Flores

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sábado, 20 de maio de 2017

Em tempos de ideologia e de má fé, quando o mundo acadêmico se transformou em arena de "ladrões roubados "(Alexandre Kojève), ler uma resenha serena de escritos meus é um consolo. A análise abaixo é séria e justa. Discorda de mim mas não tenta reduzir argumentos. É filosófica, não sectária. Obrigado professor Bignotto!


São Paulo, domingo, 06 de janeiro de 2002


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+ livros

Filosofia de guerra
Newton Bignotto

especial para a Folha
O Caldeirão de Medéia" reúne ensaios e escritos publicados em periódicos e revistas por Roberto Romano nos últimos anos. Embora não tenha sido concebido para dar ao leitor uma síntese das preocupações filosóficas e políticas do autor, o livro acaba fornecendo um painel amplo do percurso desse escritor que, desde seu primeiro livro -dedicado a estudar as relações entre a igreja e o Estado no Brasil-, sempre procurou entrelaçar questões de atualidade com estudos de problemas fundamentais da tradição filosófica.

Estudioso da filosofia moderna, Roberto Romano oferece uma visão renovada de alguns debates clássicos sobre o período em vários dos capítulos do livro. Num deles, dedicado ao problema da guerra em Hegel, percorre a tradição crítica de Meinecke a Cláudio Cesa, passando por Franz Rosenzweig e Jacques d'Hondt de maneira a fazer do recurso à tradição uma ferramenta para expor sua própria interpretação. Nesse caminho, sobressaem duas marcas constantes de seu pensamento. Em primeiro lugar, o uso da tradição interpretativa de maneira rigorosa e aberta. 
Multiplicando as referências e abandonando por vezes o campo original do problema por meio da citação de outros pensadores das mais variadas épocas, o autor aumenta em muito o âmbito no qual a questão parecia estar circunscrita. Procedendo dessa forma, no capítulo mencionado, ele não se furta a chamar de hagiografia a obra de Jacques d'Hondt e a apontar o viés conservador do trabalho de Meinecke.
Ao concluir seu ensaio, entretanto, Romano, que havia mostrado a vertente belicista e autoritária do pensamento hegeliano ou pelo menos a possibilidade de entender o filósofo alemão dessa maneira, adverte ao leitor brasileiro, que poderia se embevecer com uma crítica fácil do pensador alemão, de que "deveríamos, em vez de apontar autoritarismo no filósofo, discutir a nossa "realidade" miserável". O tom forte, por vezes polêmico, de suas interpelações de nossa "realidade" é a segunda marca de seus escritos.

Embora os autores modernos sejam os que mereçam maior atenção, mesmo nos capítulos dedicados a Diderot, Voltaire ou Hobbes proliferam as referências aos pensadores gregos e medievais assim como aos autores contemporâneos. Ao analisar o problema da sátira na obra de Voltaire, Romano conduz seu leitor por um universo habitado ao mesmo tempo por Platão, Luciano e Espinosa, para apoiar uma das teses que lhe são caras e que liga o riso e a sátira à possibilidade de realizar com êxito a crítica das mentes adormecidas pelas mais variadas formas de obscurantismo.

Buscando um Descartes diferente do sisudo pai da racionalidade contemporânea, ironizando os que aceitam a pecha de mero divulgador atribuída a Diderot ou mostrando o quanto Voltaire contribuiu para solidificar o caráter libertador do Iluminismo, ele afirma, dirigindo-se mais uma vez ao público brasileiro: "Urge purificar a fé pública e imprimir os iluministas franceses. Antes de escurecer os cérebros dos estudantes com o o lero-lero irracionalista, ponha-se diante de seus olhos a saudável irreverência das Luzes, a razão satírica que atenua a loucura séria do fanatismo".

Especialista em filosofia francesa do século 18, Romano mobiliza seus pensadores para tomar posição nos debates contemporâneos. Já no primeiro capítulo ele discute a relação entre a produção das ciências -e sua incorporação pelo Estado- e a educação do povo. Deixando de lado as idéias dos que querem isolar as camadas populares do processo de desenvolvimento da esfera técnica e científica, ele mostra que essa é uma discussão essencialmente política. 
A simples recusa de tratar da educação das massas como uma questão relevante para a vida pública traz, segundo ele, graves consequências para a afirmação da soberania popular.
Na mesma via se inscreve a crítica repetida que o autor faz do que chama de pensamento conservador, identificado como o daqueles que têm "medo de que a população estrague a festa do poder, destruindo a segurança, a propriedade, os vínculos da tradição, as inovações técnicas que só beneficiam alguns".

Pode-se discordar de algumas teses de Romano. O retrato do Brasil, esboçado em alguns capítulos, parece por demais pessimista assim como a aproximação entre realismo e reacionarismo, sugerida no final do capítulo sobre o "sublime e o prosaico", talvez seja excessiva. Seja como for, o leitor encontrará sempre a sustentar as posições explicitadas um rico conjunto de argumentos, que constituem um convite aberto para um debate de idéias fundado na liberdade e na razão, que são o ponto de partida e o eixo do processo de investigação do autor.

O Caldeirão de Medéia
440 págs., R$ 35,00
de Roberto Romano. Editora Perspectiva.

Newton Bignotto é professor de filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais e autor de "Origens do Republicanismo Moderno" (ed. UFMG).

Minha atitude perene, desde a juventude, segue o procedimento civilizado: quando me convidam para uma reunião, seminário, entrevista, etc. nada pergunto sobre a doutrina religiosa, ideológica, política, ou social dos anfitriões. Sigo para o evento com minhas idéias e as exponho sempre de modo coerente com o que escrevi. Se quiserem ouvir, bem. Se não, saiam do ambiente ou discutam de modo também respeitoso e civil. Claro, nem sempre os outros convidados agem de modo polido ou respeitoso. Aí, eu escuto os insultos e os respondo. Fui convidado pelo nstituto Millenium para falar em um seminário, para a entrevista abaixo, para ser um colunista. Aceitei as três coisas. A terceira foi recusada por mim, depois que notei não possuir eu afinidade profunda com os alvos do instituto. Mas escrevi aos seus responsáveis agradecendo o convite. Como deve ser. Como a grosseria dos que naqueles tempos estavam nos palácios, a escumalha que sujou as mãos com propinas, comprometendo a honra da esquerda, me atacou de modo vil, hoje creio ser importante republicar o texto da entrevista. Ele ainda serve, penso, para a reflexão desapaixonada sobre o Brasil e o mundo. Trata-se de uma das entrevistas mais longas e completas que dei. Ela foi atacada pelos militantes a soldo de seus chefes. E hoje, tais militantes estão à mingua de açõa política: perderam a muleta do poder, os anabolizantes das propinas, etc. Triste humanidade. E viva Thomas Hobbes, o lúcido!

Para Romano, a segurança econômica, “da qual fala a propaganda oficial” é uma das faces da apatia brasileira


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Roberto Romano
Em entrevista ao Instituto Millenium, o professor de Filosofia Política e Ética da Unicamp, Roberto Romano, pôde falar sobre ética, corrupção, apatia e do papel do Judiciário na transformação da realidade política brasileira recorrendo às bases históricas para analisar origens como a da complacência brasileira.

Para o professor, persistem no Brasil resquícios do absolutismo que se materializam na aceitação de políticos que roubam, mas fazem. “Esta complacência, ou cumplicidade das massas, é algo preparado com muita técnica e ardilosidade, e tem como datas principais as mesmas que indicam o nascimento do Estado absoluto”, afirma completando sobre as populações: “elas aprendem uma ética contrária à república e à democracia.”

De acordo com o professor, o Judiciário está inserido na estrutura do Estado brasileiro, e mesmo que boa parte de seus integrantes queira exercer a missão de julgar de acordo com os padrões republicanos e democráticos, a instituição repete a mesma problemática de outros setores, e com agravantes. “O debate nacional ao redor do CNJ, as tentativas de enfraquecer o trabalho da Corregedoria daquela instituição que deveria controlar a prática dos juízes, tudo mostra que dos três poderes o judiciário é o mais arredio aos elementos democráticos da transparência e da accountability”, afirma.

Apesar do quadro crítico,  com o agravamento do fato de a corrupção só enfraquecer o Estado de Direito, Romano vê vontade de transformação nos brasileiros que lutam pela aprovação da Lei da Ficha Limpa.

O especialista do Imil também relembra o trauma gerado por anos de inflação, defendendo a importância da estabilidade da moeda para trazer a racionalidade à democracia do país: “ Um povo que viveu sob a inflação e foi humilhado ao máximo por ela, se dispõe à entrega total a um líder populista.”

Ética e educação
Instituto Millenium – Existe uma crise ética em todo o mundo, qual é a especificidade do quadro brasileiro?
Roberto Romano – Sempre existiu e sempre existirá crise ética no mundo. A ética resulta do equilíbrio instável entre os comportamentos (reforçados pelos valores estabelecidos) e as novas formas de agir e pensar. Ela, portanto, supõe a crise, cujo significado original vem do grego krisis, “instante de passagem, de escolha, de prova, decisão”.  A cada átimo os nossos hábitos sofrem o teste maior: eles preservam a nossa vida e a existência da sociedade que nos acolhe? Formas tradicionais de comportamento, caso não permitam responder positivamente a tal pergunta, inevitavelmente perdem vigência em médio ou longo prazo.

Importa recordar o significado original do termo “ética”. Na semântica histórica o termo ressalta o sentido de “postura” (hexis). Como a sociedade grega era guerreira, os jovens deviam aprender as posições corretas para a corrida, o uso das lanças etc. Tal aprendizado se fazia nas disputas, sob orientação de instrutores ou no próprio campo de batalha (Platão diz que os meninos deveriam sentir o cheiro do sangue, nas guerras). Era vital correr certo, pois o uso inadequado dos pés, das pernas, de todo o corpo, faria o exército perder tempo, podendo ser vencido. Ora, quem aprende a andar errado, repete o erro automaticamente. Idêntico automatismo ocorre quando se adquire a posição correta. Hexis, assim, é algo vital para a sociedade grega, sendo por semelhante motivo valorizada a sua prática certa. O automatismo traz o problema. Quando alguém anda ou corre erradamente, com muita dificuldade poderá corrigir o erro que, de tanto ser repetido, torna-se inconsciente. É preciso aprender o certo desde a mais tenra infância, daí o fato de a ética ser ligada diretamente à educação. Com o tempo, por metáfora, a postura passou a ser empregada para a atividade da mente. Assim como se aprende um bom gesto físico, também se aprende um bom raciocínio. Ou, em caso oposto, uma péssima postura na forma de pensamento. Também aqui é estratégico que a criança aprenda a boa postura desde a mais tenra idade, caso contrário ela aprenderá formas erradas de imaginar, calcular, agir diante dos valores imateriais.

O problema é que a sociedade grega, apesar de sua elevação filosófica, artística, científica, assumiu o automatismo de sua cultura, a que dizia aos cidadãos da polis que eles eram os únicos dignos de ostentar o título de homens, seres plenamente racionais e valorosos. Assim nasceu o mito da autoctonia e da supremacia grega sobre os orientais e os ocidentais do Norte europeu. Aristóteles, na “Política”, diz que os homens do Oriente têm inteligência aguda, mas são covardes. Os europeus do Norte são bravos, mas pouco brilhantes no pensamento. Os gregos, bem, eles reuniriam a coragem à mente lúcida. E seriam, propriamente, homens. Os demais povos, os bárbaros (palavra produzida com uma onomatopéia, que imita sarcasticamente os estrangeiros ignorantes da língua grega, sendo portanto alheios ao Logos, à razão) tinham como destino ser dominados pelos helênicos.

Surge aí um automatismo que persegue a ética ocidental até hoje, impedindo sua plena cooperação com outras éticas. Tal postura pode ser grosseiramente racista, mas pode ser traduzida em pensamentos etnocêntricos, embora refinados intelectualmente. É o caso do brilhante historiador da cultura guerreira grega, Victor Davis Hanson em livros como “Porque o Ocidente venceu?”. Mas a superioridade auto-atribuída pelos ocidentais não vai além da imagem idealizada. Na realidade, mesmo a Grécia entra no movimento geral das éticas mediterrâneas. Ela muito aprendeu com o Egito e demais impérios do Oriente Médio e do Mediterrâneo.

Mais adiante, a partir do século XIV (era cristã) a ética européia foi se transformando, a cada século mais rapidamente, no trato com as do Oriente Médio, da África, das Américas, do Extremo Oriente. O mesmo ocorre com as últimas diante da européia. No século XX as trocas entre as éticas regionais do planeta se tornaram a cada passo mais aceleradas, devido, sobretudo, às tecnologias da comunicação. Do telégrafo à Internet, o comércio espiritual entre as éticas se complexificou, tornando-se sempre mais amplo, emaranhado, contraditório. Os movimentos retrógrados, que insistem em conservar valores e hábitos inadequados à nova configuração do planeta, tendem a se definir como quistos que apenas preparam o isolamento de seus praticantes, ou seja, elas trazem a morte próxima ou lenta de sua cultura, formas políticas, econômicas, religiosas, estéticas e tecnológicas.

Sigo o pensamento do etnólogo André Leroi-Gourhan. Para ele, a cultura técnica – base da ordem ética – para se reproduzir, exige das sociedades duas forças aparentemente contrárias: a primeira é a capacidade de inventar instrumentos, valores, hábitos; a segunda reside na aptidão para emprestar de outras sociedades instrumentos, valores, hábitos. Quem não consegue emprestar é incapaz de inventar e vice-versa.

É o que vemos no planeta, sobretudo após o século XVI. Os europeus emprestaram da China, da Índia, do Japão ciências e técnicas em todos os domínios da vida. E inventaram, a partir daí, novas técnicas, ciências, hábitos. No campo estético tomemos, no século XVIII, no rococó, a quantidade de formas e traços conhecidos como “chinoiserie”, ou seja, empréstimos do Japão e da China, nas artes plásticas. No século XX, temos o movimento amplo chamado Art Nouveau. Ele é uma síntese de elementos orientais e do Ocidente.

O mesmo pode ser dito de toda a cultura e da ética. Gourhan mostra, após muitas pesquisas sobre a origem e a vigência da tecnologia desde os nossos alvores como humanidade, que nosso corpo é produto de nossa técnica, que desde o princípio vivemos em tecnosfera.

Moldamos nosso corpo inteiro, dos pés à caixa craniana, o que possibilitou as técnicas de manipulação e a linguagem. Mas o principal é que o nosso corpo, base da ética, se prolonga no universo dos objetos técnicos que produzimos, mas não criamos. É bom recordar a diferença entre “criação” e “produção”. No pensamento judaico-cristão, existe a idéia de um ser onipotente que gera a natureza do nada. No pensamento grego, a natureza já está ao dispor dos deuses, que a controlam, e dos homens que imitam os deuses, ou desafiam os deuses como Prometeu. Assim, nesta forma de raciocinar, não existe criação, mas produção a partir e, não raro, contra a natureza que deve ser submetida pelos nossos atos técnicos. Se não existe criação absoluta, também não existe autoctonia técnica plena. Cada sociedade inventa sua técnica (e nela, a sua ética) emprestando traços de outras sociedades. Só é capaz de inventar, retomo, quem se tornou competente para emprestar.

“Uma cultura presa em si mesma, sem choques com outras, nada acrescenta,
nada inventa no seu trato com a natureza e consigo mesma”.

Ou seja, a técnica é um movimento perene de Krisis, de decisão, escolha, teste. O mesmo para a ética. Uma cultura presa em si mesma, sem choques com outras, nada acrescenta, nada inventa no seu trato com a natureza e consigo mesma. Daí, o fato de que a crise, longe de ser algo nocivo, é essencial para a sobrevivência correta, a expansão e o desenvolvimento da técnica e da ética. Outra noção de Krisis dá bem a medida da coisa: para os médicos dos tratados hipocráticos (outra fonte rica das elaborações éticas do Ocidente), a crise da doença é o momento em que ainda não foi vencida a moléstia (a morte pode vir) e já surgem sinais de recuperação da saúde. A crise, portanto, pode seguir para a morte ou para a vida. Tudo depende da perícia técnica do médico, da cooperação do adoecido, das forças que se chocam no seu corpo. Ocorre com a crise o mesmo que se passa no plano do remédio.  Os médicos gregos nomeiam como Pharmakon os medicamentos, que podem ser remédios ou venenos, muitas vezes dependendo da dose, do saber técnico no seu emprego, do corpo adoecido. Assim também na ética: ficar muito tempo na indecisão sem usar medidas técnicas para sair da crise, significa aceitar o desaparecimento. Mas não se deve ser precipitado, pois apressar o fim da crise antes do tempo pode ser desastroso. Esta é a lição política ensinada pelos médicos aos teóricos da política, de Aristóteles até Maquiavel. Trata-se da noção do Kayrós, o tempo oportuno. Quem deseja solucionar uma crise ética ou política deve saber qual o instante certo para decidir as coisas. Um minuto antes, um minuto depois, pode ser a ruína de uma sociedade ou Estado. O comércio praticado entre as éticas, desde a era antiga até a moderna, supõe a noção de crise, de tempo oportuno, de empréstimo e invenção.  Falar em “choques” ou “guerra” de culturas e de éticas significa tomar as coisas pela rama, ignorar o principal, a perene crise de todas as formas culturais, aceleradas na modernidade.

O Brasil… bem, o Brasil é o amálgama de uma ética absolutista europeia com elementos dinâmicos da modernidade. Nossa ética se enquistou no absolutismo que ignora e mesmo combate a democracia real (pensemos no privilégio de foro, excrescência do século XVII em pleno século XXI brasileiro), no menosprezo pelas técnicas de ponta, na desconfiança diante das conquista políticas mundiais, bastando ver o ódio votado aqui à liberdade de imprensa, no veto à existência de uma oposição efetiva, no conúbio entre o público e o privado. Emprestamos apenas alguns elementos do processo de mundializacão técnica e ética. Somos ainda incapazes de inventar novas éticas, o que não nos assegura um futuro invejável, apesar de todas as nossas potencialidades e riquezas. Se continuarmos ignorando a geração técnica, se não investirmos em inovação em nossas indústrias e direção de empresas, se persistirmos em viver sob uma forma de governo anacrônica (o absolutismo dos operadores do Estado, que se julgam e agem como se não devessem prestar contas a ninguém, sobretudo ao “cidadão comum”), setores vitais de nossa sociedade e de nossa ética serão ainda mais fossilizados, no mesmo passo em que outras sociedades agilizam e aproveitam com sentido certo de tempo oportuno as suas crises, assumem novos rumos, inventam novos valores e geram novos horizontes.

Estado e corrupção
Imil – Os constantes casos de corrupção no país são fruto de falhas institucionais? É possível corrigir essas falhas aprimorando as instituições?

Romano – São fruto de nossa ética, na qual a postura de governados e governantes permite a diferença entre “ser do poder”e “ser gente comum”. Tal resquício do absolutismo torna possível uma classe especial de seres, os poderosos, que tudo fazem em detrimento dos cofres públicos e em favor de seus bolsos. Vivemos até data recente com a admiração popular diante de personagens que, se dizia, “roubam, mas fazem”. Esta complacência, ou cumplicidade das massas, é algo preparado com muita técnica e ardilosidade, e tem como datas principais as mesmas que indicam o nascimento do Estado absoluto.

“Os impostos, a polícia, as guerras, a administração,
tudo é razão e segredo de Estado no absolutismo”.

Neste último, as fontes públicas de recurso se concentram nas mãos dos governantes, que as direcionam no interesse do governo, sem ouvir os que pagam impostos. Estes, por sua vez, não têm direitos a reclamar nas políticas públicas.

Mesmo porque a essência do poder absolutista reside na razão de Estado que é co-natural ao segredo de Estado. Os impostos, a polícia, as guerras, a administração, tudo é razão e segredo de Estado no absolutismo. Certa feita o rei francês pediu um aumento de imposto à Assembléia dos Estados (nobreza, clero, terceiro estado). Sua desculpa era a guerra. Os representantes do terceiro estado pediram para inspecionar as contas reais. O clero, setor mais influente na época, em seu voto disse que as finanças do rei eram como o Santíssimo Sacramento no cofre sagrado. Apenas os que tinham poder divino poderiam saber o que nelas se escondia… Segredo e razão de Estado são sinônimos, em todos os sentidos. E o governante absolutista distribuía privilégios para se manter no comando do Estado. Dentre os privilégios, contemos os recursos financeiros, as terras etc. O clero e os nobres eram os mais agraciados com tais privilégios, pagos à custa dos contribuintes. Rei, clero, nobres, nenhum deles julgava ter de prestar contas de seus atos e dos dinheiros. Ora, quando as revoluções modernas, republicanas e democráticas, já tinham sido efetivadas (a inglesa ainda no século XVII, a norte-americana e a francesa no XVIII), no Brasil do século XIX se reitera o absolutismo sob comando do príncipe Dom João, mantendo-se os fundamentos do privilégio, do segredo, da irresponsabilidade no manejo dos recursos públicos.

Aliás, fugido de Napoleão, que bem ou mal representava um avanço democrático quando comparado ao Antigo Regime absolutista, Dom João fez do Brasil um país refratário às “doutrinas infernais” da república, da democracia etc. Foi assim que o Príncipe fez o Banco do Brasil, que imprimiu papéis sem lastro e foi obrigado a fechar. O governante viu apenas as suas necessidades, sem cuidar nem um pouco da accountability.

A justificativa do Poder Moderador, na Carta de 1824, encontra-se nesta ressurreição, nos trópicos, do absolutismo. Com o Império, concentraram-se na Corte os impostos, que os distribuía pelas províncias e municípios conforme a sua obediência aos ditames do poder imperial. Assim, cidades ficaram séculos sem serviços públicos elementares. É quando os poderosos regionais se unem em oligarquias para arrancar meios do poder central, oferecendo como troca o controle das populações e apoio aos projetos do governo. Algo mais grave ocorre ainda no plano ético. Como as cidades são desprovidas de recursos, os fazendeiros (candidatos a oligarcas) que têm lugar nas Câmaras de Vereadores e na Prefeituras, emprestam o seu próprio dinheiro (além da mão de obra escrava que lhes pertencia e dos materiais, comprados no Rio ou São Paulo) aos cofres municipais para obras públicas. O fato surge aos olhos dos cidadãos como um favor prestado à coletividade. Mas breve surge a contrapartida.

“Importa sublinhar que a passagem do ‘favor’ ao uso do dinheiro público, ocorre com aprovação
ou mesmo cumplicidade dos governados. Tal é a origem do ‘é dando que se recebe’ e do ‘rouba, mas faz’”

A professora Maria Sylvia Carvalho Franco mostra que, tempos após a instauração de tal prática, os vereadores e prefeitos imaginaram o processo como rua de mão dupla: “se quando o município precisa, eu empresto, quando eu preciso…”. Temos aí o uso de confundir o dinheiro público com o privado, usando o primeiro para ascender socialmente, comprar postos de mando, alianças políticas, etc. Em “Homens Livres na Ordem Escravocrata”, todo o sistema é exposto com detalhes e provas. Importa sublinhar que a passagem do “favor” ao uso do dinheiro público, ocorre com aprovação ou mesmo cumplicidade dos governados. Tal é a origem do “‘é dando que se recebe” e do “rouba, mas faz”.

Mantida a concentração do poder no palácio presidencial, em detrimento dos Estados e municípios, mantido o sistema concentrador de impostos no poder “federal”, as populações não têm outra escolha senão votar nos poderosos regionais, os oligarcas, que trazem obras para as cidades. Ou seja, elas aprendem uma ética contrária à república e à democracia. Nem os proprietários do poder central, nem os oligarcas, imaginam ter obrigação de prestar contas de recursos aos contribuintes. Mas exigem cada vez mais impostos para prestar “serviços” ineficientes na saúde, educação, segurança, cultura, ciência e técnica. Eles julgam ter direito a colocar no bolso próprio, ou de seu partido, parte do butim, para manter os “favores”, ou seja, a realização de obras públicas nas urbes.

E agora vem a pior parte: desafio qualquer pessoa a lançar um candidato ético, respeitador dos dinheiros públicos, em qualquer eleição brasileira. Se ele provar que trará, ou trouxe, obras públicas para os eleitores, será eleito tantas vezes quanto possível o que trouxer obras públicas. Caso contrário, receberá parcos votos.

O eleitor que, diante dos jornais, rádio ou TV diz ter nojo da corrupção política, não sabe ou não quer saber o que os políticos “eficientes”devem fazer, no Congresso, para conseguir os recursos. O mínimo é praticar o “é dando, que se recebe, o toma lá dá cá”. Ou seja, a corrupção é tridimensional: existe o corruptor de obras públicas, o corrompido dos poderes, o eleitor… Sem uma efetiva democratização que obrigue os gestores a prestar contas, sem uma abolição dos privilégios (em especial o de foro), sem uma federalização que permita maior autonomia (sobretudo financeira) aos Estados e Municípios, a fábrica da corrupção ética e financeira estará funcionando em pleno vapor. Tenho alguns escritos sobre o problema. Em especial, gostaria de indicar um texto meu saído na Revista de Economia Mackenzie, cujo título é “Impostos e Razão de Estado”.

Imil – Qual é o papel do Judiciário na mudança desse quadro?
Romano – O Judiciário está inserido na estrutura do Estado brasileiro, ou seja, mesmo que boa parte de seus integrantes queira exercer a missão de julgar de acordo com os padrões republicanos e democráticos, a instituição é homóloga à dos outros setores, com agravantes. O Executivo e o Legislativo seguem regras de transparência e são submetidos à opinião pública, à  imprensa, ao voto. Quando perdem seus cargos, perdem a remuneração e, quando seus processos judiciais não recebem o sinal do segredo de justiça, sua vida inteira se transforma em objeto de análise pública. Não é assim com os magistrados. Quando perdem seu cargo, guardam seu pagamento, são julgados pelos pares em plano sigiloso e, quando fica evidente a sua ausência de ortodoxia ética no cargo, não recebem punição a tempo e a hora.

O debate nacional ao redor do CNJ, as tentativas de enfraquecer o trabalho da Corregedoria daquela instituição que deveria controlar a prática dos juízes, tudo mostra que dos três poderes o judiciário é o mais arredio aos elementos democráticos da transparência e da accountability. Existem exceções, com certeza, mas a regra não é passível de aplausos unânimes.

Modo geral, os que operam no campo do direito manifestam um alto teor de corporativismo e, em muitos casos, de desprezo pelos “estranhos”, os “leigos”, os “cidadãos”comuns. Eles esquecem que, num mundo altamente dividido em especializações, o jurista também é leigo para o médico, o engenheiro, o arquiteto, o economista, o físico, o químico, o administrador de empresas, etc. Existem questões que vão além das especialidades. Tais questões não admitem donos da verdade nem ditadores da ciência, seja ela jurídica. Muitos operadores do direito, aqui incluindo advogados e promotores além de juízes, não admitem o ponto. Além disso, o judiciário não tem exercido o papel que lhe cabe de morigerar os outros poderes. Haja vista a facilidade com a qual é aplicado o privilégio de foro, sem um questionamento protocolar: ele fere o princípio da igualdade de todos perante a lei. Quando os que praticam improbidade com os recursos públicos fogem do juiz natural, o da primeira instância, e são supostamente colocados sob o julgamento dos tribunais superiores (quantas penalidades foram mesmo aplicadas até hoje?) temos a ruptura com o regime ordenado na Constituição e referendado pela cidadania. Esta última recusou a forma da monarquia (com tudo o que ela implica no Brasil de privilégios, lembremos que mesmos em países monárquicos do mundo atual, os políticos não gozam dos privilégios que lhes são outorgados aqui), mas a justiça passa ao largo, aceitando um ordenamento evidentemente injusto, escandaloso, inconstitucional. O privilégio de foro não cria a corrupção, mas a reforça e torna os improbos mais arrogantes, sem tomarem sequer nos dias de hoje a cautela de esconder suas manobras fraudulentas. O que se praticava dissimuladamente tempos atrás, se comete hoje em plena praça pública.

Imil – Qual é o impacto dos constantes casos de corrupção no alto escalão do governo?
Romano – Acho mais adequado perguntar sobre o impacto da corrupção sobre o Estado e a sociedade como um todo. O primeiro e mais deletério é o sumiço da fé pública. E sem tal elemento não existe Estado de direito. Se não é possível confiar nos gestores do Estado (nos três poderes), não há motivo para obedecer a lei, pagar impostos, servir militarmente, viver segundo as regras civilizadas. Investir recursos privados em setores que dependem da administração pública, quando é sabido que tais recursos irão parar nos cofres dos partidos e dos indivíduos que operam na política, é tarefa que beira a falta de sentido.

As pesquisas que indicam a perda progressiva de fé da cidadania no sistema democrático deveria ser um alerta aos que ainda buscam um modo de vida pautado pelos valores da democracia. Mas quantos, na camada política, valorizam a república, a democracia, a responsabilidade, o respeito às leis vigentes? Quando legisladores quebram a lei, como ocorre com frequência terrível no Brasil, perde sentido se falar em Estado, ou mesmo Estado de Direito.

A violência que grassa em nossa sociedade (basta ver o trânsito, 40 mil morte por ano, mais do que em muitas guerras tremendas ocorridas nos últimos anos no planeta) mostra os efeitos da corrupção de maneira clara. Basta dizer que os assassinos do trânsito, como os improbos, escapam das malhas da justiça de modo fácil. É bom recordar o dito de Diógenes: “A lei é uma teia de aranha que prende os insetos pequenos, e não resiste à força dos grandes”, pois nela fazem buracos confortáveis. Pelo que ocorre no Brasil, haja conforto!

Reação e mobilização
Imil – Como o senhor avalia a baixa adesão da população nas manifestações contrárias à corrupção?
Romano – Nosso sistema leva a população a aceitar “favores” dos que operam o Estado. Se ela não identifica favores nos oligarcas, os encontra em ações governamentais. Antes, valia como arma política de controle o bico de pena. Hoje, o cartão magnético do Bolsa Família e outros mais. E os setores da classe média e dos mais bem aquinhoados temem perder algo conquistado após muito desespero, ou seja, a inflação razoavelmente baixa e a estabilidade econômica.

Imil – Existe no país um clima de otimismo, Copa do Mundo, Olimpíadas, uma crise econômica que parece distante… Tal quadro dificulta o exercício e a repercussão do pensamento crítico no país?
Romano – Não podemos pensar que apenas a conjuntura poderia explicar semelhante apatia popular diante da corrupção. Devemos, antes de tudo, dizer que o alheamento não é absoluto, pois cerca de dois milhões de pessoas se movimentaram para conseguir a lei da Ficha Limpa. Esta, apesar de tudo, marca o desejo dos cidadãos de combater o processo corrosivo que anula o Estado de direito entre nós.

Para compreender o motivo da suposta passividade do povo brasileiro diante da corrupção, precisamos refletir sobre o peso da inflação na vida nacional, de 1954 até o Plano Real. Um processo inflacionário como o vivido em nossa terra corrompe valores, quebra resistências éticas, abre caminho para o desespero de indivíduos, grupos, classes.

Permitam que eu cite um dos autores mais relevantes na análise política e antropológica do século XX, Elias Canetti. Em sua obra lúcida e profunda chamada “Massa e poder”, existe um capítulo fundamental intitulado “A inflação como fenômeno de massa”. Em outros livros e textos ele comenta o impacto da inflação na ordem social e política. Tanto sua autobiografia (“Die Fackel im Ohr” ou “A torcha no ouvido”), quanto “Auto-da-fé” (“Die Blendung”) trazem situações vividas durante o tremendo processo inflacionário de Weimar. Como seu contemporâneo Georg Simmel, que publicou um monumento teórico chamado “Filosofia do Dinheiro” (“Philosophie des Geldes”, 1900, existe tradução inglesa da obra, “The Philosophy of Money”), Canetti presta atenção ao papel do dinheiro na ordem cultural moderna e na geração da identidade psicológica das pessoas.

Ele parte de um fato incontestável: “Pode-se afirmar que nas nossas civilizações modernas, excetuando-se as guerras e as revoluções, não existe nada que em sua envergadura seja comparável às inflações”. Canetti mostra como há um nexo entre o corpo do homem, a sua mão sobretudo, e a moeda. Com o enfraquecimento deste vínculo, após o papel moeda (embora o padrão ouro ainda garanta a confiabilidade de uma economia), ainda permaneceu um ponto de estabilidade e confiança nos governos democráticos. Trata-se da cifra que indica o “milhão”. Como designação de um número, o “milhão” tanto pode referir-se ao dinheiro como aos homens. E Canetti nos reconduz à íntima passagem entre a inflação verbal e a econômico-política. Milhão: “O caráter duplo da palavra pode ser analisado muito bem nos discursos políticos. O prazer voluptuoso do número que cresce repentinamente, por exemplo, é característico dos discursos de Hitler. Em geral, ele se refere aos milhões de alemães que ainda vivem no exterior do Reich que ainda precisam ser redimidos”.

Importa sublinhar: no mundo atual, massa e milhão relacionam-se imperativamente. No processo inflacionário, entretanto, “a unidade monetária perde repentinamente sua personalidade. Ela se transforma na massa crescente de unidades; estas possuem cada vez menos valor à medida que aumenta a massa. Os milhões, que tanto se quis possuir, estão repentinamente em nossas mãos, mas já não são mais milhões, apenas se chamam assim.

Na inflação, ocorre um elemento perverso e perversor: “O que cresce toma-se cada vez mais fraco. O que antes era um marco é agora dez mil, depois cem mil, depois um milhão. A identificação do homem individual com seu dinheiro é abolida desta forma”. O homem, que antes confiava na sua moeda ou bilhete, não “pode evitar sentir seu rebaixamento como um rebaixamento dele próprio. (…) A inflação não abala apenas tudo externamente; nada mais é seguro, nada permanece no mesmo local durante uma hora; em virtude da inflação, ele mesmo, o homem, diminui. Ele mesmo, ou o que ele foi, é nada; o milhão, que ele sempre desejou ter, também é nada. Todos o possuem. Mas cada um é nada”.

A inflação, desse modo, pensa Canetti, é uma “desvalorização dupla (…), o indivíduo sente-se desvalorizado, porque a unidade na qual confiou, que ele respeitava tanto como a si mesmo, começou a deslizar para baixo. A massa sente-se desvalorizada. (…) Como pouco se vale sozinho, igualmente pouco se vale unido aos demais. Quando os milhões aumentam, todo um povo de milhões se converte em nada”.

A massa, entretanto, não se esquece de sua desvalorização. “A tendência natural, a partir daí, é a de encontrar algo que valha ainda menos do que a própria pessoa, algo que possa ser desprezado da mesma forma como se foi desprezado antes.” A massa, digamos, busca um bode expiatório onde descarregar o sentimento de ser nada. Canetti aponta para o vínculo entre a inflação alemã e os milhões de judeus, supostamente inferiores aos arianos empobrecidos pela inflação, mortos nos campos de extermínio.

A lição trazida pelo processo inflacionário de Weimar não foi aprendida o bastante pelas sociedades ocidentais. O descontrole da economia traz inflação e, com ela, massas dispostas a seguir os mais diversos Messias, cobrando de supostos culpados toda a insegurança e humilhação vividas.  Basta ver o que se passa na suposta União Européia nos últimos tempos. Recomendaria modestamente a leitura de um livro relevante para os nossos políticos, magistrados, universitários, jornalistas. Penso no volume publicado por Bernd Widdig (“Culture and inflation in Weimar Republic”), onde inclusive existe um capítulo inteiro dedicado às análises de Elias Canetti.

No caso brasileiro a população, desacostumada aos procedimentos democráticos (no século XIX, os nossos governantes dificilmente poderiam ser postos entre os campeões da democracia), algo piorado por dois regimes de exceção no século XX, e também afeita aos favores que espera dos que operam o Estado, não teve oportunidade de exercitar ativamente a crítica e a cidadania. Se na Alemanha, onde o nível da participação política das multidões foi elevado, sobretudo após 1848 (a era das revoluções) aconteceu um descontrole econômico e político desastroso como a inflação, conduzindo à fé cega num redentor, no caso Adolf Hitler, não é de espantar que no Brasil tenham medrado arremedos messiânicos como o de Jânio Quadros, José Sarney (recordemos a histeria dos “fiscais do presidente” que invadiam supermercados, prendiam gerentes, penetravam em fazendas na caça aos bois gordos, com base na lei delegada etc), Fernando Collor… A cada nova onda de fé no salvador presidencial, seguia uma onda de humilhação, perda da autoestima, desespero diante do presente e do futuro.
Com o Plano Real, se estabelece a racionalidade política que atenuou a inflação, conduzindo-a a níveis suportáveis. De imediato, veio a popularidade imensa de Fernando Henrique Cardoso que o levou ao Planalto e o elegeu novamente. Na mesma onda de fé no Salvador, foi eleito Luis Inácio da Silva que, à diferença de Fernando Henrique Cardoso, não apenas se adequou ao papel de redentor, como o exacerbou com poderosa ajuda de Duda Mendonça e João Santana. “Nunca antes neste país”, é o slogan que une a salvação da economia à pessoa do Presidente providencial. “Marolinha” é o modo pelo qual o próprio governante procurou exorcizar um impasse do qual ainda desconhecemos o real perigo. E apesar dos exorcismos, a inflação cresce a olhos vistos.

A apatia que hoje se observa nas massas urbanas brasileiras tem várias faces, sendo que a primeira é justamente a segurança econômica, da qual fala a propaganda oficial necessariamente.
Protestar contra a corrupção parece ser algo menor, se comparado ao pesadelo vivido antes do Plano Real. Acrescente-se que a mesma propaganda “sequestrou” o peso dos governos Itamar Franco e Fernando Henrique na construção daquela segurança: “nunca, antes neste país…”. A segunda face, mais triste, é o conúbio dos eleitores com os corruptos que lhes fazem “favores” pessoais ou coletivos (trazem obras para as cidades etc). A terceira é o controle quase absoluto do governo federal sobre as obras públicas no país inteiro, facilmente transformando-as em instrumento político eleitoral. E temos várias outras faces.

Mas digamos, para encerrar esta longa resposta, que um povo que viveu sob a inflação e foi humilhado ao máximo por ela, se dispõe à entrega total a um líder populista. E tal fato traz muitas preocupações com o futuro da democracia.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Instituições mostram grande preocupação com atual cenário político no país

Instituições mostram grande preocupação com atual cenário político no país

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O professor de Ética e Filosofia da Unicamp, Roberto Romano faz uma analogia entre a situação política do país e naufrágio do Titanic. Nessa lógica, pode-se dizer que o navio atingiu o iceberg no exato momento que a delação dos irmãos Batista da JBS se tornou pública e colocou no centro das denúncias de corrupção o presidente Michel Temer, o senador afastado Aécio Neves e pessoas ligadas a ele.
Apesar desses protagonistas, todo país está abordo da embarcação. Por exemplo, área do comércio. O economista da Associação Comercial de Campinas, já sente a água entrando.
No setor da construção civil, é como se a boia salva vidas tivesse sido retirada bem na hora que fôlego foi recuperado. Em nota, o sindicato manifestou profunda preocupação diante do risco do agravamento da economia, em um momento em que, em Campinas, por exemplo, o nível de desemprego parecia ter estancado, com um abril com 270 contratações, após sequências de demissões.
No setor Industrial, a pressa por uma solução é relatada pelo diretor regional do Ciesp Campinas, José Nunes Filho.
Com a iminência de que o choque no iceberg tenha ocorrido por falha humana, a dúvida se o comandante mantém a responsabilidade ou abandona o barco, permanece. Para o professor da Unicamp, Roberto Romano – agora deixando a analogia, mesmo que Michel Temer continue como presidente, a situação politica fica insustentável.

CBN Campinas, Temer/JBS

http://www.portalcbncampinas.com.br/2017/05/professor-de-etica-e-filosofia-da-unicamp-roberto-romano-faz-uma-analise-da-crise-politica-no-brasil-apos-as-delacoes-da-jbs/

Professor de ética e filosofia da Unicamp, Roberto Romano faz uma análise da crise política no Brasil após as delações da JBS

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UOL Notícias, entrevistas sobre a crise Temer

Análise: Divulgação de áudios enfraquece governo e Temer "ficará sozinho" Comente Gisele Alquas Do UOL, em São Paulo 19/05/201704h00 Ouvir texto 0:00 Imprimir Comunicar erro Ueslei Marcelino/Reuters Michel Temer durante... - Veja mais em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/05/19/analise-divulgacao-de-audios-enfraquece-governo-e-temer-ficara-sozinho.htm?cmpid=copiaecola
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Roberto Romano, profesor de Etica y Filosofía Política de la Unicamp: “Michel Temer difícilmente resistirá en el palacio”

Mundo Actualizado hoy a las 02:30
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Roberto Romano, profesor de Etica y Filosofía Política de la Unicamp: “Michel Temer difícilmente resistirá en el palacio”

Autor: La Tercera

El docente señala que la situación del mandatario "es más grave que la crisis que llevó al suicidio del Presidente Getulio Vargas, y más peligroso de lo que ocurrió con el golpe de 1964, la caída de Jânio Quadros, Fernando Collor y otros hechos.

Roberto Romano, profesor de Etica y Filosofía Política de la Unicamp: “Michel Temer difícilmente resistirá en el palacio”
Foto: Reuters
 
“No soy profeta, pero…”, dice el profesor de Etica y Filosofía Política de la Universidad Estatal de Campinas (Unicamp), Roberto Romano, tras recordar una entrevista suya publicada el lunes en Brasil donde aseguraba que Michel Temer “aguarda el momento de salir”. En esta entrevista con La Tercera Romano analiza el impacto de la denuncia del diario O Globo.

A su juicio, ¿qué tan grave es hoy la situación política en Brasil?
El hecho es más grave que la crisis que llevó al suicidio del Presidente Getulio Vargas, y más peligroso de lo que ocurrió con el golpe de 1964, la caída de Jânio Quadros, Fernando Collor y otros hechos. No existe un liderazgo político nacional que pueda asegurar la continuidad estable del gobierno y de las instituciones. Crece el deseo de grandes sectores de la población de un golpe militar.

¿Cobra fuerza el impeachment de Temer?
Sí, crece el número de los que quieren el impeachment del Presidente. Difícilmente él resistirá en el palacio.

Además de la oposición, partidos de la base de Temer, también apoyarían el impeachment. ¿Cómo se explica este giro?
No es un giro. Las bancadas de apoyo al Ejecutivo, en el Congreso brasileño, son habitualmente compradas, sin mayor compromiso ideológico o doctrinario. Es lo que ocurre hoy: los comprados no tienen compromisos con Temer (como no tuvieron con Dilma). Ellos tienen compromiso con su supervivencia política, que se torna algo desesperado hoy en día.

¿Cree posible que se adelanten las elecciones?
Es posible, pero casi inviable. En primer lugar, porque no hay estadistas que puedan candidatearse con éxito, además de Luiz Inácio Lula da Silva, él mismo amenazado por la Operación Lava Jato. La elección indirecta, por el Congreso, tropieza en el hecho de su ilegitimidad. Como buena parte de los parlamentarios están implicados en investigaciones sobre corrupción, ellos difícilmente podrán elegir un estadista que consiga apoyo de la población, de los empresarios, de las iglesias, de los movimientos sociales.

El senador Aécio Neves fue separado del cargo por sospechas de corrupción. ¿Cómo queda la carrera presidencial en el PSDB?
El ya perdió toda fuerza política. Ha perdido el cargo de presidente del PSDB y, con certeza, no tendrá una cantidad de votos ni siquiera para cargos menores del Estado. Está desmoralizado de forma definitiva.

¿Cómo repercute toda esta situación en la candidatura de Lula para 2018?
Lula, como señalé previamente, es el único candidato conocido en todo Brasil, su popularidad es elevada. Pero tiene problemas con la justicia. La historia brasileña, desde 1899, es la sucesión de golpes de Estado, como lo es por demás en toda América del Sur. Golpes y contragolpes marcan la historia política brasileña.

quinta-feira, 18 de maio de 2017

O que está por vir?

Intelectuais do IFCH-Unicamp fazem projeções sobre desdobramentos das delações da JBS
Foto: Reprodução

Foto: Reprodução
Manifestantes protestam na Avenida Paulista (acima), em São Paulo, e em Brasília (abaixo) 
Qual é o cenário futuro diante das denúncias da JBS contra Michel Temer e Aécio Neves, que podem levar à renúncia do presidente e à prisão do já afastado senador? É a questão que os professores Reginaldo Moraes, Walquíria Leão Rêgo, Roberto Romano e Marcelo Ridenti, todos do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, procuram comentar, com a ressalva de que se tratam de palpites, diante de fatos ainda nebulosos demais.

Reginaldo Moraes, professor do Departamento de Ciência Política
Foto: Antoninho Perri

O que se pode prever é que o governo Temer está em uma encruzilhada fatal, que ele próprio provocou, porque foi se envolvendo cada vez mais na tentativa de apagar os rastros das operações obscuras que tinha feito, e criava mais rastros ainda. A questão mais grave que se coloca agora é que para qualquer outra solução no pós-Temer, supondo que ele de fato caia, vai sobrar o quê?

Constitucionalmente, tem a linha de sucessão. Os presidentes da Câmara e do Senado estão igualmente na mira, muito comprometidos com dificuldade de controlar seu próprio futuro. Sobraria a bomba nas mãos da presidente do STF, que é uma pessoa absolutamente despreparada para qualquer coisa, mas é o que vai sobrar se a linha sucessória for mantida. Se não for mantida, você tem uma ruptura política, uma saída heterodoxa fora da previsão constitucional, que pode ser uma eleição direta.

A subida da presidente do STF resultaria numa eleição indireta mais adiante. Ela ocuparia a cadeira do Temer para convocar a eleição indireta do novo presidente, arrastando isso até 2018. Seria esse o trajeto, repetindo 54, com a morte do Getúlio. Só que esse caminho também é extremamente delicado. Ela teria que, de certo modo, conter manifestações para eleição direta, teria que chamar repressão policial e militar para conter as pressões.

O cenário é muito delicado. Aparentemente quem tomou a dianteira parece ter sido as Organizações Globo: não sei se tinham a carta na manga, mas provavelmente, a partir de agora, é essa que têm. Provavelmente tentarão trabalhar por ela. Eleição direta é a última coisa que querem no momento, sobretudo com o quadro de desmantelamento das lideranças conservadoras, alinhadas com a Globo e que estão todas muito mal na fotografia.

Aqueles que estão caindo em desgraça não serão cabritos silentes. Ninguém vai prender Aécio, porque agora cai o Aécio, mas também a mesada do Cunha e toda a proteção que ele tinha graças a esse acordo. Delação e esperneios do Cunha. Não sobra pedra sobre pedra. Isso significa mesmo no curto prazo um deus nos acuda não só do lado do governo, mas de sua base aliada. Acho que todo mundo no Congresso está procurando um lugar para se esconder. Vão sobrar apenas as forças políticas ideologizadas que têm existência como corrente política de fato e não como legenda de aluguel. Quem tem esse tipo de composição são a ultradireita e a ultraesquerda. Vai ter mais polarização. O cenário é de desmanche, muito preocupante.

Walquíria Leão Rêgo, professora do Departamento de Sociologia
Foto: Antonio Perri

Parece-me que há um conflito entre a Procuradoria Geral da República, alguns ministros do Supremo e algumas forças políticas; que essa luta estava um pouco prevista, com as rachaduras nas próprias forças golpistas que atentaram contra a democracia brasileira, contra o projeto mais igualitário dos governos petistas. De outro lado, essa crise mostra a degradação das instituições, uma crise muito grave sobretudo envolvendo o Judiciário brasileiro, que está se mostrando de uma grande imoralidade.

Acho que o grande projeto deles é não deixar ocorrer as eleições em 2018, porque para permiti-la eles teriam que arrumar alguma coisa para impedir a candidatura Lula, que já é muito forte. Não dá para saber, nem eles estão se entendendo. Por que a Globo, que sempre ataca o Lula, de repente parece fazer diferente? Não dá para entender o que acontece. Acho que podemos imaginar vários cenários possíveis, inclusive um golpe ainda mais à direita do que já foi.

Tenho percebido que as forças populares estão se organizando e está havendo uma adesão bastante grande. Basta ver como foi em Curitiba no depoimento do Lula, embora a Globo tenha escondido isso. Essa guerra de se apropriar da informação e não transmitir ao povo é de um terror inexplicável. As manifestações de apoio a Lula em Curitiba foram uma demonstração de que a sua candidatura é popular e muito forte. As pessoas sabem que o Lula não é ladrão. Não existe uma prova sequer. Mas isso faz parte de técnicas muito conhecidas que os nazistas usavam, mantendo a pessoa como suspeita o tempo todo.

Alguém disse que Lula se reuniu com ele, como se um presidente da república não pudesse se reunir com ninguém. Falas como estas não pegam mais ninguém, a não ser uma classe média que tem muito ódio. Como eles vão fazer agora? Vão condenar o Lula por um apartamento que eles sabem que não é dele? O juiz Moro e aquela turminha dele ficou fora dessa operação, isso também é estranho. Essa operação que pega o Aécio e o Temer foi feita sem a Lava Jato. Tudo indica que o próprio Judiciário golpista está rachado.

Eu acho que o golpe é esse: eleição indireta, suspender as eleições e evitar o Lula. Eles não têm compromisso nenhum com a democracia. Agora vai depender muito da capacidade popular de reação, mas eu acho que o golpe é mais à direita ainda e vem repressão. Pode acontecer até o inesperado. Está muito esquisito, para dizer o mínimo.

Roberto Romano, professor do Departamento de Filosofia
Foto: Antoninho Perri

Em um primeiro cenário, podemos ter o governo Temer aprofundando a compra do Legislativo e ameaçando o Judiciário. Trata-se de um cenário terrível, mas é bom lembrar que ele já tem feito isso para conseguir as reformas, distribuindo verbas, perdoando dívidas de Estados e municípios e distribuindo cargos, ou seja, Temer tem aprofundado a corrupção. Essa situação tende a se agravar, como é sabido. O preço dos corruptos aumenta de acordo com a situação do perigo em que está o chefe do Executivo.

Isso aconteceu com todos os ex-presidentes e, no caso do Temer, isso é agravado por sua origem, já que ele não foi eleito para o cargo. A chamada base aliada é, na verdade, a base de achaque.  A cada vez que Temer tiver que pagar pela sua permanência – e não mais pelas reformas –, aumentará a instabilidade jurídica no país. Nem cabe falar aqui de outro componente – os trabalhadores estão sendo jogados para a incerteza jurídica absoluta.

Num segundo cenário, o TSE, alertado por esse fato gravíssimo [as delações dos donos da JBS], cassa a chapa Dilma-Temer. Como Temer havia nomeado dois ministros recentemente para o TSE, esperava-se que ele tivesse maioria para escapar da cassação. Seria, sem dúvida, caso o TSE opte pela cassação, a decisão menos traumática, afinal trata-se de uma decisão tomada pela Justiça.

Num terceiro cenário, no caso de uma eleição indireta pelo Congresso, a solução seria mais traumática porque teríamos um sem número de políticos reféns da Lava Jato. Você acaba elegendo um presidente da República escolhido por políticos suspeitos.

Por fim, há a possibilidade da renúncia de Temer – acho o impeachment a menos provável das hipóteses, já que a manipulação da base aliada, quase toda comprada, supera em muito a capacidade de mobilização da oposição. Ademais, um processo de impeachment demandaria muito tempo, bem mais inclusive que o da presidente Dilma.

Essas quatro possibilidades, no meu ponto de vista, acentuam a instabilidade do governo, da economia e da vida dos trabalhadores brasileiros.

Marcelo Ridenti, professor do Departamento de Sociologia
Foto: Antoninho Perri


[Sobre o cenário futuro]. Posso dar um palpite, porque ninguém sabe. Primeiro precisamos ver qual será o destino do Temer. Ele pode ter um arroubo de renúncia, mas não acredito que vá fazer isso, porque não cabe nele e, depois, porque ficará desprotegido em termos de foro privilegiado para um julgamento. Acho que ele vai tentar resistir o máximo que puder, o que pode levar a um processo de impeachment. Mas esse processo de impeachment seria complicado porque Temer tem um apoio muito forte no Congresso Nacional.

Outra possibilidade que talvez lancem mão é aquele processo que já possui parecer contrário do Tribunal Superior Eleitoral, para cassar a sua vitória e de Dilma. Se a crise se agravar muito, talvez essa chapa acabe sendo cassada. Se isso acontecer a norma é a eleição indireta, sendo que não existe uma legislação clara sobre como fazê-la nesse contexto. A legislação diz que o Congresso vota, mas não diz quem pode ser votado, quem seriam os candidatos: se seria um membro do Congresso, se pode ser uma pessoa de fora. Então, está tudo muito no ar, ninguém sabe o que pode acontecer.

E, seguramente, os empresários e o pessoal que cuida da economia estão muito preocupados, porque estavam apoiando as tais reformas do Temer. Fica mais difícil votar tudo isso. Ainda estamos muito próximos desta denúncia, afora que virão outras denúncias pela frente. Tem mais gente denunciando, nem tudo está aclarado. O cenário é de que novas bombas virão dessa cumplicidade entre o empresariado e o governo.

Havendo a saída do Temer, o que está determinado é uma eleição indireta, a menos que a Câmara e o Senado, em conjunto, façam alguma lei determinando eleições diretas. Ontem até o Caiado [Ronaldo] parece que falou pela eleição direta. Duvido que façam isso, provavelmente vão deixar o Temer pagar sozinho, ele e a cúpula mais próxima. Vão ficar empurrando com a barriga, muito possivelmente até a próxima eleição.

Talvez as forças dominantes da economia pressionem muito, para independentemente da crise, aprovarem as tais reformas que estão elaborando, sobretudo a trabalhista, que está bem andada, e a outra da Previdência. Resta saber se haverá clima político no Congresso para aprovar tudo isso, com essa crise do governo. Talvez seja difícil.

Acho que estão todos meio espantados, porque sobra pra todos, são poucos que escapam. Por exemplo, ninguém tem comentado sobre o [Rodrigo Rocha] Loures, o deputado para quem o presidente da República encaminhou para fazer as tratativas [no Congresso], onde ele estava quando estourou a notícia? Em NY. E com quem? Com o seo [João] Dória.


quarta-feira, 17 de maio de 2017

As Hostes Políticas de Edir Macedo Ano 10 - número 37 Abril - Junho 2017 por Roberto Romano

Artigo

Ano 10 - número 37
Abril - Junho 2017
por Roberto Romano
É nascido em Jaguapitã (PR), integrou a Ordem dos Dominicanos, fez doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, tendo como orientador Claude Lefort. Publicou livros e artigos sobre a Razão de Estado, a igreja católica e a universidade. Tem como temas favoritos a política, a ética e a estética, sobretudo no século 18 francês. É professor titular aposentado da Unicamp, onde dirigiu 37 teses, entre mestrado e doutoramento. Foi presidente da Comissão de Perícias da Unicamp.

As Hostes Políticas de Edir Macedo

Depois de muito subestimado, Trump acabou eleito presidente dos Estados Unidos da América contra todas as previsões de especialistas, cientistas políticos, comunicólogos, sábios e videntes. Proclamado o resultado, videntes, sábios, comunicólogos, cientistas políticos e especialistas tentam apagar as pegadas erráticas, abrindo um leque de causas para o inesperado desfecho. Inesperado para eles que pensaram ditar a realidade e induziram grande parcela da opinião pública mundial a acreditar em suas verdades.

A vitória de Marcelo Crivella para a Prefeitura do Rio de Janeiro levanta questões sobre a originalidade de sua igreja, a Universal do Reino de Deus. No artigo, é indicada a forma do catolicismo organizacional como um dos elementos de sua baixa numérica e política na sociedade brasileira. Em contrapartida, a estrutura da Universal, ao contrário da católica, valoriza intensamente o leigo, o que potencializa forças políticas antes adormecidas que, somadas ao imenso instrumental da igreja, sobretudo na mídia, ajuda a entender a maré montante do pentecostalismo político de hoje.
O Brasil nasceu católico, mas sua forma jurídica, desde a origem, manteve o controle estatal sobre a vida religiosa. Fomos descobertos no absolutismo, quando o poder estatal disputou com radicalidade a soberania contra o domínio transcendente. Estávamos na era dominada por Maquiavel e pela raison d’État. Naquele tempo, a ética da rota respublica christiana foi posta em questão por teóricos (Maquiavel é apenas um de extensa lista) e governantes. A Reforma traz um complicador a mais nos elos entre mando religioso e civil. Se Lutero radicaliza a ruptura com a autoridade visível da igreja, ele reforça o poder dos príncipes que aderem à nova confissão. João Calvino, apesar da obediência pregada aos crentes diante do mando civil, expõe vias para a radicalização laica e, mesmo, democrática, da ordem política. Não é exagero dizer que boa parte da moderna democracia tem como base a reforma protestante na vertente calvinista.

Sob o Padroado, a Coroa portuguesa faz da Igreja mero departamento do poder civil. No Império não é diferente. Apenas com a República, para a qual contribuiu a Questão Religiosa, o catolicismo tem certa independência para agir no país. Mesmo assim, até meados do século 20, é difícil separar os alvos do Estado e as sendas da Hierarquia. Antes e depois da ditadura getulista, ocorrem conúbios entre “autoridades civis, militares, eclesiásticas”. A meta religiosa reside na conquista do mundo moderno para atraí-lo ao rebanho, num inaudito movimento de centralização, cujo ápice é o Concílio Vaticano 1 e o dogma da infalibilidade papal. Os bispos percebem o Brasil como terra a ser evangelizada. Uma das técnicas para conseguir tal alvo consiste em impor a “soberania espiritual” ao mando secular.

Tensas, as relações entre Igreja e poder civil vivem instantes de afastamento mútuo, mesmo de hostilidade, ou de plena concórdia. Com a ditadura Vargas ela ganha muito, sobretudo no campo do ensino. Boa parte dos curricula oficiais, impostos ao país, foram elaborados por bispos ou acadêmicos a eles unidos. É o caso de Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) que molda as planilhas educacionais do Brasil por longas décadas. Tais planilhas sobrevivem à era Vargas, à ditadura de 1964 e mesmo ao governo civil e à Nova República. No período inaugurado pelo golpe de 1964, alguns bispos e leigos resistem ao arbítrio, às torturas e prisões, o que ocasiona choques com o Estado. Mas, não é possível ignorar o acordo antes e após o coup d’État, consagrado em colaboração de hierarcas e autoridades laicas e consignado em documentos oficiais que abençoam o regime de força. Em determinadas situações podemos dizer, sem exagero, que as formas estatais e católicas constituem um todo solidário.

A igreja católica percebe com maior acuidade a perda de sua força social a partir dos anos 50 do século 20. Pensadores como o Padre Júlio Maria e Thales de Azevedo mostram o quanto o catolicismo está longe de controlar grandes massas populares. A proposta de tais acadêmicos e clérigos se encontra no ataque à modernidade, cujos efeitos seriam letais ao mundo religioso tradicional. A tônica seguida liga-se à defesa dos antigos valores, algo comum naqueles anos na intelectualidade católica. A Revista Eclesiástica Brasileira, a Revista Vozes de Petrópolis, praticamente todas as publicações de doutrina e proselitismo insistem na reconquista do mundo perdido para a secularização, a maçonaria, o espiritismo, o positivismo, o liberalismo e, last but not least, o protestantismo. No relativo ao liberalismo, importa notar que um grande inspirador de Carl Schmitt, Juan Donoso Cortés, é publicado pela Editora Vozes, o Ensaio sobre o Catolicismo, o liberalismo e o socialismo, manifesto contra a democracia e as formas seculares de pensamento político. A tônica empregada pela propaganda eclesiástica é a de uma simbiose entre nacionalidade brasileira e igreja católica. Em tal movimento, a palavra definitiva é a do Sumo Pontífice: “A igreja e o Estado devem ser unidos um ao outro como alma e corpo, que constituem no homem um todo natural”.

Não é possível olvidar o papel relevante, direto ou indireto, da LEC (Liga Eleitoral Católica) até meados do século 20. Para ir contra as ameaças modernas, Dom Sebastião Leme instaura a revista A Ordem e o Centro Dom Vital, em boa parte dirigido por Alceu Amoroso Lima. Criada em 1932, a LEC busca afugentar das mentes católicas as candidaturas aos cargos políticos de liberais, maçons, comunistas, socialistas, espíritas, protestantes. A lista de candidatos, afixada nas igrejas e demais espaços religiosos, serve como sinal de ortodoxia e, de outro lado, frouxidão dos renitentes. Em 1962, a LEC assume a denominação de Aliança Eleitoral pela Família. Assim, a atuação dos bispos e leigos católicos, para garantir a hegemonia eclesiástica no Estado, tem muitas faces. A LEC é das mais agressivas, pois ensaia banir da vida pública setores minoritários, numa demonstração cabal de intolerância. Os protestantes sofrem muito com semelhante política de exclusão.

Com o Concilio Vaticano 2 ocorre em parte a mudança de rumos eclesiásticos. Em vez de presa aos muros da tradição, a igreja tenta se abrir ao mundo, vendo nele não um campo de morte, mas terreno a ser preenchido pelos valores cristãos e humanos. Os documentos conciliares, em especial a Constituição Lumen gentium mudam a perspectiva da pastoral e das formas doutrinárias. Não mais pensada como poder que deve enfrentar o mundo com anátemas, a igreja se percebe como peregrina no tempo, cuja orientação seria o Eterno, mas sem descuidar da finitude, das dores e alegrias humanas. É deixada nas sombras do pretérito a reivindicação de “soberania espiritual”, as pretensões de usar o Estado, contra toda a crônica laica que o marca desde o século 16, como instrumentum regni. O Vaticano 2 interrompe, pelo menos provisoriamente, o fluxo de anátemas contra o mundo laico e as formas religiosas que ameaçam o catolicismo.

Ditadura de 1964 enfrenta uma igreja dividida

A forma católica tem uma lógica muito própria, que desafia os mais diferentes pensadores. Carl Schmitt, para descrever tal lógica usa o termo “complexio oppositorum”, porque não é possível atribuir ao todo eclesiástico uma doutrina política única. Sua sabedoria consiste, justamente, em não sucumbir às formações de seitas, cumprindo seu núcleo dirigente (no ápice da hierarquia) a função de acomodar as contradições existentes na ordem interna e externa. Sempre que um setor da igreja se pretende autônomo em relação ao todo, a Hierarquia move correções rápidas que podem ir das admoestações à excomunhão. Após o Vaticano 2 o catolicismo passa por forte desarrazoado sobre sua essência e missão. Sacerdotes aos milhares, perdido o cosmos da tradição tridentina contrária à modernidade, sentem o solo eclesiástico como problemático: nem mais totalmente sagrado, como quer a Contrarreforma, nem secular. As práticas litúrgicas são abaladas, formas costumeiras de piedade abolidas. Os templos perdem esculturas sacras, a reza do terço durante a missa é proibida, novenas e procissões suspensas. Falta ao clero, progressista ou não, saber ou prudência antropológica e de psicologia de massas. O fiel católico passa a viver o sagrado como algo incerto. É dada a partida para a busca de experiências místicas outras, ou simplesmente o abandono das crenças religiosas. A responsabilidade não reside apenas no clero laicizado. Mas, ele é importante para a perda de solidez da fé tradicional católica. Já no Pontificado de Paulo VI, a hierarquia eclesiástica busca moderar o impulso racionalista que toma parte do clero e dos leigos. A Encíclica Humanae vitae (1968) dá o sinal de alarma. Na igreja brasileira, ainda em 1968, surgem os primeiros sinais do “freio” aplicado aos bispos, padres e leigos que radicalizam as teses conciliares. Todo o final do pontificado de Paulo VI é hamletiano: ora pende para o progressismo teológico e pastoral, ora ao conservadorismo centralista da Santa Sé.

A ditadura instaurada em 1964 enfrenta uma igreja dividida entre a maioria dos antístites que apoiam o regime e a minoria que o combate. Padres e leigos radicalizados seguem a letra conciliar, mas tal fato não basta aos mantenedores do poder curial. Após o brevíssimo governo de João Paulo I, a eleição de João Paulo II sinaliza um Termidor eclesiástico. O pontífice opera uma intervenção duríssima em dioceses, seminários, instituições católicas, na busca de orientar a barca de Pedro para um catolicismo devocional. Como Pio XII, João Paulo privilegia a diplomacia conservadora, age com notórios ditadores como Pinochet, une-se a Reagan e outros. Episódios como sua participação no caso Irã-contras são reveladores do absolutismo por ele imposto à Igreja.

Some-se o desarrazoado do clero e dos leigos em termos culturais e pastorais, à política agressivamente conservadora de João Paulo II e teremos um desarmamento das hostes católicas em termos missionários e prosélitos. Com o pontífice polonês, a Igreja perde suas forças progressistas, ou pelo menos elas são silenciadas (o caso do cardeal Paulo Evaristo Arns, cuja diocese foi dividida de alto a baixo por Woytila). O combate do Vaticano à Teologia da Libertação consiste em uma técnica do Sumo Pontífice e de seus auxiliares (como o Cardeal J. Ratzinger, depois Bento XVI) para impor um modelo eclesiástico contrário ao Concílio. João Paulo II retoma o “catolicismo político” que domina a Santa Sé e vastos setores católicos nacionais no seu trato com o Estado e a sociedade. Em tal paradigma, interessa manter a mão segura sobre os fiéis, o controle interno do episcopado e dos teólogos e os alvos estratégicos da Igreja em termos planetários. É uma versão nova da antiga “raison de l’ Église” de onde brota a própria raison d’état.

Ao mesmo tempo, os católicos conservadores não mais sentem que entre eles e o corpo eclesiástico há uma unidade sólida, como a ocorrida no final do século 19 e inícios do século 20. As divisões de São Pedro estão submetidas à incerteza quanto aos rumos a serem tomados. É em tal momento que as formas protestantes, não as tradicionais, mas as desafiantes da ortodoxia eclesial (reformada ou católica) apresentam seu maior crescimento em setores próximos aos “negativamente privilegiados”.

Comunidades eclesiais de base

Já nos anos 60 a 80 do século passado, o frei Francisco Cartaxo Rolim, pesquisador das religiões novas e fundamentalistas do protestantismo mostra que o crescimento daqueles setores tem como premissa a ausência de muitos intermediários entre a piedade dos crentes e a ordem coletiva eclesial. Ele chama a atenção para o sentido de iniciativa, atribuído ao militante religioso protestante pentecostal, em contraste com a rigidez imposta na estrutura católica e confissões protestantes tradicionais. De outro lado, a igreja católica tenta mover seus adeptos da base para a militância com as Comunidades Eclesiais de Base. Deixando-se o desmanche de setores daquele movimento pela ação de João Paulo II (muitos animadores leigos e clérigos são perseguidos pelo Vaticano), as referidas comunidades coexistem com a estrutura antiga da igreja, estrutura vertical que privilegia os membros hierárquicos, a começar com os vigários das paróquias que acolhem as CEBs. Ao longo do tempo, tal problema é discutido nas próprias comunidades e nos estudos de intelectuais católicos. E. Hoornaert, em texto preparado para as discussões das CEBs, analisa a estrutura hierárquica da igreja, que tende a abafar a iniciativa missionária dos leigos e instâncias inferiores do clero. Hoornaert indica de modo gráfico o leigo católico no mais baixo escalão da pirâmide religiosa, ente passivo movido pelo clero:

Bispo
Padre
Leigo

Do bispo ao leigo, o padre é uma “correia de transmissão”. Para o máximo de atividade e iniciativa, os bispos; rumo ao mínimo, os leigos. Assim, torna-se muito grande o risco de fazer das CEBs apenas celeiros dinâmicos de clericalismo. Hoornaert apresenta, para atenuar tal falha, outro modelo de organização católica. Nele temos a seguinte forma:

bispo
leigo
padre
O padre, então, é destituído do papel de centro religioso (o culto) para se tornar um traço de união dos leigos com a igreja. O padre apenas articularia as relações comunitárias.

Com o advento de João Paulo II e de uma Hierarquia definida pela raison d’État em consonância com a raison de l ‘Église (tal foi o sentido da Realpolitik católica sob aquele Pontífice), a verticalidade que põe o leigo no mais baixo plano da instituição é retomada com rigor. O signo eclesiástico no Concílio Vaticano II, sob João XXIII e ainda Paulo VI, é o de uma abertura ao diálogo com o mundo. Sob João Paulo II muros espirituais são edificados quase ao mesmo tempo em que o Muro de Berlim é destruído. Livre do comunismo, a Santa Sé pratica uma política diplomática de pleno acordo com as premissas de Ronald Reagan, Pinochet e similares. Se existem teólogos e sociólogos católicos que, ainda sob João Paulo I, sonham com uma igreja democrática ou mesmo socialista, João Paulo II desmente tais devaneios. Com ele, o fiel volta à passividade e toda iniciativa cai novamente nas mãos do clero e da Hierarquia.

Seria um milagre se, com tamanha perda de iniciativa dos leigos, a igreja Católica deixasse de perder fiéis para igrejas e seitas de origem protestante que não apenas valorizam o laicato, mas dele fazem um meio eficaz de missão e atividade prosélita. Não é o caso, aqui, de fazer uma história do protestantismo no Brasil. E também não há espaço e tempo para efetuar uma crônica das igrejas pentecostais e messiânicas surgidas nas últimas décadas. Vale refletir sobre as características de uma delas, a Universal do Reino de Deus, instaurada por Edir Macedo. Dentre as várias confissões que ocupam a cena política, trata-se da mais ativa e bem-sucedida.

O fundador do empreendimento tem uma história de sucessos no mercado. Em seus trabalhos profissionais anteriores à sua vida religiosa, operou com matemática, estatística e outros meios para aferir números sobre o social. Ele usa técnicas eficazes de administração empresarial. Uma nota pequena, que une sentido de oportunidade com a ocupação do espaço. Certo dia em Bauru (SP), visito a matriz católica em dia de semana. Para chegar às portas do templo é preciso subir muitos lances de escada. O visitante encontra a igreja fechada com cartazes indicativos de horários para o atendimento e outros avisos. Na rua situada atrás da sede católica há uma Universal do Reino de Deus. A casa fica no plano da calçada, nenhuma dificuldade para o acesso. As portas abertas guardam dois fiéis que convidam os transeuntes para a entrada. Só tal comparação mostra a diferença entre a prática do catolicismo e a da igreja nova. Além de usar o espaço de modo sagaz, os pastores movem crentes como pregoeiros da religião, acolhendo todo e qualquer um dos que habitam a cidade.

Universal ataca a igreja católica

Uma organização simples e rápida ordena a praxis dos militantes pentecostais na Universal. A hierarquia conta com bispos, pastores, obreiros distribuídos pelos centros urbanos, sobretudo nos que contam maior número dos “negativamente privilegiados”, para usar a terminologia weberiana. Com agudeza de espírito, para quem opera em país onde a desigualdade econômica e política é escandalosa, a doutrina assumida segue a trilha da esperança na prosperidade, vinculada à doação integral do fiel à causa da igreja. Em atos e propaganda que, para os católicos e protestantes tradicionais beiram a simonia, a salvação, a cura, o enriquecimento, o consumo de mercadorias caras, são prometidos desde que os dízimos apareçam nos cofres, generosos. É como se o monge Tetzel tivesse reencarnado hoje, em vestes pentecostais, sem nenhum Lutero para lhe fazer frente.

A Universal ataca com dureza e constância a igreja católica, inclusive com propaganda obscena. Em programas seus de TV são trazidos testemunhos, nunca revistos pelas autoridades civis, de supostas freiras que teriam fornicado com padres assassinando rebentos, enterrando-os nos muros conventuais, etc. Nota-se o abuso dos libelos muito correntes no século 18, com imaginário escandaloso feito para persuadir os católicos de que sua religião, além de idólatra (recorde-se o famoso “chute na santa”) é apodrecida moralmente. Mas, a bateria de ataques não se limita ao catolicismo. Ela se volta contra a umbanda, o kardecismo e, mesmo, outras confissões protestantes que não seguem as palavras de Macedo. A intolerância é norma seguida por bispos e pastores, ampliada pelos crentes. Toda intolerância é unida ao fervor, quanto mais certeza da verdade, mais o crente assume missões de conquista e para expulsar os diferentes. Nos últimos tempos, manifestações de intolerância brutal ocorrem contra os seguidores da umbanda. O risco dos atos cai todo sobre o crente, os pastores se eximem e, mesmo, lançam proclamações de inocência. Algo similar ocorre com os supostos milagres. As delegacias de polícia brasileiras estão plenas de boletins de ocorrência nos quais os crentes desiludidos reclamam milagres não ocorridos, mesmo após doações, não raro de grande porte, para a igreja. Os pastores, é quase regra, sempre afirmam ter feito apenas uma benção e um pedido ao ser divino. O resto ficaria por conta da fé praticada pelo crente. Um ponto grave reside no chamado “Desafio a Jesus”. O desempregado entrega aos pastores cheques pré-datados e, assim, “desafia Jesus” para conseguir um posto de trabalho. Casos vieram à tona de cobrança, inclusive em órgãos de defesa do crédito, dos referidos cheques. Enfim, há toda uma sequência de fatos que fariam as delícias de Erasmo de Rotterdam, militante intelectual contra o charlatanismo milagreiro no Renascimento, ou de Voltaire.

Ao dar prosseguimento à tradição norte-americana do evangelismo televisivo e radiofônico, a Universal consegue uma força expansiva incomum, mesmo para as demais tendências pentecostais. Ao adquirir a Rede Record, um quartel general permanente é assegurado para a pregação e ataques às demais religiões. Gradativamente, vem à forma uma técnica usada desde tempos imemoriais para atrair fiéis: templos cada vez mais amplos e luxuosos, verdadeiras catedrais exibem poder e força aos crentes alistados e candidatos. O Templo de Salomão é mimesis do que fez a igreja católica em milênios. Mas, a burocracia simplificada e muito eficaz não deixa aqueles monumentos vazios. Eles são usados sempre para os cultos, as pregações, a coleta dos dízimos.

Com a imitação dos grandes templos católicos, vem uma liturgia que assume sinais e gestos oriundos do catolicismo, do judaismo, até mesmo da umbanda e do espiritismo. Tal performance dá ao crente jejuno o conforto de encontrar práticas por ele conhecidas, mas transfiguradas e postas como lícitas. Com o Templo de Salomão fica patente tal escolha, pastores e bispos usam parâmentos judaicos que recordam de modo oblíquo a filiação no novo cenáculo ao antigo, destruído na antiguidade israelense. Macedo e assessores reintroduzem aspectos abandonados pelo protestantismo, restaurando inclusive signos imagéticos, algo abolido na Reforma e atenuado na igreja católica após o Vaticano II. O ambiente do culto mostra faces do sagrado, hierofanias ocorridas nos templos da Universal.

Com tais inovações eficazes para o crescimento do rebanho, a Universal consegue mover seus adeptos em todos os sentidos. O mais grave é o político. Como é natural, o aumento do número de crentes com título de eleitor atrai políticos de todos os coloridos ideológicos. Quando preso, acusado de crimes graves, Edir Macedo tem o apoio de Luiz Inácio Lula da Silva, Aloysio Nunes e outros que não pertencem ao espectro da direita. Mas, também conservadores e direitistas apreciam a disciplina da igreja, a qual conta com o sentido de iniciativa dos seguidores. Meio rápido de adquirir votos, a proximidade de bispos e pastores ajuda políticos e igreja. Prestígio repartido, os sucessos nas urnas trazem prosperidade a candidatos, mesmo os que não pertencem às hostes de Macedo.

Dispondo, pois, de ampla rede de TV e rádio, jornais impressos que ampliam sua circulação em épocas eleitorais (no Brasil, quase permanentes), além do apostolado pessoal e virtual (via internet), a Universal é sólida base para qualquer candidatura aos cargos públicos. O partido político que serve como braço secular da igreja é o PRB. Essa agremiação foi esteio do Partido dos Trabalhadores nos governos Luiz Inácio Lula da Silva, quando o vice-presidente da república pertence ao PRB, e de Dilma Rousseff. Pouco antes do impeachment que afasta a mandatária, a Universal e o PRB rompem com o seu governo, agraciados pela administração Temer com cargos e benefícios.

Importa sublinhar o elo entre políticos proeminentes e os quadros da Universal. Em todas as ocasiões importantes para a igreja, líderes de quase todos os partidos nacionais se apresentam. Nas eleições, pactos entre bispos e pastores, com lideranças políticas, são assumidos. No primeiro dia do Templo de Salomão se apresentam para il bacia mano praticamente todos os poderes da república, a presidente, o governador do estado de São Paulo, etc. Senso de oportunidade política não rende apenas para os candidatos à permanência nos cargos ou à sua primeira investidura. A própria presença conspícua de pessoas com prestígio amplo abrilhanta, junto aos fiéis e alheios, a imagem de vencedora atribuída à Universal.

Não tem sido levado em conta com afinco, entre acadêmicos, o livro lançado em 2008 por Edir Macedo. Naquele volume, que norteia os atos políticos da Universal, o autor afirma ser possível e necessário que ela chegue à maioria dos poderes estatais. “Tudo é uma questão de engajamento, consenso e mobilização dos evangélicos. Nunca, em nenhum tempo da história do evangelho no Brasil, foi tão oportuno como agora chamá-los de forma incisiva a participar da política nacional”. Dentre as teses enunciadas por Macedo temos a seguinte: “A potencialidade numérica dos evangélicos como eleitores pode decidir qualquer pleito eletivo, tanto no Legislativo, quanto no Executivo, em qualquer que seja o escalão, municipal, estadual ou federal”. No mesmo tempo em que o volume é publicado, o sobrinho de Macedo, Marcello Crivela, se candidata à Prefeitura do Rio de Janeiro pelo PRB. Naquele ano, havia a expectativa de aumentar consideravelmente o número de parlamentares ligados à Universal e às igrejas congêneres. Em 2007, o PRB, de fato, é o partido que mais cresce no país. Tal ponto concede à Universal um instrumento eficaz de luta política.

Universal quer a hegemonia no Estado

Assim, não surpreende que em 2016, finalmente, Crivella seja eleito para governar a cidade do Rio de Janeiro. Ele conta com zelosa militância de fiéis que acreditam ser a sua salvação terrestre prometida em termos de riqueza e poder materiais. A própria estrutura da igreja os leva a uma atividade vigorosa, ao contrário dos leigos católicos e protestantes clássicos. Além disso, a eficaz rede televisiva e radiofônica, além da mídia impressa, é poderoso meio de propaganda das candidaturas da própria Universal ou de aliados. É em busca de semelhante benefício que políticos da chamada esquerda ou da suposta direita brasileira se achegam a Edir Macedo, na esperança de ganhar apoios tácitos e estratégicos, nos parlamentos ou eleições. Desde 2008, a Universal conta com receituário político que ensina a chegar à hegemonia no Estado. É a primeira vez na história brasileira que o protestantismo deixa a condição de minoria perseguida e passa à conquista planejada e racional da maioria para o comando do poder público.

Os planos da Universal, com a vitória de Crivella em 2016, começam a se tornar realidade. Mas, para que tal coisa ocorra, é preciso que a igreja católica, as confissões protestantes clássicas, as correntes protestantes de esquerda, percam seus comandados e não apresentem alternativas à marcha pentecostal sob a liderança atual de Macedo. Em política, como no proselitismo religioso, tudo é dinâmico. Se alguns setores ganham potência, é porque os adversários a perdem. Tal regra, que parece óbvia, vem do ensino do grande Maquiavel interpretado por J.G. Fichte: “quem não cresce, diminui enquanto outros crescem”. Para que o crescimento da Universal tenha um limite, importa aos demais setores (católicos, umbandistas, espíritas, liberais, progressistas e outros) arregimentarem forças, imaginarem cenários futuros e, sobretudo, se unirem não apenas no plano espiritual, mas, principalmente, na ação política. Tal perspectiva ainda não aparece na vida pública brasileira.