Flores

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sábado, 11 de novembro de 2017

Gazeta do Povo.

  1. A coisa ficou preta para William Waack

  2. por
  3. Atualizado em [ 09/11/2017 ] [ 15:54 ]
  4. Foul Disfigurement - Arthur Rackham - Old Book Illustrations (OBI)
  5. Foul Disfigurement - Arthur Rackham - Old Book Illustrations (OBI)
    O incidente envolvendo o jornalista William Waack pode ser entendido como oportunidade de linchamento (o que já está acontecendo) ou como oportunidade de compreensão (o que provavelmente não acontecerá). Não sei se Waack é mesmo racista. Não saberei nunca. Se eu tivesse de apostar, apostaria que não. 
  6. Entretanto, o vazamento do áudio diz muito mais sobre quem se aproveita desse tipo de gafe ou ofensa do que sobre quem a comete ou ofende. Na vida pública, as vítimas, reais ou supostas, podem ser tão violentas quanto seus algozes. A sanha persecutória e a carência de bodes expiatórios, de acordo com as investigações antropológicas de Rene Girard, são, sempre serão, faca afiadíssima de dois gumes: corta quem fere, corta quem é ferido.
  7. Partindo da premissa de que a fala é autêntica e ele disse o que disse, duas coisas pedem nossa atenção: o fato de que o ambiente jornalístico está sendo tomado da mentalidade de rede social: todos têm olhos, orelhas, nariz e boca grandes, como o Lobo Mau da historinha; e de que o uso de expressões consideradas ofensivas, mesmo em contexto privado ou discreto, pode ser motivo para condenação sumária.
  8. William Waack, racista ou não, foi imprudente. Um jornalista experiente como ele deveria estar alerta para esses novos tempos em que a ideia de todos estarmos sendo vigiados deixou de ser uma possibilidade e passou a ser rotina.
  9. Imprudência à parte, racismo em quarentena para ulteriores investigações, importa dizer que todos nós, no ambiente privado ou discreto, falamos coisas terríveis uns dos outros. Eu falo coisas piores do que William Waack. O leitor fala coisas piores do que eu falaria. Religiosos dos ateus, ateus dos religiosos, homens das mulheres, mulheres dos homens: todos falam, pensam, murmuram maldades inaceitáveis uns para os outros. A própria linguagem está carregada delas.
  10. Que nos submetamos a esse escrutínio, a essa vigilância, deveria incomodar muito mais do que tem incomodado. Parece que estamos nos acostumando a ter nossa liberdade tolhida e a tolher a liberdade alheia. Num mundo razoável, a liberdade de expressão deveria ser compartilhada por todos. Num mundo irrazoável, a censura é aceita por todos.
  11. Feitas as ressalvas, ponho-me a pensar no que há de irônico nisso tudo. Julgamos com severidade nossos semelhantes de acordo com os valores que, num dado momento histórico, nos parecem absolutos, inalienáveis, sagrados. Vejamos. Na Idade Média, muito grosseiramente falando, a cosmovisão cristã predominava, e as ofensas à fé, as heresias religiosas e a profanação de símbolos sagrados poderiam justificar prisão, degredo, morte.
  12. Nestes nossos tempos pós-cristãos, anticlericais, irreligiosos, soa absurdo que pessoas tenham sido perseguidas por ofenderem valores religiosos e morais. Que mulheres tenham sido acusadas de bruxaria e condenadas por isso, hoje nos causa estranheza. Pois vejam só: as bruxas parecem ter voltado.
  13. Se antes as bruxas ofendiam os valores cristãos, hoje ofendem outros valores: as novas bruxas são homofóbicas, misóginas, fascistas, racistas. Os valores sagrados hoje atendem pelo nome de “dignidade racial”, “multiculturalismo”, “feminismo”, “homossexualidade”, “direitos humanos”. Quem quer que atente contra esses valores sagrados – quem quer que profane o templo do racialismo, ouse fazer troça no altar do feminismo, questione as certezas da teoria de gênero será perseguido, julgado e condenado sem piedade. Com a mesma falta de piedade, ou com muito menos piedade, com que foram julgadas aquelas nossas primas medievais.
  14. Lá e cá, ontem e hoje, o anacronismo nos impede de atinar com o óbvio: valores importam e ofendê-los é ofender quem acredita neles ou os encarna. Quem se ofende com a fala racista de Waack tem uma ótima oportunidade para entender a sensibilidade de quem se ofende quando um símbolo religioso é profanado, quando um artista rala uma imagem de Nossa Senhora Aparecida com pretextos artísticos. A liberdade de expressão e a tolerância para com as ofensas é exercício dificílimo justamente por isso: porque temos de defender e tolerar o que nos ofende, o que nos machuca – e não o contrário.
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Revista Brasil 247

Imagem da história para roberto romano unicamp de Brasil 247

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Brasil 247-1 hora atrás
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Brasil 247- Porque é preciso ter a “Lei Cancellier” Jornalista Fernando Brito, do Tijolaço, destaca o que ele considerou um "belíssimo e sensível trabalho" dos repórteres Monica Weinberg e Thiago Prado, da Veja, sobre a suicídio do reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier; "A morte do reitor Luiz Cancellier não foi, até agora, tão bem descrita, nem a brutalidade que o levou ao suicídio tão bem narrada. O dia em que, finalmente, este país tiver uma lei que puna o abuso de autoridade, que ela seja conhecida como Lei Cancellier, como a Maria da Penha deu nome à da violência contra a mulher", defende Brito 10 de Novembro de 2017 às 21:56 // TV 247 no Youtube Youtube Por Fernando Brito, do Tijolaço - É mais que um belíssimo e sensível trabalho dos repórteres Monica Weinberg e Thiago Prado, da Veja. É um libelo acusatório contra as monstruosidades que estão sendo feitas, em nome da moral e da Justiça, humilhando pessoas, prendendo-as antes de serem ouvias, violando suas intimidades até físicas. A morte do reitor Luiz Cancellier não foi, até agora, tão bem descrita, nem a brutalidade que o levou ao suicídio tão bem narrada. O dia em que, finalmente, este país tiver uma lei que puna o abuso de autoridade, que ela seja conhecida como Lei Cancellier, como a Maria da Penha deu nome à da violência contra a mulher. PUBLICIDADE Crônica de um suicídio Monica Weinberg e Thiago Prado, na Veja Na noite do domingo 1º de outubro, um antigo cliente do Macarronada Italiana, de onde se avista a deslumbrante Baía Norte de Florianópolis, entrou no restaurante à procura de Zé. O garçom José de Andrade, de 63 anos, irrompeu no salão e aproximou-se para registrar em seu bloquinho o pedido de sempre do freguês de quase quatro décadas: talharim à bolonhesa. — Não, Zé, hoje só vim te ver e tomar um café contigo. O garçom percebeu um timbre diferente e retrucou: — Te conheço, Cau. Você está bem? Dali, Cau foi ao Shopping Beiramar, uma caixa de concreto de sete andares, subiu até o último piso e andou em torno das escadas rolantes mirando lá embaixo, como quem calcula o território. Caminhou duas, três, cinco vezes ao todo. E decidiu ir ao cinema. Assistiu a Feito na América, o mais recente filme de Tom Cruise, e voltou para casa. No dia seguinte, na última manhã de sua vida, Cau deixou seu apartamento, no bairro de Trindade, e pegou um táxi. No meio do caminho, talvez à espera de que o shopping abrisse as portas, às 10 horas, encerrou a corrida na Praça dos Namorados, onde costumava levar o filho quando pequeno. Sentou-se num banco. Uma conhecida o cumprimentou, ele perguntou as horas. Eram 9h20. Quando o shopping abriu, Cau não demorou a chegar. Cruzou com um estudante universitário, a quem saudou protocolarmente, e tomou o elevador até o 7º andar. As câmeras de segurança do shopping captaram o momento em que Cau, sem nenhuma hesitação, se postou na escada rolante, colocou as mãos no corrimão de borracha, em seguida subiu ali com os dois pés — e jogou-se no vão da escada, projetando-se no precipício. Despencou de uma altura de 37 metros, a uma velocidade de 97 quilômetros por hora. Seu corpo bateu no chão como se tivesse 458 quilos. Ele morreu na hora, às 10h38 de 2 de outubro de 2017. O suicídio de Luiz Carlos Cancellier de Olivo, aos 59 anos, o Cau, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), foi o desfecho trágico de dezoito dias dramáticos. Sua vida começou a desabar na manhã de 14 de setembro, quando agentes da Polícia Federal deflagraram a Operação Ouvidos Moucos, com o objetivo de apurar desvios de verbas para cursos de ensino a distância na UFSC. Às 6h30 daquela quinta-feira, o reitor ouviu tocar a campainha de seu apartamento e, enrolado em uma toalha de banho, abriu a porta para três agentes da PF, que subiram sem se fazer anunciar pelo porteiro do edifício. Os agentes traziam dois mandados — um de prisão temporária e o outro de busca e apreensão. Recolheram o tablet e o celular do reitor e conduziram-no à sede da Polícia Federal em Florianópolis, dentro de uma viatura. Atônito, sem entender o que estava acontecendo, o reitor só se lembrou de chamar um advogado quando estava prestes a começar seu depoimento, às 8h30. Durante as cinco horas em que foi arguido, passou duas sem saber por que estava à beira da prisão. Ainda respondia a perguntas sobre os meandros operacionais do ensino a distância, com o estômago embrulhado pelo jejum matinal e pelo tormento das circunstâncias, quando a delegada Érika Mialik Marena, ex-coordenadora da força-tarefa da Lava-Jato, à frente agora da Ouvidos Moucos, adentrou o local. Apressada para iniciar a coletiva de imprensa que começaria logo mais, Érika finalmente esclareceu ao interrogado o motivo de tudo aquilo: “O senhor não está sendo investigado pelos desvios, mas por obstrução das apurações”. E correu para comandar o microfone na sala ao lado. Desde cedo, já voava nas redes sociais a notícia de que a Polícia Federal deflagrara uma operação de combate a uma roubalheira milionária na UFSC. A página oficial da PF no Facebook, seguida por 2,6 milhões de pessoas, destacava a Ouvidos Moucos: “Combate de desvio de mais de 80 milhões de reais de recursos para a educação a distância”. Ainda acrescentava duas hashtags para celebrar a ação: “#euconfionapf” e “#issoaquiépf”. A euforia não encontrava eco nos fatos. Na coletiva, a delegada Érika explicou que, na realidade, não havia desvio de 80 milhões de reais. O valor referia-se ao total dos repasses do governo federal ao programa de ensino a distância da UFSC ao longo de uma década, de 2005 e 2015, mas não soube dizer de quanto era, afinal, o montante do desvio. Como a PF não se deu ao trabalho — até hoje — de corrigir a cifra na sua página do Facebook, os 80 milhões colaram na biografia do reitor. Em seu velório, uma aluna socou o caixão e bradou: “Cadê os 80 milhões?”. Encerrado seu depoimento, o reitor deveria ficar retido na sede da PF, mas, como a carceragem havia sido desativada, foi para a Penitenciária de Florianópolis, um complexo de quatro pavilhões construído em 1930. Acorrentaram seus pés, algemaram suas mãos e, posto nu, ele foi submetido a revista íntima. Um dos agentes ironizou: “Viu, gente, também prendemos professores!”. Cancellier vestiu o uniforme laranja, foi fichado e passou a noite em claro. Seus dois colegas de cela, presos na mesma operação, choravam copiosamente. Cancellier estava mudo, como que em transe, e cada vez mais sobressaltado com os rigores do cárcere. Ficou trinta horas na cela na ala de segurança máxima. Teve sintomas de taquicardia: suava muito e a pressão disparou para 17 por 8. Seu cardiologista foi autorizado a examiná-lo, trazendo os remédios que ele havia deixado em casa (desde dezembro, quando implantou dois stents, Cau tomava oito medicamentos). Quando deixou a cela, Cancellier era um homem marcado a ferro pela humilhação da prisão. Sua família o recebeu em clima de festa e alívio. Os irmãos, Julio e Acioli, tinham comprado de tudo um pouco no Macarronada Italiana para um jantar regado a vinho branco Canciller, rótulo argentino escolhido pela similaridade com o nome de origem italiana da família. Também ali estava o filho do reitor, Mikhail, de 30 anos, doutor em direito como o pai, com quem ele mantinha um laço inquebrantável. Mas, entre piadas e risos, Cancellier exibia um semblante sem expressão. “Ele estava chocado. Revivia aquelas cenas o tempo todo”, lembra o irmão Julio, jornalista de 51 anos. Mais que tudo, o reitor estava sendo esmagado pelo peso da proibição de pisar na universidade até o final das investigações. A decisão fora tomada junto com o mandado de prisão e, para o reitor, soou como uma punição cruel. Depois de ter visto seu nome nas manchetes do noticiário na internet e na TV, Cancellier deu boa-noite a todos e recolheu-se. Não era um homem aliviado pelo fim do martírio da prisão nem reconfortado pelo reencontro com a liberdade. Deixou o jantar como um derrotado. Um dos convivas, o desembargador Lédio Rosa de Andrade, de 58 anos, amigo da infância pobre passada em Tubarão, a 130 quilômetros de Florianópolis, percebeu o peso que o reitor carregava. “Ele entendeu que o episódio deixaria uma marca incontornável em sua biografia”, diz Andrade, colega de colégio de Cancellier. A UFSC era uma extensão da casa do reitor. Seu apartamento, de três cômodos, onde viveu dezenove anos, dois deles casado e o restante na companhia do filho, fica a 230 passos do câmpus. Nos fins de semana, o reitor fazia uma ronda informal, bem à vontade em seu moletom. Na UFSC, ele teve, para os padrões acadêmicos, uma carreira meteórica. Em apenas dezoito anos, concluiu o curso de direito, fez mestrado, fez doutorado em direito administrativo, virou diretor do Centro de Ciências Jurídicas e, numa eleição acirrada, elegeu-se reitor — cargo que ocuparia por dezesseis meses. Na eleição, a paciência para tecer alianças foi arma decisiva em um jogo embaralhado. “Ele não era um orador brilhante, mas era um articulador que conseguia trazer para o mesmo lado gente de todos os espectros ideológicos”, define o amigo Nelson Wedekin, de 73 anos, ex-senador pelo PMDB local. Desde a juventude, a rotina universitária era a bússola da vida de Cancellier. Em 1977, aos 19 anos, época em que fazia política estudantil com o cabelo desgrenhado e bolsa de couro a tiracolo, ele se encantou com a universidade. “Não quero nunca sair daqui”, confessou ao amigo Osvaldir Ramos, hoje presidente do Conselho Estadual de Educação em Santa Catarina. Acabou forçado a sair, no regime militar, em decorrência de sua militância no Partido Comunista Brasileiro, o antigo Partidão, e da chamada novembrada: em 30 de novembro de 1979, o presidente João Figueiredo, o último ditador do ciclo militar, baixou em Florianópolis, bateu boca com estudantes na rua e o episódio terminou em pancadaria e prisões. Cancellier teve de desaparecer da faculdade de direito. Ressurgiu cinco meses depois trabalhando em um jornal e acabou tornando-se assessor de políticos, inclusive de Wedekin, função que o levou a se mudar para Brasília. Só voltou à UFSC em 2000, aos 42 anos, para cumprir uma fulminante trajetória acadêmica — e ser de novo expelido da universidade, agora em plena democracia e na condição de reitor, num banimento que lhe pesou como uma suprema humilhação. No muro da universidade, um anônimo grafitou: “Fora Cancellier”. “A humilhação é a bomba nuclear das emoções”, afirma a psicóloga alemã Evelin Lindner, uma autoridade mundial num ramo da psicologia que estuda o peso da vexação em sociedade e sua relação com atos de violência — como o terrorismo e o suicídio, que, não por acaso, andam juntos. Se a culpa é uma dor que vem de dentro, a humilhação é como uma dor que vem de fora, imposta pelo olhar alheio. É sentida como uma falência em público. Sai cortando fundo no orgulho, na honra, na dignidade, e tende a ficar marcada como uma cicatriz. Escreve o psiquiatra Neel Burton, professor em Oxford e autor do livro Heaven and Hell: The Psychology of the Emotions (Céu e Inferno: a Psicologia das Emoções): “As pessoas que foram humilhadas carregam a marca da humilhação, são lembradas pela humilhação. Em um sentido muito real, elas se tornam a própria humilhação que sofreram”. Os estudos científicos sugerem que, quando estão em jogo elementos que constituem a razão de ser de uma pessoa, como princípios, posição ou status, o peso da vergonha pode até desfigurar a identidade pessoal e tornar-se insuportável. “Em alguns casos, ser submetido a uma situação vexaminosa gera condutas irracionais e pode desencadear uma resposta violenta, como o suicídio”, diz o professor Helio Deliberador, do departamento de psicologia social da PUC de São Paulo. O filho mais velho de Bernard Madoff, um dos nomes mais cintilantes de Wall Street, suicidou-se depois da descoberta de que seu pai era, na verdade, um farsante que aplicara golpes bilionários. Jacintha Saldanha, enfermeira em um hospital onde a duquesa Kate esteve internada em 2012, caiu no trote de radialistas australianos que se fizeram passar pela rainha da Inglaterra, facilitou o acesso a dados sobre o estado de saúde da duquesa e foi publicamente achincalhada. Matou-se aos 46 anos. Como escreveu Albert Camus em Mito de Sísifo: Ensaio sobre o Absurdo: “Matar-se, em certo sentido, é confessar que se é ultrapassado pela vida e que não a compreendemos”. Nos dias que se seguiram à sua soltura, Cancellier começou a ser ultrapassado pela vida. “Passou a alternar momentos em que achava que ficaria tudo bem com outros em que mergulhava no desânimo”, diz o ex-senador Wedekin. Em 16 de setembro, dois dias depois da prisão, seu irmão Acioli levou-o para falar com advogados. Ao entrar e sair do táxi, Cancellier tremia, com medo de ser reconhecido na rua e hostilizado. Com o celular confiscado pela PF, quase não atendia o telefone fixo de casa. Não ligava a TV e, ao irmão Julio, disse que cometera “suicídio digital”, pois retirara fotos do Facebook e parara de navegar nas redes sociais. Ensimesmou-se a tal ponto que os irmãos decidiram levá-lo a uma psiquiatra, a primeira vez na vida que buscava ajuda dessa natureza. A consulta com a médica Amanda Rufino ocorreu em 19 de setembro, cinco dias depois da prisão. Ele saiu de lá com o diagnóstico de “sintomas de stress pós-traumático desencadeados por impactante fator estressor no âmbito profissional” e um quadro de “intensa sensação de angústia, de opressão no peito e taquicardia”. A psiquiatra prescreveu um ansiolítico e um antidepressivo, ambos em doses moderadas. Cancellier tomou obedientemente os remédios e voltou à médica em 29 de setembro, a três dias do suicídio. Ao final da segunda consulta, a psiquiatra comentou com um dos irmãos do reitor que a situação parecia sob controle. “O quadro está evoluindo bem”, disse. A João dos Passos, procurador-geral do estado, o reitor deu uma pista do que sentia: “Vou te confidenciar, João. Meu estado é de pós-catástrofe, como se eu fosse o sobrevivente de uma queda de avião. Não consigo me situar, raciocinar direito”. O amigo Lédio Andrade, com quem o reitor jogava xadrez, descreve um Cancellier irreconhecível: “Seu raciocínio ficou lento e os olhos fixavam o infinito. Não parecia o Cau”. Em situações normais, o reitor tinha entusiasmadas conversas sobre Shakespeare, Freud e o cristianismo, temas que despertavam sua curiosidade intelectual. Agora, nada parecia atrair seu interesse. O irmão Acioli, engenheiro que mora em São José dos Campos, tentando tirá-lo da clausura de si mesmo, alugou um Fiat Uno e provocou: “Agora você vai me mostrar essa ilha”. Era sempre o irmão ao volante, pois Cancellier, apesar de ter carteira de motorista, só dirigia moto. Nesses passeios, o reitor até relaxava, mas logo voltava a cerrar-se em casa. Em Foz do Iguaçu, sua ex-mulher, Cristiana Jacquenin, de 48 anos, externou seu temor aos mais chegados: “Tenho medo do que ele possa fazer. Ele não vai aguentar ficar longe da universidade, é a vida dele”. Crica, como Cancelllier a chamava, foi uma paixão fulminante — em dois meses, eles subiram ao altar, ele com 28 anos, ela com 18. Conheceram-se no jornal O Estado (que já não existe) e, apesar da separação, mantiveram um elo até o fim. Ela afirma: “Aquela humilhação toda atingiu o Cau. Era como se alguém acertasse com uma bazuca uma escultura de pecinhas bem encaixadas que nunca mais se rearranjariam”. A Polícia Federal pediu a prisão de Cancellier e outras seis pessoas da UFSC com base em um relatório de 126 páginas. Nele, o reitor é acusado de tentar obstruir as investigações da universidade sobre os desvios de dinheiro com base em apenas dois depoimentos. Em um deles, Taisa Dias, coordenadora do curso de administração, contou à polícia que, certo dia, levou ao reitor suspeitas de uso indevido de verbas no curso que coordena. Cancellier, segundo ela, perguntou se aquilo não seria um “problema de gestão” e, em seguida, lhe disse o seguinte: “Guarda essa pastinha”. Taisa entendeu que, com essa frase, o reitor estava querendo enterrar as investigações. A Polícia Federal, por sua vez, considerou a interpretação de Taisa como uma suspeita suficientemente clara de que Cancellier queria embolar a apuração. A defesa do reitor admite a conversa com Taisa, mas afirma que, ao dizer “guarda essa pastinha”, ele queria lhe pedir apenas cautela nas apurações e nas acusações. Ao reitor, nada foi perguntado sobre suas intenções, antes de ele ser preso. O outro depoimento foi prestado pelo corregedor da UFSC, Rodolfo Hickel do Prado, um senhor calvo de olhos claros que nunca altera o tom de voz e fez fama de investigador obsessivo no câmpus da universidade. Em novembro do ano passado, o centro acadêmico da faculdade de engenharia postou no Facebook um texto que dizia que a universidade mantinha uma lógica desigual, punitiva para alunos e benevolente para professores. Hickel do Prado debruçou-se sobre a questão. Queria entender o que era aquela lógica desigual. Convocou nada menos do que uma centena de estudantes para depor. A apuração se encerrou sem nada concluir, mas ajudou a sublinhar sua fúria investigativa. Aos que lhe censuram o ímpeto de xerife, Hickel do Prado rebate com segurança pétrea: “Quem faz tudo certo não tem por que ter medo de nada”. (Na terça-feira 7, o corregedor pediu licença médica de dois meses da universidade.) Em seu depoimento, Hickel do Prado fez cinco acusações ao reitor. Disse que ele lhe recomendou que instalasse uma sindicância, em vez de abrir um processo administrativo, e tentou subordiná-lo a uma secretaria ligada à reitoria. (A defesa do reitor confirma as duas providências, mas diz que eram uma tentativa de evitar os conhecidos excessos do corregedor, e não de sabotar a investigação.) Também afirmou que ele cortou sua remuneração numa “tentativa de constrangê-lo”. (A defesa do reitor afirma que houve uma ampla reforma na UFSC com cortes na remuneração de vários cargos comissionados, e não uma medida exclusiva contra o corregedor.) Ainda acusou o reitor de tê-lo chamado para uma conversa reservada na qual lhe pediu que não apurasse as suspeitas. (A defesa do reitor nega que a conversa tenha existido.) E, por fim, disse que ele lhe pediu para ter acesso formal às investigações depois de ter visitado a Capes, órgão federal que financia o sistema de pós-­graduação no Brasil, que havia acabado de cortar as verbas para o programa de educação a distância da UFSC. (A defesa do reitor confirma que ele pediu acesso às investigações exatamente para saber as razões que levaram a Capes a cortar as verbas.) A polícia não ouviu as explicações do reitor, antes de pedir sua prisão. Ainda que os dois depoimentos se limitassem a acusá-lo de tentar obstruir as investigações, a polícia incluiu o nome do reitor em uma lista de doze pessoas suspeitas de terem tido “efetiva participação na implementação, controle e benefício do esquema criminoso”. Não há no inquérito nenhum indício ou acusação de que o reitor fosse membro do “esquema criminoso”, nem mesmo a descrição do que poderia vir a ser esse “esquema criminoso”. VEJA perguntou à Polícia Federal por que Cancellier foi apontado como integrante da quadrilha, mas a PF preferiu não responder. No final do relatório, na página 123, estão as cinco razões para prender o reitor. O texto afirma que ele: “Criou a Secretaria de Educação a Distância para estar acima do já existente Núcleo Universidade Aberta, vinculando-a diretamente à reitoria.” (O inquérito não traz nenhuma prova de que a criação da secretaria tenha relação com desvios de verba.) “Nomeou no âmbito do EaD (educação a distância) os professores do grupo que mantiveram a política de desvios e direcionamento nos pagamentos das bolsas do EaD.” (O reitor, ao assumir o cargo, fez mais de cinquenta nomeações. No âmbito do EaD, fez apenas três, e outros três professores que já integravam o grupo antes mesmo de sua gestão foram mantidos.) “Procurou obstaculizar as tentativas internas sobre as irregularidades na gestão de recursos do EaD.” (O inquérito, neste caso, baseia-se no depoimento da coordenadora Taisa Dias e do corregedor Hickel do Prado.) “Pressionou para a saída da professora Taisa Dias do cargo de coordenadora do EaD do curso de administração.” (É uma afirmação gratuita. O inquérito não informa de onde saiu essa suspeita nem aponta nenhum elemento que lhe dê consistência.) “Recebeu bolsa do EaD via Capes e via Fapeu.” (O inquérito também não informa de onde saiu essa suspeita, nem mesmo se existiu alguma irregularidade na concessão das bolsas.) A juíza Janaína Cassol, da 1ª Vara Federal de Florianópolis, analisou o pedido da PF em 25 de agosto e concedeu as prisões. Sobre o reitor e os outros seis acusados, ela escreveu: “Essas pessoas podem efetivamente interferir na coleta das provas, combinar versões e, mais do que já fizeram, intimidar os docentes vitimados pelo grupo criminoso”. Em 12 de setembro, a juíza pediu licença por problemas de saúde e foi substituída por Marjorie Freiberger. Dois dias depois, em 14 de setembro, a polícia lançou a Operação Ouvidos Moucos e prendeu o reitor e os outros seis. No dia seguinte às prisões, a juíza Marjorie Freiberger, sem que houvesse recurso da defesa do reitor e dos outros seis, resolveu revogar a decisão de sua colega e suspendeu as prisões. Ao contrário da antecessora, a juíza Marjorie não conseguiu ver motivo para tê-los levado para a penitenciária. Escreveu ela: “No presente caso, a delegada da Polícia Federal (refere-se a Érika Marena) não apresentou fatos específicos dos quais se possa defluir a existência de ameaça à investigação e futuras inquirições”. Mandou libertar todo mundo. Até hoje, a advogada do reitor, Nívea Cademartori, não entende por que seu cliente foi preso sem que tivesse a chance de se explicar. “Bastaria que a PF intimasse o reitor para depor, o que seria imediatamente atendido. Há uma banalização das prisões temporárias no país.” Em seus últimos dias, Cancellier chegou a dar sinais de que não abandonaria o ringue. Em artigo publicado no jornal O Globo em 28 de setembro, quatro dias antes do suicídio, saiu em defesa própria e dos demais professores presos: “A humilhação e o vexame a que fomos submetidos há uma semana não têm precedentes na história da instituição”. O reitor também tentou recorrer da proibição de pisar no câmpus. Alegou que, como orientava teses de mestrado e doutorado, não podia deixar os alunos à deriva. A resposta da Justiça veio no sábado 30 de setembro, dois dias antes do suicídio: Cancellier estava autorizado a entrar na UFSC por três horas em um único dia. A decisão o devastou. “Como pode?”, perguntava. “Se demorar um minuto a mais, serei preso?” A humilhação a conta-gotas ajudou a reforçar o quadro de stress pós-traumático do reitor, como a psiquiatria define a reação descontrolada do cérebro diante de um evento que está além de sua capacidade de absorção. “É como se o sistema de defesa do organismo entrasse em pane”, compara o psiquiatra Marcelo Fleck, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Maria Oquendo, uma porto-riquenha baixinha que se tornou um gigante da psiquiatria americana e autoridade mundial em suicídio, diz que é dificílimo evitar a morte de vítimas desse tipo de stress. Elas nunca falam em suicídio, embora pensem no assunto constantemente. Um trauma como o que consumiu o reitor vira motivo de obsessão — mas, de acordo com as estatísticas, raramente conduz ao atentado à própria vida. O reitor foi um dos raros casos. Na véspera de seu suicídio, sabe-se hoje, já estava tudo calculado. Ele recusou o convite dos irmãos para assistir a uma partida de futebol em que o clube de coração da família, o Hercílio Luz, tinha chance de voltar à elite catarinense. Preferiu sair com o filho Mikhail. Almoçaram, ele quis ver se estava tudo em ordem em sua casa, mas recusou-se a ficar para uma sessão de filmes na TV. “Preciso descansar”, despistou. Em vez de descansar, foi ao shopping em que morreria, assistiu a um filme e levou consigo a chave do apartamento, de modo a forçar seu irmão Acioli a dormir em outro lugar. Queria ficar sozinho na última noite. As cinzas de cigarro espalhadas pelo apartamento mostram que fumou ferozmente, quebrando a abstinência imposta pelo cardiologista. Escreveu quatro bilhetes. Um para o filho, outro para os irmãos, um terceiro para um amigo e o quarto carregou no próprio bolso. É o único cujo conteúdo é conhecido. “A minha morte foi decretada quando fui banido da universidade!!!”, diz o bilhete, com a ênfase dos três pontos de exclamação. No dos irmãos, referiu-se à imensidão do amor pelos dois, mas disse que a dor que o dilacerava era maior que tudo. Deixou bilhetes e documentos separados em uma pequena caixa no escritório de casa, encontrada por Mikhail. O filho disse: “O pai cumpriu a missão aqui”. Até hoje, sabe-se apenas que o “esquema criminoso” durou principalmente de 2005 a 2015, quando Cancellier nem estava na reitoria. A Capes, que investigou o assunto, diz que o “esquema criminoso” era uma coleção de pequenas falcatruas de servidores escroques, sem a dimensão que se divulgou. O coordenador do programa do ensino a distância da Capes, Carlos Lenuzza, não revela detalhes da investigação, mas adianta: “Os valores dos desvios são muito distantes daquilo que se falou”. Até agora, um mês depois do suicídio do reitor, ninguém foi acusado formalmente de nada, e a polícia não chegou ao valor real que foi desviado. Ao ver a notícia do suicídio na TV, Zé, o garçom, desabou. Nem sabia que o amigo de toda a vida era reitor.


Por Fernando Brito, do Tijolaço - É mais que um belíssimo e sensível trabalho dos repórteres Monica Weinberg e Thiago Prado, da Veja. É um libelo acusatório contra as monstruosidades que estão sendo feitas, em nome da moral e da Justiça, humilhando pessoas, prendendo-as antes de serem ouvias, violando suas intimidades até físicas. A morte do reitor Luiz Cancellier não foi, até agora, tão bem descrita, nem a brutalidade que o levou ao suicídio tão bem narrada. O dia em que, finalmente, este país tiver uma lei que puna o abuso de autoridade, que ela seja conhecida como Lei Cancellier, como a Maria da Penha deu nome à da violência contra a mulher.
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Monica Weinberg e Thiago Prado, na Veja
Na noite do domingo 1º de outubro, um antigo cliente do Macarronada Italiana, de onde se avista a deslumbrante Baía Norte de Florianópolis, entrou no restaurante à procura de Zé. O garçom José de Andrade, de 63 anos, irrompeu no salão e aproximou-se para registrar em seu bloquinho o pedido de sempre do freguês de quase quatro décadas: talharim à bolonhesa.
— Não, Zé, hoje só vim te ver e tomar um café contigo.
O garçom percebeu um timbre diferente e retrucou:
— Te conheço, Cau. Você está bem?
Dali, Cau foi ao Shopping Beiramar, uma caixa de concreto de sete andares, subiu até o último piso e andou em torno das escadas rolantes mirando lá embaixo, como quem calcula o território. Caminhou duas, três, cinco vezes ao todo. E decidiu ir ao cinema. Assistiu a Feito na América, o mais recente filme de Tom Cruise, e voltou para casa. No dia seguinte, na última manhã de sua vida, Cau deixou seu apartamento, no bairro de Trindade, e pegou um táxi. No meio do caminho, talvez à espera de que o shopping abrisse as portas, às 10 horas, encerrou a corrida na Praça dos Namorados, onde costumava levar o filho quando pequeno. Sentou-se num banco. Uma conhecida o cumprimentou, ele perguntou as horas. Eram 9h20. Quando o shopping abriu, Cau não demorou a chegar. Cruzou com um estudante universitário, a quem saudou protocolarmente, e tomou o elevador até o 7º andar. As câmeras de segurança do shopping captaram o momento em que Cau, sem nenhuma hesitação, se postou na escada rolante, colocou as mãos no corrimão de borracha, em seguida subiu ali com os dois pés — e jogou-se no vão da escada, projetando-se no precipício. Despencou de uma altura de 37 metros, a uma velocidade de 97 quilômetros por hora. Seu corpo bateu no chão como se tivesse 458 quilos. Ele morreu na hora, às 10h38 de 2 de outubro de 2017.
O suicídio de Luiz Carlos Cancellier de Olivo, aos 59 anos, o Cau, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), foi o desfecho trágico de dezoito dias dramáticos. Sua vida começou a desabar na manhã de 14 de setembro, quando agentes da Polícia Federal deflagraram a Operação Ouvidos Moucos, com o objetivo de apurar desvios de verbas para cursos de ensino a distância na UFSC. Às 6h30 daquela quinta-feira, o reitor ouviu tocar a campainha de seu apartamento e, enrolado em uma toalha de banho, abriu a porta para três agentes da PF, que subiram sem se fazer anunciar pelo porteiro do edifício. Os agentes traziam dois mandados — um de prisão temporária e o outro de busca e apreensão. Recolheram o tablet e o celular do reitor e conduziram-no à sede da Polícia Federal em Florianópolis, dentro de uma viatura.
Atônito, sem entender o que estava acontecendo, o reitor só se lembrou de chamar um advogado quando estava prestes a começar seu depoimento, às 8h30. Durante as cinco horas em que foi arguido, passou duas sem saber por que estava à beira da prisão. Ainda respondia a perguntas sobre os meandros operacionais do ensino a distância, com o estômago embrulhado pelo jejum matinal e pelo tormento das circunstâncias, quando a delegada Érika Mialik Marena, ex-coordenadora da força-tarefa da Lava-Jato, à frente agora da Ouvidos Moucos, adentrou o local. Apressada para iniciar a coletiva de imprensa que começaria logo mais, Érika finalmente esclareceu ao interrogado o motivo de tudo aquilo: “O senhor não está sendo investigado pelos desvios, mas por obstrução das apurações”. E correu para comandar o microfone na sala ao lado.
Desde cedo, já voava nas redes sociais a notícia de que a Polícia Federal deflagrara uma operação de combate a uma roubalheira milionária na UFSC. A página oficial da PF no Facebook, seguida por 2,6 milhões de pessoas, destacava a Ouvidos Moucos: “Combate de desvio de mais de 80 milhões de reais de recursos para a educação a distância”. Ainda acrescentava duas hashtags para celebrar a ação: “#euconfionapf” e “#issoaquiépf”. A euforia não encontrava eco nos fatos. Na coletiva, a delegada Érika explicou que, na realidade, não havia desvio de 80 milhões de reais. O valor referia-se ao total dos repasses do governo federal ao programa de ensino a distância da UFSC ao longo de uma década, de 2005 e 2015, mas não soube dizer de quanto era, afinal, o montante do desvio. Como a PF não se deu ao trabalho — até hoje — de corrigir a cifra na sua página do Facebook, os 80 milhões colaram na biografia do reitor. Em seu velório, uma aluna socou o caixão e bradou: “Cadê os 80 milhões?”.
Encerrado seu depoimento, o reitor deveria ficar retido na sede da PF, mas, como a carceragem havia sido desativada, foi para a Penitenciária de Florianópolis, um complexo de quatro pavilhões construído em 1930. Acorrentaram seus pés, algemaram suas mãos e, posto nu, ele foi submetido a revista íntima. Um dos agentes ironizou: “Viu, gente, também prendemos professores!”. Cancellier vestiu o uniforme laranja, foi fichado e passou a noite em claro. Seus dois colegas de cela, presos na mesma operação, choravam copiosamente. Cancellier estava mudo, como que em transe, e cada vez mais sobressaltado com os rigores do cárcere. Ficou trinta horas na cela na ala de segurança máxima. Teve sintomas de taquicardia: suava muito e a pressão disparou para 17 por 8. Seu cardiologista foi autorizado a examiná-lo, trazendo os remédios que ele havia deixado em casa (desde dezembro, quando implantou dois stents, Cau tomava oito medicamentos).
Quando deixou a cela, Cancellier era um homem marcado a ferro pela humilhação da prisão. Sua família o recebeu em clima de festa e alívio. Os irmãos, Julio e Acioli, tinham comprado de tudo um pouco no Macarronada Italiana para um jantar regado a vinho branco Canciller, rótulo argentino escolhido pela similaridade com o nome de origem italiana da família. Também ali estava o filho do reitor, Mikhail, de 30 anos, doutor em direito como o pai, com quem ele mantinha um laço inquebrantável. Mas, entre piadas e risos, Cancellier exibia um semblante sem expressão. “Ele estava chocado. Revivia aquelas cenas o tempo todo”, lembra o irmão Julio, jornalista de 51 anos. Mais que tudo, o reitor estava sendo esmagado pelo peso da proibição de pisar na universidade até o final das investigações. A decisão fora tomada junto com o mandado de prisão e, para o reitor, soou como uma punição cruel.
Depois de ter visto seu nome nas manchetes do noticiário na internet e na TV, Cancellier deu boa-noite a todos e recolheu-se. Não era um homem aliviado pelo fim do martírio da prisão nem reconfortado pelo reencontro com a liberdade. Deixou o jantar como um derrotado. Um dos convivas, o desembargador Lédio Rosa de Andrade, de 58 anos, amigo da infância pobre passada em Tubarão, a 130 quilômetros de Florianópolis, percebeu o peso que o reitor carregava. “Ele entendeu que o episódio deixaria uma marca incontornável em sua biografia”, diz Andrade, colega de colégio de Cancellier.
A UFSC era uma extensão da casa do reitor. Seu apartamento, de três cômodos, onde viveu dezenove anos, dois deles casado e o restante na companhia do filho, fica a 230 passos do câmpus. Nos fins de semana, o reitor fazia uma ronda informal, bem à vontade em seu moletom. Na UFSC, ele teve, para os padrões acadêmicos, uma carreira meteórica. Em apenas dezoito anos, concluiu o curso de direito, fez mestrado, fez doutorado em direito administrativo, virou diretor do Centro de Ciências Jurídicas e, numa eleição acirrada, elegeu-se reitor — cargo que ocuparia por dezesseis meses. Na eleição, a paciência para tecer alianças foi arma decisiva em um jogo embaralhado. “Ele não era um orador brilhante, mas era um articulador que conseguia trazer para o mesmo lado gente de todos os espectros ideológicos”, define o amigo Nelson Wedekin, de 73 anos, ex-senador pelo PMDB local.
Desde a juventude, a rotina universitária era a bússola da vida de Cancellier. Em 1977, aos 19 anos, época em que fazia política estudantil com o cabelo desgrenhado e bolsa de couro a tiracolo, ele se encantou com a universidade. “Não quero nunca sair daqui”, confessou ao amigo Osvaldir Ramos, hoje presidente do Conselho Estadual de Educação em Santa Catarina. Acabou forçado a sair, no regime militar, em decorrência de sua militância no Partido Comunista Brasileiro, o antigo Partidão, e da chamada novembrada: em 30 de novembro de 1979, o presidente João Figueiredo, o último ditador do ciclo militar, baixou em Florianópolis, bateu boca com estudantes na rua e o episódio terminou em pancadaria e prisões. Cancellier teve de desaparecer da faculdade de direito. Ressurgiu cinco meses depois trabalhando em um jornal e acabou tornando-se assessor de políticos, inclusive de Wedekin, função que o levou a se mudar para Brasília. Só voltou à UFSC em 2000, aos 42 anos, para cumprir uma fulminante trajetória acadêmica — e ser de novo expelido da universidade, agora em plena democracia e na condição de reitor, num banimento que lhe pesou como uma suprema humilhação. No muro da universidade, um anônimo grafitou: “Fora Cancellier”.
“A humilhação é a bomba nuclear das emoções”, afirma a psicóloga alemã Evelin Lindner, uma autoridade mundial num ramo da psicologia que estuda o peso da vexação em sociedade e sua relação com atos de violência — como o terrorismo e o suicídio, que, não por acaso, andam juntos. Se a culpa é uma dor que vem de dentro, a humilhação é como uma dor que vem de fora, imposta pelo olhar alheio. É sentida como uma falência em público. Sai cortando fundo no orgulho, na honra, na dignidade, e tende a ficar marcada como uma cicatriz. Escreve o psiquiatra Neel Burton, professor em Oxford e autor do livro Heaven and Hell: The Psychology of the Emotions (Céu e Inferno: a Psicologia das Emoções): “As pessoas que foram humilhadas carregam a marca da humilhação, são lembradas pela humilhação. Em um sentido muito real, elas se tornam a própria humilhação que sofreram”.
Os estudos científicos sugerem que, quando estão em jogo elementos que constituem a razão de ser de uma pessoa, como princípios, posição ou status, o peso da vergonha pode até desfigurar a identidade pessoal e tornar-se insuportável. “Em alguns casos, ser submetido a uma situação vexaminosa gera condutas irracionais e pode desencadear uma resposta violenta, como o suicídio”, diz o professor Helio Deliberador, do departamento de psicologia social da PUC de São Paulo. O filho mais velho de Bernard Madoff, um dos nomes mais cintilantes de Wall Street, suicidou-se depois da descoberta de que seu pai era, na verdade, um farsante que aplicara golpes bilionários. Jacintha Saldanha, enfermeira em um hospital onde a duquesa Kate esteve internada em 2012, caiu no trote de radialistas australianos que se fizeram passar pela rainha da Inglaterra, facilitou o acesso a dados sobre o estado de saúde da duquesa e foi publicamente achincalhada. Matou-se aos 46 anos. Como escreveu Albert Camus em Mito de Sísifo: Ensaio sobre o Absurdo: “Matar-se, em certo sentido, é confessar que se é ultrapassado pela vida e que não a compreendemos”.
Nos dias que se seguiram à sua soltura, Cancellier começou a ser ultrapassado pela vida. “Passou a alternar momentos em que achava que ficaria tudo bem com outros em que mergulhava no desânimo”, diz o ex-senador Wedekin. Em 16 de setembro, dois dias depois da prisão, seu irmão Acioli levou-o para falar com advogados. Ao entrar e sair do táxi, Cancellier tremia, com medo de ser reconhecido na rua e hostilizado. Com o celular confiscado pela PF, quase não atendia o telefone fixo de casa. Não ligava a TV e, ao irmão Julio, disse que cometera “suicídio digital”, pois retirara fotos do Facebook e parara de navegar nas redes sociais. Ensimesmou-se a tal ponto que os irmãos decidiram levá-lo a uma psiquiatra, a primeira vez na vida que buscava ajuda dessa natureza.
A consulta com a médica Amanda Rufino ocorreu em 19 de setembro, cinco dias depois da prisão. Ele saiu de lá com o diagnóstico de “sintomas de stress pós-traumático desencadeados por impactante fator estressor no âmbito profissional” e um quadro de “intensa sensação de angústia, de opressão no peito e taquicardia”. A psiquiatra prescreveu um ansiolítico e um antidepressivo, ambos em doses moderadas. Cancellier tomou obedientemente os remédios e voltou à médica em 29 de setembro, a três dias do suicídio. Ao final da segunda consulta, a psiquiatra comentou com um dos irmãos do reitor que a situação parecia sob controle. “O quadro está evoluindo bem”, disse. A João dos Passos, procurador-geral do estado, o reitor deu uma pista do que sentia: “Vou te confidenciar, João. Meu estado é de pós-catástrofe, como se eu fosse o sobrevivente de uma queda de avião. Não consigo me situar, raciocinar direito”. O amigo Lédio Andrade, com quem o reitor jogava xadrez, descreve um Cancellier irreconhecível: “Seu raciocínio ficou lento e os olhos fixavam o infinito. Não parecia o Cau”.
Em situações normais, o reitor tinha entusiasmadas conversas sobre Shakespeare, Freud e o cristianismo, temas que despertavam sua curiosidade intelectual. Agora, nada parecia atrair seu interesse. O irmão Acioli, engenheiro que mora em São José dos Campos, tentando tirá-lo da clausura de si mesmo, alugou um Fiat Uno e provocou: “Agora você vai me mostrar essa ilha”. Era sempre o irmão ao volante, pois Cancellier, apesar de ter carteira de motorista, só dirigia moto. Nesses passeios, o reitor até relaxava, mas logo voltava a cerrar-se em casa.
Em Foz do Iguaçu, sua ex-mulher, Cristiana Jacquenin, de 48 anos, externou seu temor aos mais chegados: “Tenho medo do que ele possa fazer. Ele não vai aguentar ficar longe da universidade, é a vida dele”. Crica, como Cancelllier a chamava, foi uma paixão fulminante — em dois meses, eles subiram ao altar, ele com 28 anos, ela com 18. Conheceram-se no jornal O Estado (que já não existe) e, apesar da separação, mantiveram um elo até o fim. Ela afirma: “Aquela humilhação toda atingiu o Cau. Era como se alguém acertasse com uma bazuca uma escultura de pecinhas bem encaixadas que nunca mais se rearranjariam”.
A Polícia Federal pediu a prisão de Cancellier e outras seis pessoas da UFSC com base em um relatório de 126 páginas. Nele, o reitor é acusado de tentar obstruir as investigações da universidade sobre os desvios de dinheiro com base em apenas dois depoimentos. Em um deles, Taisa Dias, coordenadora do curso de administração, contou à polícia que, certo dia, levou ao reitor suspeitas de uso indevido de verbas no curso que coordena. Cancellier, segundo ela, perguntou se aquilo não seria um “problema de gestão” e, em seguida, lhe disse o seguinte: “Guarda essa pastinha”. Taisa entendeu que, com essa frase, o reitor estava querendo enterrar as investigações. A Polícia Federal, por sua vez, considerou a interpretação de Taisa como uma suspeita suficientemente clara de que Cancellier queria embolar a apuração. A defesa do reitor admite a conversa com Taisa, mas afirma que, ao dizer “guarda essa pastinha”, ele queria lhe pedir apenas cautela nas apurações e nas acusações. Ao reitor, nada foi perguntado sobre suas intenções, antes de ele ser preso.
O outro depoimento foi prestado pelo corregedor da UFSC, Rodolfo Hickel do Prado, um senhor calvo de olhos claros que nunca altera o tom de voz e fez fama de investigador obsessivo no câmpus da universidade. Em novembro do ano passado, o centro acadêmico da faculdade de engenharia postou no Facebook um texto que dizia que a universidade mantinha uma lógica desigual, punitiva para alunos e benevolente para professores. Hickel do Prado debruçou-se sobre a questão. Queria entender o que era aquela lógica desigual. Convocou nada menos do que uma centena de estudantes para depor. A apuração se encerrou sem nada concluir, mas ajudou a sublinhar sua fúria investigativa. Aos que lhe censuram o ímpeto de xerife, Hickel do Prado rebate com segurança pétrea: “Quem faz tudo certo não tem por que ter medo de nada”. (Na terça-feira 7, o corregedor pediu licença médica de dois meses da universidade.)
Em seu depoimento, Hickel do Prado fez cinco acusações ao reitor. Disse que ele lhe recomendou que instalasse uma sindicância, em vez de abrir um processo administrativo, e tentou subordiná-lo a uma secretaria ligada à reitoria. (A defesa do reitor confirma as duas providências, mas diz que eram uma tentativa de evitar os conhecidos excessos do corregedor, e não de sabotar a investigação.) Também afirmou que ele cortou sua remuneração numa “tentativa de constrangê-lo”. (A defesa do reitor afirma que houve uma ampla reforma na UFSC com cortes na remuneração de vários cargos comissionados, e não uma medida exclusiva contra o corregedor.) Ainda acusou o reitor de tê-lo chamado para uma conversa reservada na qual lhe pediu que não apurasse as suspeitas. (A defesa do reitor nega que a conversa tenha existido.) E, por fim, disse que ele lhe pediu para ter acesso formal às investigações depois de ter visitado a Capes, órgão federal que financia o sistema de pós-­graduação no Brasil, que havia acabado de cortar as verbas para o programa de educação a distância da UFSC. (A defesa do reitor confirma que ele pediu acesso às investigações exatamente para saber as razões que levaram a Capes a cortar as verbas.)
A polícia não ouviu as explicações do reitor, antes de pedir sua prisão. Ainda que os dois depoimentos se limitassem a acusá-lo de tentar obstruir as investigações, a polícia incluiu o nome do reitor em uma lista de doze pessoas suspeitas de terem tido “efetiva participação na implementação, controle e benefício do esquema criminoso”. Não há no inquérito nenhum indício ou acusação de que o reitor fosse membro do “esquema criminoso”, nem mesmo a descrição do que poderia vir a ser esse “esquema criminoso”. VEJA perguntou à Polícia Federal por que Cancellier foi apontado como integrante da quadrilha, mas a PF preferiu não responder.
No final do relatório, na página 123, estão as cinco razões para prender o reitor. O texto afirma que ele:
“Criou a Secretaria de Educação a Distância para estar acima do já existente Núcleo Universidade Aberta, vinculando-a diretamente à reitoria.” (O inquérito não traz nenhuma prova de que a criação da secretaria tenha relação com desvios de verba.)
“Nomeou no âmbito do EaD (educação a distância) os professores do grupo que mantiveram a política de desvios e direcionamento nos pagamentos das bolsas do EaD.” (O reitor, ao assumir o cargo, fez mais de cinquenta nomeações. No âmbito do EaD, fez apenas três, e outros três professores que já integravam o grupo antes mesmo de sua gestão foram mantidos.)
“Procurou obstaculizar as tentativas internas sobre as irregularidades na gestão de recursos do EaD.” (O inquérito, neste caso, baseia-se no depoimento da coordenadora Taisa Dias e do corregedor Hickel do Prado.)
“Pressionou para a saída da professora Taisa Dias do cargo de coordenadora do EaD do curso de administração.” (É uma afirmação gratuita. O inquérito não informa de onde saiu essa suspeita nem aponta nenhum elemento que lhe dê consistência.)
“Recebeu bolsa do EaD via Capes e via Fapeu.” (O inquérito também não informa de onde saiu essa suspeita, nem mesmo se existiu alguma irregularidade na concessão das bolsas.)
A juíza Janaína Cassol, da 1ª Vara Federal de Florianópolis, analisou o pedido da PF em 25 de agosto e concedeu as prisões. Sobre o reitor e os outros seis acusados, ela escreveu: “Essas pessoas podem efetivamente interferir na coleta das provas, combinar versões e, mais do que já fizeram, intimidar os docentes vitimados pelo grupo criminoso”. Em 12 de setembro, a juíza pediu licença por problemas de saúde e foi substituída por Marjorie Freiberger. Dois dias depois, em 14 de setembro, a polícia lançou a Operação Ouvidos Moucos e prendeu o reitor e os outros seis. No dia seguinte às prisões, a juíza Marjorie Freiberger, sem que houvesse recurso da defesa do reitor e dos outros seis, resolveu revogar a decisão de sua colega e suspendeu as prisões. Ao contrário da antecessora, a juíza Marjorie não conseguiu ver motivo para tê-los levado para a penitenciária. Escreveu ela: “No presente caso, a delegada da Polícia Federal (refere-se a Érika Marena) não apresentou fatos específicos dos quais se possa defluir a existência de ameaça à investigação e futuras inquirições”. Mandou libertar todo mundo. Até hoje, a advogada do reitor, Nívea Cademartori, não entende por que seu cliente foi preso sem que tivesse a chance de se explicar. “Bastaria que a PF intimasse o reitor para depor, o que seria imediatamente atendido. Há uma banalização das prisões temporárias no país.”
Em seus últimos dias, Cancellier chegou a dar sinais de que não abandonaria o ringue. Em artigo publicado no jornal O Globo em 28 de setembro, quatro dias antes do suicídio, saiu em defesa própria e dos demais professores presos: “A humilhação e o vexame a que fomos submetidos há uma semana não têm precedentes na história da instituição”. O reitor também tentou recorrer da proibição de pisar no câmpus. Alegou que, como orientava teses de mestrado e doutorado, não podia deixar os alunos à deriva. A resposta da Justiça veio no sábado 30 de setembro, dois dias antes do suicídio: Cancellier estava autorizado a entrar na UFSC por três horas em um único dia. A decisão o devastou. “Como pode?”, perguntava. “Se demorar um minuto a mais, serei preso?”
A humilhação a conta-gotas ajudou a reforçar o quadro de stress pós-traumático do reitor, como a psiquiatria define a reação descontrolada do cérebro diante de um evento que está além de sua capacidade de absorção. “É como se o sistema de defesa do organismo entrasse em pane”, compara o psiquiatra Marcelo Fleck, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Maria Oquendo, uma porto-riquenha baixinha que se tornou um gigante da psiquiatria americana e autoridade mundial em suicídio, diz que é dificílimo evitar a morte de vítimas desse tipo de stress. Elas nunca falam em suicídio, embora pensem no assunto constantemente. Um trauma como o que consumiu o reitor vira motivo de obsessão — mas, de acordo com as estatísticas, raramente conduz ao atentado à própria vida.
O reitor foi um dos raros casos. Na véspera de seu suicídio, sabe-se hoje, já estava tudo calculado. Ele recusou o convite dos irmãos para assistir a uma partida de futebol em que o clube de coração da família, o Hercílio Luz, tinha chance de voltar à elite catarinense. Preferiu sair com o filho Mikhail. Almoçaram, ele quis ver se estava tudo em ordem em sua casa, mas recusou-se a ficar para uma sessão de filmes na TV. “Preciso descansar”, despistou. Em vez de descansar, foi ao shopping em que morreria, assistiu a um filme e levou consigo a chave do apartamento, de modo a forçar seu irmão Acioli a dormir em outro lugar. Queria ficar sozinho na última noite. As cinzas de cigarro espalhadas pelo apartamento mostram que fumou ferozmente, quebrando a abstinência imposta pelo cardiologista. Escreveu quatro bilhetes. Um para o filho, outro para os irmãos, um terceiro para um amigo e o quarto carregou no próprio bolso. É o único cujo conteúdo é conhecido. “A minha morte foi decretada quando fui banido da universidade!!!”, diz o bilhete, com a ênfase dos três pontos de exclamação. No dos irmãos, referiu-se à imensidão do amor pelos dois, mas disse que a dor que o dilacerava era maior que tudo. Deixou bilhetes e documentos separados em uma pequena caixa no escritório de casa, encontrada por Mikhail. O filho disse: “O pai cumpriu a missão aqui”.
Até hoje, sabe-se apenas que o “esquema criminoso” durou principalmente de 2005 a 2015, quando Cancellier nem estava na reitoria. A Capes, que investigou o assunto, diz que o “esquema criminoso” era uma coleção de pequenas falcatruas de servidores escroques, sem a dimensão que se divulgou. O coordenador do programa do ensino a distância da Capes, Carlos Lenuzza, não revela detalhes da investigação, mas adianta: “Os valores dos desvios são muito distantes daquilo que se falou”. Até agora, um mês depois do suicídio do reitor, ninguém foi acusado formalmente de nada, e a polícia não chegou ao valor real que foi desviado. Ao ver a notícia do suicídio na TV, Zé, o garçom, desabou. Nem sabia que o amigo de toda a vida era reitor.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Biologia, Unicamp

Boa tarde!
O Instituto de Biologia recebe, no dia 21 de novembro de 2017, o Prof. Dr. Roberto Romano da Silva, professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).

A palestra A Ética da Autonomia Universitária faz parte das comemorações dos 50 Anos do IB.
O evento acontece no dia 21 de novembro, terça-feira, às 14h, na Sala da Congregação do Instituto de Biologia.
Não é necessário fazer inscrição.
Saiba mais!
21.11 A Ética da Autonomia Universitária

Site Comemorativo 50 Anos IB
Instituto de Biologia

A grande fogueira Documentos inéditos mostram como o aparato de censura do regime militar usou empresas privadas para queimar programas de tevê, filmes, discos e livros proibidos – de Silvio Santos a José de Alencar.


A grande fogueira

Documentos inéditos mostram como o aparato de censura do regime militar usou empresas privadas para queimar programas de tevê, filmes, discos e livros proibidos – de Silvio Santos a José de Alencar.

POR Mariana Filgueiras
Em uma manhã de 1977, a Polícia Federal incinerou 3 mil quilos de produtos culturais. A lista é variada: dos filmes Spartacus e Cleópatra a disco de Caetano Veloso e desenhos dos Flintstones
Em uma manhã de 1977, a Polícia Federal incinerou 3 mil quilos de produtos culturais. A lista é variada: dos filmes Spartacus e Cleópatra a disco de Caetano Veloso e desenhos dos Flintstones ILUSTRAÇÃO: JOÃO BRIZZI
No dia 25 de janeiro de 1977, uma comitiva de intelectuais liderada pela escritora Lygia Fagundes Telles desembarcou em Brasília para uma reunião com o ministro da Justiça do governo Ernesto Geisel. Naquela terça-feira, o grupo conseguiu pôr na mesa de Armando Falcão um abaixo-assinado contra a censura, uma peça que ficaria conhecida como “Manifesto dos Intelectuais”.
Com mais de mil signatários, entre eles Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado e Otto Maria Carpeaux, o documento era a maior manifestação pública da classe artística desde a Passeata dos Cem Mil, em 1968, e repudiava “a sequência de inexplicáveis arbítrios” que proibiam peças de teatro, filmes, músicas, programas de tevê e livros.
O manifesto foi encaminhado à Polícia Federal dois dias depois, pelo próprio ministro, com a recomendação de que o órgão responsável pela censura se manifestasse. Nunca houve resposta. Naquela mesma manhã, funcionários do governo dedicavam-se ao exato oposto da atividade de abrandar a repressão intelectual: eles queimavam toneladas de obras culturais em um forno construído no Aeroporto Internacional de Brasília, a 15 quilômetros do local da reunião.
A coincidência de eventos revelou-se numa tarde de outubro deste ano, quando o historiador Lucas Pedretti pesquisava para sua dissertação de mestrado sobre a repressão a bailes de soul music no Rio de Janeiro dos anos 70. Logado no sistema do Arquivo Nacional, ele se deparou com documentos produzidos pela própria PF que comprovam a prática promovida pelo regime: são dezoito autos de incineração registrados. Além do forno de Brasília, outro forno de uma das empresas do grupo Votorantim também foi usado para transformar filmes, livros e programas de tevê em cinzas.
“Às 10h do dia 27.01.77, foi cremado no incinerador do Aeroporto Internacional de Brasília aproximadamente 3 000 kg de filmes, VT, revistas, livros, fitas magnéticas e discos, conforme solicitação do Ministério da Justiça – Departamento de Polícia Federal”, indica um dos autos de incineração encontrados pelo historiador.
O documento traz a lista completa do que foi para a fogueira: 436 filmes, desde clássicos como Spartacus, de Stanley Kubrick (1960) e Cleópatra, de Robert Mamoulian (1963), a chanchadas e filmes B, como 007 1/2 no Carnaval, de Victor Lima (1966), com Chacrinha e Costinha no elenco, e O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968). Dos cinquenta videoteipes queimados naquele dia, constavam desde gravações de programas de Silvio Santos, Hebe Camargo e Flavio Cavalcanti, até shows completos de Elizeth Cardoso e Ray Charles. Havia ainda 450 exemplares de O Pasquim e 71 discos contendo música árabe.
A maioria dos livros incinerados tinha títulos eróticos e populares como Chinesinha Erótica (21 exemplares), Cidinha, a Incansável (32) e De Prostituta a Primeira Dama (16). Outras 204 peças eram volumes do livro O Último Tango em Paris, de Robert Alley, inspirado no filme de Bernardo Bertolucci, de 1972. No total, os 3 mil quilos de material compreendiam 2 854 itens.
“Os documentos são a comprovação cabal de que, além de proibir a publicação e a circulação de livros, a ditadura militar brasileira também os queimava usando fornos de aeroporto e de empresas privadas. Em alguns casos, ainda os transformava em pastas de papelão”, citou Pedretti, enquanto mostrava a documentação a uma de suas professoras, a historiadora Luciana Lombardo, especialista em estudos sobre a censura no Brasil, num café do Largo do Machado, no Rio de Janeiro. “Como os documentos disponíveis no Arquivo Nacional representam uma parcela ínfima do que foi efetivamente produzido, é provável que tenham sido muitos mais”, completou.

Pedretti debruçou-se sobre os documentos, produzidos à época com o respaldo da Lei da Censura, mais especificamente pelo artigo 5o inciso II (“A distribuição, venda ou exposição de livros e periódicos que tenham sido proibidos, após a verificação prevista neste decreto-lei, sujeita os infratores, independentemente da responsabilidade criminal, à perda de todos os exemplares da publicação, que serão incinerados a sua custa”). Os autos registrados na coleção encontrada pelo pesquisador foram cumpridos entre 1976 e 1988 no Distrito Federal, no Rio Grande do Sul, no Ceará e em São Paulo. Em comum, tinham a descrição detalhada dos itens destruídos e o fato de usarem também incineradores de empresas privadas.
Além do aeroporto, houve queimas de livros, revistas e filmes entre 1977 e 1979 na Companhia de Papel e Papelão Pedras Brancas, empresa hoje inativa que à época pertencia ao Grupo Votorantim e ficava no município de Guaíba, no Rio Grande do Sul; na empresa Brasil Oiticica S/A, em Fortaleza, em 1976 e 1977, também desativada; na Riopel S/A, em São José do Rio Preto, em 1987; e na empresa Aparas São Caetano, assinado em Porto Alegre em 1988. Nesta última, os autos registram ainda a queima de documentos antigos da censura (memorandos, ofícios de Justiça, correspondências e “laudos de exame de material obsceno”) e até de figurinos de Carnaval.
É outro dado que chama atenção: há autos de destruição que datam de fins de 1987 até 1988. Ao mesmo tempo que as discussões da Constituinte evoluíam, livros continuavam sendo queimados. Nesse caso, é possível imaginar que a Censura, sabendo que um regime democrático estava prestes a ser instalado, procedeu à destruição e queima de materiais apreendidos em seus galpões”, arrisca Pedretti, lembrando que esses lotes citados nos documentos eram resultados de apreensões feitas em distribuidoras, editoras e emissoras de tevê.
“A informação contrasta com as narrativas que tentam afirmar que a ditadura teria terminado em 1979, por exemplo. A Nova República nasceu sob o signo da queima de livros. Para uma democracia, é uma marca difícil de apagar. Pensando de forma mais ampla, isso mostra que o fim da nossa ditadura não inaugurou um processo de reformas institucionais, prestação de contas e transparência, pelo contrário: velhas práticas se reafirmaram, e no lugar de investigações e pedidos de perdão por parte do Estado, tivemos o silêncio”, analisa o historiador, que pretende levar a pesquisa adiante.

Os documentos apareceram enquanto Pedretti procurava o nome do apresentador de tevê dos anos 60 e 70 “Flavio Cavalcanti” no acervo digitalizado do Arquivo Nacional. Depois de trabalhar por três anos como estagiário da Comissão Estadual da Verdade do Rio – órgão criado no governo Dilma Rousseff para elucidar crimes ocorridos durante a ditadura, com atividades encerradas em 2015 –, ele continuou pesquisando atos de arbítrio do regime militar. Escolheu a repressão aos bailes de soul como tema para o mestrado e deparou-se com o nome de Cavalcanti, monitorado por militares desde 30 de agosto de 1970 – quando levou ao seu programa o cantor Tony Tornado, também fichado pelo regime.
“Tony havia sido levado ao Departamento de Ordem Política e Social por evocar os Panteras Negras no palco do Festival Internacional da Canção. Conhecendo essa história, pesquisei pelo nome do cantor e achei inúmeros documentos, inclusive relatórios do Centro de Informações do Exército e Centro de Informações da Aeronáutica (CISA) sobre uma ida dele ao programa do Flavio Cavalcanti. Incluindo um relatório que termina com a recomendação de censura a qualquer menção aos termos ‘raça’ e ‘racismo’. Ao aprofundar a pesquisa a partir do nome de Cavalcanti, um dos documentos que apareceu foi precisamente um ‘Termo de Incineração’, que informava a queima de videoteipes dos seus programas de tevê.”
A partir deste primeiro, em que anotou o termo “Auto de Incineração” e “Termo de Incineração”, Pedretti encontrou os outros documentos ao buscar palavras semelhantes no sistema de informações do Arquivo Nacional, onde estão abrigadas as coleções do fundo da Divisão de Censura de Diversões Públicas. Fisicamente, os autos estão guardados dentro de 12 caixas na sede do Arquivo, em Brasília.
Autora de uma tese de doutorado sobre livros apreendidos pela polícia política no Rio de Janeiro e professora de História da PUC-RJ, Lombardo ficou animada com os detalhes revelados na papelada. Como se desse uma aula informal numa das mesas do café, ela lembrou que as fogueiras de livros remontam principalmente à Inquisição e ao Nazismo – na noite de 10 de maio de 1933, integrantes do partido nazista queimaram 20 mil livros na praça conhecida como Bebelplatz, em Berlim, onde hoje há um memorial para recordar o episódio –, mas que também aconteceram nas ditaduras latino-americanas e na brasileira, com características particulares.
“Esses documentos são fascinantes e confirmam algo que a historiografia já discute há um certo tempo: a existência de uma prática sistemática de destruição de livros no período. O fato de a ditadura brasileira ter incinerado milhares de livros não faz parte de nossa memória coletiva sobre o período pós-64”, afirmou Lombardo, comparando: “No Chile, sabemos da existência de fogueiras públicas ao mesmo tempo que Pinochet alimentava com as apreensões de livros sua biblioteca privada. Na Argentina, um dos crimes pelos quais foi acusado o General (Jorge Rafael) Videla foi o de ‘genocídio cultural’, por ter queimado 80 mil livros da biblioteca de Rosário, em 1977. Mas aqui essas histórias ainda precisam ser mais conhecidas.”
Apesar de terem sido citados na historiografia brasileira, autos de incineração como os descobertos por Pedretti foram objeto de poucos estudos acadêmicos: a pesquisadora da USP Sandra Reimão cita documentos desse tipo em seu livro Repressão e Resistência: Censura a Livros na Ditadura Militar, de 2011; Douglas Marcelino, da UFRJ, também trata desses autos em sua dissertação de mestrado “Subversivos e pornográficos: censura de livros e diversões públicas nos anos 1970”, também de 2011; e Adriane Piovezan e Antonio Fontoura Jr. os citam no artigo “Corpos censurados: moralismo no período da ditadura civil-militar e a literatura de Cassandra Rios”, de 2013. Os trabalhos, no entanto, não enveredam pelos detalhes de cada sessão de incineração, como os usos de fornos de empresas e aeroportos para a queima, informação que pode ser crucial em novas investigações sobre as relações entre a ditadura militar e empresas privadas.

Nos autos de incineração cumpridos em 1976, a lista de livros queimados repetia o padrão: a maior parte dos títulos era de literatura erótica (Emanuelle, a Antivirgem, Maldição Erótica, Belas e Corrompidas, entre outros), mas havia ainda Lucíola, de José de Alencar; Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca; ou O Abajur Lilás, de Plínio Marcos. No dia 16 de junho de 1976, foram incinerados nos fornos da mesma Companhia de Papel e Papelão Pedras Brancas, em Guaíba, 36 capas do disco Jóia, de Caetano Veloso, em que ele aparecia nu com a mulher, Dedé, e o filho, Moreno Veloso.
“Havia uma verdadeira obsessão censória com o tema da sexualidade, como demonstrou Deonísio da Silva ainda nos anos 80, no livro Nos Bastidores da Censura. Um profundo moralismo e conservadorismo nos costumes levava a constantes denúncias na Divisão de Censura de Diversões Públicas, porque havia a crença de que a chamada literatura ‘obscena’ ameaçaria a ordem política e social tanto quanto a literatura ‘subversiva’”, avaliou Luciana. “Longe do cânone e mais próxima de uma literatura marginal, essa produção literária era sobretudo feminina e popular, peça importante para a compreensão da sociedade brasileira na época.”
A historiadora cita Robert Darnton, diretor da biblioteca de Harvard, que estudou o papel desse tipo de literatura no Ocidente, especialmente na França pré-revolucionária. “A literatura erótica é importante porque desafia os costumes da época, a moral religiosa e, no limite, os poderes instituídos. Darnton mergulha no que ele chama de ‘submundo das letras’ para mostrar como os livros proibidos publicados por autores e editores malditos eram mais conhecidos que iluministas como Rousseau ou Voltaire. Livros ‘pornográficos’, libelos políticos, obras contrárias à religião, biografias escandalosas e escritos utópicos circulavam de forma clandestina e se tornaram os livros mais vendidos da França no século XVIII”, explicou.
Procurado pela piauí, o Grupo Votorantim, que tem um centro de memória da empresa em São Paulo, alegou desconhecer o que se passava na fábrica de Guaíba, apesar de os documentos mostrarem que a prática se repetiu por três anos seguidos (1977, 1978 e 1979). Em nota oficial, o setor de Comunicação da empresa informou: “Nunca houve conhecimento por parte da direção da empresa desse fato relatado em relação à fábrica de Guaíba. A Votorantim lamenta profundamente essa postura da planta em Guaíba, pois ela contraria os seus valores. A companhia, inclusive, foi protagonista da primeira manifestação pública de empresários contra o regime militar, em 1978. Naquela ocasião, o Dr. Antônio Ermírio de Moraes foi o porta-voz do ‘Manifesto dos 8’ – documento assinado por oito empresários, entre eles Cláudio Bardella, José Mindlin, Paulo Villares, Jorge Gerdau e Severo Gomes, e que pedia a redemocratização do país.” Questionada, a empresa afirmou que vai incluir em seu centro de memória as informações sobre a queima de filmes e livros na antiga fábrica de papel do grupo.
A Infraero afirmou que não tem mais registros sobre a prática citada. Em relação aos incineradores, a empresa informou que de fato aeroportos antigos contavam com este tipo de equipamento para “tratamento de resíduos de risco biológico e químico”, mas que todos foram desativados “por não atenderem mais aos parâmetros evolutivos da legislação”.

Enquanto pedia mais um café, a historiadora Lombardo lembrou de uma frase do escritor argentino Julio Cortázar, ao comentar as fogueiras de livros da ditadura em seu país: “Ele dizia que quando se queimam livros, são queimados também todas as pessoas que cercam os livros, ‘os leitores desses livros e aqueles que os haviam escrito’. A prática arbitrária de destruição de livros não se limita a cercear a livre circulação de ideias, mas indica um desejo de destruir o outro, eliminar registros dissidentes”, detalhou a professora, fazendo um paralelo com as recentes manifestações contra exposições artísticas e nudez no país.
“O que esses documentos mostram é sobretudo a inutilidade da censura e da interdição moralista que costuma criar efeitos opostos aos desejados pelos censores: uma vez proibidas, as obras de arte e literárias se tornam ainda mais desejadas e encontram caminhos criativos para seguir circulando.” A historiadora relembra ainda a distopia descrita por Ray Bradbury no romance Fahrenheit 451, de 1953, adaptado para o cinema por François Truffaut em 1966, e que descreve uma sociedade na qual os livros eram completamente proscritos. Numa das cenas do filme – que não figura em nenhum dos autos de incineração encontrados no Arquivo Nacional –, uma personagem pergunta a um sujeito que tem por ofício incinerá-los: “É verdade que houve um tempo em que se apagavam incêndios em vez de queimarem livros?”

Spinoza sobre a vida e a morte. Roberto Romano

Por Roberto Romano
Ética de Spinoza insiste no elo entre vida, morte e relações sociais. Não percebemos sempre, mas o trato com os nossos semelhantes é garantia de vida, saúde, felicidade. Parece incrível numa ordem social capitalista constatar que a individualidade isolada segue rumo à morte. Só temos consciência de quem somos porque os outros nos alertam para nossa singularidade. Um coletivo sem abertura ao outro é quase um ajuntamento morto. 

O tema “vida” levanta questões filosóficas, éticas e políticas cuja resposta é quase impossível. A diferença entre vida e morte abre as portas para a reflexão sobre a eutanásia, o aborto, o Holocausto, o assassinato frio de pessoas acusadas sem prova, as guerras que assolam países e milhões de pessoas. Tais pontos são afastados das conversas e debates civis e políticos. Inquieta sobremodo a invisibilidade da morte, algo comum na sociedade moderna. Em vez de velar o cadáver na família, o post mortem ocorre em salas higiênicas, como se o falecido fosse apenas “garbage” a ser descartado. Igor Caruso, no pungente A separação dos amantes, mostra que, sem o luto, o morto passa a “viver” na alma do sobrevivente. Afastada toda manifestação ritual do sofrimento (ritos religiosos, civis, sociais) a morte não se completa. Do ponto de vista antropológico é como se os mortos tomassem nas mãos os entes que eles amavam (e por eles eram amados) e os levassem para o Nada.

Tudo, em nosso quotidiano, confirma o dito de Karl Marx no 18 Brumário: “A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”. Temo que a carência por nós sentida do acatamento aos direitos humanos reside no vazio entre vivos e mortos. Sem as cerimônias e a sensibilidade dos que ainda habitam o planeta, fantasmas encontram lugar na consciência humana invisível. A dor anônima não pranteada gera ressentimentos, tristeza, vingança. Ela produz a sociedade que, no pensamento de Spinoza, mais se assemelha a um hospício.

Ética de Spinoza insiste sobre o elo entre vida, morte, relações sociais. Não percebemos sempre, mas o trato com os nossos semelhantes é garantia de vida, saúde, felicidade. Parece incrível numa ordem social capitalista e sem impulso piedoso – piedade não é algo romântico e significa na era antiga o elo dos indivíduos com o coletivo – constatar que a individualidade isolada segue rumo à morte. Spinoza relembra o trato entre vida e morte entre humanos. No livro IV, 39, escólio nota ou comentário para servir ao entendimento dos autores clássicos da Ética demonstrada geometricamente, ele afirma que “o corpo humano precisa de um grande número de outros corpos para se conservar”. A forma do nosso corpo “consiste em que as suas partes se comunicam e seus movimentos seguem determinada relação que o conserva”. Os indivíduos são afetados e afetam de muitos modos. O movimento e o repouso permitem que assumam uma outra forma, o que pode causar sua destruição e os tornar inaptos para afetar e serem afetados, o que é letal. A vida consiste em estar o indivíduo em pleno movimento de expansão e conservação. Tal processo só pode ser experimentado em sociedade.

Quando um coletivo morre? O processo é similar ao ocorrido com o corpo dos que o compõem. Diz Spinoza: “O corpo humano, enquanto a circulação sanguínea continua, bem como as demais funções pelas quais consideramos que um corpo vive, pode mudar sua natureza para uma outra em tudo diferente”. Mudanças ocorrem sem o corpo se transformar em cadáver. Em referência quase certa a Góngora o poeta espanhol Luis de Góngora y Argote (1561-1627), lemos no mesmo passo da Ética que “às vezes um homem sofre mudanças tamanhas que hesitarei muito a dizer que ele é o mesmo”. Góngora perdeu a memória um ano antes de falecer. “Embora curado, esqueceu totalmente sua vida anterior e não acreditava serem suas as obras que havia composto. Poder-se-ia considerá-lo como uma criança adulta se tivesse esquecido também a língua materna. E se tal coisa parece incrível, que diremos das crianças? Um adulto acredita que a natureza infantil é diferente da sua, e não pode se persuadir de que um dia foi criança, se não conjeturasse sobre si mesmo a partir dos outros”.

A última frase é capital: só temos consciência do que somos e de quem somos porque os outros nos alertam para a nossa singularidade. Um coletivo sem abertura ao outro é ausência de vida, obscura inconsciência, quase um ajuntamento morto. A Substância (Deus ou Natureza) é infinita e possui infinitos modos. Cada modo reúne infinitas relações. No caso dos seres humanos, a quantidade de nexos por eles mantidos com a natureza e com os semelhantes os enriquece ou empobrece, depende dos afetos assumidos. “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” (Ética 3, Definição 3). Indivíduos que desejam o bem e o fazem aos demais alcançam poder maior do que os presos ao ódio e à tristeza, paixões que diminuem a potência de agir. Podemos dizer: os presos aos afetos negativos se aproximam do estado por nós conhecido como morte. Quem amplia seus nexos positivos com os outros se aproxima da vida.

É o que afirma a Ética no Livro IV, escólio da proposição 18: “Se dois indivíduos de natureza inteiramente igual se juntam, eles compõem um indivíduo duas vezes mais potente do que cada um deles considerado separadamente. Portanto, nada é mais útil ao homem do que o próprio homem. Quero com isso dizer que os homens não podem aspirar a nada que seja mais vantajoso para conservar o seu ser do que estarem, todos, em concordância em tudo, de maneira que as mentes e os corpos de todos componham como que uma só mente e um só corpo, e seu ser, e que busquem, juntos, o que é de utilidade comum para todos”.

A doutrina, embora ligeiramente modificada, já tinha sido exposta por Spinoza nos Pensamentos metafísicos, capítulo VI: “Entendemos como vida a força que faz perseverar as coisas em seu ser; e como tal força é distinta dos próprios seres, dizemos justamente que os seres mesmos têm vida. Mas a força pela qual Deus persevera em seu ser nada mais é que sua essência; falam bem, pois, os que dizem que Deus é a vida.”.

A vida, portanto, evidencia a essência divina, ou a natureza. Tudo o que os homens fazem para conservar a força vital, sua e de seus iguais, é positivo. Tudo o que os impede de liberar tal poder é negativo. Assim, segundo a Ética, V, proposição 10, escólio, “o melhor que podemos fazer, enquanto não tivermos um conhecimento perfeito de nossos afetos, é idear um método correto de vida, ou seja, princípios seguros, e gravá-los na memória e sempre os aplicar às coisas particulares que se encontram facilmente na vida, de modo que a nossa imaginação seja por eles amplamente afetada e que eles estejam sempre a nossa disposição. (…) Se lembramos a razão de nosso verdadeiro interesse e do bem advindo de uma amizade mútua e de uma sociedade comum, se recordamos que a suprema satisfação da alma nasce do correto método de viver (…) e que os homens, como as demais coisas, agem por necessidade de natureza, a ofensa, ou seja, o ódio que dela brota ordinariamente, ocupará pouco a imaginação e será facilmente superada”. 

Vivemos no século XXI uma crise inédita no relacionamento dos indivíduos consigo mesmos e com os outros. Das situações mais comuns às guerras que abalam o planeta, os afetos negativos parecem vencer os positivos. As potências estatais hegemônicas retornam ao uso irrestrito da violência, tal como ocorreu no episódio narrado por Tucídides na Guerra do Peloponeso, sobre o cerco à ilha de Melos.

A colônia de Esparta queria ser neutra na luta entre potências. Empurrada pelos atenienses, entra na guerra. No texto, os embaixadores de Atenas dão o ultimato: Melos deve render-se e servir Atenas.  “Não usaremos belas frases, não diremos que nosso domínio é justo (…) sabemos e vocês sabem tanto quanto nós que a justiça só é levada em conta quando a necessidade é igual. Sempre que uns possuem mais força e podem usá-la como puderem, os mais fracos arrumam-se (…) como podem”. Hobbes, em sua tradução de Tucídides, é mais radical: a necessidade exprime o estado de natureza onde todos se enfrentam. Os mais fortes usam sua vantagem momentânea de poderio. Aos mais fracos resta atingir aquele estado de império. É de semelhante trecho, na obra de Tucídides, que brota o hobbesiano bellum omnium contra omnes.

Spinoza rompe com a razão de Estado e com a doutrina sobre o estado de natureza defendida por Hobbes. É célebre o trecho da carta enviada por ele a Jarig Jelles: “O senhor me pergunta qual a diferença entre o pensamento de Hobbes e o meu, no relativo à política: ela consiste em que sempre mantenho o direito natural e só concedo, em qualquer cidade, direito ao soberano sobre os cidadãos na medida em que, pela potência, ele os sobrepuje; é a continuação do estado de natureza” (2 de junho de 1674). A natureza é um campo em que o “peixe grande tem o direito de comer o pequeno”. Mas se os peixes pequenos se unem, formam um indivíduo poderoso diante do qual todo peixe grande sente-se ameaçado. Segundo o Tratado Político, “se dois homens se encontram e unem suas forças, eles têm um poder maior sobre a natureza, e por conseguinte maior direito, do que cada um deles em separado” (cap. II, parágrafo 13). A democracia, união de muitos, é dita por Spinoza como o “regime mais natural”. Ela não dispensa a força, mas exige, para se realizar plenamente, a ciência e a razão. Tais atividades trazem vida aos humanos. Mas se distorcidas pelas paixões, prometem morte, loucura.

Talvez mais do que na Guerra Fria, o planeta Terra está ameaçado de morte: armas nucleares nas mãos de meros demagogos (Trump ou Putin), terrorismo de Estado e de movimentos fanáticos, devastação do meio ambiente, usura dos seres humanos pelo chamado neoliberalismo. Como diz em livro recente um pesquisador do totalitarismo, “a vida é sempre unida à morte, mas hoje é a morte que engloba a vida (destruição da biodiversidade natural e cultural, aumento das poluições nucleares, químicas etc.). Acabo de citar Marc Weinstein, L’évolution totalitaire de l’Occident, 2015.

Talvez seja o momento de recordar os enunciados de L. Wittgenstein sobre o místico e a vida: “O místico não está em como é o mundo, mas no que é. A solução do problema da vida se entrevê no desvanecer-se desse problema. Existe verdadeiramente o inexprimível. Ele se mostra; é o místico. Minhas proposições são explicativas desta maneira: quem me compreende, afinal as reconhece desprovidas de significado, quando subiu através delas, sobre elas, para além delas. (Deve, por assim dizer, jogar fora a escada depois de ter subido por ela). Deve passar acima dessas proposições: então verá o mundo do modo certo”. (Citado por Umberto Eco: Obra aberta).

O amor intelectual de Deus, em Spinoza, leva ao conhecimento maior. Nele, os humanos efetuam sua essência divina, a de agir. “Mais uma coisa é perfeita, mais ela age e menos é passiva; inversamente, mais ela age, mais é perfeita” (Ética, 5, proposição 40). Nosso mundo resulta de infindáveis atos, positivos ou negativos. Um elemento negativo reside no culto do sofrimento e da morte. Afinal, “um homem livre pensa o menos possível na morte. Sua sabedoria consiste em meditar, não na morte, mas na vida”. Baseado em que tal frase se sustenta? Numa certeza que poderia ser dita mística: “Sentimos e experimentamos que somos eternos”. Sejamos claros: se a Substância é infinita e reúne infinitos modos, destruída a Terra, Deus nada perde. Nós tudo perdemos. É assim que devemos encarar a corrosão letífera do nosso mundo. Mas, por outro lado, agir para conservar sua força e beleza é um jeito de afirmar o poder divino em nós. A liberdade que não significa arbítrio nem capricho nos faz valorizar o tempo e o espaço nos quais nos movemos e somos. Cada átimo revela o Eterno e, assim, percebemos o valor da vida e da finitude. Para tal feito, devemos valorizar a ciência e a prudência (aprendida por Spinoza de Maquiavel). Afinal, se a salvação “pudesse ser encontrada sem maior esforço, como explicar que ela seja negligenciada por quase todos? Mas tudo o que é precioso é tão difícil como raro”. Omnia praeclara tam difficilia quam rara sunt. É assim que o filósofo finaliza a sua estratégica e ainda hoje negligenciada ética da vida, contra os afetos de morte.

Roberto Romano é doutor em filosofia e professor de ética política no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

Artigo extraído do site da Revista Eletrônica de Jornalismo Científico 'Com Ciência'