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sexta-feira, 12 de abril de 2019

I Colóquio Rousseau. “Rousseau, verdades e mentiras” Faculdade de Ciências e Letras - UNESP – Araraquara 12 a 14 de novembro de 2003 Mentiras transparentes. Rousseau e a Contra revolução romântica Conferência de Abertura Prof. Dr. Roberto Romano (UNICAMP)


I Colóquio Rousseau. “Rousseau, verdades e mentiras”
Faculdade de Ciências e Letras - UNESP – Araraquara
12 a 14 de novembro de 2003

Mentiras transparentes. Rousseau e a Contra revolução romântica

Conferência de Abertura
Prof. Dr. Roberto Romano (UNICAMP)
 (Agradecemos ao Prof. Romano a gentileza de ter disponibilizado este texto, ainda em versão preliminar, para leitura prévia pelos participantes do Colóquio, e lembramos que está vedada sua reprodução, distribuição ou utilização para qualquer outro fim.)

No simpósio que hoje se inicia os senhores analisarão a mentira no pensamento do filósofo. Muitas facetas de suas fórmulas podem ser discutidas em detalhe, outras apenas de modo rápido. Desde os primeiros passos da filosofia,  sabemos o quanto o engano deliberado, permitido aos dirigentes, integra em plano menor  um saber que se volta para a verdade. Gostaria de usar, como inspiração de minha fala, algumas linhas de um comentador de Rousseau, que expõe o problema a ser levantado com maior freqüência nas atividades deste simpósio. Ao referir-se ao nexo entre filosofia e teatro no âmbito da ética, Guy Besse adianta: quer  deseje ou não,  saiba ou não, a filosofia para Rousseau é “comédia na comédia, ela enxerta a ilusão na ilusão.  Se no Sobrinho de Rameau o filósofo imagina não entrar na pantomima, o autor do Primeiro Discurso e do prefácio do Narciso, não o poupa. O filósofo, também ele, se inclina. É preciso, portanto (…) observar que o jogo da aparência em Rousseau possui uma complicação, um refinamento extremos. Estaríamos errados se acreditássemos que para ele a aparência é apenas e nada mais do que mentira, máscara, violência mascarada. A aparência é máscara; é confissão. Ela esconde o que esconde e o sugere; digamos que ela o designa”.([1])
Deixemos de lado, na passagem de Guy Besse, a leitura superficial do Sobrinho de Rameau, visto que ela paga tributo à uma divisão prestigiosa mas pouco fundamentada entre o filósofo e o vagabundo genial e observemos os enunciados. As fórmulas barrocas usadas por Besse —a comédia na comédia, a ilusão na ilusão— servem perfeitamente para descrever o pensamento de Rousseau. Elas dizem mais do que as figurações românticas posteriores ao tempo do filósofo. E isto não é apenas um problema cronológico. Nos últimos tempos, a pesquisa em história do pensamento político e filosófico procura sair da ilusão retroativa que jogou sobre pensadores das Luzes e do século 17 as teses do romantismo do século 19 e da Contra-revolução. ([2])
Além das teses que empurraram Rousseau, Diderot e outros para a epistême organicista do romantismo, o desvinculamento entre aqueles pensadores e o barroco apaga o elemento que, no meu entender, é vital neles, a crítica do poder político enquanto aparência. Claro, esta via tem nos Diálogos platônicos e nas teorizações antigas e medievais o seu lugar elevado. O nexo imediato do século 18 com a Renascença e com a idade clássica ajuda, entretanto, a compreender as críticas simultâneas às artes e ao mando, quando este é tirânico. O romantismo seqüestrou a política e a críticas às artes, arrancando-as do pensamento racional do século 18. E isto gerou a legenda do Rousseau sentimental e isolado do mundo, protótipo do poeta maldito, uma das banalidades do figurativismo romântico.
Logo após enunciar que a crítica de Rousseau às aparências e às mentiras das máscaras é um complexo noético, Besse exemplifica o que diz numa passagem do Discurso sobre a Economia Política: “a lei da qual se abusa, serve ao poderoso ao mesmo tempo como arma ofensiva e de escudo contra o fraco, o pretexto do bem público é sempre o mais perigoso flagelo do povo”. ([3])
Rousseau foi retratado como sonhador individualista em cujos textos autobiográficos os gênios românticos encontraram o caminho para a fuga do mundo. Ao mesmo tempo, ele recebeu a pecha de totalitário que exigiu o sacrifício dos átomos sociais ao grande Todo, o coletivo estatal. Os dois ataques são devidos à mesma operação cirúrgica, realizada sine ira et studio por teóricos da contra-revolução romântica. Levantar esta suspeita é o sentido de minha alocução nesta noite.
Comecemos com uma frase verdadeira segundo Rousseau. “é bom que um apenas pereça por todos”. O enunciado vem do Evangelho de João (11, 47- 50). Os mais importantes dirigentes do quase morto Estado judeu, diante do Cristo, se aconselhavam sobre o que deveria ser feito para evitar o entusiasmo do povo pelo Nazareno, visto cada vez mais como rei e prevenir rebeliões seguidas por represálias dos romanos. Cito o trecho bíblico: “Então os principais sacerdotes e os fariseus convocaram o Sinédrio; e disseram: que estamos fazendo, uma vez que este homem opera muitos sinais (semeia, na versão grega)? Se o deixarmos assim todos crerão nele; depois virão os romanos e tomarão não só o nosso lugar, mas a própria nação. Caifás, porém, um dentre eles, sumo sacerdote  naquele ano, advertiu-os dizendo: Vós nada sabeis nem considerais que vos convém que morra um só homem pelo povo, e que não venha a perecer toda a nação”. ([4])

A lógica dos sacerdotes era a da auto-conservação do povo, e ela fazia sentido pleno, se considerada a ameaça do jugo imperial. A frase da quase razão de Estado encontra sua fórmula consagrada no dito latino: “salus populi suprema lex esto” (que a conservação do povo seja a lei soberana). Assim, as injustiças mais gritantes, as piores mentiras, podem ser absorvidas no contexto da suposta preservação popular. Este axioma foi assumido, entre muitos, por Gabriel Naudé, em obra clássica e por isto mesmo ainda atual, as Considerações políticas sobre os golpes de Estado.([5]) No mundo de hoje, os líderes dos Estados abusam do sacrifício em nome da salvação nacional. Assim, apenas para exemplificar, após os atentados do 11 de setembro, os EUA retomaram a prática de invadir países, jogando seus cidadãos em campos da morte com a tradicional desculpa dos fariseus que decidiram a sorte do Cristo. Mudou apenas o número. Não se trata mais de sacrificar um apenas. Muitos e muitos devem ser mortos em nome do Estado.
Stalin contou a André Malraux uma sua conversa com Lenine, cujo tema era saber se bastariam 6 milhões de mortes para garantir o novo regime. Ele pendia para 60 milhões. Estava certo. ([6]) O século 20 assistiu bestializado 180 milhões de puros assassinatos em guerras e repressões políticas, ideológicas, religiosas. ([7]) A razão estatal mostrou a sua irracionalidade em duas guerras mundiais; no uso da Bomba atômica; nos campos de concentração onde milhões de judeus foram sacrificados aos numes do racismo e da intolerância. Massacres ocorreram nas terras armênias, nas ruas de Guernica, nos vales do Camboja, nos estádios de Pinochet, na praça da Paz Celestial, nos desertos africanos, nas estradas do Mississipi. O mundo cobriu-se com os lamentos de mães que entregaram, sem escolha, seus filhos aos deuses do pavor. E tudo ocorreu depois de inúmeras tentativas, feitas por mentes lúcidas e corajosas, para atenuar o ethos guerreiro e intolerante que domina a Humanidade. A Liga das Nações e a ONU prenunciaram o possível advento das luzes e da paz. O mundo, entretanto, ainda deseja as trevas.
Após as Revoluções francesa e norte-americana, a idéia da razão como guia do saber científico e moral perdeu seu encanto. O romantismo conservador tentou, por todos os meios, desacreditar o ideal da paz e da racionalidade. Ninguém melhor do que Novalis expressou a mentira romântica sobre a guerra. Como todos os piores venenos, o ideal bélico foi por ele apresentado sob a forma da beleza: “Na guerra agitam-se as águas originais. É preciso que novas partes do mundo nasçam, que novas raças se cristalizem, surgidas desta desagregação. A guerra verdadeira é a religiosa; ela vai diretamente ao Abismo e nela a loucura do homem mostra-se em toda a sua plenitude. Quantas guerras, em particular as que nascem de ódios nacionais, pertencem a esta classe e são verdadeiro poemas!”. ([8]) Como diz um comentador do fenômeno guerreiro: “O romantismo ocupa o lugar do romanesco de uma guerra idealizada”. ([9])
A cultura romântica conservadora ajudou poderosamente a restabelecer o clima sacral, os vínculos entre crenças e Estado, aumentando a carga da intolerância no mesmo passo em que caluniou os pensadores do século 18. No mesmo movimento em que sapou as Luzes, o romantismo selecionou um lado em Rousseau —os tateios na interioridade— e baniu o que, seguindo a razão, investigou criticamente o mundo político e moral.
Voltemos à frase do início. Rousseau, como indica Michel Senellart, não rejeita nem a fórmula “é bom que um pereça por todos” nem o dito “salus populi suprema lex esto”. Ele distingue dois sentidos nas frases. “Na boca de um cidadão que oferece voluntariamente sua vida pela salvação de seu país, ela é admirável. Significando, no entanto, que é permitido a um governo ‘sacrificar um inocente pela salvação dos muitos’, ela é detestável. Patriótica no primeiro caso, despótica no segundo. O amor da pátria faz uma virtude do sacrifício individual, que o Estado não poderia exigir em nome do bem público”. ([10])
A polissemia é velha companheira dos filósofos, desde o início do gênero literário inaugurado por Platão. No campo da verdade, sobretudo quando ela se une à política, à religião, ao plano jurídico, a prudência filosófica sempre recomendou cautela. Não apenas os pensadores céticos ajudaram muito na prevenção dos perigos produzidos pelos desejos de verdade. Mesmo os que se dedicaram à defesa dos poderes civis ou eclesiásticos, se não foram apenas justificadores vulgares do mando, enfrentaram a polissemia  aninhada nas mais corriqueiras das frases. No caso do sacrifício de Cristo, decidido pelos sacerdotes, sublinhei no texto evangélico que os donos do Estado judeu afirmaram que Jesus tinha enorme poder com os sinais, os semeia. Como ler os sinais? Na tradição profética, descrita com lucidez quase insuportável por Spinoza no Tratado Teológico-Político, existiam regras bem estabelecidas, mas todas supunham o conúbio  entre os exegetas e a imaginação religiosa. A “verdade” de um enunciado profético encontrava-se no conjunto de sinais da tradição nacional. Para romper o círculo estabelecido na tradição e no imaginário religioso, pensa Spinoza, é preciso dele sair e começar uma outra interpretação, agora com base no intelecto. E o intelecto não opera com sinais, mas com pensamentos. A poesia da Bíblia deve ser esquecida, para que se leia a verdade dos fatos narrados por ela. ([11])
Outro pilar do pensamento político ocidental, Jean de Salisbury, no Policraticus —obra que inaugura de modo decisivo a moderna doutrina do tiranicídio— também ensina a prudência na interpretação dos sinais. Existem, diz ele, signos “que nada mostram aos sentidos corporais, mas freqüentemente inculcam na alma o verdadeiro e o falso, mediante a essência de qualquer coisa, ou sem a dificuldade do meio”. Signos podem ser verdadeiros ou falsos. Isto faz com que Salisbury passe dos sinais para as dificuldades semânticas: “se uma palavra possui três ou quatro significados, chama-se polivalente … uma coisa possui tantos significados quantas semelhanças tiver com outras; mas de tal modo que o maior nunca seja o signo do menor, uma vez que os signos sempre são menores”. Quando nem a consciência nem os sentidos fornecem certezas incontestáveis, precisamos aplicar a dúvida. Salisbury, seguidor do platonismo cético da Nova Academia, propõe naqueles casos a suspensão do juízo. ([12])
Enunciados polissêmicos não podem ser reduzidos à univocidade. Esta última é uma torsão cujas conseqüências trazem muitas tragédias, sobretudo no campo da política e da ética. As desastrosas cartilhas ou manuais, dicionários de filosofia publicados na Alemanha e na Itália fascistas ou na Academia de Moscou durante o estalinismo, são provas deste ponto. Dei o exemplo da frase sobre a salvação do povo e sobre a morte de um só, para recordar que no interior dos textos de Rousseau as camadas de significação conduzem o pensamento para realidades distintas ou mesmo contraditórias. Muitos dos seus paradoxos entram neste campo.
A seleção, no interior corpus dos escritos roussoístas, de escritos e  sentidos, deu-nos algumas versões mentirosas sobre o pensador. E isto não foi obra do acaso. Com o golpe do Termidor, a Revolução Francesa deixou o campo dos valores e passou ao plano mentirosamente mais sólido do interesse econômico e social como base da política. As representações intelectuais do século 18, incluindo as de Rousseau, as de Diderot e mesmo as de um aristocrata como Voltaire, insistiam na virtude cidadã como base do governo não tirânico. Esta doutrina foi reforçada no período jacobino, sobretudo sob Robespierre. Com o golpe do Termidor, ela foi afastada na teoria e na prática políticas. 
Comenta Alain Badiou num texto luminoso: “o ponto central é que ao princípio da Virtude se substituiu o princípio do interesse. O termidoriano exemplar (…) é certamente Boissy d’Anglas. Seu grande texto canônico é o discurso do 5 Messidor ano 3. Citemos: ‘Devemos ser governados pelos melhores (…) ora, com poucas exceções, só encontrareis semelhantes homens entre os que, tendo uma propriedade, são apegados ao país que a contém, às leis que a protegem, à tranqüilidade que a conserva’.”. A virtude, comenta Badiou, “é uma prescrição subjetiva incondicionada, que não remete para qualquer determinação objetiva. É por este motivo que Boissy d’Anglas a recusa. Não se exigirá do dirigente que ele seja um político virtuoso, mas que ele seja um representante governamental dos ‘melhores’. Estes não constituem uma determinação subjetiva. É uma categoria definível condicionada absolutamente pela propriedade. As três razões evocadas por Boissy d’Anglas para entregar o Estado aos ‘melhores’ são essenciais e tiveram grande futuro: —para um termidoriano, o país não é, como para o patriota jacobino, o lugar possível das virtudes republicanas. Ele é o que contém uma propriedade. O país é uma objetividade econômica. —Para um termidoriano, a lei não é como para o jacobino, a máxima derivada do nexo entre princípios e situação. Ela é o que protege, e singularmente o que protege a propriedade. Assim, sua universalidade é totalmente secundária. Conta a função. —Para um termidoriano, a insurreição não poderia ser, como o é para o jacobino quando a universalidade dos princípios é pisoteada, o mais sagrado dos deveres. Pois a reivindicação principal e legítima do proprietário é a tranqüilidade. Encontramos, assim, o tripé fundamental de uma concepção objetiva do país, de uma concepção conservadora da lei, e de uma concepção securitária das situações. Uma primeira descrição do conceito de termidoriano nele vê a nuvem do objetivismo, do status quo ‘natural’e da seguridade”. ([13])
Justo porque o princípio objetivo impera a partir do Termidor e as noções de justiça, valor, virtude, são esvaziadas ao máximo, dando-se preferência à propriedade;  porque não é mais permitido mudar a política sem a licença do mercado, o poder passa a desempenhar o papel de protetor da propriedade —velha tese de Locke—([14]) contra os que não podem se encontrar no rol dos “melhores”. Não é preciso consultar os autores liberais do período, ou mesmo o que sobrou dos que defendiam o jacobinismo, para perceber que a garantia da propriedade deu-se com a mais dura violência. Termidoriano foi o império e termidoriana a restauração monárquica. Em ambos os períodos, o elemento “objetivo” invadiu a política e a cultura, deixando para os indivíduos apenas os devaneios românticos e a sensibilidade exacerbada.
Naquele período, o peso da força policial e da censura, unido à vigilância da Igreja, afastou qualquer veleidade de vida pública, cidadã. Este clima foi magnificamente colhido por Stendhal em Le rouge et le noir. Erich Auerbach analisa o romance e o momento histórico em que ele se inscreve, a partir do tédio experimentado por Julien Sorel nos salões e na vida social mais ampla. O enfado exposto no texto, diz Auerbach, “não é um enfado comum; não provém da casual estupidez pessoal dos seres humanos (…) há entre eles também alguns altamente instruídos, espirituosos, até importantes (…) trata-se com este enfado, muito mais de um fenômeno político e sócio-histórico da época da restauração. No século 17 ou até no século 18, os salões correspondentes eram tudo menos aborrecidos. Mas o ensaio empreendido pelo governo bourbônico, com meios insuficientes, para reimplantar condições definitivamente superadas e condenadas fazia tempo pelos acontecimentos, cria nos círculos oficiais e dirigentes dos seus adeptos uma atmosfera de simples convenção, de falta de liberdade e de afetação, contra a qual o espírito e a boa vontade das pessoas implicadas eram impotentes. Nestes salões não se deve falar daquilo que interessa a todo mundo, dos problemas políticos e religiosos e, conseqüentemente, também não da maioria dos temas literários da época ou do passado imediato; quando muito, podem ser ditas frases oficiais, que são tão mentirosas, que um homem de gosto e de tato prefere evitá-las. Que diferença com a ousadia espiritual dos famosos salões do século 18, que, evidentemente, nem sonhavam com os perigos que desencadeavam contra a sua própria existência!”.
Enquanto o mundo boceja e a polícia garante a propriedade, Julien, lembra Auerbach, “de natureza apaixonada e fantasiosa, sempre se entusiasmou desde a sua primeira juventude, pelas grandes idéias da Revolução e de Rousseau, pelos grandes acontecimentos da época napoleônica”. Temos o núcleo da tragédia, em Le rouge et le noir: a existência e as idéias de Sorel chocam-se com o mundo que recusou a Revolução. Seus padrões morais o tornam revoltado com a perda dos valores na Restauração. Nela, quem não se curva aos “fatos”, se estilhaça ou morre.  “Os heróis dos romances pré-românticos delatam uma aversão por vezes quase mórbida a entrar em contato com a vida contemporânea. Já para Rousseau a contradição entre o natural, que desejava, e o real historicamente fundamentado, com que se deparava, tornara-se trágica; mas esta contradição incitara-o para a luta pelo natural. Não mais vivia quando a Revolução e Napoleão criaram uma situação totalmente nova, mas não uma situação natural no sentido de Rousseau, mas ainda uma situação ligada historicamente. A geração seguinte, profundamente impressionada com os seus pensamentos e com as suas esperanças, viveu a resistência vitoriosa do histórico-real, e precisamente aqueles que mais profundamente sentiram a sua influência encontram-se num mundo novo, que destruíra totalmente as suas esperanças, e no qual não puderam se sentir à vontade. Entraram em oposição com ele ou afastaram-se dele. Da herança de Rousseau guardaram somente a cisão interna, a tendência para a fuga da sociedade, a necessidade de se isolar e de ficar sozinho; o outro lado da natureza de Rousseau, o lado revolucionário e combatente, este eles perderam”. ([15])
Alain Badiou indica a torsão operada a partir do Termidor, a qual vai dos valores ao mercado. Auerbach expõe, na figura de Sorel, a mesma torsão, agora no plano “espiritual” mais amplo. O mundo dos fatos brutos e da “realidade histórica” impõe-se como fatalidade sobre os românticos que escrevem e sobrevivem na sociedade civil. Eles abandonam as teses políticas e morais de Rousseau (eu diria, do século 18) em prol da segurança objetiva do Estado e da sociedade. Os sonhos de um mundo melhor são banidos em favor das experiências pessoais, dos sentimentos subjetivos, dos delírios imaginários. O que é “objetivo” encontra-se definido pelo mercado e pela polícia. O subjetivo é liberdade que sonha, no mundo da interioridade absoluta. Temos a gênese do filistinismo intelectual, denunciado em escritores como Hegel, Marx, Stendhal, Flaubert. Muitos filósofos e artistas recusaram lutar politicamente contra a  “realidade” para manter o seu ego sensível, supostamente mais profundo do que a razão. Hegel definiu com perfeito cinismo esta atitude. Trata-se, para ele, “do absoluto en négligé”, o universo dos artista sem obra de arte. Contra a perigosa onda revolucionária, os românticos preferem a revolta, Empörung na língua alemã.
É nesse exato instante que os escritos de Rousseau e de seus companheiros e adversários  do século 18 são divididos, não arbitrariamente, mas segundo as conveniências políticas, ideais, religiosas da Restauração, em textos políticos de um lado e auto-biográficos de outro. Os primeiros seriam perigosos, mentirosos, sem importância na sua loucura. Os segundos seriam sublimes e belos, adequados aos padrões românticos. Um dos principais produtores deste corte que desfigurou por longo tempo os escritos de Rousseau é Sainte-Beuve, dos mais refinados críticos literários, expoente do romantismo conservador.
Sainte-Beuve, que produziu um monumento até hoje relevante para quem deseja entender o pensamento francês do século 17, o famoso Port- Royal, no seu trabalho sobre o século 18 fez a operação cirúrgica que desarmou a força crítica do pensamento de Diderot, de Voltaire e de Rousseau. Não falarei das “transfigurações” efetuadas por ele nos textos diderotianos nem nos de Voltaire. Basta indicar o que ele fez com Rousseau.
O político e o moral não têm grande importância em Rousseau, proclama Sainte-Beuve. O relevante mesmo teria sido o papel do pensador no refinamento da língua e do estilo franceses. Ele enxerga em Jean-Jacques “o escritor que fez experimentar (na língua…) uma revolução da qual nós mesmos, do século 19, datamos”. ([16] ) Da política à língua… Evidentemente, os dois lados são complementares. Nenhum filósofo ou mesmo retor forja recursos formais em função apenas de seu brilho. Sainte-Beuve diz explicitamente que Rousseau produziu um estilo brilhante e com ele supera os textos políticos. Apenas nos volumes autobiográficos ele une com perfeição e verdade forma e conteúdo. Nos demais casos, o conteúdo perigosamente revolucionário faz lembrar, adianta Sainte-Beuve, “uma lógica misturada de chamas, idéias confusas que se agitavam e queriam nascer”. Trata-se de exaltar na escrita autobiográfica, diz Roger Fayolle, junto ao “público cultivado” (o mesmo que se entediava nos salões onde a censura era rainha) “a imagem anódina e apresentável de um Rousseau ‘pré-romântico’ que substituirá a do Rousseau real, cuja ambição maior não era, com certeza, dobrar a língua aos novos usos”.  ([17])
Uma vez que só importa em Rousseau o estilo e a língua, pouco serve estudar aqueles elementos no Emilio e no Contrato Social. Eles devem ser buscados nas Confissões, nos Devaneios do caminhante solitário, etc. Sainte-Beuve deixa escapar, de vez em quando, algumas razões da sua escolha. “O momento atual não é muito favorável a Rousseau, a quem se imputa ter sido o autor, o promotor de muitos males por nós sofridos”. Pode-se dizer “judiciosamente”, acrescenta ele citando Joubert,  “que não existe escritor mais apto a tornar o pobre soberbo”. ([18])
Assim, é possível fugir dos temas “perigosos” e proibidos pela censura da Restauração e separar a política e Rousseau, o autor que mais liberou os mesmos assuntos perigosos no éter cultural francês desde o século 18. Trata-se para Sainte-Beuve “de tornar Rousseau responsável menos pelos horrores da Revolução do que pelas audácias estilísticas dos escritores românticos”. ([19]) Extirpada a originalidade do pensamento sobre a política do campo dominado por Rousseau —importa dizer que esta operação cirúrgica ainda era feita no século 20 contra autores do 18, como acentua Franco Venturi em sua crítica às análises de Ernst Cassirer —  ([20])  resta apenas a via do subjetivo, da expansão cordial, dos suspiros lânguidos e da fuga do mundo, temas banais do romantismo. Para Sainte-Beuve “Rousseau se engana, não ao acreditar que sua empresa é única, mas ao pretender que ela é útil: de fato, ele agiu como um médico que descreveria uma doença mental e imitaria os loucos”. ([21]) E o crítico indica também o aspecto central de Rousseau para o romantismo: “a exaltação desmedida do Ego e das suas paixões, indiscretamente propostas como exemplo” (Fayolle).  Deixando-se de lado o pensador político, tem-se oportunidade de perceber em Rousseau “o primeiro que colocou o verde em nossa literatura”. Ao comentar o célebre trecho das Confissões, o quadro sobre Rousseau criança e papai lendo madrugada adentro —“às vezes meu pai, ouvindo pela manhã as andorinhas….”— Sainte Beuve exclama embevecido : “notem bem esta andorinha, é a primeira e anuncia uma nova primavera da língua…”. ([22]) Além deste lado ingênuo, pueril mesmo,  Rousseau ensinou, segundo Sainte-Beuve, ao século 19 o mal do devaneio. Assim, temos o esboço do escritor paradigmático do romantismo, em Sainte-Beuve e nos que o seguiram: “um Rousseau meloso, terno, enternecedor, sentimental e sonhador, “que revelou sua natureza e colocou à luz as dobras do seu coração”. Quem analisa o Contrato, a Profissão de fé, as obras morais do filósofo, percebe o estupro adocicado cometido contra os textos. No entanto, boa parte da recepção dada aos seus escritos entrou nesta categoria dos róseos bombons estilísticos, graças à alquimia conservadora e romântica. 
A cesura feita por Sainte-Beuve, bem adequada ao período que resultou do Termidor, marcou as preferências de boa parte dos comentadores e ajudou a deformar o retrato de Rousseau e dos outros pensadores do século 18. Como reação a semelhante desfiguramento romântico, ou talvez como continuidade do mesmo desfiguramento (visto que o romantismo conservador foi profundamente autoritário) tivemos no século 20 interpretações denunciando um Rousseau comunitarista e mesmo totalitário. É quase um monotema, nas propostas de interpretação de Rousseau totalitário, encontrar a fonte desta atitude no próprio ego do pensador. Nos desarranjos e fraquezas de sua inteligência e alma, brota o totalitarismo.
Frederick Watkins repete a lição que vem desde Vaughan: “Rousseau era um tipo inteiramente diferente de pessoa, as fraquezas e força de seu pensamento  são distintas das apresentadas pelos outros teóricos políticos. Embora dotado por natureza com poucos dons de lucidez analítica, ele percebeu as motivações políticas e sociais dos homens com incomum intuição perceptiva. Devido às contradições internas de sua personalidade, ele julgou necessário dar espaço na teoria política para complexidades psicológicas desconhecidas pelas construções sistemáticas de pensadores mais estritamente lógicos. Dado que ele mesmo foi incapaz de reduzir seu pensamento a um todo lógico consistente, é fútil impor-lhe um sistema e seguir cada uma das suas várias intuições, levando-as às suas conclusões lógicas. (…) Toda interpretação útil de seus escritos deve começar, pois, com uma compreensão dos fatores psicológicos que lhe possibilitam ter uma visão compreensiva dos problemas políticos”.
Logo, o problemático Rousseau em termos psicológicos, não possui força lógica para estabelecer um sistema coerente. Seu interior sensível, melhor entendido nas obras autobiográficas, ajusta-se melhor às batidas cordiais e suas intuições não podem ser pensadas de modo racional. A suposta incoerência dos textos leva à atribuição de atitudes opostas em Rousseau: de um lado, o liberalismo e, de outro, o totalitarismo. “Para ele, como para a maioria dos totalitários, um extremo pessimismo era a base para a recusa dos princípios constitucionais. Enquanto o liberal consistente deve acreditar não apenas que o povo comum deve assumir responsabilidades pelo seu próprio destino político, mas também ele deve ser capaz, na base de sua própria razão e experiência, para manter a ordem social”. Rousseau, calvinista, não acreditava na segunda linha de exigência. Mesmo em circunstâncias favoráveis, o povo simples não pode, por si mesmo, ser capaz de controle de sua vida política. “O aspecto totalitário de seu pensamento deriva desta convicção (…) Ele insiste em dizer que o legislador, embora justificadamente use mentiras e outras formas de engodo para atingir as pessoas com seus propósitos, deveria persuadir em vez de forçar o povo comum a aceitar os seus ditames. Liderança iluminista em vez do despotismo esclarecido era a solução de Rousseau para o problema de transcender as limitações intelectuais e morais do homem comum”.  ([23])

Se o Rousseau totalitário não recomenda a força física ou os meios definidos pela retórica da razão de Estado para constranger o povo comum, ele utiliza o estilo melífluo. Os laços cordiais são acentuados nos seus escritos, jogando-se o sentimento dos textos autobiográficos sobre os políticos. Todo o arcabouço racional dos seus escritos é exorcizado em prol de um delirante irracionalismo autoritário, bem de acordo com o próprio romantismo conservador.
Pode-se dizer que Sainte-Beuve e seus herdeiros exorcizam no Rousseau político um fantasma, o da Revolução francesa que assombrou os reacionários europeus ([24]) desde o início do século 19. Como diz o próprio Sainte-Beuve, a propósito de Voltaire: “ele tinha contra ele, no fundo, mesmo no partido da filosofia então triunfante, os discípulos e seguidores desse Rousseau que ele havia conhecido pouco e ultrajado. Após a Revolução ter feito a sua obra ruína, vários antigos adoradores de Voltaire mais do que pela metade; eles separaram-se de seu culto, pois sentiram o preço das instituições que havia imprudentemente sapado”.  ([25])
Não discuto agora, passo a passo, as marcas do pensamento conservador. Em O Conservadorismo romântico, apresento os elementos mais amplos desta forma de pensar o mundo e a vida espiritual. Digo que se trata mais do fantasma da revolução francesa e menos dos escritos políticos, eles mesmos, de Rousseau, porque existem trabalhos que mostram a grande distância entre o escritor de Genebra e os revolucionários, girondinos, jacobinos e mesmo sans cullotes. Após resenhar a questão com minúcia, Iring Fetscher ([26]) mostra, nos textos, que poucas demonstrações sólidas existem no item “influência de Rousseau sobre a Revolução Francesa”. O mais apropriado é dizer com Albert Soboul: “poder-se-ia falar menos de uma filiação das idéias de Rousseau do que numa concordância (…) que o ambiente social basta para explicar. O conhecimento direto ou indireto de Rousseau indiscutivelmente favoreceu a consciência e permitiu precisar aquele formulação”. ([27])
O recorte operado nos livros de  Rousseau por Sainte-Beuve e pelos românticos, joga as obras do genebrino no domínio das entidades monstruosas, cuja forma se divide em dois e cujos conteúdos são alheios uns aos outros. Fosse ele um Realpolitiker, sua teorização receberia as cores da razão de Estado. E aí, o indivíduo deve morrer, como no totalitarismo, em função da potência política, do Leviatã que encarna a pessoa coletiva, o mentiroso “todos”. Fosse ele liberal, e não aceitaria sob nenhuma hipótese a tese do sacrifício de um em prol do coletivo. Com a ruptura feita à força entre os textos políticos e os autobiográficos, sobra uma filosofia do “mais ou menos”. Ou seja, segundo os padrões rigorosos do pensamento filosofante, uma não-filosofia. Chegamos ao resultado desejado por todos os românticos conservadores em relação ao pensamento das Luzes em geral, e de Rousseau em particular. Basta reler uma pequena seqüência frásica de Joseph de Maistre sobre Rousseau: o escritor se apossou do assunto —a questão da desigualdade mal proposta pela Academia— “porque era um tema que foi expressamente feito para ele. Tudo o que era obscuro, tudo o que não apresentava nenhum sentido determinado, tudo o que se prestava a divagações e aos equívocos pertencia ao seu domínio particular”. ([28])
Se a operação  romântica fosse correta, no entanto, a frase com a qual iniciei estas considerações, “é bom que um apenas pereça por todos”, seria lida com sentido e sinal únicos. O acentuado nela é o sacrifício do indivíduo pelo Todo. Este é o programa integral do romantismo conservador. Nele, a idéia orgânica do Estado teve como reverso a exigência do relacionamento pessoal, todo subjetivo, entre governantes e governados. A política foi entendida como ato amoroso do primeiro em relação aos segundos e vice-versa. Esmaeceram-se os traços violentos da política: o “amor” do governante pelos súditos tem por princípio o controle efetivo pelo Príncipe. Este deveria fazer, “no Estado poético”, com que todos os particulares se alegrassem no “desejo de limitar suas pretensões e sacrificar-se pelo amor deste grande indivíduo” que é a comunidade estatal.([29])
A “bela comunhão” que arranca o sacrifício dos indivíduos é um pedaço de doutrina que tem algum fundamento em Rousseau. Não é permitido esquecer, por exemplo, no Contrato Social, os enunciados sobre a pena de morte e o problema da conservação individual. Citemos: “O tratado social tem por fim a conservação dos contratantes. Quem deseja o fim também quer os meios e estes meios são inseparáveis de alguns riscos, mesmo de algumas perdas. Quem deseja conservar sua vida às custas dos outros deve dá-la também para eles quando é preciso. Ora, o cidadão não é mais o juiz do perigo ao qual  a lei quer que ele se exponha; e quando o Príncipe lhe disse: ‘É preciso ao Estado que tu morras’, ele deve morrer; pois é apenas com esta condição que ele viveu em segurança até ali, e que sua vida não é mais um benefício da natureza, mas um dom condicional do Estado”. ([30])
Em primeiro lugar, é preciso dizer que o trecho insere-se no campo da lei e da defesa comum diante das ameaças ao corpo social. Evidentemente, trechos como este podem, e o foram, torcidos rumo às ações despóticas de governos, inclusive de governos que se denominaram democráticos. Mas no autor que aprofundou como poucos o direito natural e defendeu a individualidade, ao ponto de ser duramente criticado na apologética hegeliana do Estado, aquele fragmento mente sobre Rousseau. Se é verdade que todos os filósofos são a súmula de seus textos, de seu tempo e de seus intérpretes, é preciso, no estudo de Rousseau, cautela para não tomar como se fosse dele uma complexa invenção tardia, seja ela romântica, liberal, marxista, ecologista, psicanalítica. Caso  exista sentido na leitura filosófica, ele encontra-se na busca de compreender significados e sinais. Mas estes podem ser substituídos pelos hermeneutas e logo transformados em palimpsestos cujas camadas guardam e revelam mais as leituras posteriores do que os significados originários.
Brotou do solo romântico o fantasma de um Rousseau sacerdote do culto de sua própria sensibilidade. Esta figura, formando um monstro literário e filosófico, uniu-se ao Rousseau jacobino, “tarântula moral” e pai de Robespierre, o responsável pelo “fanatismo francês do coração” como afirma Nietzsche([31]), — ainda no cenário aberto pela interpretação romântica. O esfacelamento dos escritos em “políticos” e “sentimentais” levou Nietzsche às bases da cortante divisão sobre o filósofo, indicando o fundamento não questionado pelos românticos, a separação entre o interior e o exterior do homem. “Se é verdade que a nossa civilização tem em si mesma algo miserável, podemos escolher juntar-nos a Rousseau com a conclusão ulterior que ‘da nossa perversa moralidade tem culpa a miserável civilização’, ou, contra Rousseau, retornar à conclusão que ‘da nossa miserável civilização tem culpa a nossa boa moralidade’. Os nossos conceitos fracos, desvirilizados, sociais conceitos de bem e de mal, e o monstruoso suprapoder deles sobre as almas e os corpos e para constranger os homens autônomos, independentes, sem preconceitos, as colunas de uma robusta civilização: donde ainda hoje se encontra a perversa moralidade, se enxergam as últimas ruínas desta coluna. ‘Assim se oponha paradoxo contra paradoxo! Impossível que a verdade possa ser de ambas as duas partes; e ela é de uma destas partes? Pode-se examinar”. ([32])

Um caminho menos perigoso, na interpretação do pensador, encontra-se em Henri Gouhier. No escrito denominado “Filosofia de Rousseau e filosofia de Jean-Jacques”, lemos que “a diversidade dos gêneros literários utilizados por Rousseau multiplica as mediações: as obras que ele dá ao impressor, seus escritos autobiográficos e as peças mais importantes de sua correspondência poderiam constituir uma cadeia mais ou menos contínua, se elas fossem colocadas na mesma linha segundo dos dois modelos, o dos Devaneios e os da Profissão de Fé. Assim, aplicada ao pensamento de Rousseau, a palavra ‘filosofia’ recobre ora uma filosofia exposta por ela mesma, ora uma filosofia imanente a escritos não filosóficos. Esta ambigüidade põe a questão: trata-se da mesma filosofia aqui e ali?”.([33]) A forma interrogativa mostra um avanço que leva a pesquisa para longe das mentirosas divisões românticas. Ainda estamos longe de superar o romantismo, em seus múltiplos avatares, na cultura ocidental. Esforços como este, mal sucedidos,  trazem, no entanto, alguma luz sobre os pensadores da Renascença e do século 18, tão caluniados no romantismo que marcou os séculos 19 e 20.  Por semelhante motivo, reuniões como a que hoje se inicia são estratégicas no mundo acadêmico e político. Nelas, não se propõe um estudo monotemático ou monocrômico de Rousseau, mas a busca —a partir dos estilhaços interpretativos— de algum sentido verdadeiro para o discurso do filósofo e dos seus pares iluministas. Desejo a todos um excelente trabalho!


[1] Cf. Besse, Guy: “J.-J. Rousseau: maître, laquais, esclave”, in Hegel et le siècle des Lumières. Jacques d´Hondt (ed). Paris, PUF, 1974, p. 75.
[2] Trabalho recente e útil, neste sentido, foi apresentado por Saverio Sansaldi: Spinoza et le Barroque. Infini, Désir, Multitude. Paris, Kimé, 2001. Em plano muito próximo, discuti o problema no artigo “A razão sonhadora. Descartes e o barroco” in O caldeirão de Medéia (SP, Perspectiva, 2001).
[3] Besse, op. cit. p. 75.
[4] Trad. João Ferreira de Almeida, Biblia Sagrada Brasília, Sociedade Bíblica do Brasil, 1969, p. 128. Cf. Novum Testamentum Graece et Latine, Vaticano, Libreria Editrice Vaticana, 1981, p. 547.
[5] Cf. Michel Senellart: Machiavelisme et raison d´Etat. Paris, PUF, 1989, pp. 115 e ss.
[6] Cf. Dispot, L. La machine à terreur, Révolution Française et Terrorismes. Paris, Editions Grasset, 1978, p. 76, nota 4.
[7] Matthew White: Historical Atlas of the Twentieth Century, (http://users.erols.com/mwhite28/20centry.htm). O autor agrupa os dados das guerras, das mortes devidas às perseguições políticas, religiosas, ideológicas, etc. Trata-se de uma fonte a não ser desconhecida dos que se interessam pelos problemas da guerra e da paz.
[8] Novalis, Heinrich von Ofterdingen, in Werke und Briefe. München, Winkler Verlag, 1953, p. 246.
[9] Bertaud, Jean-Paul : “O soldado” em Vovelle, Michel (ed.) O Homem do Iluminismo. Lisboa, Ed. Presença, 1992, pp. 73 e ss. O artigo traz boas achegas ao problema da guerra no pensamento das Luzes, analisando ao mesmo tempo a organização, as técnicas, as figuras humanas do mundo bélico antes e depois de Napoleão.
[10] Senellart, op. cit. pp. 102-103.
[11] Cf. Laux, Henri: Imagination et religion chez Spinoza. La potentia dans l´histoire. Paris, Vrin, 1993.  Em artigo que compõe uma coletânea no prelo, “O desafio do Islã” (SP, Ed. Perspectiva) intitulado  “O sol negro da Noite”, analiso o problema em Spinoza. Para a política spinozana, publiquei recentemente o texto “A igualdade, considerações críticas” no site Foglio Spinoziano (Itália): http://www.fogliospinoziano.it/
[12] Analiso estes pontos no artigo “Lembra-te que és homem”,  publicado pela Revista Justiça e Democracia, da Associação Juízes para a Democracia, Número 1, primeiro semestre de 1996, pp. 153 e ss.
[13] Cf. Alain Badiou, “Qu´est-ce qu ´un thermidorien?” in Kintzler, Catherine et Rizk, Hadi: La république et la terreur. Paris, Kimé, 1995, pp. 56-57.
[14] Cf. Maria Sylvia Carvalho Franco, “All the world was America”, Revista USP, dossier liberalismo.
[15] Erich Auerbach, “Na mansão de La Mole”, in Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo, Perspectiva, 1971, pp. 395 e ss.
[16] Les Causeries du lundi, III, p. 78. Uso o texto da Bibliothèque Numérique de la BNF, site Gallica. Seguirei neste ponto, integralmente, as análises de Roger Fayolle ; Sainte-Beuve et le XVIIIe siècle, ou comment les révolutions arrivent. Paris, Armand Colin, 1972, pp. 227 e ss.
[17] Fayolle, op. cit. p. 228.
[18] Sainte-Beuve, Causeries du lundi. Tome III, P. 80. Gallica.
[19] Fayolle, op. cit. p. 229.
[20] Por exemplo: “apesar de seu forte interesse em todos os problemas políticos, o período das Luzes não desenvolveu uma nova filosofia política. Quando estudamos as obras dos mais famosos e influentes autores nos surpreendemos ao notar que eles não trazem nenhuma teoria nova. As mesmas idéias são repetidas sempre e sempre —e tais idéias não foram criadas pelo século 18. Rousseau fala em paradoxos, mas quando chega à política, ouvimos um tom diferente e sóbrio. Na concepção de Rousseau do alvo e do método da filosofia política, na sua doutrina dos inalienáveis direitos humanos, dificilmente existe algo que não tenha paralelo e modelo nos livros de Locke, Grotius ou Pufendorf. O mérito de Rousseau e de seus contemporâneos encontra-se (…) na vida política mais do que na doutrina”. Cassirer, Ernst: The Myth of the State. New Haven/London, Yale University Press, 1966, pp. 176-177.
[21] Causeries du lundi. T.III, p. 82. Gallica.
[22] Causeries…T.III, p. 82, Gallica.
[23]  Cf. Watkins, F.  “Introdução” a Rousseau Political  Writings. Thomas Nelson and Son Ed.. 1953. Toda esta introdução é um hino à leitura enviesada de Rousseau, pelo pensamento pouco atento aos seus textos.
[24] O termo é este mesmo, apesar dos abusos cometidos contra ele pelos estalinistas e fascistas do século 20. Para uma análise da palavra e do conceito, cf. Starobinski, Jean: Action et réaction. Vie et aventures d´un couple. Paris, Seuil, 1999.
[25] Sainte-Beuve, Causeries du Lundi, 20 outubro de 1856, Uso o texto editado no site http://www.voltaire-integral.com/Grimm/Cayrol2.html.
[26] Rousseaus politische Philosophie. Uso a tradução italiana: La filosofia politica di Rousseau. Per la storia del concetto democratico di libertà. Milano, Feltrinelli Editore.
[27] Cit. por Fetscher, op. cit. p. 264.
[28] Cf. De Maistre, Joseph : Examen d´un écrit de J-J. Rousseau sur l´inégalité des conditions parmi les hommes. In Oeuvres de Joseph de Maistre. Les Archives de la Révolution Française. Hedington Hill Hall, Oxford. Editado eletronicamente por Gallica.
[29] Ayrault, R. La genèse du romantisme allemand. Paris, Aubier, 1976, t. 5, p. 232.
[30] Du Contrat Social, livro 2, 5, cito na edição de Maurice Halbwachs, Paris, Aubier, 1943, pp. 161-162.
[31] Morgenröthe. Nachgelassene Fragmente. Livro I, 3, Berlim/Nova York,  Walter de Gruyter, 1971, p. 6.
[32] Nietzsche, op. cit. p. 146.
[33]  Gouhier, Henri. Les méditations métaphysiques de Jean-Jacques Rousseau. Paris, Vrin, 1984, pp. 86-87.

terça-feira, 9 de abril de 2019

DIDEROT NAS VIELAS DAS LUZES OU O SOBRINHO DE RAMEAU Roberto Romano


O Sobrinho de Rameau



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DIDEROT NAS VIELAS DAS LUZES OU O SOBRINHO DE RAMEAU

Roberto Romano
A tradução do Sobrinho de Rameau elaborada por Jacó Guinsburg representa um marco importante para a filosofia no Brasil. A coleção das Obras diderotianas – inédita no país – se enriquece e os estudiosos nela encontram não apenas um refinado texto coberto pelo tecido da língua portuguesa, mas também as tensões e dissonâncias, o brilho e a inteligência do original. Jacó Guinsburg pratica, no trabalho que hoje vem à luz, o mais importante preceito retórico, seguido na escrita moderna de escol. Ele aproxima, com felicidade incomum, as práticas da enargeia e da energeia. O Sobrinho de Rameau segue o mandamento poético e retórico que exige a reunião daquelas técnicas e sentidos. Nele, tudo se move, tudo é novo, tudo surpreende, tudo comove, tudo leva à indignação e ao encanto. No Thesaurus Graecae Linguae, o humanista Henry Estienne apresentou os termos equivalentes a enargeia e a energeia. Para o primeiro, illustratio e actio para o segundo. A “tradução” de Estienne é falsa? Verdadeira? Em qual plano ela se confirma ou pode ser negada? Apesar das longas discussões estabelecidas pelos eruditos, o fato cultural é inconteste: illustratio pretende trazer ao leitor alheio ao grego o que Aristóteles intitula “metáfora ativa”, o poder de certas figuras poéticas de animar palavras, nelas infundindo a vida, ação esvoaçante. Como diz Rabelais no Quarto Livro, no episódio das palavras congeladas (1), para Aristóteles “as palavras de Homero saltam, voam, movem-se e são por conseguinte vivas”. A citação da Retórica (1412a) por Rabelais define toda uma idéia do mundo, da linguagem, dos sentidos (2).

Tal idéia é copiada literalmente por Diderot no Sobrinho, do início ao fim. Basta recordar que o intróito já apresenta o ritmo, as figuras, o movimento esvoaçante do diálogo: “Abandono meu espírito a toda sua libertinagem. Deixo-o senhor de seguir a primeira idéia sábia ou louca que se lhe apresente, tal como se vê na Alameda de Foy nossos jovens dissolutos andar na cola de uma cortesã de ar estouvado, de rosto risonho, olhar vivo, nariz arrebitado, deixando esta por outra, abordando todas e não se prendendo a nenhuma”. Num prefácio, evidentemente, não é possível levar muito longe a análise sobre este prisma. Basta mencionar que ele existe e não é muito observado em nossos dias. Passemos a outro ponto.

Raros estudos sobre o Sobrinho de Rameau analisam as fontes usadas em sua redação. A maioria limita-se aos infortúnios vividos por Diderot com os adversários – a luta e a vingança do autor contra a tropa dos sicofantas intelectuais – ou ao debate interminável sobre o “Eu” verdadeiro sugerido no texto (o lado escuro do filósofo apareceria no “Ele” malandro). Finalmente, os comentários giram ao redor da identidade correta do vagabundo a quem se dedica o escrito. Todos esses aspectos retomam a evidência: trata-se de uma sátira. E chega a tarefa difícil. De Ernst Curtius aos nossos dias, a tese mais comum indica o modelo horaciano como fonte da façanha efetivada por Diderot. Este parte do homem efetivo, o sobrinho do músico Rameau, e produz um ser monstruoso onde o mundo físico e o espírito se encontram e se expulsam mutuamente, a música se transforma em cacofonia, a moral veste as roupas do proxenetismo, a hipocrisia passeia sob o silêncio da mímica, a qual duplica a mediocridade aduladora de ricos e poderosos e também esmaga o alento, o talento e a energia dos que tropeçam no “grande agito do mundo” (grand branle de la terre). Dança doida bem descrita na Fenomenologia do Espírito. O Sobrinho, recorde-se, é a única obra ali citada explicitamente. Segundo Hegel, a originalidade surge do refinamento técnico e não, como pregavam os românticos, do gênio que, sem lastros proporcionados pela educação, é selvagem (3). Permita-me o leitor apontar algumas fontes usadas por Diderot na pedagógica artesania do Neveu.

No verbete “Sátira” da Enciclopédia, Diderot define aquele gênero: “poema no qual se atacam diretamente o vício ou algum ridículo reprovável”. Do principal às alternativas, o verbete mostra que a sátira varia na história, o que muda inclusive a sua forma. “Lí, para pesquisar e seguir, tratados mais ou menos extensos como o de Casaubon”. Antes de analisar o autor citado por Diderot, chamo a atenção para o último verbo usado na frase citada acima : “seguir”. Ele indica que o filósofo não teve intenção apenas de conhecer a sátira, mas desejou aplicar o aprendido e, logicamente, isto só poderia ser feito em uma sátira. Para quem já escrevera sátiras (As Jóias Indiscretas, por exemplo) este desejo mimético é singular. Ele anuncia escritos sine ira et studio, para além do simples desabafo ou vingança. Trata-se de um estudado ataque à cultura que não se limita aos personagens medíocres e hilários expostos impiedosamente no Sobrinho de Rameau. Vejamos o autor citado por Diderot, o humanista Casaubon. Isaac Casaubon (4) analisa a sátira apoiando-se em Varrão (5), o qual elogia os bons velhos tempos e ataca o luxo decadente.


A exposição crítica é tarefa de um narrador, quase sempre o próprio Varrão, o qual opera uma paródia de si mesmo. É o que se passa no escrito Sexagessis (o sexagésimo aniversário). Um indivíduo adormece por longo tempo e ao despertar, percebe que a sociedade piorou. O adormecido fala com o sotaque de Varrão e recebe réplicas dos jovens urbanos, os quais caçoam da sua moralidade desatualizada (6) . No século 18 a sátira ao modo praticado por Varrão é vista como elegante, vária, inteligente e nela a erudição ajuda na crítica dos costumes dissolutos em contraste com os valores e práticas tradicionais7. Dentre os críticos especializados em Varrão, Casaubon (8) é visto como um dos mais profundos. Ele notou o hibridismo, na sátira, de metros diversos e também o hibridismo de prosa livre e metrificada, o que aumentaria a liberdade dos escritos (9).

A mistura de estilos e idiomas (grego e latim), seriedade e brincadeira, prosa e poesia, evidencia-se nos seus imitadores, inclusive por Diderot no Sobrinho. O leitor educado e sensível nota, neste último diálogo, a tecitura de elementos heterogêneos. Ali, o texto vai da prosa mais banal à poesia sublime. Os projetos se engastam no texto – como o de musicar os Pensamentos de Pascal – evidenciam a união de estilos e técnicas literárias. A imitação diderotiana, porém, pesa com finura todos os elementos reunidos na sátira. E para isto, com certeza, as lições de Casaubon valeram a Diderot. Casaubon critica insistentemente Luciano de Samosata porque neste último a cópia de Menipo seria demasiada, o que resultaria mais em ridículo do que em genialidade. A sátira menipéia, incluindo a escrita por Luciano, seria non tam iocosa quam ridicula. Já o trabalho de Varrão consegue uma síntese bem sucedida e elegante de versos e de variações prosaicas (10) , uma filosofia em sentido próprio.

Os argumentos da Encyclopédie para expôr a sátira, sua origem e forma, assumem a figura romana: "pode-se dizer, segundo o caráter fixado pelos romanos, que a sátira é uma espécie de poema no qual se ataca diretamente os vícios e ridículos dos homens. Digo uma espécie de poema, porque não é um quadro, mas um retrato do vício dos homens, que ela nomeia sem desvios ao chamar um gato, um gato e Nero, um tirano. É uma das diferenças entre sátira e comédia. Esta ataca os vícios, mas obliquamente, e de lado. Ela mostra aos homens retratos gerais, cujos traços são emprestados de modelos diferentes; cabe ao espectador assumir a lição e se instruir, se ele julga coveniente. A sátira, pelo contrário, vai diretamente ao homem. Ela diz: é você, é Crispin, um monstro, cujos vícios não são desculpados por nenhuma virtude." O trecho a seguir, do mesmo verbete sobre a sátira, é estratégico para se entender o Sobrinho. Na peça, o diálogo se passa entre um filósofo sério, honesto, bem pensante e um monstro humano que nunca é idêntico a si mesmo e desafia a moral bem comportada ou hipócrita. “Não é difícil descobrir” adianta a dupla Diderot/Jaucourt, qual espírito anima ordinariamente o satírico. Não é o espírito de um filósofo que, sem deixar sua tranquilidade, pinta os encantos da virtude e o defeito do vício. Não é o espírito de um orador que, movido por um belo zelo quer reformar os homens e conduzi-los ao bem. "Não é o espírito do poeta que sonha fazer-se admirar excitando terror e piedade. Também não é o espírito do negro misantropo que odeia o gênero humano e que o odeia em demasia para torná-lo melhor. Não é nem um Heráclito que lamenta os nossos males, nem um Demócrito que deles zomba: o que é o espírito satírico? Parece que no seu coração há um germe de crueldade escondida, coberta com o interesse da virtude para ter o prazer de despedaçar o vício. Entram neste sentimento a virtude e a perversidade, ódio contra o vício e desprezo pelos homens […] Embora as sátiras tenham um caráter condenável, é possível que elas sejam lidos com muito proveito. Elas são o contraveneno das obras em que reina a moleza."

A última palavra citada – moleza – retoma as lições de Varrão e os juízos de Casaubon sobre a essência da sátira: quando os homens deixaram o campo e os panoramas rústicos, e seguiram para as cidades, surgiram a licença e a moleza, o luxo e a perversão moral. O tema da urbanização como fonte dos males éticos não era desconhecido no século XVIII, muito pelo contrário. Longe iam os tempos em que, para escapar dos barões arbitrários, o refrão mais ouvido na Europa, sobretudo em língua germânica, dizia que Die Stadtluft macht frei. Ainda não era o tempo da desgraça que entronizou na entrada do Inferno totalitário um outro refrão nefasto: Arbeit macht frei. Tal ignomínia foi erigida nos arredores de Auschwitz, Dachau, Gross-Rosen, Sachsenhausen, Terezín e de tantas cidades assoladas pelos movimentos anti-semitas. A “moleza” no século XVIII era satirizada em nome do trabalho que se traduz em dinheiro.

No século XX, conforme o psicanalista Bruno Betelheim, a colaboração das vítimas com os carrascos nazistas aumentou o delírio da sociedade disciplinada pelo trabalho. Enquanto prisioneiros de guerra eram obrigados a trabalhar para a máquina de guerra totalitária, os encarcerados nos campos de concentração produziam, sob o chicote dos carrascos, a morte de seus próprios irmãos. O resultado da cultura urbana é duplo: ela gerou liberdade, com certeza. Mas esta mesma força livre serviu como fábrica monstruosa que destruiu milhões de seres humanos. A cidade também exerceu a função de enorme ventre devorador dos sonhos, esperanças, dignidades, valores. O século XVIII filosófico temia as grandes reuniões urbanas, a exemplo dos seus antecessores renascentistas, como Erasmo, atormentado pela imagem de Babel. As desgraças dos grandes aglomerados se evidenciavam nas guerras entre protestantes e católicos, cristãos e muçulmanos, indivíduos e indiví duos. Hobbes, ansioso diante das mesmas guerras, buscou remédios para elas e, de modo claro, apontou as cidades como ameaças ao corpo da república. Ao entrar na lista dos que diagnosticam as ameaças ao governo como doenças – as metáforas médicas tiveram seu ápice no século XX, tanto nos idioletos nazistas quanto na propaganda do stalinismo (11) – Hobbes enxerga nas cidades o inchaço orgulhoso a ser curado para bem da comunhão política. Assim, diz ele, uma enfermidade da república é a grandeza imoderada de uma cidade, quando ela está apta para fornecer fora do seu circuito o número e o custeio de um grande exército; como também é o grande número das corporações, que se constituem como pequenas repúblicas nos intestinos da maior, como vermes nas entranhas do homem natural (12).

De inimiga, a cidade tornou-se, ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX, a grande base do Leviatã. Os males nela gerados, no entanto, foram muito bem percebidos pelos filósofos e moralistas das mais diversas escolas. Em primeiro lugar, naturalmente, vem Rousseau. Este, ao se instalar no Ermitage perto de Montmorency, execra Paris “cidade de lama e fumaça”. O juízo apocalíptico é repetido no primeiro livro do Emilio: “as cidades são o abismo da espécie”. Depois vem Marivaux nas Cartas sobre os Habitantes de Paris: “difícil definir a população de Paris… a melhor imagem é a de um monstro” (13) . Diderot está imerso nesta cultura oposta às grandes cidades. É o que se pode notar no trecho inserido na História das Duas Índias: o homem, sem dúvida, é feito para a sociedade. Sua fraqueza e suas necessidades o demonstram. Mas sociedades de 20 a 30 milhões de homens, cidades de 4 a 5 mil almas, são monstros no interior da natureza. Não é a natureza que as forma. É ela, pelo contrário, que tende, sem cessar, a destrui-las. Elas só se sustentam por uma previdência contínua e por esforços inauditos. Elas não tardariam a se dissipar, se uma porção considerável da multidão não cuidasse de sua conservação. O ar é infecto, as águas são corrompidas, a terra esgotada em grandes áreas. A duração da vida nelas se abrevia, as doçuras da abundância nelas são pouco sentidas, os horrores da fome nelas são extremos. É o lugar do nascimento das doenças epidêmicas, a morada do crime, do vício, dos costumes dissolutos. Estes enormes e funestos amontoados de homens são ainda um horror para a soberania, ao redor da qual a cupidez chama e aumenta sem cessar a massa dos escravos, sob a infinidade de funções, denominações. Estes montes sobrenaturais de população são sujeitos à fermentação e à corrupção durante a paz. Se a guerra neles imprime um movimento mais vivo, o choque é espantoso.

Cada divisão se coloca em Condenação dos aglomerados onde fermenta o vício, elogioEm sentido contrário ao das urbes ameaçadoras, pensa Diderot, as sociedades naturais são pouco numerosas. Elas subsistem por si mesmas. Não se espera, nelas, a superabundância distâncias convenientes. […] A pureza do sangue entre as nações, se é permitido nos exprimir assim, e também a pureza do sangue entre as famílias, só pode ser momentânea, a menos que instituições estranhas e religiosas se oponham. A mistura é um efeito necessário de uma infinidade de causas. da mistura de sangue, num veto ao racismo que já vicejava na vida européia e francesa, em tempo muito próximo dos philosophes (14) .

Duas sociedades são mencionadas por Diderot no mesmo trecho citado acima, da História das Duas Índias: aquela na qual o fundador se dirige a um homem novo que sente sua infelicidade, sendo mais dócil à moldagem do caráter. Para adestrá-lo, o fundador precisa usar a benevolência e exibir uma só face, para se fazer amar. “Ele prega a virtude, a qual será sempre mais imperiosa quanto mais simples será o discípulo. Não é difícil, então, desacreditar o vício, do qual o vicioso é a primeira vítima”. Mas vem depois a sociedade envelhecida e dissoluta.

O dirigente, em vez de fundar, tem missão restauradora naquele aglomerado corrompido. Ele é
um arquiteto que se propõe construir sobre uma área coberta de ruínas. É o médico que se propõe curar um cadáver gangrenado. É um sábio que prega a reforma a endurecidos. Ele só pode receber ódio e perseguições […] ele não verá a futura geração, ele produzirá poucos frutos. Uma nação só se regenera num banho de sangue. É a imagem do velho Eson, a quem Medéia só concedeu a juventude ao decepá-lo, cozinhando-o. Quando decaiu, nenhum homem pôde levantá-la. Parece que isto seja a tarefa de uma longa seqüência de revoluções. O homem de gênio passa muito rapidamente e não deixa posteridade. As duas sociedades enquadram-se perfeitamente nos preceitos de Varrão sobre a sátira. A primeira corresponde aos “bons velhos tempos” da virtude e da obediência ao Bem coletivo, enquanto a segunda identifica-se à dissolução verberada. Diderot, no trecho das Duas Índias interpreta a velha fábula de Eson, a qual também inspirou Hobbes para demonstrar a incompetência da cidadania quando se trata de legislação e governo. Na análise hobbesiana as filhas do velho rei o despedaçam sem resultados positivos. Segundo Diderot, no entanto, as bruxarias de Medéia, com o esquartejamento do corpo republicano, corrompido pelo tempo e pelos costumes dissolutos, conduzem à regeneração social e política (15). O Sobrinho efetiva, no plano das idéias, a mesma técnica louvada na feitiçaria de Medéia: ele despedaça os costumes do seu tempo, dilacera corpos e reputações dos parisienses que acumulam vícios no mesmo tempo em que se acotovelam nos salões, nos restaurantes, na Ópera e nas praças públicas.

Esse quadro da vida urbana é trágico. Tudo levaria a prever que Diderot, diante de uma situação assim calamitosa, ajuizaria sem equívoco em favor do estado de natureza. Mas o juízo
diderotiano é matizado nessas matérias. É possível, no entanto, perguntar, com base na sua obra: como se conciliam o otimismo das Luzes e a imagem da humanidade em guerra generalizada, pervertendo-se no correr dos tempos? Próximo a Rousseau, nesse ponto, Diderot une diretamente a causa ao efeito, entre progresso das ciências e a depravação urbana. “As pessoas mais esclarecidas com freqüência são as mais viciosas e a História é apenas uma longa série de incidentes imprevistos que levaram o homem à luz e à depravação”, diz ele na Introdução aos Grandes Princípios (16).

Na passagem do tempo o homem adquire, em cada átimo, uma consciência aguda de sua irremediável decadência e inventa meios sempre mais eficazes de remediar o mal, retardá-lo por algum tempo. É nesse quadro sem ilusões que se move a investigação diderotiana. Breve Diderot perde a confiança no “grande homem” que salvaria a Europa de sua decadência. Na Carta a Wilker (14/11/ 1771) e na mesma História das Duas Índias, ele renuncia à esperança que passa a considerar vã. Quando uma nação caiu, ninguém pode levantá-la. Diderot, que seria péssimo cidadão do “melhor mundo possível”, elabora a fábula do Taiti, diante da multiplicidade do modelo inglês, holandês, chinês a ele oferecidos. E o filósofo seguiu a tentação de entender o que se passava em Paris, São Petersburgo ou na Filadélfia. Ele viveu a necessidade de construir “um modelo ideal de toda verdade sobre a História” (Discurso sobre a Poesia Dramática).

O Suplemento à Viagem de Bougainville não é um programa burguês revolucionário, nem se trata de levar os costumes taitianos a Paris. Seria uma violência semelhante à dos cínicos. Diz o verbete sobre o cinismo da Encyclopédie: quando se examina de perto os bizarros cínicos, encontra-se o fato de que eles queriam transportar para o meio da sociedade os costumes do estado de natureza. Ou eles não perceberam, ou não se preocuparam com o ridículo que existia em afetar, entre homens corrompidos e delicados, a conduta e o discurso da inocência dos primeiros tempos, e a rusticidade dos séculos onde reinava a animalidade Claro que a ponta venenosa do verbete inteiro é dirigida diretamente a Rousseau, sobretudo no seguinte trecho: "Os cínicos tinham aversão à cultura e às Belas Artes. Eles contavam todos os momentos que nelas eram empregados todo tempo extraído da prática da virtude e do estudo da moral. Eles rejeitavam, por conseguinte, os mesmos princípios e os mesmos conhecimentos da matemática e da física, e da história da natureza; eles afetavam sobretudo um desprezo soberano por aquela elegância particuliar aos atenienses, que se faziam notar e sentir nos seus costumes, seus escritos, seus discursos, seus ajustamentos, a decoração de sua casas; numa palavra, em tudo o que pertencia à vida civil. Entusiastas da virtude, os cínicos exigiam um retorno impossível à natureza e o controle ascético dos costumes.

O verbete “Cidade” da Encyclopédie segue o padrão de lamentar os bons tempos iniciais das concentrações urbanas, mas recusa o seu mito: "Se os poetas se contentassem em apenas nos ensinar o nome dos grandes homens que fundaram as primeiras cidades, e as cerimônias religiosas observadas naquelas ocasiões, teríamos aprendido traços da história que os anais dos povos nunca conservaram, e preferiríamos simples verdades em vez do maravilhoso que eles expandiram neste assunto". Philippe Roger (17) assim analisa o problema urbano, em especial o parisiense, no século 18: Paris é um embaraço para as Luzes. Como, de fato, conceituar aquela cidade? Já Rabelais declarou guerra contra Paris, lugar do luxo, da comilança, do pedantismo universitário, da hipocrisia, do ar fétido. Mas como pensar a grande cidade? O Dicionário de Trevoux trazia um desalento: “é muito difícil fornecer uma boa definição da palavra ‘cidade’”. Voltaire, no poema O Mundano, e seu entusiasmo pela pavimentação de Paris (no Século de Luis XIV), choca-se com Rousseau, o inimigo da corrupção parisiense que entra e sai da urbe “pelo jardim que dava sobre o boulevard, de modo
que eu podia dizer com a mais exata verdade que nunca tinha colocado o pé nos pavimentos de Paris” (Confissões, I, X).

A cidade é centro da atenção e de muito medo no século XVIII. As fórmulas de Rousseau encontram ressonância em escritos econômicos, médicos, financeiros, relatórios de Turgot ou Lavoisier. Se Rousseau assimila Paris a um abismo, Turgot compara a capital do reino a um abismo que absorve todas as riquezas do Estado. Enumera Lavoisier, por sua vez, os gastos de Paris. Ali são consumidos anualmente 260 milhões de libras (250 para os homens, 10 para os cavalos). Seu ativo é de apenas 20 milhões em comércio. Tudo o mais vem das rendas do Estado (140 milhões) ou rendas fundiárias e de empresas situadas fora de Paris (100 milhões). Montyon, demógrafo, sugere esvaziar autoritariamente Paris de uma parte de seus habitantes. Mirabeau propõe expulsar 200 mil parisienses. Rousseau, num de seus paradoxos habituais, afirma que o Emilio deve habitar nas cidades… no mesmo passo em que afirma, nas Confissões: “a corrupção agora é igual em toda parte. Não mais existem costumes, nem virtudes na Europa. Mas existe ainda algum amor por elas, é em Paris que devemos buscá-las” (I, XI). Diderot aconselha a Catarina II : “cercai vossos súditos [em Petersburg] e só com essa operação tereis um império”. O ideal do citoyen pertence às Luzes, mas nas cidades imperiais os filósofos não “estão em casa” (18) . A noção de cidadania enfrenta dois obstáculos graves: de um lado os grandes impérios. Neles, reina o despotismo e o cidadão some do imenso espaço e não tem lugar no tempo. Nos reinos menores, onde a capital é desproporcionada em relação ao corpo do país, a massa devoradora, inútil, manipulada, impede a consciência humana de ser parte de um todo mais digno.

E também some a cidadania. Entre Silas e Caribde, o filósofo naufraga com seus sistemas políticos que pretendem regenerar os Estados, a sociedade, o gênero humano. As Luzes fracassam, como diz Hans Meyer, diante da monstruosidade (19) , só que agora elevada ao máximo possível, na teratologia que amontoa seres que deixam de ser humanos e se transformam em feras, num retorno ao estado de natureza que não é virtuoso, muito pelo contrário. O Sobrinho é um filtro, produzido com a técnica da sátira, pelo qual atravessam todos os tipos humanos amontoados em Paris, a grande capital. O choque entre o personagem “Eu”, um representante dos “bons velhos tempos”, quando a moral seria perfeita – nos parâmetros estritos de Varrão e de Casaubon – e o monstro “Ele”, produzido idealmente, síntese de todos os mendigos, mentirosos, cortesãos, proxenetas, poetas e músicos fracassados,
ambiciosos de todo calibre, ocorre num poema em prosa sublime, o que espanta o leitor e o coloca em pânico permanente, até que a última linha chicoteie a sua boa consciência: “rirá melhor quem rir por último”.

Rameau é um filtro pelo qual passam todos os habitantes da urbe acanalhada, dos vagabundos ao rei, todos dançando a pantomima dos miseráveis, todos entoando canções sem harmonia, todos violentos como os tigres. O contraste entre o campo e a cidade, com a ferocidade só vista na segunda, encontra-se na cena da Menagenie de Versailles: se o jovem provinciano – puro, inocente, virtuoso como o homem da natureza – diante das jaulas onde estão presos os bichos urbanos, mete a mão lá dentro, a culpa pela seus membros devorados não é deles, mas apenas dele. Estamos aqui no aproveitamente mais realista da imagem de Paris como um abismo devorador. Rameau, uma teratologia ambulante, cantante, recitante, irritante, apresenta-se de maneira a enganar os tolos que o julgam inocente. Ele os desmascara e revela o monstro escondido sob as belas palavras e maneiras. Em Paris ninguém é inocente. De certo modo, a cidade é a grande Babilônia, prostituta apocalíptica onde se revela todas as manchas do gênero
humano, manchas adquiridas na queda, quando ainda residíamos no paraíso.

Na capital do reino tudo é instável. E sabemos o que Diderot pensa sobre os que vivem em regime de violenta instabilidade: “quando a energia da natureza dobra-se sobre si mesma, o ser infeliz, melancólico, chora, geme, suspira, ergue de tempos em tempos gritos, devora-se e se consome”. Esta passagem do Salão de 1767 citada por Jacques Chouillet (20) recebe o seguinte comentário do mesmo especialista em Diderot: “Quanto aos instáveis, conhecemos um deles de muita importância, aquele Sobrinho do qual Diderot poderia dizer com Horácio: Vertumnis, quotquot sunt, natus iniquis (Destinado pela natureza aos vertumnos caprichosos, tantos quantos sejam eles)”. No Sonho de D´Alembert existe uma chave para se entender o Sobrinho e Paris: “Nada é sólido, exceto beber, comer, viver, amar e dormir”. O comentário de Lester G. Crocker é exato: “O Sobrinho mantém este ponto de vista contra o seu adversário moralista” (21) . Entre a regularidade monótona da natureza e os encantos renovados do luxo, das mentiras, da política e das querelas acadêmicas, não existe retorno: somos condenados a viver com todos os Sobrinhos, como os Sobrinhos, contra os Sobrinhos. Não existe meio de retornar aos bons velhos tempos. A sátira perdeu a sua razão de ser, enquanto instrumento de luta contra a vida urbana, ela agora registra os passos daquela dança sinistra anotada por Hegel na Fenomenologia: roda dançante, “delírio báquico, no qual todos os membros estão embriagados, delírio que dissolve imediatamente cada um dos que buscam dele separarse” (22). E no Sobrinho: "Nós fazemos justiça uns aos outros, sem que a lei se imiscua. A Deschamps, outrora, a Guimard hoje, vingam o príncipe contra o financista; e é a modista, o joalheiro, o tapeceiro, a costureira de roupa branca, o escroque, a camareira, o cozinheiro, o correeiro, que vingam o financista contra a Deschamps. No meio de tudo isso, só o imbecil ou o ocioso é lesado, sem ter prejudicado ninguém. O trabalho recebe seu elogio, a moleza o seu castigo. Mas não existe mais a idade de ouro, o estado de natureza, no qual o trabalho era feito para o bem coletivo. O trabalho agora é letal. Nele, todos devoram o corpo e a alma alheias, todos fazem justiça comutativa e distributiva do pavor e da suspeita. Todos encarnam o sobrinho de Rameau. Mais não direi sobre o elevado documento da nossa modernidade e da nossa moral, redigido pelo gênio diderotiano. Síntese das artes e da política, a sátira agora editada pela Perspectiva, com o mais fino trabalho de tradução, abre perspectivas analíticas insuspeitadas e interroga todos os que desejam pensar sobre a ética sem repetir lugares comuns hipócritas e batidos. Um texto desta elevação exigia cuidados hermenêuticos e técnicos rigososos, além de sensibilidade incomum, educada. Este é o presente que o literato e meticuloso especialista em Diderot, o sábio Jacó Guinsburg, oferece ao leitor brasileiro. Sigamos ao banquete na boa companhia do anfitrião/tradutor, sabendo no entanto que no agape serão devorados os preconceitos, as tolices das capelas universitárias, as pretensões políticas e toda a vaidade mundana. Afinal, que seria mesmo o Sobrinho de Rameau, senão uma reescrita lancinante do Qohélet?

Notas

(1) “Comment en haulte mer Pantagruel ouyt diverses parolles degelées”, Pantagruel capítulo LV, in Rabelais, Oeuvres complètes, Paris: Gallimard/Pléiade, 1938, p. 713. Os recursos estilísticos de Rabelais e Diderot, onomatopéia sobretudo, “coincidem” e se ajustam. Entre muitos casos, falando-se do primeiro, no famoso episódio das palavras congeladas, a metáfora amorosa para indicar o pensamento e o diálogo surge quando Pantagruel recusaa Panurgo a doação de vocábulos novos: “doar palavras é ato dos amantes…”. Ao pedido reiterado para que vendesse as mesmas palavras, Pantagruel responde que vender palavras é coisa de advogado. “Eu lhe venderia, ao contrário,o silêncio…”. Mas Pantagruel deixa-se convencer e joga sobre o chão de gelo quatro ou cinco punhados de palavras. “E foram vistas palavras picantes, palavras sangrentas […] palavras horríficas e outras desagradáveis de se enxergar. Nós as ouvimos fundidas, hin, hin, hin, hin, his, tic toque, pisca, brededin brededac, frr,frrr, frrr, bu, bu, bu,bu,bu, bu, bu, bu, traccc, trac, trr, trr, trrr, trrrrrr, On, on, on, on ouououououououon: gótico, matagótico, e não sei quais outras palavras bárbaras, e dizia que eram vocábulos de hurros e relinchos de cavalos na hora do choque nos combates e depois ouvimos outras palavras grandes que soavam ao degelar, umas como tambores e pifanos, outros como trombetas…” [Livro Quarto, capítulo LVI, ed. cit., p. 715, a “tradução”, se tal palavra for perdoada, é minha]. “Não é que eu me preocupe com o caro tio, pois caro ele custa. É uma pedra. Ele poderia me ver com a língua de fora um palmo, que não me daria um copo d’água; mas em vão ele faz na oitava, na sétima, hon, hon, hon; hin, hin; tu, tu; tu-re-lu-tu-tu, com um charivari do diabo; aqueles que começam a entender da coisa, e que não tomam mais uma barulheira por música, jamais se conformarão com isso. […] Eu te respondo: tarare, ponpon” (na tradução de J. Guinsburg). A mais aguda leitura da retórica de Rabelais por mim conhecida encontra-se nos trabalhos de Timothy Hampton, sobretudo o excelente artigo "Signs of Monstrosity. The Rhetoric od Description and the Limits of Allegory in Rabelais and Montaigne", in L. L. Knoppers e J. B. Landes, Monstrous Bodies/Political Monstrosities in Early Modern Europe, Ithaca/London: Cornell University Press, 2004, p. 179 e seguintes. Para o relacionamento entre Diderot e Rabelais, cf. Benot, Yves, "Rabelais vu par Diderot: Un magasin de masques", na revista Les lettres françaises, edição de 26 março de 1953, p. 2.

(2). Sigo as interpretações de Glyn P. Norton, The Ideology and Language of Translation in Renaissance France and their Humanist Antecedents, Genève: Droz, 1984, sobretudo no Capítulo 8, The Translative Energies of Word, p. 259 e ss.

(3) “A representação própria e original que a juventude faz dos objetos essenciais é ainda indigente e vazia, ela é opinião, erro, indecisão, inexatidão, indeterminação. É pelo aprendizado que, em lugar de tal desvio, se instaura a verdade”. Cf. G.W.F. Hegel, Sobre o Ensino da Filosofia no Liceu (1812), in Ferry, L. e outros (ed.), Philosophies de l ´Université. L´idéalisme allemand et la question de l’université, Paris: Payot, 1979, p. 340.

(4). Nascido em 1559 na Suiça, com outros antipapistas como Petrus Ramus, foi vítima da Noite de São Bartolomeu. Enquanto o segundo foi assassinado, Causabon imigrou para a Inglaterra, tornando-se amigo de Hugo Grocio e considerado um dos mais eruditos intelectuais da modernidade. De modo geral, as universidades francesas sentiram muito a perda causada pela violência religiosa. Cf. Paul A. Welsby, Lancelot Andrewes, 1555-1626, Londres: S.P.C.K, 1958. Casaubon casou-se em 1586 com Florencia, filha de Henri Estienne. M. Pattison, na biografia de Casaubon, sugere que ele se apaixonara mais pela coleção de livros de Estienne. Em termos filosóficos, o seu trabalho mais notável encontra-se no Operum Aristoteli, nova editio Graece et Latine, Lyon, 1590. Admirador do estoicismo, ele redigiu notas sobre as Meditações de Marco Aurélio. Cf. Historiae Augustae scriptores sex, ed. I. Casaubon, Paris, 1603, p. 174 (ad “Marcus Aurelius” XXVIII): “Non ridere, sed rite ac suo pretio aestimare res humanas solitus vir hic sapientissimus. Hoc ille nos docet divinis suis libris, velut cum ait in secundo…” (segue-se uma citação das Meditações II.17). O enunciado, como é sabido, serviu a Spinoza: não rir, não chorar, compreender. Cf. Jill Kraye: Humanism and Early Modern Philosophy, M. W. F. Stone, London: Routledge, 2000, p. 126. O interesse na sátira era determinado pela vida política e moral: campeão do protestantismo, sua obra maior consistiu numa extensa refutação de Baronius que, a exemplo de Bellarmino, defendia as prerrogativas da Sé romana na política, educação, cultura. Cf. I. Casaubon, De rebus sacris et ecclesiasticis exercitationes XVI ad Baronii annales (1614). Mas a sua luta foi além da guerra contra a Igreja de Roma. Ele seguiu o caminho de desmistificar fraudes neoplatônicas, a exemplo do que fez Lorenzo Valla quanto ao Pseudo-Dionisio e à “doação” de Constantino. Em 1614, mostrou no De Rebus Sacris et Ecclesiaticis Exercitiones XVI que o Corpus Hermeticum não pode ter sido feito por um egípcio, Hermes Trismegistus. O estilo grego é do período de Plotino. E notava algo simples, mas que passou desapercebido: Platão, Moisés, Aristóteles, autores pré-cristãos ou comentadores cristãos nunca se referiram ao tal Hermes. Quem segue a fortuna dos setores secretos no século XVII, percebe o estrago feito por Casaubon.

(5). Cf. Aaron, Santesso, "The New Atlantis and Varronian Satire", in Philological Quarterly, v. 79, 2000. O autor mostra, com eficácia, que não se pode trocar “sátira menipéia” por “sátira varrônica”. Este ponto é importante, sobretudo quando se procura distinguir as formas de sátira recuperadas pela modernidade. Como diz Santesso: “Much more was known about Varro’s satires than about Menippus’s – though both were lost – primarily because more of Varro’s titles and fragments survived. St. Jerome counted “Libros CL” of Varro’s Satirarum Menippearum. Of these, we have some 95 titles and 591 fragments. In several cases, enough fragments survive that scholars have been able to offer tentative reconstructions of the original works; certainly, we are able to identify definite traits and interests.” (op. cit.).

6. Estas citações de Varrão foram extraídas de Franz Bucheler, Petronii Saturae et Liber Priapeorum, Berlin: Weidmann, 1912, p. 177-250. A indicação analítica é de Aaron Santesso, op. cit. O autor discute também a sátira Gerontodidaskalos (“O velho Professor”), na qual um velho e um jovem discutem e o idoso lamenta a corrupção e decadência do que enxerga e as compara aos tempos virtuosos e castos de sua juventude. O jovem dele caçoa, devido à sua falta de sofisticação.

(7). A. Santesso, op. cit.

(8). Isaac Casaubon, De Satyrica Graecorum poesi et Romanorum satira (1605), New York: Scholars’ Facsimiles & Reprints, 1973, p. 256-257.

(9). “Apud Latinos vero videtur Ennii exemplum posterioribus ingeniis fiduciam attulisse, ut non solum diversorum generum metra eodem congererent: sed etiam ut hybridas prorsus scriptiones ederent, e soluta oratione et numeris adstricta conflatas. Eiusmodi lasciviae Satira fuit, quam nos Varronianam nuncupamus”. Casaubon, I. : ed. cit., p. 256-257. A. Santesso, op. cit.

(10). “Longe igitur diversa fuit ratio poeseos in Satiris Varronis, et Menippi dialogis vel epistolis. Cum Graecus hic meras parodias ex alienis versibus contexuent: quam ob causam nemo unquam veterum inter poetas eum numeravit. Varro contra pulcherrimis carminibus quae ipse composuerat, Satiras suas consperserit: quas propterea M. Tullius poema nomimat, et quidem varium atque elegans” (Casaubon, p, 266). Para a descrição das obras de Varrão como “philosophiam,” cf., p. 267 e 259. A. Santesso, op. cit.

(11) . Roberto Romano, "A Fantasmagoria Orgânica" in Corpo e Cristal, Marx Romântico, Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1985.

(12). Leviathan, cap. 29: Of Those Things that Weaken, or Tend to the Dissolution of a Common-wealth, na edição C.B. Macpherson, New York: Penguin Books, 1977, p. 374-375.

(13) Marivaux, Lettres sur les habitants de Paris, in F. Deloffre, Journaux et Oeuvres diverses, 9. ed., Paris: Garnier, 1969, p. 10.

(14). Por exemplo, o racismo explícito de C. De Pauw, Recherches philosophiques sur les Américains, 1774. O texto pode ser lido na edição eletrônica Gallica da Biblioteca Nacional da França.

(17). Cf. Philippe Roger, Paris, "Um Problema Embaraçoso de Filosofia" , in L´Homme des Lumières, de Paris à Petersbourg, Nápoles: Vivarium, 1995, p. 15-28.

(18) Toda essa passagem é devida a Philippe Roger, op. cit.

(19). Cf. H. Mayer, Os Marginalizados, Rio de Janeiro: Guanabara Ed., 1989, p. 9.

(20) Diderot, poète de l´energie, Paris: PUF, 1984, p. 70.

(21) Diderot´s chaotic order. Approach to a Synthesis, Princeton University Press, 1974, p. 43.

( 22) G. W. F. Hegel, "Prefácio" à Fenomenologia do Espírito. Uso a edição francesa de J. Hyppolite, Paris: Aubier, 1947, T. I, p. 40.

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