Um Blog destinado a discutir assuntos de ordem institucional, política, ética, longe do inferno definido nas supostas redes sociais, onde a covardia, a irresponsabilidade, o ressentimento e todas as paixões baixas se manifestam. Aqui, procuro pensar, sem ferir ou humilhar ninguém. Na internet, sobretudo nas mentirosas páginas "sociais", encontramos a besta fera descrita por Platão (Rep.. 588c): θηρίου ποικίλου καὶ πολυκεφάλου. Lúcido Platão!
O Caldeirão de Medéia" reúne
ensaios e escritos publicados
em periódicos e revistas por
Roberto Romano nos últimos
anos. Embora não tenha sido concebido
para dar ao leitor uma síntese das preocupações filosóficas e políticas do autor,
o livro acaba fornecendo um painel amplo do percurso desse escritor que, desde
seu primeiro livro -dedicado a estudar
as relações entre a igreja e o Estado no
Brasil-, sempre procurou entrelaçar
questões de atualidade com estudos de
problemas fundamentais da tradição filosófica.
Estudioso da filosofia moderna, Roberto Romano oferece uma visão renovada de alguns debates clássicos sobre o
período em vários dos capítulos do livro.
Num deles, dedicado ao problema da
guerra em Hegel, percorre a tradição crítica de Meinecke a Cláudio Cesa, passando por Franz Rosenzweig e Jacques
d'Hondt de maneira a fazer do recurso à
tradição uma ferramenta para expor sua
própria interpretação. Nesse caminho,
sobressaem duas marcas constantes de
seu pensamento. Em primeiro lugar, o
uso da tradição interpretativa de maneira rigorosa e aberta.
Multiplicando as referências e abandonando por vezes o
campo original do problema por meio
da citação de outros pensadores das mais
variadas épocas, o autor aumenta em
muito o âmbito no qual a questão parecia estar circunscrita. Procedendo dessa
forma, no capítulo mencionado, ele não
se furta a chamar de hagiografia a obra
de Jacques d'Hondt e a apontar o viés
conservador do trabalho de Meinecke.
Ao concluir seu ensaio, entretanto, Romano, que havia mostrado a
vertente belicista e autoritária do pensamento hegeliano ou pelo menos a
possibilidade de
entender o filósofo alemão dessa maneira, adverte ao leitor brasileiro,
que poderia se embevecer com uma crítica fácil do
pensador alemão, de que "deveríamos,
em vez de apontar autoritarismo no filósofo, discutir a nossa
"realidade" miserável". O tom forte, por vezes polêmico, de
suas interpelações de nossa "realidade" é
a segunda marca de seus escritos.
Embora os autores modernos sejam os
que mereçam maior atenção, mesmo
nos capítulos dedicados a Diderot, Voltaire ou Hobbes proliferam as referências aos pensadores gregos e medievais
assim como aos autores contemporâneos. Ao analisar o problema da sátira na
obra de Voltaire, Romano conduz seu
leitor por um universo habitado ao mesmo tempo por Platão, Luciano e Espinosa, para apoiar uma das teses que lhe são
caras e que liga o riso e a sátira à possibilidade de realizar com êxito a crítica das
mentes adormecidas pelas mais variadas
formas de obscurantismo.
Buscando um Descartes diferente do
sisudo pai da racionalidade contemporânea, ironizando os que aceitam a
pecha
de mero divulgador atribuída a Diderot
ou mostrando o quanto Voltaire contribuiu para solidificar o caráter
libertador do Iluminismo, ele afirma, dirigindo-se mais uma vez ao
público brasileiro: "Urge purificar a fé pública e imprimir os
iluministas franceses. Antes de
escurecer os cérebros dos estudantes
com o o lero-lero irracionalista, ponha-se diante de seus olhos a
saudável irreverência das Luzes, a razão satírica que atenua a loucura
séria do fanatismo".
Especialista em filosofia francesa do século 18, Romano mobiliza
seus pensadores para tomar posição nos debates
contemporâneos. Já no
primeiro capítulo ele discute a relação entre a produção das ciências -e
sua incorporação pelo Estado- e a educação do povo. Deixando
de lado as idéias dos que querem isolar as
camadas populares do processo de desenvolvimento da esfera técnica e científica, ele mostra que essa é uma discussão
essencialmente política.
A simples recusa de tratar da educação das massas como uma questão relevante para a vida
pública traz, segundo ele, graves consequências para a afirmação da soberania
popular.
Na mesma via se inscreve a crítica repetida que o
autor faz do que chama de
pensamento conservador,
identificado como o daqueles que têm "medo de
que a população estrague
a festa do poder, destruindo a segurança, a propriedade, os vínculos da tradição, as inovações técnicas que
só beneficiam alguns".
Pode-se discordar de algumas teses de
Romano. O retrato do Brasil, esboçado
em alguns capítulos, parece por demais
pessimista assim como a aproximação
entre realismo e reacionarismo, sugerida
no final do capítulo sobre o "sublime e o
prosaico", talvez seja excessiva. Seja como for, o leitor encontrará sempre a sustentar as posições explicitadas um rico
conjunto de argumentos, que constituem um convite aberto para um debate
de idéias fundado na liberdade e na razão, que são o ponto de partida e o eixo
do processo de investigação do autor.
O Caldeirão de Medéia
440 págs., R$ 35,00
de Roberto Romano. Editora
Perspectiva.
Newton Bignotto é professor de filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais e autor de "Origens do Republicanismo Moderno" (ed. UFMG).
Somos uma base de inteligência confiável que
reúne informações e propõe questionamentos para você decidir os seus
próprios caminhos. Somos um lugar seguro em meio a incertezas.
Para Romano, a segurança econômica, “da qual fala a propaganda oficial” é uma das faces da apatia brasileira
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Em entrevista ao Instituto Millenium, o professor de Filosofia Política e Ética da Unicamp, Roberto Romano,
pôde falar sobre ética, corrupção, apatia e do papel do Judiciário na
transformação da realidade política brasileira recorrendo às bases
históricas para analisar origens como a da complacência brasileira.
Para o professor, persistem no Brasil resquícios do absolutismo que
se materializam na aceitação de políticos que roubam, mas fazem. “Esta
complacência, ou cumplicidade das massas, é algo preparado com muita
técnica e ardilosidade, e tem como datas principais as mesmas que
indicam o nascimento do Estado absoluto”, afirma completando sobre as
populações: “elas aprendem uma ética contrária à república e à
democracia.”
De acordo com o professor, o Judiciário está inserido na estrutura do
Estado brasileiro, e mesmo que boa parte de seus integrantes queira
exercer a missão de julgar de acordo com os padrões republicanos e
democráticos, a instituição repete a mesma problemática de outros
setores, e com agravantes. “O debate nacional ao redor do CNJ, as
tentativas de enfraquecer o trabalho da Corregedoria daquela instituição
que deveria controlar a prática dos juízes, tudo mostra que dos três
poderes o judiciário é o mais arredio aos elementos democráticos da
transparência e da accountability”, afirma.
Apesar do quadro crítico, com o agravamento do fato de a corrupção
só enfraquecer o Estado de Direito, Romano vê vontade de transformação
nos brasileiros que lutam pela aprovação da Lei da Ficha Limpa.
O especialista do Imil também relembra o trauma gerado por anos de
inflação, defendendo a importância da estabilidade da moeda para trazer a
racionalidade à democracia do país: “ Um povo que viveu sob a inflação e
foi humilhado ao máximo por ela, se dispõe à entrega total a um líder
populista.”
Ética e educação
Instituto Millenium – Existe uma crise ética em todo o mundo, qual é a especificidade do quadro brasileiro?
Roberto Romano – Sempre existiu e sempre existirá
crise ética no mundo. A ética resulta do equilíbrio instável entre os
comportamentos (reforçados pelos valores estabelecidos) e as novas
formas de agir e pensar. Ela, portanto, supõe a crise, cujo significado
original vem do grego krisis, “instante de passagem, de escolha, de
prova, decisão”. A cada átimo os nossos hábitos sofrem o teste maior:
eles preservam a nossa vida e a existência da sociedade que nos acolhe?
Formas tradicionais de comportamento, caso não permitam responder
positivamente a tal pergunta, inevitavelmente perdem vigência em médio
ou longo prazo.
Importa recordar o significado original do termo “ética”. Na
semântica histórica o termo ressalta o sentido de “postura” (hexis).
Como a sociedade grega era guerreira, os jovens deviam aprender as
posições corretas para a corrida, o uso das lanças etc. Tal aprendizado
se fazia nas disputas, sob orientação de instrutores ou no próprio campo
de batalha (Platão diz que os meninos deveriam sentir o cheiro do
sangue, nas guerras). Era vital correr certo, pois o uso inadequado dos
pés, das pernas, de todo o corpo, faria o exército perder tempo, podendo
ser vencido. Ora, quem aprende a andar errado, repete o erro
automaticamente. Idêntico automatismo ocorre quando se adquire a posição
correta. Hexis, assim, é algo vital para a sociedade grega, sendo por
semelhante motivo valorizada a sua prática certa. O automatismo traz o
problema. Quando alguém anda ou corre erradamente, com muita dificuldade
poderá corrigir o erro que, de tanto ser repetido, torna-se
inconsciente. É preciso aprender o certo desde a mais tenra infância,
daí o fato de a ética ser ligada diretamente à educação. Com o tempo,
por metáfora, a postura passou a ser empregada para a atividade da
mente. Assim como se aprende um bom gesto físico, também se aprende um
bom raciocínio. Ou, em caso oposto, uma péssima postura na forma de
pensamento. Também aqui é estratégico que a criança aprenda a boa
postura desde a mais tenra idade, caso contrário ela aprenderá formas
erradas de imaginar, calcular, agir diante dos valores imateriais.
O problema é que a sociedade grega, apesar de sua elevação
filosófica, artística, científica, assumiu o automatismo de sua cultura,
a que dizia aos cidadãos da polis que eles eram os únicos dignos de
ostentar o título de homens, seres plenamente racionais e valorosos.
Assim nasceu o mito da autoctonia e da supremacia grega sobre os
orientais e os ocidentais do Norte europeu. Aristóteles, na “Política”,
diz que os homens do Oriente têm inteligência aguda, mas são covardes.
Os europeus do Norte são bravos, mas pouco brilhantes no pensamento. Os
gregos, bem, eles reuniriam a coragem à mente lúcida. E seriam,
propriamente, homens. Os demais povos, os bárbaros (palavra produzida
com uma onomatopéia, que imita sarcasticamente os estrangeiros
ignorantes da língua grega, sendo portanto alheios ao Logos, à razão)
tinham como destino ser dominados pelos helênicos.
Surge aí um automatismo que persegue a ética ocidental até hoje,
impedindo sua plena cooperação com outras éticas. Tal postura pode ser
grosseiramente racista, mas pode ser traduzida em pensamentos
etnocêntricos, embora refinados intelectualmente. É o caso do brilhante
historiador da cultura guerreira grega, Victor Davis Hanson em livros
como “Porque o Ocidente venceu?”. Mas a superioridade auto-atribuída
pelos ocidentais não vai além da imagem idealizada. Na realidade, mesmo a
Grécia entra no movimento geral das éticas mediterrâneas. Ela muito
aprendeu com o Egito e demais impérios do Oriente Médio e do
Mediterrâneo.
Mais adiante, a partir do século XIV (era cristã) a ética européia
foi se transformando, a cada século mais rapidamente, no trato com as do
Oriente Médio, da África, das Américas, do Extremo Oriente. O mesmo
ocorre com as últimas diante da européia. No século XX as trocas entre
as éticas regionais do planeta se tornaram a cada passo mais aceleradas,
devido, sobretudo, às tecnologias da comunicação. Do telégrafo à
Internet, o comércio espiritual entre as éticas se complexificou,
tornando-se sempre mais amplo, emaranhado, contraditório. Os movimentos
retrógrados, que insistem em conservar valores e hábitos inadequados à
nova configuração do planeta, tendem a se definir como quistos que
apenas preparam o isolamento de seus praticantes, ou seja, elas trazem a
morte próxima ou lenta de sua cultura, formas políticas, econômicas,
religiosas, estéticas e tecnológicas.
Sigo o pensamento do etnólogo André Leroi-Gourhan. Para ele, a
cultura técnica – base da ordem ética – para se reproduzir, exige das
sociedades duas forças aparentemente contrárias: a primeira é a
capacidade de inventar instrumentos, valores, hábitos; a segunda reside
na aptidão para emprestar de outras sociedades instrumentos, valores,
hábitos. Quem não consegue emprestar é incapaz de inventar e vice-versa.
É o que vemos no planeta, sobretudo após o século XVI. Os europeus
emprestaram da China, da Índia, do Japão ciências e técnicas em todos os
domínios da vida. E inventaram, a partir daí, novas técnicas, ciências,
hábitos. No campo estético tomemos, no século XVIII, no rococó, a
quantidade de formas e traços conhecidos como “chinoiserie”, ou seja,
empréstimos do Japão e da China, nas artes plásticas. No século XX,
temos o movimento amplo chamado Art Nouveau. Ele é uma síntese de
elementos orientais e do Ocidente.
O mesmo pode ser dito de toda a cultura e da ética. Gourhan mostra,
após muitas pesquisas sobre a origem e a vigência da tecnologia desde os
nossos alvores como humanidade, que nosso corpo é produto de nossa
técnica, que desde o princípio vivemos em tecnosfera.
Moldamos nosso corpo inteiro, dos pés à caixa craniana, o que
possibilitou as técnicas de manipulação e a linguagem. Mas o principal é
que o nosso corpo, base da ética, se prolonga no universo dos objetos
técnicos que produzimos, mas não criamos. É bom recordar a diferença
entre “criação” e “produção”. No pensamento judaico-cristão, existe a
idéia de um ser onipotente que gera a natureza do nada. No pensamento
grego, a natureza já está ao dispor dos deuses, que a controlam, e dos
homens que imitam os deuses, ou desafiam os deuses como Prometeu. Assim,
nesta forma de raciocinar, não existe criação, mas produção a partir e,
não raro, contra a natureza que deve ser submetida pelos nossos atos
técnicos. Se não existe criação absoluta, também não existe autoctonia
técnica plena. Cada sociedade inventa sua técnica (e nela, a sua ética)
emprestando traços de outras sociedades. Só é capaz de inventar, retomo,
quem se tornou competente para emprestar.
“Uma cultura presa em si mesma, sem choques com outras, nada acrescenta,
nada inventa no seu trato com a natureza e consigo mesma”.
Ou seja, a técnica é um movimento perene de Krisis, de decisão,
escolha, teste. O mesmo para a ética. Uma cultura presa em si mesma, sem
choques com outras, nada acrescenta, nada inventa no seu trato com a
natureza e consigo mesma. Daí, o fato de que a crise, longe de ser algo
nocivo, é essencial para a sobrevivência correta, a expansão e o
desenvolvimento da técnica e da ética. Outra noção de Krisis dá bem a
medida da coisa: para os médicos dos tratados hipocráticos (outra fonte
rica das elaborações éticas do Ocidente), a crise da doença é o momento
em que ainda não foi vencida a moléstia (a morte pode vir) e já surgem
sinais de recuperação da saúde. A crise, portanto, pode seguir para a
morte ou para a vida. Tudo depende da perícia técnica do médico, da
cooperação do adoecido, das forças que se chocam no seu corpo. Ocorre
com a crise o mesmo que se passa no plano do remédio. Os médicos gregos
nomeiam como Pharmakon os medicamentos, que podem ser remédios ou
venenos, muitas vezes dependendo da dose, do saber técnico no seu
emprego, do corpo adoecido. Assim também na ética: ficar muito tempo na
indecisão sem usar medidas técnicas para sair da crise, significa
aceitar o desaparecimento. Mas não se deve ser precipitado, pois
apressar o fim da crise antes do tempo pode ser desastroso. Esta é a
lição política ensinada pelos médicos aos teóricos da política, de
Aristóteles até Maquiavel. Trata-se da noção do Kayrós, o tempo
oportuno. Quem deseja solucionar uma crise ética ou política deve saber
qual o instante certo para decidir as coisas. Um minuto antes, um minuto
depois, pode ser a ruína de uma sociedade ou Estado. O comércio
praticado entre as éticas, desde a era antiga até a moderna, supõe a
noção de crise, de tempo oportuno, de empréstimo e invenção. Falar em
“choques” ou “guerra” de culturas e de éticas significa tomar as coisas
pela rama, ignorar o principal, a perene crise de todas as formas
culturais, aceleradas na modernidade.
O Brasil… bem, o Brasil é o amálgama de uma ética absolutista
europeia com elementos dinâmicos da modernidade. Nossa ética se
enquistou no absolutismo que ignora e mesmo combate a democracia real
(pensemos no privilégio de foro, excrescência do século XVII em pleno
século XXI brasileiro), no menosprezo pelas técnicas de ponta, na
desconfiança diante das conquista políticas mundiais, bastando ver o
ódio votado aqui à liberdade de imprensa, no veto à existência de uma
oposição efetiva, no conúbio entre o público e o privado. Emprestamos
apenas alguns elementos do processo de mundializacão técnica e ética.
Somos ainda incapazes de inventar novas éticas, o que não nos assegura
um futuro invejável, apesar de todas as nossas potencialidades e
riquezas. Se continuarmos ignorando a geração técnica, se não
investirmos em inovação em nossas indústrias e direção de empresas, se
persistirmos em viver sob uma forma de governo anacrônica (o absolutismo
dos operadores do Estado, que se julgam e agem como se não devessem
prestar contas a ninguém, sobretudo ao “cidadão comum”), setores vitais
de nossa sociedade e de nossa ética serão ainda mais fossilizados, no
mesmo passo em que outras sociedades agilizam e aproveitam com sentido
certo de tempo oportuno as suas crises, assumem novos rumos, inventam
novos valores e geram novos horizontes.
Estado e corrupção
Imil – Os constantes casos de corrupção no país são fruto de
falhas institucionais? É possível corrigir essas falhas aprimorando as
instituições?
Romano – São fruto de nossa ética, na qual a postura
de governados e governantes permite a diferença entre “ser do poder”e
“ser gente comum”. Tal resquício do absolutismo torna possível uma
classe especial de seres, os poderosos, que tudo fazem em detrimento dos
cofres públicos e em favor de seus bolsos. Vivemos até data recente com
a admiração popular diante de personagens que, se dizia, “roubam, mas
fazem”. Esta complacência, ou cumplicidade das massas, é algo preparado
com muita técnica e ardilosidade, e tem como datas principais as mesmas
que indicam o nascimento do Estado absoluto.
“Os impostos, a polícia, as guerras, a administração,
tudo é razão e segredo de Estado no absolutismo”.
Neste último, as fontes públicas de recurso se concentram nas mãos
dos governantes, que as direcionam no interesse do governo, sem ouvir os
que pagam impostos. Estes, por sua vez, não têm direitos a reclamar nas
políticas públicas.
Mesmo porque a essência do poder absolutista reside na razão de
Estado que é co-natural ao segredo de Estado. Os impostos, a polícia, as
guerras, a administração, tudo é razão e segredo de Estado no
absolutismo. Certa feita o rei francês pediu um aumento de imposto à
Assembléia dos Estados (nobreza, clero, terceiro estado). Sua desculpa
era a guerra. Os representantes do terceiro estado pediram para
inspecionar as contas reais. O clero, setor mais influente na época, em
seu voto disse que as finanças do rei eram como o Santíssimo Sacramento
no cofre sagrado. Apenas os que tinham poder divino poderiam saber o que
nelas se escondia… Segredo e razão de Estado são sinônimos, em todos os
sentidos. E o governante absolutista distribuía privilégios para se
manter no comando do Estado. Dentre os privilégios, contemos os recursos
financeiros, as terras etc. O clero e os nobres eram os mais agraciados
com tais privilégios, pagos à custa dos contribuintes. Rei, clero,
nobres, nenhum deles julgava ter de prestar contas de seus atos e dos
dinheiros. Ora, quando as revoluções modernas, republicanas e
democráticas, já tinham sido efetivadas (a inglesa ainda no século XVII,
a norte-americana e a francesa no XVIII), no Brasil do século XIX se
reitera o absolutismo sob comando do príncipe Dom João, mantendo-se os
fundamentos do privilégio, do segredo, da irresponsabilidade no manejo
dos recursos públicos.
Aliás, fugido de Napoleão, que bem ou mal representava um avanço
democrático quando comparado ao Antigo Regime absolutista, Dom João fez
do Brasil um país refratário às “doutrinas infernais” da república, da
democracia etc. Foi assim que o Príncipe fez o Banco do Brasil, que
imprimiu papéis sem lastro e foi obrigado a fechar. O governante viu
apenas as suas necessidades, sem cuidar nem um pouco da accountability.
A justificativa do Poder Moderador, na Carta de 1824, encontra-se
nesta ressurreição, nos trópicos, do absolutismo. Com o Império,
concentraram-se na Corte os impostos, que os distribuía pelas províncias
e municípios conforme a sua obediência aos ditames do poder imperial.
Assim, cidades ficaram séculos sem serviços públicos elementares. É
quando os poderosos regionais se unem em oligarquias para arrancar meios
do poder central, oferecendo como troca o controle das populações e
apoio aos projetos do governo. Algo mais grave ocorre ainda no plano
ético. Como as cidades são desprovidas de recursos, os fazendeiros
(candidatos a oligarcas) que têm lugar nas Câmaras de Vereadores e na
Prefeituras, emprestam o seu próprio dinheiro (além da mão de obra
escrava que lhes pertencia e dos materiais, comprados no Rio ou São
Paulo) aos cofres municipais para obras públicas. O fato surge aos olhos
dos cidadãos como um favor prestado à coletividade. Mas breve surge a
contrapartida.
“Importa sublinhar que a passagem do ‘favor’ ao uso do dinheiro público, ocorre com aprovação
ou mesmo cumplicidade dos governados. Tal é a origem do ‘é dando que se recebe’ e do ‘rouba, mas faz’”
A professora Maria Sylvia Carvalho Franco mostra que, tempos após a
instauração de tal prática, os vereadores e prefeitos imaginaram o
processo como rua de mão dupla: “se quando o município precisa, eu
empresto, quando eu preciso…”. Temos aí o uso de confundir o dinheiro
público com o privado, usando o primeiro para ascender socialmente,
comprar postos de mando, alianças políticas, etc. Em “Homens Livres na
Ordem Escravocrata”, todo o sistema é exposto com detalhes e provas.
Importa sublinhar que a passagem do “favor” ao uso do dinheiro público,
ocorre com aprovação ou mesmo cumplicidade dos governados. Tal é a
origem do “‘é dando que se recebe” e do “rouba, mas faz”.
Mantida a concentração do poder no palácio presidencial, em
detrimento dos Estados e municípios, mantido o sistema concentrador de
impostos no poder “federal”, as populações não têm outra escolha senão
votar nos poderosos regionais, os oligarcas, que trazem obras para as
cidades. Ou seja, elas aprendem uma ética contrária à república e à
democracia. Nem os proprietários do poder central, nem os oligarcas,
imaginam ter obrigação de prestar contas de recursos aos contribuintes.
Mas exigem cada vez mais impostos para prestar “serviços” ineficientes
na saúde, educação, segurança, cultura, ciência e técnica. Eles julgam
ter direito a colocar no bolso próprio, ou de seu partido, parte do
butim, para manter os “favores”, ou seja, a realização de obras públicas
nas urbes.
E agora vem a pior parte: desafio qualquer pessoa a lançar um
candidato ético, respeitador dos dinheiros públicos, em qualquer eleição
brasileira. Se ele provar que trará, ou trouxe, obras públicas para os
eleitores, será eleito tantas vezes quanto possível o que trouxer obras
públicas. Caso contrário, receberá parcos votos.
O eleitor que, diante dos jornais, rádio ou TV diz ter nojo da
corrupção política, não sabe ou não quer saber o que os políticos
“eficientes”devem fazer, no Congresso, para conseguir os recursos. O
mínimo é praticar o “é dando, que se recebe, o toma lá dá cá”. Ou seja, a
corrupção é tridimensional: existe o corruptor de obras públicas, o
corrompido dos poderes, o eleitor… Sem uma efetiva democratização que
obrigue os gestores a prestar contas, sem uma abolição dos privilégios
(em especial o de foro), sem uma federalização que permita maior
autonomia (sobretudo financeira) aos Estados e Municípios, a fábrica da
corrupção ética e financeira estará funcionando em pleno vapor. Tenho
alguns escritos sobre o problema. Em especial, gostaria de indicar um
texto meu saído na Revista de Economia Mackenzie, cujo título é
“Impostos e Razão de Estado”.
Imil – Qual é o papel do Judiciário na mudança desse quadro?
Romano – O Judiciário está inserido na estrutura do
Estado brasileiro, ou seja, mesmo que boa parte de seus integrantes
queira exercer a missão de julgar de acordo com os padrões republicanos e
democráticos, a instituição é homóloga à dos outros setores, com
agravantes. O Executivo e o Legislativo seguem regras de transparência e
são submetidos à opinião pública, à imprensa, ao voto. Quando perdem
seus cargos, perdem a remuneração e, quando seus processos judiciais não
recebem o sinal do segredo de justiça, sua vida inteira se transforma
em objeto de análise pública. Não é assim com os magistrados. Quando
perdem seu cargo, guardam seu pagamento, são julgados pelos pares em
plano sigiloso e, quando fica evidente a sua ausência de ortodoxia ética
no cargo, não recebem punição a tempo e a hora.
O debate nacional ao redor do CNJ, as tentativas de enfraquecer o
trabalho da Corregedoria daquela instituição que deveria controlar a
prática dos juízes, tudo mostra que dos três poderes o judiciário é o
mais arredio aos elementos democráticos da transparência e da
accountability. Existem exceções, com certeza, mas a regra não é
passível de aplausos unânimes.
Modo geral, os que operam no campo do direito manifestam um alto teor
de corporativismo e, em muitos casos, de desprezo pelos “estranhos”, os
“leigos”, os “cidadãos”comuns. Eles esquecem que, num mundo altamente
dividido em especializações, o jurista também é leigo para o médico, o
engenheiro, o arquiteto, o economista, o físico, o químico, o
administrador de empresas, etc. Existem questões que vão além das
especialidades. Tais questões não admitem donos da verdade nem ditadores
da ciência, seja ela jurídica. Muitos operadores do direito, aqui
incluindo advogados e promotores além de juízes, não admitem o ponto.
Além disso, o judiciário não tem exercido o papel que lhe cabe de
morigerar os outros poderes. Haja vista a facilidade com a qual é
aplicado o privilégio de foro, sem um questionamento protocolar: ele
fere o princípio da igualdade de todos perante a lei. Quando os que
praticam improbidade com os recursos públicos fogem do juiz natural, o
da primeira instância, e são supostamente colocados sob o julgamento dos
tribunais superiores (quantas penalidades foram mesmo aplicadas até
hoje?) temos a ruptura com o regime ordenado na Constituição e
referendado pela cidadania. Esta última recusou a forma da monarquia
(com tudo o que ela implica no Brasil de privilégios, lembremos que
mesmos em países monárquicos do mundo atual, os políticos não gozam dos
privilégios que lhes são outorgados aqui), mas a justiça passa ao largo,
aceitando um ordenamento evidentemente injusto, escandaloso,
inconstitucional. O privilégio de foro não cria a corrupção, mas a
reforça e torna os improbos mais arrogantes, sem tomarem sequer nos dias
de hoje a cautela de esconder suas manobras fraudulentas. O que se
praticava dissimuladamente tempos atrás, se comete hoje em plena praça
pública.
Imil – Qual é o impacto dos constantes casos de corrupção no alto escalão do governo?
Romano – Acho mais adequado perguntar sobre o
impacto da corrupção sobre o Estado e a sociedade como um todo. O
primeiro e mais deletério é o sumiço da fé pública. E sem tal elemento
não existe Estado de direito. Se não é possível confiar nos gestores do
Estado (nos três poderes), não há motivo para obedecer a lei, pagar
impostos, servir militarmente, viver segundo as regras civilizadas.
Investir recursos privados em setores que dependem da administração
pública, quando é sabido que tais recursos irão parar nos cofres dos
partidos e dos indivíduos que operam na política, é tarefa que beira a
falta de sentido.
As pesquisas que indicam a perda progressiva de fé da cidadania no
sistema democrático deveria ser um alerta aos que ainda buscam um modo
de vida pautado pelos valores da democracia. Mas quantos, na camada
política, valorizam a república, a democracia, a responsabilidade, o
respeito às leis vigentes? Quando legisladores quebram a lei, como
ocorre com frequência terrível no Brasil, perde sentido se falar em
Estado, ou mesmo Estado de Direito.
A violência que grassa em nossa sociedade (basta ver o trânsito, 40
mil morte por ano, mais do que em muitas guerras tremendas ocorridas nos
últimos anos no planeta) mostra os efeitos da corrupção de maneira
clara. Basta dizer que os assassinos do trânsito, como os improbos,
escapam das malhas da justiça de modo fácil. É bom recordar o dito de
Diógenes: “A lei é uma teia de aranha que prende os insetos pequenos, e
não resiste à força dos grandes”, pois nela fazem buracos confortáveis.
Pelo que ocorre no Brasil, haja conforto!
Reação e mobilização
Imil – Como o senhor avalia a baixa adesão da população nas manifestações contrárias à corrupção?
Romano – Nosso sistema leva a população a aceitar
“favores” dos que operam o Estado. Se ela não identifica favores nos
oligarcas, os encontra em ações governamentais. Antes, valia como arma
política de controle o bico de pena. Hoje, o cartão magnético do Bolsa
Família e outros mais. E os setores da classe média e dos mais bem
aquinhoados temem perder algo conquistado após muito desespero, ou seja,
a inflação razoavelmente baixa e a estabilidade econômica.
Imil – Existe no país um clima de otimismo, Copa do Mundo,
Olimpíadas, uma crise econômica que parece distante… Tal quadro
dificulta o exercício e a repercussão do pensamento crítico no país?
Romano – Não podemos pensar que apenas a conjuntura
poderia explicar semelhante apatia popular diante da corrupção. Devemos,
antes de tudo, dizer que o alheamento não é absoluto, pois cerca de
dois milhões de pessoas se movimentaram para conseguir a lei da Ficha
Limpa. Esta, apesar de tudo, marca o desejo dos cidadãos de combater o
processo corrosivo que anula o Estado de direito entre nós.
Para compreender o motivo da suposta passividade do povo brasileiro
diante da corrupção, precisamos refletir sobre o peso da inflação na
vida nacional, de 1954 até o Plano Real. Um processo inflacionário como o
vivido em nossa terra corrompe valores, quebra resistências éticas,
abre caminho para o desespero de indivíduos, grupos, classes.
Permitam que eu cite um dos autores mais relevantes na análise
política e antropológica do século XX, Elias Canetti. Em sua obra lúcida
e profunda chamada “Massa e poder”, existe um capítulo fundamental
intitulado “A inflação como fenômeno de massa”. Em outros livros e
textos ele comenta o impacto da inflação na ordem social e política.
Tanto sua autobiografia (“Die Fackel im Ohr” ou “A torcha no ouvido”),
quanto “Auto-da-fé” (“Die Blendung”) trazem situações vividas durante o
tremendo processo inflacionário de Weimar. Como seu contemporâneo Georg
Simmel, que publicou um monumento teórico chamado “Filosofia do
Dinheiro” (“Philosophie des Geldes”, 1900, existe tradução inglesa da
obra, “The Philosophy of Money”), Canetti presta atenção ao papel do
dinheiro na ordem cultural moderna e na geração da identidade
psicológica das pessoas.
Ele parte de um fato incontestável: “Pode-se afirmar que nas nossas
civilizações modernas, excetuando-se as guerras e as revoluções, não
existe nada que em sua envergadura seja comparável às inflações”.
Canetti mostra como há um nexo entre o corpo do homem, a sua mão
sobretudo, e a moeda. Com o enfraquecimento deste vínculo, após o papel
moeda (embora o padrão ouro ainda garanta a confiabilidade de uma
economia), ainda permaneceu um ponto de estabilidade e confiança nos
governos democráticos. Trata-se da cifra que indica o “milhão”. Como
designação de um número, o “milhão” tanto pode referir-se ao dinheiro
como aos homens. E Canetti nos reconduz à íntima passagem entre a
inflação verbal e a econômico-política. Milhão: “O caráter duplo da
palavra pode ser analisado muito bem nos discursos políticos. O prazer
voluptuoso do número que cresce repentinamente, por exemplo, é
característico dos discursos de Hitler. Em geral, ele se refere aos
milhões de alemães que ainda vivem no exterior do Reich que ainda
precisam ser redimidos”.
Importa sublinhar: no mundo atual, massa e milhão relacionam-se
imperativamente. No processo inflacionário, entretanto, “a unidade
monetária perde repentinamente sua personalidade. Ela se transforma na
massa crescente de unidades; estas possuem cada vez menos valor à medida
que aumenta a massa. Os milhões, que tanto se quis possuir, estão
repentinamente em nossas mãos, mas já não são mais milhões, apenas se
chamam assim.
Na inflação, ocorre um elemento perverso e perversor: “O que cresce
toma-se cada vez mais fraco. O que antes era um marco é agora dez mil,
depois cem mil, depois um milhão. A identificação do homem individual
com seu dinheiro é abolida desta forma”. O homem, que antes confiava na
sua moeda ou bilhete, não “pode evitar sentir seu rebaixamento como um
rebaixamento dele próprio. (…) A inflação não abala apenas tudo
externamente; nada mais é seguro, nada permanece no mesmo local durante
uma hora; em virtude da inflação, ele mesmo, o homem, diminui. Ele
mesmo, ou o que ele foi, é nada; o milhão, que ele sempre desejou ter,
também é nada. Todos o possuem. Mas cada um é nada”.
A inflação, desse modo, pensa Canetti, é uma “desvalorização dupla
(…), o indivíduo sente-se desvalorizado, porque a unidade na qual
confiou, que ele respeitava tanto como a si mesmo, começou a deslizar
para baixo. A massa sente-se desvalorizada. (…) Como pouco se vale
sozinho, igualmente pouco se vale unido aos demais. Quando os milhões
aumentam, todo um povo de milhões se converte em nada”.
A massa, entretanto, não se esquece de sua desvalorização. “A
tendência natural, a partir daí, é a de encontrar algo que valha ainda
menos do que a própria pessoa, algo que possa ser desprezado da mesma
forma como se foi desprezado antes.” A massa, digamos, busca um bode
expiatório onde descarregar o sentimento de ser nada. Canetti aponta
para o vínculo entre a inflação alemã e os milhões de judeus,
supostamente inferiores aos arianos empobrecidos pela inflação, mortos
nos campos de extermínio.
A lição trazida pelo processo inflacionário de Weimar não foi
aprendida o bastante pelas sociedades ocidentais. O descontrole da
economia traz inflação e, com ela, massas dispostas a seguir os mais
diversos Messias, cobrando de supostos culpados toda a insegurança e
humilhação vividas. Basta ver o que se passa na suposta União Européia
nos últimos tempos. Recomendaria modestamente a leitura de um livro
relevante para os nossos políticos, magistrados, universitários,
jornalistas. Penso no volume publicado por Bernd Widdig (“Culture and
inflation in Weimar Republic”), onde inclusive existe um capítulo
inteiro dedicado às análises de Elias Canetti.
No caso brasileiro a população, desacostumada aos procedimentos
democráticos (no século XIX, os nossos governantes dificilmente poderiam
ser postos entre os campeões da democracia), algo piorado por dois
regimes de exceção no século XX, e também afeita aos favores que espera
dos que operam o Estado, não teve oportunidade de exercitar ativamente a
crítica e a cidadania. Se na Alemanha, onde o nível da participação
política das multidões foi elevado, sobretudo após 1848 (a era das
revoluções) aconteceu um descontrole econômico e político desastroso
como a inflação, conduzindo à fé cega num redentor, no caso Adolf
Hitler, não é de espantar que no Brasil tenham medrado arremedos
messiânicos como o de Jânio Quadros, José Sarney (recordemos a histeria
dos “fiscais do presidente” que invadiam supermercados, prendiam
gerentes, penetravam em fazendas na caça aos bois gordos, com base na
lei delegada etc), Fernando Collor… A cada nova onda de fé no salvador
presidencial, seguia uma onda de humilhação, perda da autoestima,
desespero diante do presente e do futuro.
Com o Plano Real, se estabelece a racionalidade política que atenuou a
inflação, conduzindo-a a níveis suportáveis. De imediato, veio a
popularidade imensa de Fernando Henrique Cardoso que o levou ao Planalto
e o elegeu novamente. Na mesma onda de fé no Salvador, foi eleito Luis
Inácio da Silva que, à diferença de Fernando Henrique Cardoso, não
apenas se adequou ao papel de redentor, como o exacerbou com poderosa
ajuda de Duda Mendonça e João Santana. “Nunca antes neste país”, é o
slogan que une a salvação da economia à pessoa do Presidente
providencial. “Marolinha” é o modo pelo qual o próprio governante
procurou exorcizar um impasse do qual ainda desconhecemos o real perigo.
E apesar dos exorcismos, a inflação cresce a olhos vistos.
A apatia que hoje se observa nas massas urbanas brasileiras tem
várias faces, sendo que a primeira é justamente a segurança econômica,
da qual fala a propaganda oficial necessariamente.
Protestar contra a corrupção parece ser algo menor, se comparado ao
pesadelo vivido antes do Plano Real. Acrescente-se que a mesma
propaganda “sequestrou” o peso dos governos Itamar Franco e Fernando
Henrique na construção daquela segurança: “nunca, antes neste país…”. A
segunda face, mais triste, é o conúbio dos eleitores com os corruptos
que lhes fazem “favores” pessoais ou coletivos (trazem obras para as
cidades etc). A terceira é o controle quase absoluto do governo federal
sobre as obras públicas no país inteiro, facilmente transformando-as em
instrumento político eleitoral. E temos várias outras faces.
Mas digamos, para encerrar esta longa resposta, que um povo que viveu
sob a inflação e foi humilhado ao máximo por ela, se dispõe à entrega
total a um líder populista. E tal fato traz muitas preocupações com o
futuro da democracia.
O professor de Ética e Filosofia da Unicamp, Roberto Romano faz uma
analogia entre a situação política do país e naufrágio do Titanic. Nessa
lógica, pode-se dizer que o navio atingiu o iceberg no exato momento
que a delação dos irmãos Batista da JBS se tornou pública e colocou no
centro das denúncias de corrupção o presidente Michel Temer, o senador
afastado Aécio Neves e pessoas ligadas a ele.
Apesar desses protagonistas, todo país está abordo da embarcação. Por
exemplo, área do comércio. O economista da Associação Comercial de
Campinas, já sente a água entrando.
No setor da construção civil, é como se a boia salva vidas tivesse
sido retirada bem na hora que fôlego foi recuperado. Em nota, o
sindicato manifestou profunda preocupação diante do risco do agravamento
da economia, em um momento em que, em Campinas, por exemplo, o nível de
desemprego parecia ter estancado, com um abril com 270 contratações,
após sequências de demissões.
No setor Industrial, a pressa por uma solução é relatada pelo diretor regional do Ciesp Campinas, José Nunes Filho.
Com a iminência de que o choque no iceberg tenha ocorrido por falha
humana, a dúvida se o comandante mantém a responsabilidade ou abandona o
barco, permanece. Para o professor da Unicamp, Roberto Romano – agora
deixando a analogia, mesmo que Michel Temer continue como presidente, a
situação politica fica insustentável.
Análise: Divulgação de
áudios enfraquece governo e Temer "ficará sozinho"
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Gisele Alquas
Do UOL, em São Paulo
19/05/201704h00
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Ueslei Marcelino/Reuters
Michel Temer durante... - Veja mais em
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/05/19/analise-divulgacao-de-audios-enfraquece-governo-e-temer-ficara-sozinho.htm?cmpid=copiaecola
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Roberto Romano, profesor de Etica y Filosofía Política de la Unicamp: “Michel Temer difícilmente resistirá en el palacio”
Autor: La Tercera
El docente señala que la situación del
mandatario "es más grave que la crisis que llevó al suicidio del
Presidente Getulio Vargas, y más peligroso de lo que ocurrió con el
golpe de 1964, la caída de Jânio Quadros, Fernando Collor y otros
hechos.
Foto: Reuters
“No soy profeta, pero…”, dice el
profesor de Etica y Filosofía Política de la Universidad Estatal de
Campinas (Unicamp), Roberto Romano, tras recordar una entrevista suya
publicada el lunes en Brasil donde aseguraba que Michel Temer “aguarda
el momento de salir”. En esta entrevista con La Tercera Romano analiza
el impacto de la denuncia del diario O Globo.
A su juicio, ¿qué tan grave es hoy la situación política en Brasil?
El hecho es más grave que la crisis que llevó al suicidio
del Presidente Getulio Vargas, y más peligroso de lo que ocurrió con el
golpe de 1964, la caída de Jânio Quadros, Fernando Collor y otros
hechos. No existe un liderazgo político nacional que pueda asegurar la
continuidad estable del gobierno y de las instituciones. Crece el deseo
de grandes sectores de la población de un golpe militar.
¿Cobra fuerza el impeachment de Temer?
Sí, crece el número de los que quieren el impeachment del Presidente. Difícilmente él resistirá en el palacio.
Además de la oposición, partidos de la base de Temer, también apoyarían el impeachment. ¿Cómo se explica este giro?
No es un giro. Las bancadas de apoyo al Ejecutivo, en el
Congreso brasileño, son habitualmente compradas, sin mayor compromiso
ideológico o doctrinario. Es lo que ocurre hoy: los comprados no tienen
compromisos con Temer (como no tuvieron con Dilma). Ellos tienen
compromiso con su supervivencia política, que se torna algo desesperado
hoy en día.
¿Cree posible que se adelanten las elecciones?
Es posible, pero casi inviable. En primer lugar, porque no
hay estadistas que puedan candidatearse con éxito, además de Luiz Inácio
Lula da Silva, él mismo amenazado por la Operación Lava Jato. La
elección indirecta, por el Congreso, tropieza en el hecho de su
ilegitimidad. Como buena parte de los parlamentarios están implicados en
investigaciones sobre corrupción, ellos difícilmente podrán elegir un
estadista que consiga apoyo de la población, de los empresarios, de las
iglesias, de los movimientos sociales.
El senador Aécio Neves fue separado del cargo por sospechas de corrupción. ¿Cómo queda la carrera presidencial en el PSDB?
El ya perdió toda fuerza política. Ha perdido el cargo de
presidente del PSDB y, con certeza, no tendrá una cantidad de votos ni
siquiera para cargos menores del Estado. Está desmoralizado de forma
definitiva.
¿Cómo repercute toda esta situación en la candidatura de Lula para 2018?
Lula, como señalé previamente, es el único candidato
conocido en todo Brasil, su popularidad es elevada. Pero tiene problemas
con la justicia. La historia brasileña, desde 1899, es la sucesión de
golpes de Estado, como lo es por demás en toda América del Sur. Golpes y
contragolpes marcan la historia política brasileña.
Qual
é o cenário futuro diante das denúncias da JBS contra Michel Temer e
Aécio Neves, que podem levar à renúncia do presidente e à prisão do já
afastado senador? É a questão que os professores Reginaldo Moraes,
Walquíria Leão Rêgo, Roberto Romano e Marcelo Ridenti, todos do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, procuram
comentar, com a ressalva de que se tratam de palpites, diante de fatos
ainda nebulosos demais.
Reginaldo Moraes, professor do Departamento de Ciência Política
O que se pode prever é que o governo Temer está em uma encruzilhada
fatal, que ele próprio provocou, porque foi se envolvendo cada vez mais
na tentativa de apagar os rastros das operações obscuras que tinha
feito, e criava mais rastros ainda. A questão mais grave que se coloca
agora é que para qualquer outra solução no pós-Temer, supondo que ele de
fato caia, vai sobrar o quê?
Constitucionalmente, tem a linha de sucessão. Os presidentes da
Câmara e do Senado estão igualmente na mira, muito comprometidos com
dificuldade de controlar seu próprio futuro. Sobraria a bomba nas mãos
da presidente do STF, que é uma pessoa absolutamente despreparada para
qualquer coisa, mas é o que vai sobrar se a linha sucessória for
mantida. Se não for mantida, você tem uma ruptura política, uma saída
heterodoxa fora da previsão constitucional, que pode ser uma eleição
direta.
A subida da presidente do STF resultaria numa eleição indireta mais
adiante. Ela ocuparia a cadeira do Temer para convocar a eleição
indireta do novo presidente, arrastando isso até 2018. Seria esse o
trajeto, repetindo 54, com a morte do Getúlio. Só que esse caminho
também é extremamente delicado. Ela teria que, de certo modo, conter
manifestações para eleição direta, teria que chamar repressão policial e
militar para conter as pressões.
O cenário é muito delicado. Aparentemente quem tomou a dianteira
parece ter sido as Organizações Globo: não sei se tinham a carta na
manga, mas provavelmente, a partir de agora, é essa que têm.
Provavelmente tentarão trabalhar por ela. Eleição direta é a última
coisa que querem no momento, sobretudo com o quadro de desmantelamento
das lideranças conservadoras, alinhadas com a Globo e que estão todas
muito mal na fotografia.
Aqueles que estão caindo em desgraça não serão cabritos silentes.
Ninguém vai prender Aécio, porque agora cai o Aécio, mas também a mesada
do Cunha e toda a proteção que ele tinha graças a esse acordo. Delação e
esperneios do Cunha. Não sobra pedra sobre pedra. Isso significa mesmo
no curto prazo um deus nos acuda não só do lado do governo, mas de sua
base aliada. Acho que todo mundo no Congresso está procurando um lugar
para se esconder. Vão sobrar apenas as forças políticas ideologizadas
que têm existência como corrente política de fato e não como legenda de
aluguel. Quem tem esse tipo de composição são a ultradireita e a
ultraesquerda. Vai ter mais polarização. O cenário é de desmanche, muito
preocupante.
Walquíria Leão Rêgo, professora do Departamento de Sociologia
Parece-me que há um conflito entre a Procuradoria Geral da República,
alguns ministros do Supremo e algumas forças políticas; que essa luta
estava um pouco prevista, com as rachaduras nas próprias forças
golpistas que atentaram contra a democracia brasileira, contra o projeto
mais igualitário dos governos petistas. De outro lado, essa crise
mostra a degradação das instituições, uma crise muito grave sobretudo
envolvendo o Judiciário brasileiro, que está se mostrando de uma grande
imoralidade.
Acho que o grande projeto deles é não deixar ocorrer as eleições em
2018, porque para permiti-la eles teriam que arrumar alguma coisa para
impedir a candidatura Lula, que já é muito forte. Não dá para saber, nem
eles estão se entendendo. Por que a Globo, que sempre ataca o Lula, de
repente parece fazer diferente? Não dá para entender o que acontece.
Acho que podemos imaginar vários cenários possíveis, inclusive um golpe
ainda mais à direita do que já foi.
Tenho percebido que as forças populares estão se organizando e está
havendo uma adesão bastante grande. Basta ver como foi em Curitiba no
depoimento do Lula, embora a Globo tenha escondido isso. Essa guerra de
se apropriar da informação e não transmitir ao povo é de um terror
inexplicável. As manifestações de apoio a Lula em Curitiba foram uma
demonstração de que a sua candidatura é popular e muito forte. As
pessoas sabem que o Lula não é ladrão. Não existe uma prova sequer. Mas
isso faz parte de técnicas muito conhecidas que os nazistas usavam,
mantendo a pessoa como suspeita o tempo todo.
Alguém disse que Lula se reuniu com ele, como se um presidente da
república não pudesse se reunir com ninguém. Falas como estas não pegam
mais ninguém, a não ser uma classe média que tem muito ódio. Como eles
vão fazer agora? Vão condenar o Lula por um apartamento que eles sabem
que não é dele? O juiz Moro e aquela turminha dele ficou fora dessa
operação, isso também é estranho. Essa operação que pega o Aécio e o
Temer foi feita sem a Lava Jato. Tudo indica que o próprio Judiciário
golpista está rachado.
Eu acho que o golpe é esse: eleição indireta, suspender as eleições e
evitar o Lula. Eles não têm compromisso nenhum com a democracia. Agora
vai depender muito da capacidade popular de reação, mas eu acho que o
golpe é mais à direita ainda e vem repressão. Pode acontecer até o
inesperado. Está muito esquisito, para dizer o mínimo.
Roberto Romano, professor do Departamento de Filosofia
Em um primeiro cenário, podemos ter o governo Temer aprofundando a
compra do Legislativo e ameaçando o Judiciário. Trata-se de um cenário
terrível, mas é bom lembrar que ele já tem feito isso para conseguir as
reformas, distribuindo verbas, perdoando dívidas de Estados e municípios
e distribuindo cargos, ou seja, Temer tem aprofundado a corrupção. Essa
situação tende a se agravar, como é sabido. O preço dos corruptos
aumenta de acordo com a situação do perigo em que está o chefe do
Executivo.
Isso aconteceu com todos os ex-presidentes e, no caso do Temer, isso é
agravado por sua origem, já que ele não foi eleito para o cargo. A
chamada base aliada é, na verdade, a base de achaque. A cada vez que
Temer tiver que pagar pela sua permanência – e não mais pelas reformas
–, aumentará a instabilidade jurídica no país. Nem cabe falar aqui de
outro componente – os trabalhadores estão sendo jogados para a incerteza
jurídica absoluta.
Num segundo cenário, o TSE, alertado por esse fato gravíssimo [as
delações dos donos da JBS], cassa a chapa Dilma-Temer. Como Temer havia
nomeado dois ministros recentemente para o TSE, esperava-se que ele
tivesse maioria para escapar da cassação. Seria, sem dúvida, caso o TSE
opte pela cassação, a decisão menos traumática, afinal trata-se de uma
decisão tomada pela Justiça.
Num terceiro cenário, no caso de uma eleição indireta pelo Congresso,
a solução seria mais traumática porque teríamos um sem número de
políticos reféns da Lava Jato. Você acaba elegendo um presidente da
República escolhido por políticos suspeitos.
Por fim, há a possibilidade da renúncia de Temer – acho o impeachment
a menos provável das hipóteses, já que a manipulação da base aliada,
quase toda comprada, supera em muito a capacidade de mobilização da
oposição. Ademais, um processo de impeachment demandaria muito tempo,
bem mais inclusive que o da presidente Dilma.
Essas quatro possibilidades, no meu ponto de vista, acentuam a
instabilidade do governo, da economia e da vida dos trabalhadores
brasileiros.
Marcelo Ridenti, professor do Departamento de Sociologia
[Sobre o cenário futuro]. Posso dar um palpite, porque ninguém sabe.
Primeiro precisamos ver qual será o destino do Temer. Ele pode ter um
arroubo de renúncia, mas não acredito que vá fazer isso, porque não cabe
nele e, depois, porque ficará desprotegido em termos de foro
privilegiado para um julgamento. Acho que ele vai tentar resistir o
máximo que puder, o que pode levar a um processo de impeachment. Mas
esse processo de impeachment seria complicado porque Temer tem um apoio
muito forte no Congresso Nacional.
Outra possibilidade que talvez lancem mão é aquele processo que já
possui parecer contrário do Tribunal Superior Eleitoral, para cassar a
sua vitória e de Dilma. Se a crise se agravar muito, talvez essa chapa
acabe sendo cassada. Se isso acontecer a norma é a eleição indireta,
sendo que não existe uma legislação clara sobre como fazê-la nesse
contexto. A legislação diz que o Congresso vota, mas não diz quem pode
ser votado, quem seriam os candidatos: se seria um membro do Congresso,
se pode ser uma pessoa de fora. Então, está tudo muito no ar, ninguém
sabe o que pode acontecer.
E, seguramente, os empresários e o pessoal que cuida da economia
estão muito preocupados, porque estavam apoiando as tais reformas do
Temer. Fica mais difícil votar tudo isso. Ainda estamos muito próximos
desta denúncia, afora que virão outras denúncias pela frente. Tem mais
gente denunciando, nem tudo está aclarado. O cenário é de que novas
bombas virão dessa cumplicidade entre o empresariado e o governo.
Havendo a saída do Temer, o que está determinado é uma eleição
indireta, a menos que a Câmara e o Senado, em conjunto, façam alguma lei
determinando eleições diretas. Ontem até o Caiado [Ronaldo] parece que
falou pela eleição direta. Duvido que façam isso, provavelmente vão
deixar o Temer pagar sozinho, ele e a cúpula mais próxima. Vão ficar
empurrando com a barriga, muito possivelmente até a próxima eleição.
Talvez as forças dominantes da economia pressionem muito, para
independentemente da crise, aprovarem as tais reformas que estão
elaborando, sobretudo a trabalhista, que está bem andada, e a outra da
Previdência. Resta saber se haverá clima político no Congresso para
aprovar tudo isso, com essa crise do governo. Talvez seja difícil.
Acho que estão todos meio espantados, porque sobra pra todos, são
poucos que escapam. Por exemplo, ninguém tem comentado sobre o [Rodrigo
Rocha] Loures, o deputado para quem o presidente da República encaminhou
para fazer as tratativas [no Congresso], onde ele estava quando
estourou a notícia? Em NY. E com quem? Com o seo [João] Dória.
É nascido em Jaguapitã (PR), integrou a
Ordem dos Dominicanos, fez doutorado na École des Hautes Études en
Sciences Sociales, tendo como orientador Claude Lefort. Publicou livros e
artigos sobre a Razão de Estado, a igreja católica e a universidade.
Tem como temas favoritos a política, a ética e a estética, sobretudo no
século 18 francês. É professor titular aposentado da Unicamp, onde
dirigiu 37 teses, entre mestrado e doutoramento. Foi presidente da
Comissão de Perícias da Unicamp.
Depois de muito subestimado, Trump acabou eleito presidente
dos Estados Unidos da América contra todas as previsões de
especialistas, cientistas políticos, comunicólogos, sábios e videntes.
Proclamado o resultado, videntes, sábios, comunicólogos, cientistas
políticos e especialistas tentam apagar as pegadas erráticas, abrindo um
leque de causas para o inesperado desfecho. Inesperado para eles que
pensaram ditar a realidade e induziram grande parcela da opinião pública
mundial a acreditar em suas verdades.
A vitória de Marcelo Crivella para a Prefeitura do Rio de Janeiro
levanta questões sobre a originalidade de sua igreja, a Universal do
Reino de Deus. No artigo, é indicada a forma do catolicismo
organizacional como um dos elementos de sua baixa numérica e política na
sociedade brasileira. Em contrapartida, a estrutura da Universal, ao
contrário da católica, valoriza intensamente o leigo, o que potencializa
forças políticas antes adormecidas que, somadas ao imenso instrumental
da igreja, sobretudo na mídia, ajuda a entender a maré montante do
pentecostalismo político de hoje.
O Brasil nasceu católico, mas sua forma jurídica, desde a origem,
manteve o controle estatal sobre a vida religiosa. Fomos descobertos no
absolutismo, quando o poder estatal disputou com radicalidade a
soberania contra o domínio transcendente. Estávamos na era dominada por
Maquiavel e pela raison d’État. Naquele tempo, a ética da rota
respublica christiana foi posta em questão por teóricos (Maquiavel é
apenas um de extensa lista) e governantes. A Reforma traz um complicador
a mais nos elos entre mando religioso e civil. Se Lutero radicaliza a
ruptura com a autoridade visível da igreja, ele reforça o poder dos
príncipes que aderem à nova confissão. João Calvino, apesar da
obediência pregada aos crentes diante do mando civil, expõe vias para a
radicalização laica e, mesmo, democrática, da ordem política. Não é
exagero dizer que boa parte da moderna democracia tem como base a
reforma protestante na vertente calvinista.
Sob o Padroado, a Coroa portuguesa faz da Igreja mero departamento do
poder civil. No Império não é diferente. Apenas com a República, para a
qual contribuiu a Questão Religiosa, o catolicismo tem certa
independência para agir no país. Mesmo assim, até meados do século 20, é
difícil separar os alvos do Estado e as sendas da Hierarquia. Antes e
depois da ditadura getulista, ocorrem conúbios entre “autoridades civis,
militares, eclesiásticas”. A meta religiosa reside na conquista do
mundo moderno para atraí-lo ao rebanho, num inaudito movimento de
centralização, cujo ápice é o Concílio Vaticano 1 e o dogma da
infalibilidade papal. Os bispos percebem o Brasil como terra a ser
evangelizada. Uma das técnicas para conseguir tal alvo consiste em impor
a “soberania espiritual” ao mando secular.
Tensas, as relações entre Igreja e poder civil vivem instantes de
afastamento mútuo, mesmo de hostilidade, ou de plena concórdia. Com a
ditadura Vargas ela ganha muito, sobretudo no campo do ensino. Boa parte
dos curricula oficiais, impostos ao país, foram elaborados por bispos
ou acadêmicos a eles unidos. É o caso de Alceu Amoroso Lima (Tristão de
Athayde) que molda as planilhas educacionais do Brasil por longas
décadas. Tais planilhas sobrevivem à era Vargas, à ditadura de 1964 e
mesmo ao governo civil e à Nova República. No período inaugurado pelo
golpe de 1964, alguns bispos e leigos resistem ao arbítrio, às torturas e
prisões, o que ocasiona choques com o Estado. Mas, não é possível
ignorar o acordo antes e após o coup d’État, consagrado em colaboração
de hierarcas e autoridades laicas e consignado em documentos oficiais
que abençoam o regime de força. Em determinadas situações podemos dizer,
sem exagero, que as formas estatais e católicas constituem um todo
solidário.
A igreja católica percebe com maior acuidade a perda de sua força
social a partir dos anos 50 do século 20. Pensadores como o Padre Júlio
Maria e Thales de Azevedo mostram o quanto o catolicismo está longe de
controlar grandes massas populares. A proposta de tais acadêmicos e
clérigos se encontra no ataque à modernidade, cujos efeitos seriam
letais ao mundo religioso tradicional. A tônica seguida liga-se à defesa
dos antigos valores, algo comum naqueles anos na intelectualidade
católica. A Revista Eclesiástica Brasileira, a Revista Vozes de
Petrópolis, praticamente todas as publicações de doutrina e proselitismo
insistem na reconquista do mundo perdido para a secularização, a
maçonaria, o espiritismo, o positivismo, o liberalismo e, last but not
least, o protestantismo. No relativo ao liberalismo, importa notar que
um grande inspirador de Carl Schmitt, Juan Donoso Cortés, é publicado
pela Editora Vozes, o Ensaio sobre o Catolicismo, o liberalismo e o
socialismo, manifesto contra a democracia e as formas seculares de
pensamento político. A tônica empregada pela propaganda eclesiástica é a
de uma simbiose entre nacionalidade brasileira e igreja católica. Em
tal movimento, a palavra definitiva é a do Sumo Pontífice: “A igreja e o
Estado devem ser unidos um ao outro como alma e corpo, que constituem
no homem um todo natural”.
Não é possível olvidar o papel relevante, direto ou indireto, da LEC
(Liga Eleitoral Católica) até meados do século 20. Para ir contra as
ameaças modernas, Dom Sebastião Leme instaura a revista A Ordem e o
Centro Dom Vital, em boa parte dirigido por Alceu Amoroso Lima. Criada
em 1932, a LEC busca afugentar das mentes católicas as candidaturas aos
cargos políticos de liberais, maçons, comunistas, socialistas,
espíritas, protestantes. A lista de candidatos, afixada nas igrejas e
demais espaços religiosos, serve como sinal de ortodoxia e, de outro
lado, frouxidão dos renitentes. Em 1962, a LEC assume a denominação de
Aliança Eleitoral pela Família. Assim, a atuação dos bispos e leigos
católicos, para garantir a hegemonia eclesiástica no Estado, tem muitas
faces. A LEC é das mais agressivas, pois ensaia banir da vida pública
setores minoritários, numa demonstração cabal de intolerância. Os
protestantes sofrem muito com semelhante política de exclusão.
Com o Concilio Vaticano 2 ocorre em parte a mudança de rumos
eclesiásticos. Em vez de presa aos muros da tradição, a igreja tenta se
abrir ao mundo, vendo nele não um campo de morte, mas terreno a ser
preenchido pelos valores cristãos e humanos. Os documentos conciliares,
em especial a Constituição Lumen gentium mudam a perspectiva da pastoral
e das formas doutrinárias. Não mais pensada como poder que deve
enfrentar o mundo com anátemas, a igreja se percebe como peregrina no
tempo, cuja orientação seria o Eterno, mas sem descuidar da finitude,
das dores e alegrias humanas. É deixada nas sombras do pretérito a
reivindicação de “soberania espiritual”, as pretensões de usar o Estado,
contra toda a crônica laica que o marca desde o século 16, como
instrumentum regni. O Vaticano 2 interrompe, pelo menos provisoriamente,
o fluxo de anátemas contra o mundo laico e as formas religiosas que
ameaçam o catolicismo.
Ditadura de 1964 enfrenta uma igreja dividida
A forma católica tem uma lógica muito própria, que desafia os mais
diferentes pensadores. Carl Schmitt, para descrever tal lógica usa o
termo “complexio oppositorum”, porque não é possível atribuir ao todo
eclesiástico uma doutrina política única. Sua sabedoria consiste,
justamente, em não sucumbir às formações de seitas, cumprindo seu núcleo
dirigente (no ápice da hierarquia) a função de acomodar as contradições
existentes na ordem interna e externa. Sempre que um setor da igreja se
pretende autônomo em relação ao todo, a Hierarquia move correções
rápidas que podem ir das admoestações à excomunhão. Após o Vaticano 2 o
catolicismo passa por forte desarrazoado sobre sua essência e missão.
Sacerdotes aos milhares, perdido o cosmos da tradição tridentina
contrária à modernidade, sentem o solo eclesiástico como problemático:
nem mais totalmente sagrado, como quer a Contrarreforma, nem secular. As
práticas litúrgicas são abaladas, formas costumeiras de piedade
abolidas. Os templos perdem esculturas sacras, a reza do terço durante a
missa é proibida, novenas e procissões suspensas. Falta ao clero,
progressista ou não, saber ou prudência antropológica e de psicologia de
massas. O fiel católico passa a viver o sagrado como algo incerto. É
dada a partida para a busca de experiências místicas outras, ou
simplesmente o abandono das crenças religiosas. A responsabilidade não
reside apenas no clero laicizado. Mas, ele é importante para a perda de
solidez da fé tradicional católica. Já no Pontificado de Paulo VI, a
hierarquia eclesiástica busca moderar o impulso racionalista que toma
parte do clero e dos leigos. A Encíclica Humanae vitae (1968) dá o sinal
de alarma. Na igreja brasileira, ainda em 1968, surgem os primeiros
sinais do “freio” aplicado aos bispos, padres e leigos que radicalizam
as teses conciliares. Todo o final do pontificado de Paulo VI é
hamletiano: ora pende para o progressismo teológico e pastoral, ora ao
conservadorismo centralista da Santa Sé.
A ditadura instaurada em 1964 enfrenta uma igreja dividida entre a
maioria dos antístites que apoiam o regime e a minoria que o combate.
Padres e leigos radicalizados seguem a letra conciliar, mas tal fato não
basta aos mantenedores do poder curial. Após o brevíssimo governo de
João Paulo I, a eleição de João Paulo II sinaliza um Termidor
eclesiástico. O pontífice opera uma intervenção duríssima em dioceses,
seminários, instituições católicas, na busca de orientar a barca de
Pedro para um catolicismo devocional. Como Pio XII, João Paulo
privilegia a diplomacia conservadora, age com notórios ditadores como
Pinochet, une-se a Reagan e outros. Episódios como sua participação no
caso Irã-contras são reveladores do absolutismo por ele imposto à
Igreja.
Some-se o desarrazoado do clero e dos leigos em termos culturais e
pastorais, à política agressivamente conservadora de João Paulo II e
teremos um desarmamento das hostes católicas em termos missionários e
prosélitos. Com o pontífice polonês, a Igreja perde suas forças
progressistas, ou pelo menos elas são silenciadas (o caso do cardeal
Paulo Evaristo Arns, cuja diocese foi dividida de alto a baixo por
Woytila). O combate do Vaticano à Teologia da Libertação consiste em uma
técnica do Sumo Pontífice e de seus auxiliares (como o Cardeal J.
Ratzinger, depois Bento XVI) para impor um modelo eclesiástico contrário
ao Concílio. João Paulo II retoma o “catolicismo político” que domina a
Santa Sé e vastos setores católicos nacionais no seu trato com o Estado
e a sociedade. Em tal paradigma, interessa manter a mão segura sobre os
fiéis, o controle interno do episcopado e dos teólogos e os alvos
estratégicos da Igreja em termos planetários. É uma versão nova da
antiga “raison de l’ Église” de onde brota a própria raison d’état.
Ao mesmo tempo, os católicos conservadores não mais sentem que entre
eles e o corpo eclesiástico há uma unidade sólida, como a ocorrida no
final do século 19 e inícios do século 20. As divisões de São Pedro
estão submetidas à incerteza quanto aos rumos a serem tomados. É em tal
momento que as formas protestantes, não as tradicionais, mas as
desafiantes da ortodoxia eclesial (reformada ou católica) apresentam seu
maior crescimento em setores próximos aos “negativamente
privilegiados”.
Comunidades eclesiais de base
Já nos anos 60 a 80 do século passado, o frei Francisco Cartaxo
Rolim, pesquisador das religiões novas e fundamentalistas do
protestantismo mostra que o crescimento daqueles setores tem como
premissa a ausência de muitos intermediários entre a piedade dos crentes
e a ordem coletiva eclesial. Ele chama a atenção para o sentido de
iniciativa, atribuído ao militante religioso protestante pentecostal, em
contraste com a rigidez imposta na estrutura católica e confissões
protestantes tradicionais. De outro lado, a igreja católica tenta mover
seus adeptos da base para a militância com as Comunidades Eclesiais de
Base. Deixando-se o desmanche de setores daquele movimento pela ação de
João Paulo II (muitos animadores leigos e clérigos são perseguidos pelo
Vaticano), as referidas comunidades coexistem com a estrutura antiga da
igreja, estrutura vertical que privilegia os membros hierárquicos, a
começar com os vigários das paróquias que acolhem as CEBs. Ao longo do
tempo, tal problema é discutido nas próprias comunidades e nos estudos
de intelectuais católicos. E. Hoornaert, em texto preparado para as
discussões das CEBs, analisa a estrutura hierárquica da igreja, que
tende a abafar a iniciativa missionária dos leigos e instâncias
inferiores do clero. Hoornaert indica de modo gráfico o leigo católico
no mais baixo escalão da pirâmide religiosa, ente passivo movido pelo
clero:
Bispo
Padre
Leigo
Do bispo ao leigo, o padre é uma “correia de transmissão”. Para o
máximo de atividade e iniciativa, os bispos; rumo ao mínimo, os leigos.
Assim, torna-se muito grande o risco de fazer das CEBs apenas celeiros
dinâmicos de clericalismo. Hoornaert apresenta, para atenuar tal falha,
outro modelo de organização católica. Nele temos a seguinte forma:
bispo
leigo
padre
O padre, então, é destituído do papel de centro religioso (o culto)
para se tornar um traço de união dos leigos com a igreja. O padre apenas
articularia as relações comunitárias.
Com o advento de João Paulo II e de uma Hierarquia definida pela raison
d’État em consonância com a raison de l ‘Église (tal foi o sentido da
Realpolitik católica sob aquele Pontífice), a verticalidade que põe o
leigo no mais baixo plano da instituição é retomada com rigor. O signo
eclesiástico no Concílio Vaticano II, sob João XXIII e ainda Paulo VI, é
o de uma abertura ao diálogo com o mundo. Sob João Paulo II muros
espirituais são edificados quase ao mesmo tempo em que o Muro de Berlim é
destruído. Livre do comunismo, a Santa Sé pratica uma política
diplomática de pleno acordo com as premissas de Ronald Reagan, Pinochet e
similares. Se existem teólogos e sociólogos católicos que, ainda sob
João Paulo I, sonham com uma igreja democrática ou mesmo socialista,
João Paulo II desmente tais devaneios. Com ele, o fiel volta à
passividade e toda iniciativa cai novamente nas mãos do clero e da
Hierarquia.
Seria um milagre se, com tamanha perda de iniciativa dos leigos, a
igreja Católica deixasse de perder fiéis para igrejas e seitas de origem
protestante que não apenas valorizam o laicato, mas dele fazem um meio
eficaz de missão e atividade prosélita. Não é o caso, aqui, de fazer uma
história do protestantismo no Brasil. E também não há espaço e tempo
para efetuar uma crônica das igrejas pentecostais e messiânicas surgidas
nas últimas décadas. Vale refletir sobre as características de uma
delas, a Universal do Reino de Deus, instaurada por Edir Macedo. Dentre
as várias confissões que ocupam a cena política, trata-se da mais ativa e
bem-sucedida.
O fundador do empreendimento tem uma história de sucessos no mercado.
Em seus trabalhos profissionais anteriores à sua vida religiosa, operou
com matemática, estatística e outros meios para aferir números sobre o
social. Ele usa técnicas eficazes de administração empresarial. Uma nota
pequena, que une sentido de oportunidade com a ocupação do espaço.
Certo dia em Bauru (SP), visito a matriz católica em dia de semana. Para
chegar às portas do templo é preciso subir muitos lances de escada. O
visitante encontra a igreja fechada com cartazes indicativos de horários
para o atendimento e outros avisos. Na rua situada atrás da sede
católica há uma Universal do Reino de Deus. A casa fica no plano da
calçada, nenhuma dificuldade para o acesso. As portas abertas guardam
dois fiéis que convidam os transeuntes para a entrada. Só tal comparação
mostra a diferença entre a prática do catolicismo e a da igreja nova.
Além de usar o espaço de modo sagaz, os pastores movem crentes como
pregoeiros da religião, acolhendo todo e qualquer um dos que habitam a
cidade.
Universal ataca a igreja católica
Uma organização simples e rápida ordena a praxis dos militantes
pentecostais na Universal. A hierarquia conta com bispos, pastores,
obreiros distribuídos pelos centros urbanos, sobretudo nos que contam
maior número dos “negativamente privilegiados”, para usar a terminologia
weberiana. Com agudeza de espírito, para quem opera em país onde a
desigualdade econômica e política é escandalosa, a doutrina assumida
segue a trilha da esperança na prosperidade, vinculada à doação integral
do fiel à causa da igreja. Em atos e propaganda que, para os católicos e
protestantes tradicionais beiram a simonia, a salvação, a cura, o
enriquecimento, o consumo de mercadorias caras, são prometidos desde que
os dízimos apareçam nos cofres, generosos. É como se o monge Tetzel
tivesse reencarnado hoje, em vestes pentecostais, sem nenhum Lutero para
lhe fazer frente.
A Universal ataca com dureza e constância a igreja católica,
inclusive com propaganda obscena. Em programas seus de TV são trazidos
testemunhos, nunca revistos pelas autoridades civis, de supostas freiras
que teriam fornicado com padres assassinando rebentos, enterrando-os
nos muros conventuais, etc. Nota-se o abuso dos libelos muito correntes
no século 18, com imaginário escandaloso feito para persuadir os
católicos de que sua religião, além de idólatra (recorde-se o famoso
“chute na santa”) é apodrecida moralmente. Mas, a bateria de ataques não
se limita ao catolicismo. Ela se volta contra a umbanda, o kardecismo
e, mesmo, outras confissões protestantes que não seguem as palavras de
Macedo. A intolerância é norma seguida por bispos e pastores, ampliada
pelos crentes. Toda intolerância é unida ao fervor, quanto mais certeza
da verdade, mais o crente assume missões de conquista e para expulsar os
diferentes. Nos últimos tempos, manifestações de intolerância brutal
ocorrem contra os seguidores da umbanda. O risco dos atos cai todo sobre
o crente, os pastores se eximem e, mesmo, lançam proclamações de
inocência. Algo similar ocorre com os supostos milagres. As delegacias
de polícia brasileiras estão plenas de boletins de ocorrência nos quais
os crentes desiludidos reclamam milagres não ocorridos, mesmo após
doações, não raro de grande porte, para a igreja. Os pastores, é quase
regra, sempre afirmam ter feito apenas uma benção e um pedido ao ser
divino. O resto ficaria por conta da fé praticada pelo crente. Um ponto
grave reside no chamado “Desafio a Jesus”. O desempregado entrega aos
pastores cheques pré-datados e, assim, “desafia Jesus” para conseguir um
posto de trabalho. Casos vieram à tona de cobrança, inclusive em órgãos
de defesa do crédito, dos referidos cheques. Enfim, há toda uma
sequência de fatos que fariam as delícias de Erasmo de Rotterdam,
militante intelectual contra o charlatanismo milagreiro no Renascimento,
ou de Voltaire.
Ao dar prosseguimento à tradição norte-americana do evangelismo
televisivo e radiofônico, a Universal consegue uma força expansiva
incomum, mesmo para as demais tendências pentecostais. Ao adquirir a
Rede Record, um quartel general permanente é assegurado para a pregação e
ataques às demais religiões. Gradativamente, vem à forma uma técnica
usada desde tempos imemoriais para atrair fiéis: templos cada vez mais
amplos e luxuosos, verdadeiras catedrais exibem poder e força aos
crentes alistados e candidatos. O Templo de Salomão é mimesis do que fez
a igreja católica em milênios. Mas, a burocracia simplificada e muito
eficaz não deixa aqueles monumentos vazios. Eles são usados sempre para
os cultos, as pregações, a coleta dos dízimos.
Com a imitação dos grandes templos católicos, vem uma liturgia que
assume sinais e gestos oriundos do catolicismo, do judaismo, até mesmo
da umbanda e do espiritismo. Tal performance dá ao crente jejuno o
conforto de encontrar práticas por ele conhecidas, mas transfiguradas e
postas como lícitas. Com o Templo de Salomão fica patente tal escolha,
pastores e bispos usam parâmentos judaicos que recordam de modo oblíquo a
filiação no novo cenáculo ao antigo, destruído na antiguidade
israelense. Macedo e assessores reintroduzem aspectos abandonados pelo
protestantismo, restaurando inclusive signos imagéticos, algo abolido na
Reforma e atenuado na igreja católica após o Vaticano II. O ambiente do
culto mostra faces do sagrado, hierofanias ocorridas nos templos da
Universal.
Com tais inovações eficazes para o crescimento do rebanho, a
Universal consegue mover seus adeptos em todos os sentidos. O mais grave
é o político. Como é natural, o aumento do número de crentes com título
de eleitor atrai políticos de todos os coloridos ideológicos. Quando
preso, acusado de crimes graves, Edir Macedo tem o apoio de Luiz Inácio
Lula da Silva, Aloysio Nunes e outros que não pertencem ao espectro da
direita. Mas, também conservadores e direitistas apreciam a disciplina
da igreja, a qual conta com o sentido de iniciativa dos seguidores. Meio
rápido de adquirir votos, a proximidade de bispos e pastores ajuda
políticos e igreja. Prestígio repartido, os sucessos nas urnas trazem
prosperidade a candidatos, mesmo os que não pertencem às hostes de
Macedo.
Dispondo, pois, de ampla rede de TV e rádio, jornais impressos que
ampliam sua circulação em épocas eleitorais (no Brasil, quase
permanentes), além do apostolado pessoal e virtual (via internet), a
Universal é sólida base para qualquer candidatura aos cargos públicos. O
partido político que serve como braço secular da igreja é o PRB. Essa
agremiação foi esteio do Partido dos Trabalhadores nos governos Luiz
Inácio Lula da Silva, quando o vice-presidente da república pertence ao
PRB, e de Dilma Rousseff. Pouco antes do impeachment que afasta a
mandatária, a Universal e o PRB rompem com o seu governo, agraciados
pela administração Temer com cargos e benefícios.
Importa sublinhar o elo entre políticos proeminentes e os quadros da
Universal. Em todas as ocasiões importantes para a igreja, líderes de
quase todos os partidos nacionais se apresentam. Nas eleições, pactos
entre bispos e pastores, com lideranças políticas, são assumidos. No
primeiro dia do Templo de Salomão se apresentam para il bacia mano
praticamente todos os poderes da república, a presidente, o governador
do estado de São Paulo, etc. Senso de oportunidade política não rende
apenas para os candidatos à permanência nos cargos ou à sua primeira
investidura. A própria presença conspícua de pessoas com prestígio amplo
abrilhanta, junto aos fiéis e alheios, a imagem de vencedora atribuída à
Universal.
Não tem sido levado em conta com afinco, entre acadêmicos, o livro
lançado em 2008 por Edir Macedo. Naquele volume, que norteia os atos
políticos da Universal, o autor afirma ser possível e necessário que ela
chegue à maioria dos poderes estatais. “Tudo é uma questão de
engajamento, consenso e mobilização dos evangélicos. Nunca, em nenhum
tempo da história do evangelho no Brasil, foi tão oportuno como agora
chamá-los de forma incisiva a participar da política nacional”. Dentre
as teses enunciadas por Macedo temos a seguinte: “A potencialidade
numérica dos evangélicos como eleitores pode decidir qualquer pleito
eletivo, tanto no Legislativo, quanto no Executivo, em qualquer que seja
o escalão, municipal, estadual ou federal”. No mesmo tempo em que o
volume é publicado, o sobrinho de Macedo, Marcello Crivela, se candidata
à Prefeitura do Rio de Janeiro pelo PRB. Naquele ano, havia a
expectativa de aumentar consideravelmente o número de parlamentares
ligados à Universal e às igrejas congêneres. Em 2007, o PRB, de fato, é o
partido que mais cresce no país. Tal ponto concede à Universal um
instrumento eficaz de luta política.
Universal quer a hegemonia no Estado
Assim, não surpreende que em 2016, finalmente, Crivella seja eleito
para governar a cidade do Rio de Janeiro. Ele conta com zelosa
militância de fiéis que acreditam ser a sua salvação terrestre prometida
em termos de riqueza e poder materiais. A própria estrutura da igreja
os leva a uma atividade vigorosa, ao contrário dos leigos católicos e
protestantes clássicos. Além disso, a eficaz rede televisiva e
radiofônica, além da mídia impressa, é poderoso meio de propaganda das
candidaturas da própria Universal ou de aliados. É em busca de
semelhante benefício que políticos da chamada esquerda ou da suposta
direita brasileira se achegam a Edir Macedo, na esperança de ganhar
apoios tácitos e estratégicos, nos parlamentos ou eleições. Desde 2008, a
Universal conta com receituário político que ensina a chegar à
hegemonia no Estado. É a primeira vez na história brasileira que o
protestantismo deixa a condição de minoria perseguida e passa à
conquista planejada e racional da maioria para o comando do poder
público.
Os planos da Universal, com a vitória de Crivella em 2016, começam a
se tornar realidade. Mas, para que tal coisa ocorra, é preciso que a
igreja católica, as confissões protestantes clássicas, as correntes
protestantes de esquerda, percam seus comandados e não apresentem
alternativas à marcha pentecostal sob a liderança atual de Macedo. Em
política, como no proselitismo religioso, tudo é dinâmico. Se alguns
setores ganham potência, é porque os adversários a perdem. Tal regra,
que parece óbvia, vem do ensino do grande Maquiavel interpretado por
J.G. Fichte: “quem não cresce, diminui enquanto outros crescem”. Para
que o crescimento da Universal tenha um limite, importa aos demais
setores (católicos, umbandistas, espíritas, liberais, progressistas e
outros) arregimentarem forças, imaginarem cenários futuros e, sobretudo,
se unirem não apenas no plano espiritual, mas, principalmente, na ação
política. Tal perspectiva ainda não aparece na vida pública brasileira.