo de união infinita, une-se à fuga da claridade,
tornando-se culto erótico da morte : “É na morte que o amor transforma-se em
mais doce; para o amante, a morte é uma noite nupcial, um segredo de suaves
mistérios”. Este imaginário se desgasta, e se torna frio e retórico, no músico
Wagner. Em Tristão e Isolda pode-se ouvir : “Para quem contempla amorosamente a
noite da morte; para quem ela confiou seu profundo segredo; para tal homem, as
mentiras diurnas, glórias e honra, poder e fortuna, com todo seu brilho
soberbo, se dissipam como vã poeira de sóis….Nas quimeras derrisórias do dia, só
uma aspiração lhe resta… o desejo da santa noite, onde, desde toda eternidade …
o êxtase amoroso o faz estremecer”.[18]
Se fôssemos percorrer o itinerário que vem
do Cântico dos Cânticos até Novalis e Wagner, passando pelos interpretes
alegorizantes do poema na Idade Média, e pelo seu uso poético em Shakespeare, diríamos
que os seus avatares seguem o nascimento da subjetividade moderna, um dos
problemas mais graves da filosofia contemporânea. Preferi seguir o caminho das
interpretações do texto bíblico, desde as que mostravam uma identidade cosmológica
e lógica entre o cantor, o interprete, a natureza, o conhecimento e a imaginação,
até o racionalismo clássico, com Spinoza, que nega tal identidade. Daí,
seguimos a interiorização do cosmos, desde a saída do antigo lugar alegórico, o
mundo lisível pelo signo externo, até o mundo do sujeito, onde tudo se passa
pelo simbolo. Hegel chamou a nostalgia infinita de união, baseada na
subjetividade, de simples loucura. Mas Hegel é o homem que definiu limites para
as artes e para a sensibilidade. Mesmo saboreando a música, ele escolheu
Palestrina, Durante, Lotti, Pergolesi, Gluck, Haydn, Mozart porque, segundo
ele, “a quietude da alma não se perde nas composições daqueles mestres. A dor,
neles, se exprime certamente. Mas ela é sempre dissolvida, a clara proporção
equilibra-se entre os extremos, tudo permanece reunido em formas contidas e
prontas, e assim o júbilo nunca degenera em tumulto desenfreado, e o próprio
choro proporciona a mais tranqüila pacificação”.(Estética)
O Cântico dos Cânticos ensina, hoje e
sempre, que a pacificação idealista é impossível. O desejo dos amantes, como
diziam os mestres medievais, nunca se apaga, sempre se reforça, ao infinito. É
o que diz a Sulamita, no ponto mais profundo do poema : “Grava-me, como um selo
em teu coração, como um selo em teu braço; pois o amor é forte, é como a morte.
Cruel como o abismo é a paixão; suas chamas são chamas de fogo, uma faísca de
Javé. As águas da torrente jamais poderão apagar o amor, nem os rios afogá-lo.
Quisesse alguém dar tudo o que tem para comprar o amor….seria tratado com
desprezo”.
Aberta a chaga da subjetividade moderna
com o seu distanciamento diante da natureza, não há retorno possível. Sem Deus,
e sem esperanças de imortalidade, somos jogados num mundo onde a inquietude
cresce sempre mais, desconhecendo saídas. Baseando-se no trecho acima dos Cânticos,
sobre a crueldade amorosa, Camões gerou os agora banalizados versos sobre o
“contentamento descontente”, mas também o espantoso poema sobre Eco, apaixonada
por Narciso, onde o escritor, falando de si mesmo, lembra que “os olhos que
vivem descontentes, descontente o prazer se lhe afigura”. E por que ? Responde
o vate : “… se o amor não se perde em vida ausente, menos se perderá por morte
escura; porque, enfim, a alma vive eternamente, e amor é afeito d’alma, e
sempre dura”. Esta certeza não abole o pêndulo entre paz e inquietude, mesmo
nos místicos mais elevados do cristianismo. Quem duvidar, leia as páginas
lancinantes de Santa Tereza de Jesus, nas Meditações sobre os Cânticos dos Cânticos,
não por acaso censuradas pelos diretores espirituais, e hoje só acessíveis
devido ao acaso, que recolheu manuscritos não incinerados daquele poema em
prosa. [19]
Os místicos autênticos conhecem a “noite
escura da alma”. Todo filósofo digno deste nome, enfrenta o problema do sujeito
e da sensibilidade, sobretudo no campo da paixão. Neste prisma, o Cântico dos Cânticos
é um convite poderoso ao encanto e ao pensamento, sem rupturas entre estes dois
traços antropológicos fundamentais. Afinal, mesmo Hegel admitia que a palavra
“sentido” (Sinn), básica para se entender o ente humano, possui…dois sentidos :
o lógico e o carnal. A filosofia moderna, cujo ápice encontra-se no século 18,
concentrou-se no lógico. A filosofia romântica mergulhou na carne. A busca do
equilíbrio entre os dois lados é tensa. A poesia ensina os teólogos, os antropólogos,
e sobretudo os filósofos, a finura das palavras e das imagens. Para isto, nada
mais indicado do que meditar sobre os Cânticos, obra de pensamento e de poesia,
atribuída, não sem razões, ao sábio poeta.
Notas
[1] in Studi su Dante . Milano,
Feltrinelli, 1995, páginas 261 e seguintes.
[2] Yvonne Batard. Dante, Minerve et
Apollon. Les Images de la Divine Comédie. Paris. Les Belles Lettres, 1952, p.
85-86..
[3] Vulgata, ou Biblia Sacra. S.Sedis Apostolicae
Typographi Ac Editores, Marietti,1959.
[4] Biblia de Jerusalém. Ed. Brasileira. São
Paulo, Paulinas, 1985.
[5] Fontenay, Elizabeth. Diderot ou le matérialisme
enchanté. Paris, Grasset, 1981, p. 87-99.
[6] “Omnia in figura”, in Exegese Médiévale.
Les Quatre Sens de l’Écriture. Paris, Aubier, 1964, IIe Partie, V.II, p. 60 ss.
[7] A partir deste ponto, estarei seguindo
literalmente o belo texto de M.M. Davy, Initiation a la Symbolique Romane.
Paris, Flammarion, 1977.
[8] Paraíso, Canto 33. “Virgem mãe, filha
de teu filho (…) em teu ventre incendiou-se o amor, por cujo calor, na eterna
paz , esta flor germinou”. Cf. os comentários de Ernst Kantorowicks. The King’s
two Bodies. Princeton, Univ. Press, 1970. P. 100.
[9] in Studi su Dante . Milano, Feltrinelli,
1995, p. 261 e ss.
[10] Cf. Auerbach, op.cit. p. 207
[11] “Il simbolismo Tipologico nella
letteratura medievale”. In San Francesco, Dante, Vico. Roma, Riuniti, 1987, p.
138-139..
[12] L’Art de la Mémoire. Paris,
Gallimard, 1982, p. 242-243.
[13] Cf. Chomarat, Jacques. Grammaire et
Rhetorique chez Erasme. Paris, Belles Lettres, 1995.
[14 ] Para estes aspectos, cf. Abrams,
M.H. The Mirror and the Lamp. Romantic Theory and the critical tradition. N.Y.
Oxford University Press, 1971. A citação de Novalis, acima, encontra-se em
Roberto Romano : Conservadorismo romântico. São Paulo, Brasiliense, 1981, p.
138-139.
[15] The Bible and Romanticism. The Hague,
Mouton & Co. 1969, p. 36 e ss.
[16 ] Diógenes Laercio. Vida , Doutrinas e
sentenças dos Filósofos Ilustres. Paris, Garnier Flammarion, T.1,p. 172.
[17 ] Diógenes Laercio. Vida , Doutrinas e
sentenças dos Filósofos Ilustres. Paris, Garnier Flammarion, T.1,p. 172.
[18 ] In Santa Tereza de Jesús, Obras
Completas, BAC, 1986, p. 421 ss.