Flores

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segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Anotações, feitas por mim para uma aula no Departamento de Filosofia da Unicamp, sobre O Sobrinho de Rameau, a música, etc. O livro de Daniel Couty é instigante, inteligente, útil. Segue então o itinerário que dele extraí. Eu bem que gostaria de ter lido o livro antes de publicar o meu texto sobre Diderot, Silêncio e Ruído, a Sátira em Denis Diderot. Haveria uma boa quantidade de caminhos que não trilhei e poderia seguir. A vida é a arte do encontro, embora exista tanto desencontro pela vida...


Estrutura do Sobrinho de Rameau

 (fonte: Daniel Couty, Le Neveu de Rameau (Paris, Hatier, 1972).

1)    Prólogo : No Café da Regência, o narrador faz-se abordar pelo sobrinho, um original estranho e ele estima pouco, mas de quem admira as opiniões reveladoras. “É então que o homem de bom senso escuta, e decifra seu mundo”.
2)    O gênio e a sociedade: pela crítica dos jogadores de xadrez, a conversa passa aos “homens sublimes”, únicos dignos segundo o sobrinho. Fala-se da vida de Rameau, de sua barba, de seu ventre e de seu tio músico, “avaro, mau pai, mau esposo, mau tio”. Jean-François infere que “o mal aqui em baixo sempre vem de um homem de gênio”. Qual o lugar do gênio na sociedade? Qual o seu comportamento para com os próximos? O que vale mais, ser gênio ou banal negociante? Todas estas perguntas são respondidas por Rameau como miserável, preocupado com o amanhã. Se Racine fosse vendedor de especiarias, “teria reunido fortuna imensa e não existiriam prazeres que ele não usufruísse”. Mas, escrevendo suas tragédias ele só foi “bom para os desconhecidos e para o tempo em que ele não era mais” (pour le temps où il n´était plus).
3)    O parasitismo como filosofia: Desempenhando o papel de fanfarrão, o sobrinho se apresenta como “ignorante, bobo, louco, impertinente, preguiçoso (…) velhaco, escroque, comilão”, qualidades que o fazem apreciar o circulo da artista de teatro Hus. Mas quando mostrou bom senso, foi expulso do pequeno paraíso. O filósofo sugere que ele peça perdão da protetora, e o sobrinho diz que não pode aceitar isto (mímica da súplica a Hus), nem deseja assumir seu estado de mendigo. Como ele poderia viver tão miseravelmente, possuindo o talento de adulador (mímica da sedução da mocinha pelo proxeneta)?  Esta atitude, aliás, reforça a sabedoria última do homem: “Na hora derradeira, todos são igualmente ricos…O stercus pretiosum!”. (E vem a mímica sucessiva do violinista e cravista para mostrar seus talentos).
4)    Educação das jovens:  das capacidades do sobrinho segue-se a educação da filha do filósofo, o qual reclama um ensino clássico, dito por Rameau “um perigo” e “inutilidade”, tolices. Existiria uma só pessoa capaz de verdadeiramente dominar sua ciiência para inculcá-la nos outros?
5)    Idiotismos morais: o sobrinho explica sua técnica no ensino da música. “Antes eu roubava o dinheiro de meu aluno, sim, o roubava, é seguro. Hoje o ganho, pelo menos dos outros”. Nesta passagem se estabelece o que Ele chama “idiotismo morais”, exceções à consciência geral. Ele usa vários exemplos: a verdade e a mentira em política, a inversão do provérbio “boa nomeada vale mais do que cintura dourada”, a ordem social contra a qual se revolta. Ele, mais à vontade diante do filósofo, afirma a supremacia do seu imoralismo, contra a moral tradicional.
6)    A felicidade: se para o filósofo a felicidade de fato reside no socorro aos necessitados (“é uma obra sublime o Maomé, mais gostaria de ter reabilitado a memória dos Calas”), Ele opõe o mundo real onde “uma infinidade de pessoas honestas não é feliz, e uma infinidade de pessoas felizes que não é honesta”, afirma que pode ser feliz usando seus vícios,  naturais nele. Ele mimetiza sua finura no ato de adular o gordo Bertin.
7)    A adulação, suma estética : Só, entre muitos de sua espécie, Ele elevou a bajulação ao nível estético. E narra a história do “cãozinho de Bouret”, não é lisonjeador quem deseja. Ele descreve as técnicas da adulação, até a postura da espinha abaixada, “comoda para rir para baixo do impertinente que se admira”. Ele deveria escrever um tratado da bajulação. E Rameau retoma a superioridade do genio sobre a técnica, da invenção sobre o preceito, mesmo em bajulação. “Engolimos num sorvo a mentira que os adula, bebemos gota a gota a verdade que nos sabe amarga”. Mesmo hábil, ele errou uma vez contra sua arte, o que lhe valeu a desgraça junto aos seus protetores.
8)    O zoológico de Bertin: na casa do financista Bertin detinha-se um mundo de pessoas, entre as quais Ele se distinguia. Alí estavam poetinhas, músicos mediocres, todos inimigos dos Filósofos. Da observação direta dos costumes, Ele passa à leitura da moral em ato. Rameau sabia ler as pessoas de dentro para for a, com o uso de sua situação de “louco”, pois é “mais difícil vencer em tolice do que em talento ou virtude. Ele reclama para si mesmo e para seus iguais o direito de não gozar da consideração pública, devido à sua postura vergonhosa.
9)    Moral. O sublime do mal : o filósofo se espanta: “porque mostrar para mim a sua torpeza?”. Vem o elogio do “sublime no mal”, o renegado de Avignon, canalha desprezível que chega ao sublime na perversidade, delatando seu amigo. Ele, excitado pela sua própria harenga (mimetiza um canto de triunfo), o interlocutor, indisposto, muda a conversa.
10) Querela dos Bufões: a discussão segue para a arte musical enquanto “imitação”. O filósofo traça um paralelo entre música e moral (“quando pronuncio a palavra canto, não tenho noções mais definidas do que vós e a maioria dos vossos semelhantes quando dizem; reputação, invectiva, honra, virtude”). Ele admira os italianos, mostra que o canto é “imitação dos acentos da paixão”. O debate segue sobre as operas bufas italianas. Ele condena os franceses “Tintamarra por música”, e elogia os méritos da trindade artística fundada sobre o verdadeiro, o bom e o belo. (E mima as árias das operas, os diferentes instrumentos da orquestra, sob os olhos espantados dos clientes do Café da Regência, atraídos pelo ruido. Ao voltar ao seu raciocinio, elogia “a arte da poesia lírica, que vai nascer”. E diz se preciso seguir “o grito animal da paixão” que dita a linha que nos convem.
11) Educação do Rameauzinho: fadigato pelo esforço, Ele é dominado pelo filósofo. Este se espanta com a distância entre a “sensibilidade para as belezas da arte musical” e a cegueira “para as belas coisas em moral” do compositor.  A sua resposta é o atavismo “a molécula paterna era dura e obtusa”. Dai a educação de Rameauzinho, a qual parte daquele fato, o atavismo. Seu filho não deve ser dividido entre as aspirações morais e a miséria natural, ele deve ser “feliz, ou o que é o mesmo, honrado, rico, poderoso”. É por isto que ele prepara seu filho para a selva, ensinando-lhe o respeito pelo ouro.
12) O perdedor: pergunta o filósofo sobre a causa do compositor nunca ter feito algo que valesse a pena. É porque a natureza não se esmerou ao fabricá-lo (mimetiza a natureza fazendo caretas) e as suas frequentações não encorajam a criação artística, ele nunca sentira a coragem de sacrificar a felicidade a um sucesso incerto. E no entanto, ele tentou vencer (mimetiza ridicularizando o cantos de rua e o pobre). O filósofo explica a condição do homem social com base na vontade da natureza. Ele replica que nada teria a acrescentar se não fosse obrigado a “executar posições” para comer (mimetiza os cortesãos, os valetes, os miseráveis).
13) Epilogo: há alguem dispensado das posições ? Ele diz que é o rei, mas o filósofo diz que o rei as executa pela amante e por Deus. Ele mimetiza o “grande abalo da terra”. Parece que o único isento da pantomima universal é o filósofo “que nada tem e nada pede”, como a própria mulher de Rameau (da qual ele imita o andar). Acaba o papo. Rameau segue para a Opera, joga numa pirueta final o desafio derradeiro : “ri melhor quem ri por último”.


Sobrinho de Rameau, notas elucidativas.


A história do texto, no caso do Sobrinho, liga-se às vicissitudes dos manuscritos diderotianos. Após a prisão em Vincennes e da interdição à Encyclopédie, o filósofo tornou-se cauteloso com os seus inéditos. Em várias ocasiões a polícia investigou sua casa à procura de escritos e, graças à ajuda de amigos postos no governo ele conseguiu esconder os textos. Em 1762 Diderot ficou horrorizado ao descobrir que tivera como hóspede um espião da polícia durante quatro anos. “Não é um acaso mais do que feliz que eu não tenha escrito nada mais ousado desde um tempo infinito? (…) Quando penso que ele [o espião] quase foi contratado como secretário por Grimm, para cuidar de todas as correspondências estrangeiras, isto me faz tremer de medo”, diz Diderot em uma carta. O nome do espião era Glénat, subornado pela polícia depois que o escritor lhe deu manuscritos para copiar. Glénat tornou-se um protegido de Diderot, que não sabia dos seus tratos com os policiais. E Diderot retira uma sabedoria sobre a bondade indiscreta: “Ocorreu comigo uma coisa que me dará circunspecção nociva à uma infinidade de pobres diabos de toda espécie que afluem para cá, que eu recebia e que irão encontrar minha porta fechada”. A experiência ruim pode ajudar a seguir a produção do personagem Sobrinho, como também mostra as dificuldades para se escrever no século 18.

Diderot, dado seu natural sentido compassivo, ajudava muito os pobres diabos que surgiam diante dele, como foi o caso de Glánat. Pode-se dizer que o filósofo tinha o vício da bondade, o que o fez ser explorado por vários malandros como o sobrinho. Sua filha fala de um sujeito chamado Rivière, sempre necessitado de dinheiro, a quem Diderot emprestava sem esperança de retorno, além de lhe fazer inúmeros favores. Quando Rivière conseguiu do filósofo tudo o que queria, sem restar nada a desejar, disse a Diderot: “Senhor Diderot, conheceis a história natural? (…) Conheceis a história da Formica leo? —Não— É um pequeno inseto muito industrioso; ele abre na terra um buraco (…) o cobre na supefície com uma areia bem fina e leve; para alí ele atrai os insetos tontos, os prende, os suga, depois lhes diz: Senhor Diderot, tenho a honra de vos desejar bom dia!”. (AT, I, XLVIII-XLIX, citado por Wilson). Digamos que nos seus tratos com indivíduos equívocos, que serviam inclusive à polícia, Diderot recolhe elementos para imaginar a figura do sobrinho e prudência para não deixar seus escritos à vista.
No testamento escrito antes de partir para a Rússia, em 1773, Diderot encarrega Naigeon de “rever e publicar todo o que lhe parecer não ferir sua memória, nem a tranquilidade de ninguém” (Correspondance, t. XII, citado por Anne-Marie Chouillet). O filósofo vendeu sua biblioteca para Catarina 2, com a entrega a ser feita somente após sua morte. Muitos copistas trabalharam junto a Diderot durante o fim de sua vida e depois de seu falecimento, reproduzindo seus textos. Mas o relacionamento entre a filha e genro de Diderot e Naigeon se deteriorou, e os projetos de publicação foram detidos. Naigeon não publicou o Sobrinho de Rameau em sua edição das Obras de Diderot (1798) seja porque houve a briga com os parentes do filósofo, seja porque levou a sério a recomendação de não prejudicar a tranquilidade das pessoas.  Ele apenas se refere à uma sátira excelente nos seus Mémoires historiques et philosophiques sur la vie et les ouvrages de Diderot.

A cópia de Leningrado chamou a atenção de um comandante da Escola de cadetes, Maximilien Klinger, que mandou fazer uma cópia clandestina, a que tombou nas mãos de Schiller, que a passou para Goethe, o qual a traduziu em 1805. A primeira vez que o Sobrinho veio a público, portanto, não foi em francês mas em alemão. Destino de Diderot, considerado pela crítica conservadora do século 19 francês como o “mais alemão dos escritores francêses”. Em 1821, dois falsários apresentaram ao público da França um texto “francês” do diálogo. Só que se tratava apenas de uma tradução da tradução de Goethe. Maurice Tourneux, após viagem à Rússia, teve em mãos a cópia de Catarina 2, editando o texto mais seguro nas Edições das Oeuvres complètes de Diderot, surgida em 1884 (a primeira edição das Oeuvres é de 18759.

Não termina aí a aventura do texto, parecida com os passeios perdidos de Jacques o Fatalista. Em 1890 Georges Monval, bibliotecário da Comédie Française, reconhece numa coleção de tragédias vendida numa barraquinha de livros velhos, na beira do rio, a escrita de Diderot num inédito. E publica em 1891 o Sobrinho de Rameau. Onde está agora aquele manuscrito? Na Pierpont morgan Library de Nova York. As grandes edições utilizáveis plenamente são a de Jean Fabre e a de Henri Coulet.
Alguns comentadores colocam a primeira escrita do Sobrinho na crise trazida pela comédia Os Filósofos, de Palissot, na qual os enciclopedistas e Diderot, também Rousseau, foram ridicularizados. Depois da raiva, o texto teria sido “melhorado” com maldades feitas a frio. Outros consideram que é inútil procurar camadas temporais no texto. Todas as hipóteses são válidas, porque nenhuma delas possui documentação para se validar.

Elementos do diálogo.

O sobrinho. Durante bom tempo se pensou que o personagem era invenção diderotiana. Goethe considerava esta explicação verdadeira. J.F. Rameau existiu, nasceu em 1716, casando-se em 1757 e seu filho, “o pequeno selvagem” nasceu em 1761. Escreveu o poema auto-biográfico A Rameida (1766) e compôs peças para cravo, o que é atestado pelo jornal Ano Literário (outubro de 1757). Também compôs árias e uma sinfonia apresentada no Concerto Espiritual. Estas composições não chegaram até hoje. Ele foi militar, seminarista, e viveu pobre, do que se queixa na Rameida, tal como aparece no Sobrinho. Não se conhece a data da morte. Seu amigo Cazotte, que escreveu a Nova Rameida diz ele morreu “numa casa religiosa onde sua familia o tinha colocado”, outros dizem que ele faleceu num asilo de loucos.

A música.

Diderot era amigo de Grimm e de d´Holbach, e com eles jogou-se na Querela dos Bufões, que mexeu com o mundo da musica francêsa, na hora em que a guerra entre os adeptos de Lulli e de Rameau se acalmou. Quando ocorreu uma representação da Serva padrona (em 1752) pelos Bufões, companhia italiana, começa a batalha. Em novembro surge a brochura Carta à uma dama de certa idade, sobre o estado presente dos Bufões e a Guerra da Opera, escrita por d´Holbach. Grimm lança o texto O pequeno profeta de Boehmichbroda, o corretor dos bufões e a guerra da Opera. A partir destas publicações, formam-se dois partidos, o canto da rainha (Grimm, d´Holbach, os enciclopedistas) e o do canto do rei (marquesa de Pompadour, Fréron, etc) que defendia a música francêsa.  Muita tinta correu nesta batalha, entre muitos, o texto de Rousseau Carta sobre a música francêsa (1753), quando Rousseau caçoa do canto francês. Rameau replica a Rousseau com o texto intitulado Observações sobre nosso instinto para a música.  Diderot quase não disse nada, salvo dois pequenos escritos: Ao pequeno profeta (1753) e Os três capítulos, de difusão muito restrita. Quando os Bufões deixam Paris, acaba o episódio que favoreceu a criação da Opera cômica, apressando o fim da tragédia lírica.

No Sobrinho surge com evidência o conhecimento pleno que Diderot tinha de Rameau. Nas suas linhas topamos com os títulos das árias de muitas tragédias líricas ou balé de opera, com marcante presença das Indias Galantes. É lembrar que Diderot trabalhou com Rameau no texto Demonstração do princípio da harmonia (1750). O sobrinho entoa árias da Serva padrona, da Ilha dos loucos, do Marechal Ferrand, etc.  Também a música sacra entra no diálogo, como é o caso do Stabat.

Rameau pensava e escrevia música como cartesiano. Ele buscava a inteligibilidade da música, e redigiu tratados para tentar esta façanha. Acima de tudo, ele só reconhecia a autoridade da razão própria. Como cartesiano, abusou do espírito de geometria, o que lhe valeu a pior querela de sua vida, com D´Alembert, o que causou a sua ruptura com aquele matemático e colaborador infiel da Enciclopédia. O cartesianismo, tal como vivido ainda nos dias de Rameau, era um movimento crítico, de revolta contra as imposições dogmáticas, no mesmo passo em que se desejava uma explicação racional do mundo. As autoridades recusadas eram Aristóteles, dos padres, etc. Proclama-se naqueles dias a soberania da razão natural, a qual só se inclinaria diante de argumentos. Basta recordar a definição da era crítica por Kant: nosso tempo é a era da crítica, dela querem fugir a religião com a sua santidade e o governo, com sua majestade. Mas os dois só levantam mais suspeitos sobre o seu comportamento com esta fuga. Tudo deve ser submetido à crítica. Cem anos depois da morte de Descartes, o Discurso do Método ainda é tido como uma declaração de autonomia da inteligência. Rameau pensava assim.

O cartesianismo não criticava apenas. Ele queria explicar o universo, o homem, etc. Tudo passa a ser explicado “por figura e movimento”, segundo um modelo matemático. Tudo no universo, da pedrinha às estrêlas é pensado segundo princípios racionais, forças calculáveis, objetos submetidos a leis. E tudo é visto como imenso mecanismo: tudo é máquina, polias, rodas, contrapesos, etc. Se o universo funciona como um relógio, pode-se dominá-lo conhecendo os mecanismos que o regem. Se não podemos mudar suas leis, podemos usá-las depois de conhecê-las. Aprofunda-se a unidade entre técnica e saberes especulativos, na linha trazida por Francis Bacon. Estavam dadas as bases da Enciclopédia. Quando a obra coletiva dirigida por Diderot aparece, Rameau tem 60 anos. Ele vivera boa parte de sua existência no clima de loucura matemática que imperou na Europa a partir do século 17. A matemática transformou-se até mesmo em competição de cidade contra cidade, discute-se a trajetória de uma bola de bilhar, as chances num jogo de loteria, etc.Tudo, absolutamente tudo, torna-se matéria de cálculo. Procura-se, atrás das aparências sensíveis (da estética…) o verdadeiro mecanismo que as produz e delas fornece a inteligibilidade. Tudo é combinação de forças, de tempo e de espaço. O que é o som de um sino, ou de um violino, ou mesmo o canto de um pássaro? Combinações de vibrações redutíveis a relações numéricas. Para ver a natureza tal como ela é, são necessários instrumentos matemáticos, pois os nossos olhos não podem ennxergar o inverso da decoração do palco natural.

Rameau procede como cartesiano: antes do saber, a dúvida, a crítica. O seu primeiro passo é criticar, nos fundamentos da música, seus predecessores, de Pitágoras aos teóricos modernos. Todos teriam sido empíricos, e encontram alguns fragmentos da verdade devido ao uso de sua razão, embora não guiada pelo método. Se desejamos entender a essência da música, devemos nos livrar da experiência imediata, empírica. Assim, diz ele no começo do Tratado da Harmonia: “Se os músicos quisessem desconfiar de seu ouvido!”. Trata-se de por a razão na posse de seus direitos.  A música não escapa da ordem universal dos fenômenos da natureza. Para entender a natureza da música é preciso fazer como os físicos e partir do abstrato. Os santos padroeiros de Rameau, neste ponto, são Galileu e Descartes. Ele recusa a observação direta e ingênua, aceita que a verdade dos fenômenos esconde-se atrás da aparência sensível imediata. O ouvido só pode ser chamado a intervir depois que a razão ordenou o campo dos fenômenos.
A acústica tinha feito progressos no século 17 e 18, e o debate das Luzes passa por ela, porque nela se encontram o interesse estético e técnico-científico. A questão das cordas vibratórias tinha sido estudada pelos gregos e foi retomada por Galileu nos Discorsi de 1638. o padre Mersenne, entre muitas experiências e descobertas sobre as cordas vibratórias. Estas pesquisas levantaram o plano do qual surgiu a teoria de Rameau.

A música, segundo Rameau,  apoia-se numa realidade objetiva, não em nossos ouvidos, mas na fisica e só pode ser analisável segundo relações matemáticas. Trata-se de investigar a natureza do som. O conceito de natureza usado por Rameau não é o que se apresenta na aparência, mas na realidade acessível ao raciocínio, a natureza das coisas é objetiva, independe dos sentidos humanos. A emoção sentida na música deve ser explicada a partir de um princípio objetivo: “não sabeis, diz Rameau, que a música é uma ciência fisico-matemática, que o som é  o seu objeto físico, e que as relações encontradas entre os diferentes sons são objeto da matemático e geométrico?”

É por esse motivo que Rameau fundamenta a sua pesquisa no estudo do corpo sonoro. Este, “ que chamo a justo título, som fundamental, este princípio único, gerador e ordenador de toda música, esta causa imediata de todos os seus efeitos, o corpo sonoro, digo, ressoa e engendra ao mesmo tempo todas as proporções contínuas donde nascem a harmonia, a melodia, os modos, os generos e até as menores regras necessárias à prática”. (Demonstração do Princípio da Harmonia, Música Arrazoada). Cartesiano, Rameau busca, como Descartes, o principio único e unificador da ciência que procura fundamentar. No caso de Descartes trata-se do Cogito e no de Rameau do som fundamental.

A música, para ele, se articula em três domínios:

O físico : as vibrações, objeto de observação e de experimentação.

O matemático: método de análise sem o qual as realidades fisicas parecem confsas e inapreciáveis. Trata-se do cálculo das relações quantitativas entre os sons pelo comprimento e divisões das cordas que o fazem ressoar, em analogia com a frequência das vibrações.

O técnico: aplicações que o músico tira do conjunto de seus conhecimentos teóricos, com os quais ele nutre e sustenta seu gênio e produz o prazer do ouvido e excita as paixões.

Segundo Rameau, só um músico geômetra ou “artista filósofo” pode conduzir tal programa. Um matemático ou físico apenas, sem considerar os efeitos no ouvido dos auditores, veriam apenas números e vibrações. Um músico sem matemática ou física estaria votado à experiência empírica, à prática às cegas. Rameau que unir arte e ciência.

Diz Rameau: “a música é uma ciência que deve ter regras certas; estas regras devem ser extraídas de um princípio evidente, este princípio não pode ser conhecido sem as matemáticas. Assim, confesso que, apesar de toda experiência que poderia adquirir na música por te-la praticado durante muito tempo, só com o recurso das matemáticas minhas idéias se desenvolvem, surgindo a luz em lugar da obscuridade que antes percebia”.

Note-se: enquanto Descartes enuncia as regras para a direção do espírito, e as enuncia a partir de um princípio único tendo como paradigma a mathesis universalis, ciência da ordem mais profunda até do que as matemáticas, mas da qual as matemáticas seriam um elemento fundamental, Rameau também enuncia regras a partir de um só fundamento, e as desenvolve a partir do modelo matemático. Não é o ouvido empirico, imediato, do músico ou do auditor, que fornece a base do pensamento e da teoria musical. Apenas a razão, sob a forma da análise matemática, é qualificada para dar conta do som, definir intervalos, acordes, tonalidade. A natureza do som é evidente como o Cogito cartesiano: só é atingida pelo exercício do pensamento metódico e matemático. A evidência não é imediatamente empírica. Ela consiste em que elementos imperceptíveis são extraídos por análise e, uma vez atingidos, explicam claramente a realidade percebida, até então ininteligível. Trata-se, como em Descartes, da evidência intelectual, a única que resiste à dúvida. Deste modo, o som de um sino, uma corda, uma coluna de ar que vibra em seu tubo, estes sons são perceptíveis mas só podem ser explicados se decompostos em sons elementares, som fundamental, dupla quinta, etc. A natureza do som não é liberada para nós imediatamente, mas só após o trabalho da razão, do intelecto que divide, ordena, separa, classifica os sons.

Rameau passa da música ao universo e, tal é a crítica mais frequente ao seu pensamento, à custa de não raras acrobacias aritméticas. O Tratado da Harmonia, no qual ele trabalhou trinta anos, é um frenesi de calculos, depois disto, no tratado da Geração Harmônica, ele atenua este afã de calcular em benefício da empiria e da experiência. Mas Rameau apenas radicaliza em terreno da empiria as teses cartesianas sobre a ordem universal, a mathesis universalis. “A ordem” diz Descartes, “consiste apenas nisto, que as coisas propostas em primeiro lugar devem ser conhecidas sem ajuda das seguintes, e as seguintes deve ser dispostas de tal modo, que são demonstradas apenas pelas coisas que as precedem”. Segundas Respostas às Objeções contra as Meditações Metafísicas.

Evidência, clareza, distinção e ordem das razões é o modelo metódico cartesiano, o qual domina o pensamento de Rameau. Descartes ideou uma árvora da ciência, cujas raízes seriam a metafísica, depois o tronco com a física, etc. Em Rameau a árvore tem como raízes os conceitos elementares trazidos pela análise do som, o tronco é a tese, que trouxe má fama para Rameau e os ataques de Rousseau e demais escritores, do primado da harmonia sobre a melodia.

Tese de Rameau: a música repousa, em sua essência, nas combinações sonoras da qual Rameau julga ter produzido uma espécie de gramática. Toda realização musical resulta ou deriva de uma combinatória elementar. O músico ignorante ou o ouvinte idem, seduzidos pela sensação imediata, confundem música e melodia, confundem real e aparente. Segundo Rameau, a harmonia não se acrescenta à melodia como simples ornamentação. É a harmonia, pelo contrário, que torna possíveis todas as produções musicais. É ela, fundada no baixo fundamental, que inflete e colore a melodia, que lhe dá seu poder, sua força e encanto. A harmonia é a primeira, a melodia é segunda.

Mas a vida não julga em favor da melodia? As pessoas cantam em uníssono, antes de decifrar o baixo contínuo. Não responde Rameau: a harmonia subjaz na natureza, e as pessoas a supõem, mesmo sem conhecê-la. E Rameau exemplifica:

“quando se termina um canto --- desta maneira: ré – ré – dó -  dó , fazendo um tremido (dito cadência) no segundo ré, sentir-se-á o efeito de um repouso absoluto, seja porque o acampanhamos de seu baixo fundamental Sol Dó, seja porque não o acompanhamos porque o subentendemos sempre sem pensar”.

Vejamos o que diz Rousseau sobre o baixo fundamental: é formado pelos sons fundamentais da harmonia, abaixo de cada acorde ele faz ouvir o verdadeiro som fundamental deste acorde. O baixo fundamental não pode ter outra contextura que a de uma sucessão regular e fundamental, sem a qual a marcha das partes superiores seria ruim. Segundo Rameau, diz ainda Rousseau, todo acorde, embora formado de muitos sons, só tem um fundamental, o que produziu este acorde e que lhe serve de baixo na ordem direta e natural. Assim, muitos acordes são apenas inversões de um só acorde, etc.
Remeto os senhores ao Dicionário de Música, onde Rousseau desenvolve, para depois combater, a tese de Rameau sobre a predominância da harmonia sobre a melodia.

Importa, para nosso alvo no curso, dizer que segundo Rameau o relevante é o sistema. O som musical, não é realidade isolada, que possuiria propriedades intrinsecas. As propriedades musicais encontram-se nas relações dos sons uns com os outros, nas combinações de sucessões e simultaneidades (diacronia e sincronia) nos intervelados com suas diferenças. A música é um todo regrado de relações e quem deseja entendê-la, deve seguir a sua rede, como uma gramática. Esta distinção, pensa Rameau, permite distinguir o ruído do som. Um ruído é isolado, não se prende a nenhum sistema de referência, enquanto o som mesmo se emitido sozinho, não é isolado, participa de um sistema que o ouvido musical restabelece implicitamente, e que o compositor escreve explícitamente, que o artista toca realmente. Assim, a harmonia, por sua natureza estrutural em sistema, fornece a lei da música, dá-lhe força, expressividade e encanto.

Rameau foi saudado com entusiasmo por D´Alembert em nome da Enciclopédia, foi saudado com entusiasmo pela Academia de Artes, etc. Sua tese, no entanto, que já forçava o plano da música enquanto demonstração matemática, ele a generalizou para todo conhecimento e todo o universo. “Ha´uma ordem”, diz ele como perfeito cartesiano,” primitiva e invariável na natureza, sobre a qual tudo deve ser estabelecido, e da qual é preciso partir”. Não contente de submeter a música à matemática, por um modelo, ele coloca a música assim entendida no centro do saber. Ela se torna a rainha das ciências. D´Alembert, como boa parte do século 18, desconfia dos sistemas. E arrazoa: Rameau tem alguma razão de usar formas e analogias matemáticas, mas o que ele quer dizer quando pretende “demonstrar” a música? Isto significa que a música é demonstrável como a geometria? E D´Alembert dá um golpe em Rameau: nenhuma ciência física é demonstrável para falar com propriedade, todas elas tem um modo conjectural porque se apoiam em parte sobre o dado empírico; uma ciência física só pode imitar um modelo dedutivo sem poder tomá-lo completamente. E D´Alembert diz a Rameau. “a Academia não aprovou, e jamais aprovará, os vossos esforços [de Rameau] para encontrar o princípio da geometria no corpo sonoro”. Esta pretensão, desde 1750 foi defendida por Rameau, que via na música “um espelho da natureza em sua parte científica”. A partir daquela data, não é mais as matemáticas que devem fornecer o modelo para a música, é o contrário. O principio da geometria encontrar-se-ia no corpo sonoro. A música seria a chave da inteligibilidade do universo inteiro. Rameau delira racionalmente. A música fornece o princípio da inteligibilidade e também encarna o fundamento material de toda verdade e é dela que as demonstrações matemáticas emprestam sua certeza. Ela é a emanação da verdade eterna aplicável a toda ciência possível. Assim, temos o retorno de Pitágoras na figura de Rameau: existe uma harmonia universal, proclama o compositor, e tal harmonia vai do mundo físico ao social, deste ao político. Os enciclopedistas de um lado, e Rousseau de outro, que enxergavam no mundo social tudo, menos harmonia, recuam no apoio a Rameau e começam a criticar o delirante. E começou a polêmica mais do que desagradável que fez correr um rio de tinta. E temos aí, uma base para a violenta sátira de Rameau, na pessoa do sobrinho.

É preciso também recordar que Diderot, embora não erudito em matemática como d´Alembert, possuia conhecimentos e escritos sobre a música. Na Enciclopédia ele ajustou verbetes sobre o tema e redigiu um texto, os Mémoires sur différents sujets de mathématiques, um dos primeiros escritos seus. Alí, das cinco partes, três são consagradas à acústica teórica ou experimental. Os textos tratam das vibrações das cordas, algo que continua nos Pensées sur l´interpretation de la nature. Toda a sua vida Diderot se preocupou com a acústica. No plano prático, projetou um meio de fixar o diapasão, o cronômetro e, finalmente, o registro, mais um projeto de orgão mecânico. Assim, o tema de fundo do Sobrinho. o ruido, o som, a música de Rameau e a música italiana, a harmonia e a melodia, é tratado por um escritor que domina o seu assunto. Aliás, praticamente todos os escritos diderotianos passam pela música, como é o caso das Joias Indiscretas, A Religiosa, a Carta sobre os surdos e os mudos, alguns artigos da Enciclopédia, e as Conversas sobre o Filho Natural. Mas ele se queixa, nas Conversas sobre o Filho Natural, de não ser músico, de muito amar a música, querer mas não aprendê-la. A sua tentativa de inventar um orgão mecânico surge justamente para que os leigos em música possam executá-la, sem os constrangimentos técnicos da execução. Mas como em boa parte das casas que podiam, em termos economicos, a música era comum na residência dos Diderot.

Na Religiosa, Simone Simonin, quando chega ao convento de Arpajon, canta: “Era a noite. Trouxeram velas, me sentei, coloquei-me ao cravo; preludiei durante muito tempo na busca de um trecho musical em minha lembrança, que antes era cheia mas agora se esvaziara, cantava sem no canto ouvir algo fino, por hábito, porque o trecho me era familiar (…) Tristes preparações, pálidas tochas, dia mais tremendo que as trevas”. A ária cantada por Simonin, tirada de Castor e Pollux de Rameau, também é cantada pelo Sobrinho: "Pálidas tochas, noite mais tremenda que as trevas…deuses do Tártaro, Deus do esquecimento”. Ele inflava a voz; sustentatva os sons; os visinhos se punham nas janelas, colocávamos nossos dedos nos ouvidos, acrescentava, aqui é preciso pulmões; um grand eorgão; um volume de ar”. Diderot usa com maestria o aturdimento da religiosa forçada, inclusive na lembrança dos versos do libreto. Ela canta as “tristes preparações” de um enterro. Na opera de Rameau o enterro é de Castor, na Religiosa,  Simonin canta a sua própria descida ao túmulo, o convento,  “tristes preparativos…”. TÉLAIRE(no mais profundo luto):  “Tristes preparativos, pálidas tochas, dia mais tremendo que as trevas, astros lúgubres dos túmulos, nã verei mais vossas claridades fúnebres, tu que vês meu coração perdido, pai do dia, ó Sol, ó meu pai, não quero outro bem que Castor, e renuncio à luz”. O sobrinho troca o dia pela noite: “noite mais tremenda que as trevas…”.

Pode-se dizer que o conhecimento da música, em Diderot, era a média dos cultivados naquela arte. Quando escrevia as Lições de Cravo e retomava a redação do Sobrinho, ouviu sinfonias e música de câmera de Carl Philipp Emanuel Bach, Stamitz, Haydn e Mozart. O que Diderot sabe de música, deve a Rameau, pelo menos nos grandes elementos. Diz Diderot sobre a distinção entre ruído e som, distinção bem ramista, mas com alguma diversidade: “o ruido é um, o som pelo contrário não fere nunca só o nosso ouvido. Ouvimos com ele outros sons concomitantes que chamamos harmônicos” (Mémoires sur differents sujets de mathématiques, citados por Béatrice Durand Sendrail, Diderot, écrits sur la musique, Ed. Jean-Claude Lattès, 1987).

A música entra como metáfora nos textos teóricos e epistemológicos de Diderot. À metáfora visual, a mais enraizada na cultura metafísica do Ocidente, Diderot substitui outras, auditivas, ligadas ao tato, etc. Desde Platão o recurso às metáforas emprestadas da percepção sensorial é algo banal. “Para julgar”, escreve Diderot, “é preciso ter ao menos duas coisas presentes, o objeto que parece permanecer sob os olhos do entendimento, enquanto ele se ocupa com a qualidade que afirmará ou negará” (Entretien entre Diderot e d´Alembert). À semelhante metáfora visual, Diderot acrescenta, corrigindo-a, a metáfora auditiva e musical :”Eu penso. É o que me faz às vezes comparar as fibras de nossos orgãos a cordas vibratórias sensíveis. A corda vibratória, sensível, oscila, ressoa durante bom tempo depois que foi pinçada. É esta oscilação, esta espécie de ressonância necessária que segura o objeto presente, enquanto o entendimento se ocupa da qualidade que lhe convem. As cordas vibratórias têm ainda uma propriedade, a de fazer as outras fremir. É assim que uma primeira idéia chama a segunda”. (Idem, sempre no texto de Béatrice Sendrail Durand, op. cit).

O juízo deixa o plano do olhar do intelecto, mas o da percepção dos sentidos todos, num concerto de várias percepções. O sujeito humano é uma espécie de cravo bem temperado. Os seus defeitos encontram-se na falta de ajuste de suas cordas vibratórias e na execução medíocre oferecida pelos diversos “cravistas” que não sabem tocar a si mesmos. Se a metáfora do olho intelectual dava ao sujeito pensante um papel ativo, no modelo diderotiano o sujeito que percebe tem um papel mais passivo diante dos agentes externos que o fazem ressoar. Perceber não é mais julgar, é deixar-se comover pelos vários agentes do mundo. Para explicar ao aluno imaginário de suas Lições de Cravo, o autor Diderot usa exemplos do mundo exterior, no domínio estético e moral: “a discórdia faz [na harmonia] o mesmo papel que no universo; é a dor que torna o prazer picante; é a sombra que faz valer a luz; a fadiga fornece ao gozo a sua doçura; é o dia nebuloso que embeleza o dia sereno; é o vício que serve de fardo à virtude; é a feiúra de marca o brilho da beleza; é por oposição que os caracteres se distinguem; é no claro escuro que consiste a magia da pintura; os poetas de gosto refinado não deixaram de jogar uma idéia triste no meio de imagens risonhas e voluptuosas. Estas tornam-se mais interessantes. Um pouco de ruido longinquo empresta um encanto inconcebível ao silêncio; um ser pensativo relegado ao canto de uma solidão, aumenta a solidão. Uma felicidade que nada altera, torna-se enfadonha” (Lições de Cravo, Sendrail, p. 24). Todos estes exemplos são usados por Diderot para dar uma idéia da música e da harmonia.

E no Sobrinho: “o ponto importante, difícil ao qual um bom pai deve sobretudo se apegar, é de não dar ao seu filho vicios que o enriqueçam, ridiculos que o tornem precioso aos grandes, todo mundo faz isto, se não for sistemáticamente como eu, pelo menos com o exemplo e lição; mas lhe marcar a justa medida, a arte de esquivar da vergonha, da desonra, das leis; são dissonâncias na harmonia social que é preciso colocar, preparar e salvar. Nada mais aborrecido e superficial que uma série de acordes perfeitos. É preciso alguma coisa que belisque, que separe o feixe e espalhe os raios”.  A educação deve salvar na criança o que dela faz uma dissonância no corpo social.

Música em Diderot e em Platão:

Em Diderot a música tem papel ambiguo, falando-se em termos políticos. Ela pode ser um fator de coesão social e fermento de dissolução. Diz ele sobre a música na Grécia antiga (Carta à Senhorita de La Chaux): “Em Atenas, os jovens davam quase todos dez ou doze anos à música; e um músico que tem como auditor e juiz apenas músicos, um trecho sublime devia naturalmente jogar toda uma assembléia no mesmo frenesi pelo qual são agitados os que o executa em nossos concertos. Mas é da natureza de todo entusiasmo o fato de se comunicar e de crescer com o número de entusiastas. Os homens têm, então, uma ação recíproca uns sobre os outros, pela imagem enérgica e viva que todos oferecem  da paixão pela qual cada um deles está transportado”.

Esse trecho refere-se à República e às Leis, onde são descritos o papel da música na cidade e o lugar que ela tem na educação. (Rep. II, 376d, III, 400 a-b; Leis VII, 802a). Segundo Platão, a música conduz ao melhor e ao pior. Ela pode arruinar a ética, mas também pode exaltar a coragem e a virtude. O legislador deve se interessar por ela, prevenindo o mal, impedindo a música lasciva, decadente, favorecendo a música ética, que serve como instrumento de coerção moral sobre as massas. A música pode unir indivíduo e sociedade, é o meio pelo qual comungam e se exprimem coletivamente os indivíduos do corpo social. Esta imagem da sociedade ateniense comungando na escuta de sua música seduziu Diderot. A música produz uma política correta.

Mas ela também é sensibilidade, ou melhor, sensualidade. E esta última, na ordem social, faz o papel de fermento de desordem. Os personagens diderotianos romanescos ou tomados pela música sem os corretivos da razão, tornam-se “deslocados”. É o caso do sobrinho. Se em Platão este lado da música suscita desconfiança, em Diderot ele nunca foi pejorativo, no entanto. A música, então, não é negativa em termos políticos ou éticos, ela é ambigua, pois une e separa os indivíduos e grupos. O sobrinho é um anarquista, mas também é um virtuose, o que supõe uma disciplina, pelo menos mínima.



Teatro

Alguns comentadores adiantam que Diderot seguiu para o romance, porque fracassou no teatro. E outros seguem adiante tentando mostrar que o elemento satírico sucede ao patético do teatro diderotiano, como é o caso do Pai de Família.  Mas outros autores, como Jacques Chouillet indicam que o Sobrinho pode, perfeitamente, ser o correspondente do patético que encontra-se no Elogio de Richardson. Assim, os comoventes quadros morais e apologia da bondade, na peça de teatro e nas lágrimas vertidas pelas heroínas virtuosas e sofredora de Richardson,  podem coexistir com a “pantomima dos miseráveis” do Sobrinho.

No centro do texto do Sobrinho temos uma peça teatral, Os Filósofos, de Palissot. Em 1760, esta peça foi apresentada com triunfo, enquanto a peça de Diderot, O Pai de Familia, obtem um sucesso moderado. A peça maldosa vence a boa. A afronta ao partido da Enciclopédia não foi lavada. Jean-François frequentava o financista Bertin, protetor de Palissot e as pessoas de seu partido. A ordem seguida por Diderot é fazer Jean-François, Rameau o louco, indicar Palissot, como infâme, adulador, parasita, etc. Jean-François, recem expulso por Bertin, serve perfeitamente ao papel. Desta situação real/teatral, saem os temas do diálogo: o desnudamento do pacto social que torna possível indivíduos desprezíveis como Bertin e Palissot, a crítica da mentira, a reabilitação do gênio, a busca de um princípio pedagógico, a definição do bem soberano, a busca da liberdade impossível.  Há um lado crudelíssimo no texto: Jean-François perdeu seu filho logo depois dos eventos insinuados no Sobrinho. No texto, ele ainda não tinha morrido, de modo que soa como uma profética desgraça a descrição do pai como a pessoa que suborna o próprio filho.  Assim, por um só personagem, estamos no centro de todos os problemas contemporâneos, no ponto crucial em que a estética encontra a moral, a pedagogia, a política.


domingo, 9 de setembro de 2018

Música e política. Roberto Romano

Música e política.
Roberto Romano

Um lugar comum da filosofia política é o símile entre cidade e ordem musical. Na Renascença, François Hotmann usa as imagens antigas da harmonia para descrever o governo desejável. As figuras, como é previsível em alguém nutrido pelo pensamento antigo, são extraídas de Platão e de Cicero. Hotmann cita “a bela passagem” ciceroniana sobre o bom tempero musical do governo cuja fonte, afiança, é a República de Platão (escrita, diz Hotmann, com maestria na lingua grega “en si bons termes, qu’ il ne soit possible de lui donner une telle grace en la notre”) na qual o filósofo diz : os que tocam instrumentos musicais ou cantam em várias pessoas, “seguem certa medida e ressoam um canto harmonioso, mistura de vozes diversas reunidas e concordes, as quais se chegam a se fragmentar um pouco apenas e sair do tom, fazem mal aos ouvidos dos que as ouvem. E no entanto aquela harmonia só vem da perfeita consonância, bem acordada, de vozes diferentes.” De modo idêntico, segue Hotmann, “no governo da coisa pública, composta de pessoas de alta, média e baixa qualidade, quando as diferentes partes se unem, se ligam e se incorporam, não existe harmonia tão musical, nem melodia melhor acordada. A concórdia procede da união, caridade e mistura dos cidadãos da mesma urbe, como se fosse uma forte corrente e rija, para garantir o estado de uma coisa pública que não dura muito tempo sem justiça”.

Não apenas no lado protestante e rebelde à corte, ao qual pertencia Hotmann, foram postos em movimento doutrinas e saberes sobre a ordem musical de mundo e política. Entre 1564 e 1566 a rainha regente, Catarina de Medicis, e seu filho rei Carlos tentaram por todos os meios pacificar o Estado e a sociedade. Eles viajaram pelo interior da França buscando apaziguar os ânimos e cooptar novos aderentes para a corte. Mas a paz de Amboise, compromisso instável entre governantes e rebeldes que durou quatro anos, foi rompida em setembro de 1567 pelo príncipe Condé, protestante e líder dos reformados. O príncipe temia que Filipe 2, localizado  próximo da fronteira entre Países Baixos e França para reprimir a revolta local, entrasse na França para apoiar Catarina de Médicis e vencer os protestantes. Foi tentado o rapto do rei. Além dos motivos religiosos para o ato, alvos políticos foram expostos, como o pedido de convocação dos Estados. A revolta de Condé vai de 1567 a 1569 e foi tratada como a anterior guerra do “Bem Público” de 1465, derrotada por Luis 11. Catarina venceu batalhas militares contra Condé. O movimento inteiro dos nobres protestantes era político e religioso, na tentativa de enfraquecer a Igreja Católica e a presença espanhola na política interna da França. As sedições levadas pelos huguenotes conseguiu o afastamento de Miguel de l ‘Hospital em maio de 1560. A liderança militar dos reformados era mantida por Gaspar de Coligny. Editos de tolerância nada valeram e não trouxeram paz à França, católica ou protestante. O edito de Saint Germain ofereceu aos huguenotes a liberdade de consciência, o culto por eles praticado antes das lutas e quatro cidades armadas (La Rochelle, Cognac, Montauban. La Charité). Assim, o rei reconhecia o partido da Reforma como potência militar autônoma e não apenas como uma dissidência religiosa. O sonho da harmonia política sob o rei se desfazia a cada instante. O monarca não mais garante a segurança geral da França.

Apesar desse fracasso, o campo noético da França, no relativo ao monarca, acentua a doutrina platônica, ou neo platônica, que afirma a hierarquia política (constante nas doutrinas do neo platonismo, em especial pela antiga tradição que passou por Santo Tomás de Aquino, de Dionísio o pseudo areopagita) e a idéia de harmonia. A corte de Carlos 9 nutriu pensadores que assumiram a exigência de hierarquia na ordem pública e de harmonia no reino, devida à pessoa do monarca. Em 1570 Carlos 9 incentiva a fundação da Academia de Música. Fundada por Jean-Antoine de Baïf em aliança com Ronsard e outros, seu objetivo era compor música segundo o modelo antigo e “acordar”a poesia com a música, conjugando sílabas francesas e notas. Assim, pensavam eles, seria possível atingir uma harmonia perfeita, concebida como fundamento do universo e da alma, prelúdio para o domínio das paixões humanas.

É com esse horizonte que o rei tenta, a partir da Paz de Saint-Germain, controlar a ordem política na França. Na tentativa de pacificação interna (que dera a Coligny lugar no Conselho de Estado), o casamento de Margarida, filha de Catarina, com Henrique de Navarra, líder dos protestantes depois da morte de Condé, serviu mais para erguer protestos de ambas as partes, a católica e a protestante, do que para definir uma paz duradoura e profunda. As coisas assumem rumo incontrolável com a tentativa de assassinato de Coligny por incitamento do duque Henrique de Guise.

Com essa situação insustentável, Carlos 9 e sua mãe tentam o golpe de Estado conhecido como a Noite de São Bartolomeu. Contra o golpe se levantam, como previsível, os protestantes e seus intelectuais. Hotmann será um deles. Dentre as fontes explícitas de Hotmann surge Platão nas Leis (sobretudo o livro III). A concórdia entre os humanos, a tolerância diríamos se estivéssemos no século 18, só é possível se os legisladores tiverem como referência o modelo musical.

 Faço uma diversão em nosso tema, para adiantar alguns pontos importantes ao assunto. A figura da pacificação trazida pela música seguiu sua trilha até os nossos dias. No século 19 ela vigorou entre os românticos, teóricos e poetas. Shelley (1) resume o ponto ao enunciar que “o homem é um instrumento sobre o qual uma série de impressões internas e externas são conduzidas, como as alternâncias de um vento sempre mutável numa harpa eólica, que a move por seus movimentos numa sempre mutável melodia. Mas existe um princípio no ser humano, e talvez em todo ser sensível, que age de modo diverso do que ocorre na lira, e produz não só melodia, mas harmonia, por um ajuste interno dos sons e movimentos que excitam as impressões que os excitam”. (2)

O tema banal da harpa eólica se relaciona com a fábula da estátua egípcia do jovem Menão, onipresente na literatura romântica. Menão seria o filho de Titonius e Aurora morto na guerra de Tróia. Seu túmulo seria frequentado por um pássaro. Na poesia de Erasmus Darwin, “a gigantesca estátua de Menão no seu templo de Tebas, tinha uma lira em suas mãos que, muitos escritores críveis nos asseguram, ressoa quando o sol nascente nela bate”. (3) Entre o delírio dos apreciadores de ópio e do retorno à natureza, na qual brotaria a música melodiosa da concórdia comunitária, contra a via moderna e ao maquinismo da sociedade e do Estado, temos, portanto, as doutrinas humanistas de vários matizes, da Renascença ao século 18.

Montesquieu é escritor estratégico quando se trata da harmonia dos poderes estatais e das leis. Ele se refere à música e aprecia a sua função pública na política, moral e ideológica. No capítulo oitavo do livro IV (Espirito das Leis) são analisadas a força e a importância da música como instituição política da Grécia, tendo como base Platão e Aristóteles. Montesquieu  explica, sem demasiada originalidade é certo, o quanto importa dar aos cidadãos um ofício que tempere a educação demasiado bélica. A música deveria “amansar os costumes” porque “de todos os prazeres dos sentidos, nenhum corrompe menos a alma”. O filósofo retoma o tema dos poderes morais da música. (4)

Catherine Kintzler, em belo artigo sobre o tema, passa rápido em demasia pelas teses de Montesquieu. No livro 4, capítulo oito citados, o filósofo trata de um paradoxo grego quando  trata da música e dos costumes. Em primeiro lugar ele cita Políbio e Platão, sempre no sentido de se providenciar a atenuação da ferocidade guerreira. “Platão não teme dizer que não é possível modificar alguma coisa na música sem que mudanças ocorram na constituição do Estado”. Depois ele cita Aristóteles, Teofrasto, Plutarco, Estrabão, afirmando que o elo da música com as leis e costumes “é um dos princípios de sua política”. A partir daí, temos uma análise, de fundo econômico e social, que tenta explicar o vínculo entre música e legalidade. Nas cidades gregas, sobretudo as dedicadas à guerra, os trabalhos destinados ao ganho de dinheiro eram indignos do homem livre. A democracia manteve aquele veto. E foi apenas “pela corrupção de algumas democracias que os artesãos chegaram à cidadania. É o que Aristóteles informa e sustenta : uma boa república jamais lhes dará o direito de cidade”. A agricultura era própria dos servos, dos povos vencidos (Ilotas em Esparta, Periécios em Creta, Penestas na Tessália). Todo comércio baixo era infame, pois nele um cidadão servia um escravo, um locatário, um estrangeiro. Donde, adianta Montesquieu, um problema sério: seria preciso que os cidadão fossem ocupados, não se apegassem à preguiça. Mas eles não poderiam comerciar.

Logo, a ginástica e a guerra eram muito próximas. A sociedade grega seria uma espécie de clube de atletas e guerreiros. Tal ocupação torna os indivíduos duros e selvagens. Ela precisa ria ser temperada pela música e por outros afazeres. A música, por si só, não amansaria os costumes, mas ela atenuaria a ferocidade. Ela ajudaria a alma a sentir ternura, doce prazer, piedade. Existe, no trecho, um aguilhão contra o pensamento à moda de Rousseau : “Nos autores de moral, que, entre nós, proscrevem tão fortemente os teatros, nos fazem sentir bastante o poder da música sobre as almas”. Mas porque, interroga Montesquieu, escolher a música para amansar os costumes ? “De todos os prazeres dos sentidos, nenhum deles corrompe menos a alma. Enrubescemos ao ler em Plutarco que os tebanos, para amansar os costumes de seus jovens, estabeleceram por lei um amor que deveria ser proscrito por todas as nações do mundo”. (5)

Mas não apenas Montesquieu prestou atenção aos conceitos éticos sobre a música, engendrados pelos filósofos gregos. No Dicionário de Música (verbete “Música”) Rousseau afirma que “a música era muito estimada pelos povos da antiguidade, principalmente pelos gregos, e esta estima era trazida pela potência e efeitos surpreendentes que eles atribuíam a tal arte. Seus autores não acreditavam dela nos fornecer uma idéia demasiado grande, nos dizendo que ela era usada no céu e que ela a principal diversão dos deuses e das almas bem aventuradas. Platão não teme dizer que não pode existir mudança na música que não cause outra na constituição do Estado, e pretende ser possível assinalar os sons capazes de fazer nascer a baixeza da alma, a insolência, e as virtudes contrárias (…) a música integrava o estudo dos antigos pitagóricos. Eles a usavam para excitar o coração tendo em vista ações louváveis e para o inflamar do amor da virtude. Segundo tais filósofos, nossa alma era formada, por assim dizer, apenas de harmonia, e acreditam restabelecer, por meio da harmonia sensual, a harmonia intelectual e primitiva das faculdades anímicas; ou seja, a que, na sua opinião, nela existia antes que animasse nossos corpos e quando ela morava nos céus”. (6)

Apenas para não ficar nos poucos exemplos do romantismo, entre os pensadores situados no século 18, citemos Diderot. Poderíamos falar bastante sobre o elo entre harmonia, sociedade e poder estatal no Enciclopedista.  Basta que recordemos o Sobrinho de Rameau.  Mas no pensamento de um adversário maior dos enciclopedistas, inimigo de Rousseau, encontramos o panegírico da harmonia para determinar a natureza, a sociedade e o Estado. Trata-se de Jean-Philippe Rameau. O século 18 se define, normalmente, pelo classicismo, quando mais apropriado seria dizer que nele percebemos os derradeiros passos do barroco. A polifonia é criticada naquele tempo, sobretudo a propósito da opera. Como adianta uma analista da música no século das Luzes, não seria possível para as mentes cartesianas do período aceitar ser possível executar várias coisas ao mesmo tempo. “Se as vozes apenas se repetem, não existe interesse; se dizem coisas diferentes, é uma cacofonia incompreensível”. (7) A música como finalidade em si mesma é algo difícil de ser compreendido no século 18. Ela é pensada no conjunto dos costumes, da ordem política, religiosa, etc. Em tal contexto ela ainda é utilizada para a entender a noção de mimesis. E aqui as doutrinas gregas sobre a música mostram importância estratégica nos séculos 17 e 18.

Descartes, Mersenne, Kircher e outros conheciam rudimentos da música na Grécia antiga, como aliás também antes deles os mosteiros beneditinos. Tanto o Dictionnaire de Musique de Rousseau quanto a Enciclopédie diderotiana abrem caminho para o elo da música moderna com a antiga. Segundo Béatrice Didier, surpreende o número de informações sobre a música grega em Rousseau. Este último teria ensaiado aprender a lingua tendo em vista preparar seus artigos de música para a Enciclopédie. (8) Para os filósofos das Luzes, a Grécia teria sido a primeira terra a possuir um sistema musical coerente, embora não o mais antigo, pois tal elemento seria próprio do Egito. Alguns, no entanto, defendiam ser a China o lugar onde a música surgiu com anterioridade. O artigo “Música” da Enciclopédie enuncia que os antigos “diferem muito entre si sobre a natureza, o objeto, a extensão e as partes da música. Em geral eles davam à palavra um sentido muito mais extenso que o de hoje. Não apenas sob o nome de música eles compreendiam (…) a dança, o canto, a poesia; mas até a coleção de todas as ciências. Hermes definiu a música como o conhecimento da ordem de todas as coisas, esta era também a doutrina da escola de Pitágoras e a de Platão, os quais ensinavam que tudo no universo era música. Segundo Hesíquio os atenienses davam o nome de música a todas as artes”.

A música, para boa parte dos pensadores no século dezoito seria uma arte da totalidade. “O teatro grego seria justamente este espetáculo completo”. A Opera florentina se inicia com o modelo do teatro grego no qual “as tragédias eram cantadas” (Rousseau, “Fragmentos de Observação sobre Alceste …de Gluck”). (9) Segundo Rousseau o grego, ritmado pela alternância de longas e breves, já era musical e na música ”as medidas eram apenas fórmulas e ritmos fornecidos para todos os arranjos das sílabas longas ou breves, e pés suscetíveis à lingua e à poesia. De modo que, embora possamos distinguir muito bem no ritmo musical a medida da prosódia, a medida dos versos e a medida do canto, não podemos duvidar que a música mais agradável ou a melhor cadenciada seja aquela na qual estas tres medidas concorrem unidas da maneira mais perfeita possível”. (Escritos sobre a Música)(10)

Importa entender o sentido amplo da palavra “música” dos antigos ao século 18, para não cairmos na esparrela do romantismo e de seus representantes tardios como R. Wagner, sobre a ”obra de arte total”. (11) Segundo este último, tal prática seria “novidade” sua, obra de seu gênio. No entanto, basta abrir os textos da renascença, como os de Hotmann, para nos dar conta da amplitude do termo e da coisa para os pensadores que produziram antes do século 19. Segundo Condillac “a palavra música compreende não só a arte que ela designa em nossa lingua, mas ainda o gesto, a dança, a poesia e a declamação. A tais artes reunidas, pois, é preciso relacionar a maioria dos efeitos de sua música e desde então eles não surpreendem” (Ensaio). (12 ) Mesmo o grande inimigo do teatro, Rousseau, exclui a tragédia grega da condenação geral emitida na Carta a D’ Alembert sobre os Espetáculos. Naquelas peças canto e palavra seriam unidos, o que se perdeu com a degradação da sociedade. A degradação da música, aqui, tem o sentido que lhe foi dado por Platão na República e nas Leis.

A questão da harmonia é essencial naqueles textos, e assim eles foram percebidos na renascença e na idade moderna. Ao analisar o pensamento musical e metafísico de Rameau, (13 ) Catherine Kintzler diz que o compositor “não contente por ter submetido a música a um modelo matemático (…) empreende uma cruzada teórica cujo fim confesso é ‘abrir caminho’ alí onde reinava a obscuridade, empreende uma cruzada teórica para estabelecer a música no centro e no topo do saber. A música não poderia ser uma disciplina subordinada. Ela deveria se tornar a rainha das ciências”. Desde 1750 Rameau diz que a música pode ser vista como “o espelho da natureza na parte científica”. Logo ele inverte o papel da música e da matemática, pois no seu entender a segunda deve ser submetida à primeira. A música se transforma em princípio universal de inteligibilidade. A música encarna o fundamento material de toda verdade. É dela que as demonstrações matemáticas extrairiam sua certeza. Assim, a harmonia musical deve ser levada a sério: “não existem obras da natureza ou da arte na física ou moral, que não sejam suscetíveis do termo harmonia universal, harmonia celeste, harmonia do corpo humano, harmonia em pintura, arquitetura, harmonia do governo, etc. Se perguntarmos aos pintores o que significa acordar um quadro, veremos que é contentar o olho o que se faz em música para contentar o ouvido para chegar à justeza exata e rigorosa e sensível da música, a qual parece nos ter sido concedida pela natureza como o tipo sensível do que deve estar em proporções, ou seja, de toda a perfeição”. (14 )

Entremos no vivo da questão, com a fonte referida em quase todos os autores renascentistas ou dos séculos 17 e 18, para determinar a amplitude da música como perspectiva universal que engloba as artes e a política. Refiro-me naturalmente a Platão nas Leis, sobretudo no livro terceiro. Sem ignorar os conhecimentos do leitor sobre os escritos platônicos, peço vênia para resumir os pontos essenciais daquele texto. A pergunta inicial fornece todo o movimento do escrito: qual poderia ter sido a origem da sociedade política? (676 a). Para encaminhar a pesquisa, o ateniense propõe um ponto de partida, o que determina como os Estados caminham tanto no sentido da virtude quanto no do vício. E vem a proposta de recuar a tempos sem limites, seguindo as mudanças ilimitadas ocorridas naqueles tempos. Assim, trata-se de investigar o tempo no qual os Estados se organizaram em sociedades políticas, tempo que deve ser concebido, o que não é fácil, porque faltam meios para o fazer. Tal tarefa é árdua e sem instrumentos eficazes. A dificuldade de semelhante tarefa a torna ἀμήχανος (sem esperança, impraticável). Durante aquele tempo milhares e milhares de Estados foram constituídos e na mesma proporção, milhares desapareceram. Tais Estados conheceram todas as espécies de organização política. Eles não passaram de pequenos a grandes e de grandes a pequenos? Está posta aqui, desde já, o problema do crescimento do Estado, com o imperialismo. Falaremos do ponto mais tarde. Tal mudança quantitativa (maior/menor) tem seu correlato na qualidade: as organizações seriam piores ou melhores, mudando de sentido com o tempo. Trata-se, pois de captar a causa (palavra que vem de αἴτιος, o responsável, o culpado) de semelhantes modificações.

O tempo incomensurável, no entanto, e as mudanças qualitativas que ele encerra, poderia ser examinado, para se descobrir alguma verdade, segundo as tradições arcaicas sobre os eventos ocorridos. O termo empregado por Platão agora é παλαιοὶ λόγοι (os ditos primeiros, muito antigos). As narrativas rezam que os homens sofreram graves cataclismos (dilúvios, epidemias, etc) que só deixaram subsistir uma parte deles. No dilúvio, por exemplo, os pastores das montanhas teriam escapado em pequeno número. Eles seriam ignorantes do resto das técnicas (que não o pastoreio) quanto das maquinações (μηχανῶν, plural, feminino, no genitivo vindo de μηχανή, instrumento, astúcia) usadas pelas pessoas das cidades umas contra as outras, para ter mais bens do que os demais (o termo é pleonexia) para ser mais importante que eles (o termo agora é philoneikia, amor da vitória sobre os demais, o que leva ao significado de sectarismo, partidarismo, etc) sem falar das safadezas (κακούργημα, truques baixos, fraudes) usadas por uns contra os outros.

As cidades situadas na planície e beira mar foram inundadas e destruídas e com elas os instrumentos bem como as descobertas de valor implementadas pelas artes, sobretudo a técnica politica e demais saberes (sophias). Aqueles saberes ficaram escondidos, até que Dédalo as revelou em alguma parte, Orfeu em outras e Palamedes ainda outras no domínio musical. Marsyas no Olimpo e depois Anfião quanto à lira e outra infinidade de inventos, os quais, podemos dizer, datam de ontem ainda.

Após a destruição, a humanidade vive num estado terrível de solidão, em imensas extensões de terra desolada. Morreu a maioria dos animais, salvo talvez pequenos rebanhos de chifre, sem dúvida cabras, insuficientes para nutrir os sobreviventes. E da organização política e das leis, nada sobrou. Nada restou também da virtude em abundância e da perversidade idem. Os homens ignoram “as belas coisas da vida citadina”, na virtude e no vício. Com o tempo e o aumento da espécie humana, tudo chegou à situação presente. O provável é que as mudanças se tenham ocorrido gradativamente. Descer dos montes para a planície seria, para todos os sobreviventes, motivo de um terror que ressoava em suas almas. Como seu número era pequeno, sentiam alegria no encontro com os semelhantes. Mas os instrumentos de comunicação desapareceram com as demais técnicas, os que teriam sobrado, estavam gastos. Para ter novamente tais comodidades, foi preciso muito tempo.

Sem instrumentos que possibilitam os encontros, é menos importante a dissenção (στάσις) e a guerra (πόλεμος). Isolados, os homens tem prazer de se encontrar, com sentimentos de benevolência mútua. Como eram poucos não precisavam brigar pela comida, roupa, utensílios, etc. Eles eram pobres e não tinham motivos para as lutas. “Uma comunidade (συνοικία) na qual não comungariam a riqueza ou pobreza, é nela que se realizaria o a mais alta (γενναιότατα) nobreza ética. Nela não existiria desmesura (ὕβρις) , injustiça (ἀδικία), nem inveja (ζῆλοί) ou rivalidade (φθόνοι )” .

Aqueles homens teriam bondade de coração (εὐήθεια) e o que lhes era dito belo ou feio, o consideravam assim e se conformavam pois nenhum tinha o talento de suspeitar a falsidade. Eles viviam de acordo com o que lhes diziam sobre os deuses e os homens. Eles ignorariam os processos e dissenções, artes que consistem em maquinar (μηχανή) engodos em palavras e atos injustos, para se aproveitas uns dos outros. E como eles precisaram de leis e legisladores ? Se eram bons, não precisavam de leis. Eles não tinham escrita, mas por costume (ἔθεσι) as normas (νόμοις) eram as legadas pelos seus antepassados (πατρίοις).

Assim, eles dariam o nome de “ hereditariedade”(δυναστείαν) ao poder político, forma que ainda hoje existe entre gregos e bárbaros. Eles não precisavam de assembléias, pois cada chefe dava a lei para as crianças e mulheres. Com o aumento das pequenas comunidades primitivas, cada qual com seus costumes e devido ao seu isolamento recíproco, cria-se uma grande comunidade, composta das pequenas, e cada representante vinha à grande comunidade com as suas leis próprias, deixando de lado as leis das outras comunidades. Eles escolheriam para representá-los os que mais identificados fossem com os costumes e leis de sua comunidade, a tribo. Eles recebem o nome de legisladores, instituindo magistrados para trabalhar com o que se poderia chamar de rei, se definindo algo como um governo dos melhores (ἀριστοκρατία).

Uma terceira forma, é analisada depois da dinastia e da aristocracia. Tróia, ao deixar as alturas se estabeleceu numa grande e bela pradaria, sobre uma colina pouco elevada em cuja vizinhança corriam belos rios. Com os tempos, os seus habitantes esqueceram o dilúvio. Outras cidades foram iniciadas, que conduziram expedições contra ela. Os aqueus passaram dez anos diante dela a pudessem conquistar. Enquanto isso, nas cidades dos atacantes surgiam sedições fomentadas pelos jovens. Estes, quando os guerreiros voltavam, não os acolhiam como o devido, nem mesmo com justiça, mas com assassinatos, banimentos, degolação. Os que foram assim tratados mudaram seu nome. De aqueus eles passaram a se chamar dórios, pois Dorieus reuniu aquela gente. Esta é a história dos espartanos.

Toda a questão das leis surgiu, diz o ateniense, de uma digressão sobre a música e a embriaguez. Na via seguida, chegamos ao estabelecimento de uma população em Esparta, que teria sido um estabelecimento perfeito, o que nos leva até Creta, que tinha leis irmãs à de Esparta. Com a digressão, foram examinadas três formas políticas, que se sucederam no tempo imenso. Estamos diante de uma quarta, ou povo. Nos coloquemos nos tempos em que Esparta, Argos, Messena estavam sob o domínio dos ancestrais. Em Argos, agora independente do todo, Temenos se tornou rei, Cresfontes em Messena, Procles e Cresfontes em Esparta.

Um triplo juramento ligou cada um das três realezas aos três Estados, juramento conforme as leis instituídas para regular as relações dos governantes com os governados. Os primeiros se empenhariam a não, com a passagem do tempo, e de sua linhagem, fazer uso excessivo da força no uso de sua autoridade; os segundos, fortalecidos pelo juramento solene dos governantes, se comprometiam a nunca fazer algo para derrubar a realeza, nem abandoná-la aos que, no estrangeiro, desejariam derrubá-la. O juramento serviria para ajuda mútua entre reis e povos vitimas de injustiças. Um conselho prudencial para os legisladores : eles deveriam fazer leis que pudessem ser acolhidas de bom grado pela massa popular. Como os professores de ginástica e os médicos devem colocar algum prazer nos seus cuidados.

Entramos agora no ponto mais delicados das leis e da ordem política: o econômico que implica a propriedade. O ateniense diz que para estabelecer a igualdade (o termo de origem é ἰσότης, igualdade) entre os cidadãos, seria preciso que se efetivasse de modo conveniente a regulamentação da propriedade fundiária. Também seria preciso regular as dívidas, liquidando-as. Quando um legislador deseja mudar algo neste campo, todos se levantam contra ele e alegam que não se deve mexer no caso. E chegam imprecações contra os que propõem uma nova partilha das terras e modificações nas dívidas, de modo que tais problemas, para qualquer legislador, definem uma aporia (ἀπορία ).

Em Esparta, no entanto, graças à excelente distribuição das terras e da pouca importância das dívidas, não havia lugar para as competições invejosas. Como se deu então a quebra nos elementos constitucionais? Desde que os três estados foram constituídos politicamente, dois deles logo irão corromper (διαφθείρω, fut.) sua organização interna e suas leis, um só, Esparta, permaneceu fiel.

Enquanto a constituição dos três Estados era mantida, havia segurança para cada um deles e para todo o Peloponeso. Isto ocorre à semelhança do que se deu com Tróia, arrogante por confiar em demasia no poder dos Assírios. O que subsistia do prestígio daquele império era algo considerável. Como ainda hoje tememos (φοβέω) o Grande Rei, as pessoas daquele tempo temiam a reunião de povos agrupados sob uma única autoridade. Tróia tomada pela segunda vez, havia ali havia alí pelos Assírios (a cidade integrava seu império) poderosa queixa contra os gregos. Contra tal ameaça, os gregos acreditavam que constituindo um só exército, repartido pelos três Estados sob a autoridade de três irmãos, eles teriam um arranjo para suas forças que as faria superiores às que estavam presentes na expedição contra Tróia. Tal organização, o poder nas mãos de uma só família, parecia durável aos gregos. Mas a esperança mostrou-se vã. Uma parte se colocou em guerra contra as demais.

Qual a causa da ruptura desastrosa? Todos os homens possuem um comum objeto de desejo, tudo o que ocorre deve ocorrer conforme as exigências de nossa alma, de preferência tudo sem exceção, pelo menos tudo o que pertence à ordem humana. E o que pedimos nas orações, pedimos também aos que amamos. Um filho, no entanto, pode pedir aos deuses algo do qual seu pai pediria exatamente o contrário, quando se trata de um pedido desarrazoado. As preces devem ser dirigidas para o que é razoável. O legislador deve seguir este princípio. Ele deve estabelecer tendo em vista a virtude que comanda a tudo, o pensamento refletido (φρόνησις ) a inteligência (νοῦς) a opinião (δόξα) com o amor (eros), com o desejo ( ἐπιθυμία) que concorda com as primeiras atividades de nossa alma. Platão diz que enuncia em forma de brincadeira ( παίζω) com o que deveria ser assumido com sério (σπουδάζω) ( ) e vice versa. Para quem é desprovido de inteligência, é arriscado usar a prece, pois pode ocorrer o contrário do que se pede. A causa da ruína das realezas dóricas não está em algum medo mas no fato de que na guerra eles não souberam dizer quem deve mandar e quem deve ser mandado. A causa está na sua ignorância sobre o que mais importa nos assuntos humanos.

O legislador deve se esforçar na imposição ao Estado de toda prudência (φρόνησις) possível, purgando-o de sua desrazão (ἄνοια) tanto quanto estiver em seu alcance. Qual a ignorância visada? A produzida quando tendo julgado bela uma coisa, ou boa, não a amamos e pelo contrário, a odiamos. E quando amamos e procuramos o que consideramos perverso e injusto.

Tal discordância entre pena e prazer de um lado, e de outro entre a opinião razoável é a suprema ignorância e maior porque ela é própria da massa (πλῆθος) (14) pois a parte da alma sujeita à pena e ao prazer corresponde exatamente, no Estado, o povo e a massa. Quando a alma se opõe aos seus conhecimentos ou às suas opiniões, ou ao que é razoável (o que na natureza é feito para comandar), chamo isto nela de “desrazão” (ἀμαθία, ignorância, estupidez) e assim também no Estado, quando a massa não obedece os magistrados e as leis. O mesmo ocorre nos indivíduos, quando os bons princípios são ineficazes e se deixam agir ao contrário do que eles prescrevem, afirmo que os ignorantes são os seres mais dissonantes.

Nenhuma magistratura pode, portanto, ser atribuída a alguém que padeça de semelhante ignorância, mesmo que tenham a mente rápida e fina. Deve-se, ao contrário, chamar de sábios aquele cujo caráter é o oposto, mesmo quando não sabem ler ou escrever (ou mesmo nadar) e lhes atribuir os cargos porque justamente são pessoas sensatas. Na sinfonia (συμφωνία), a mais bela e elevada consiste no mais alto saber (σοφία), partilhado pelo homem que vive de maneira razoável. Quem carece deste saber arruina a sua casa, é impossível que seja um salvador (σωτήρ) para o Estado. Do indivíduo ao Estado, temos a questão da harmonia.

Num Estado é preciso quem obedeça e quem manda. O último deve possuir títulos para tal, nos grandes Estados, nos pequenos e nas famílias. Nestas, o pai ou a mãe comandam os filhos. No Estado, as pessoas de alto nascimento (γενναῖος) devem comandar os de baixa extração. Depois, os anciãos devem comandar os jovens, o escravo deve ser comandado pelo senhor. Depois, o fraco deve ser comandado pelo forte. Mas há um sexto modo de comandar, por título, o ignorante (ἀνεπιστήμων) deve obedecer o sábio, o que tem prudência (de φρονέω).

Há o modo de obedecer que não segue a natureza, mas segue a natureza, ou melhor, segue o comando natural da lei sobre as pessoas que se submetem voluntariamente, sem recurso à violência. Chegamos ao sétimo título, o sorteio, quem comanda é o que ganhou, o perdedor será comandado. Este título depende de ser amigo dos deuses ou presenteado pela boa fortuna (εὐτυχής).

Poderíamos brincar (παίζω) com os se põem a redigir leis e lhes perguntar quantos títulos ao comando existem e se eles não enxergam os contrastes que existem entre aqueles títulos. Temos aqui uma fonte de sedição (στάσις) . No caso dos reis de Argos, as causas de sua ruína e a perda de potência (δύναμις) do povo grego foi ignorar as palavras de Hesíodo segundo a qual, em muitos casos, “a metade vale mais do que o todo”. Sempre que é prejudicial por a mão sobre o todo, quando basta fazer isto com a metade, a justa medida vale mais do que o que o desmedido pois é melhor do que o pior.

Os reis que se arruinaram foram os primeiros a serem atingidos do mal que consiste em ambicionar ter mais (pleonexia) do que permitem as leis estabelecidas. Eles haviam louvado as leis, juraram seguir os seus mandamentos, em palavras. Mas não de fato. Esta discordância (διαφωνία) constitui a mais grave ignorância (ἀμαθία) mas é tida como sabedoria (σοφία). Em razão de tal dissonância e defeito amargo de cultura (ἀμουσία), se corromperam todas as belas coisas da constituição.

A justa medida é essencial na ordem política, como também nas relações do corpo (alimentação) ou técnicas (nos navios, mais velas do que o preciso), na alma direitos excessivos. Sem ela, tudo se inverte. Alí a abundância de carnes que leva à doença, aqui a ilimitação (hybris) que leva à injustiça (adikia). A alma dos jovens não pode suportar o peso do poder, logo ela é infectada da mais grave doença, a desrazão (anóia). Contra tais excessos de poder, cabe ao legislador prudente, graças à justa medida, tomar precauções.

E chega o instante dos pesos e contra pesos do poder. Em Esparta, em vez do rei único, uma dupla de reis, o que restringe o poder à justa medida. Além disso, o voto de 28 anciãos que possuem, nos assuntos mais graves, poder igual ao dos reis. Há um terceiro salvador (σωτήρ), com o poder dos Eforos, um poder que se aproxima do sorteio. Assim, o governo de Esparta é uma combinação de poderes que leva à salvação própria. Juramentos não controlam a alma de um jovem candidato à tirania. Importa limitar a medida dos poderes, fundir num só os três poderes.

Assim, existe de um lado o poder autocrático dos Persas , o poder temperado de Esparta. É preciso sempre o tempero, o acorde correto. Esta teoria do poder tem como pressuposto uma visão do universo e da sociedade como harmonia. E na ordem política, deve ser mantida a ordem antiga, sob o domínio das antigas leis , na qual o povo não tinha soberania (ele não era κύριος) nos assuntos, mas era escravo voluntário ( ἑκών) das leis.

Quais leis seriam as referidas? As relativas à música. Na época antiga a música era dividida segundo espécies e formas que lhe eram próprias. As preces aos deuses eram uma espécie de canto, os hinos. Depois havia uma espécie de canto oposto: lamentos chamados “trenos”. O pean era uma espécie distinta e outra, ligada ao nascimento de Dionisos, o ditirambo, etc. Reguladas as coisas não era permitido abusar de uma das formas, transpondo-as para outras. O poder de julgar sobre elas e julgar com conhecimento de causa e punir os transgressores não pertencia às vaias ou aplausos, mas era decidido por homens sábios naquela cultura que tudo ouviriam em silêncio e, com a varinha nas mãos, estabeleceriam a ordem e advertiriam as crianças e a seus professores. Esta a ordem aceita pelos cidadãos, sem que eles tivessem a audácia de recorrer à gritaria para dar sua opinião.

Os poetas foram os primeiros a quebrar as leis da música. Eles eram dotados para a poesia, eles nada conheciam da Musa enquanto fonte de legitimidade e fé pública, eles misturam as formas, levam tudo a se confundir, pretendem mentirosamente, em sua desrazão involuntária, que na música não existe lugar para alguma retidão e que, além do prazer que se encontra no seu gozo, não existe meio correto de decisão, melhor ou pior. Eles inculcam na massa (πολύς) o hábito de infringir as leis e a audácia de se acreditar capaz de decidir. Resultado: antes, o público não falava no teatro (era ἄφωνος), depois, começou a falar como se entendesse para saber o que é belo na música, ou não, surge então uma “teatrocracia” (θεατροκρατία) depravada que substitui o poder dos melhores juízes. Se apenas em música, e em música apenas, surgisse uma democracia composta por indivíduos de uma cultura liberal, não ocorreria algo tão desastroso. Mas na verdade é pela música que se iniciou, entre nós, com a crença na sabedoria de todo mundo para julgar, a atitude subversiva. Nenhum medo os retinha, pois se acreditavam sábios, e esta ausência de medo gerou a impudência, na audácia de não temer a opinião de quem vale mais do que nós, eis a impudência detestável, efeito da audácia de uma liberdade cuja arrogância é levada ao excesso.

Após tal liberdade, vem outra que consiste em não aceitar voluntariamente (ἐθέλω) ser um escravo (de δουλεύω, ser um escravo) de quem é depositário da autoridade. Depois vem a fuga da escravidão diante do pai e da mãe, diante dos antigos (fugindo de suas admoestações) e buscar um meio de não obedecer as leis. Neste termo, vem o desprezo dos juramentos, da fé publica, o desprezo dos deuses. O livro III termina com a indicação das tarefas do legislador: o Estado a que suas leis serão aplicadas deve ser livre, uma amizade mútua unirá nele os cidadãos, ele terá base no pensamento racional. Consideremos duas organizações políticas, uma despótica e uma livre, em qual delas existe a retidão? Obtendo para cada uma delas em separado um certo limite (poder despótico em uma e o direito de liberar a si mesmo, na outra) vemos que se produz nelas um sucesso excepcional. Quando, pelo contrário, cada uma delas conduzia a coisa ao seu máximo, servidão em uns e o oposto da servidão nos outros, nenhum bom sucesso ocorria.

É possível dizer que a correta constituição deve reunir aspectos da monarquia e da democracia, sendo temperada e permanecendo no justo meio. Todo poder dever ser limitado, tanto no lado do povo quanto no lado do príncipe. Atenas se inclinou em demasia para o lado democrático, a Pérsia do outro. A Pérsia se enfraqueceu porque a obediência dos povos nela se tornou servidão, mas Atenas se enfraqueceu porque a liberdade se transformou em licença, perdendo o sentido da autoridade. O Estado bem ordenado o poder político deve ser distribuído na proporção da virtude, cujos graus são os seguintes : bens da alma, unidos à temperança, bens do corpo, riqueza.

No século 17 a “harmonia das esferas”, doutrina acreditada até durante governo de Luis 14, foi superada pelas teorias de Newton e de Kepler. (15 ) Mas esta reviravolta não acabou de vez com a idéia pitagorica. Em nossos dias existem inúmeros trabalhos sobre o pensamento da harmonia. O tom romântico de semelhante interesse é claro. (16) Trata-se, como nas especulações românticas do século 19 (mas também do século 20) de reagir contra o paradigma da máquina e das suas supostas visões “reducionistas” do universo. Sempre que se ouve falar em “holismo” é possível ver na palavra a senha para a doutrina orgânica sobre o universo, com suas formas de pensar e de agir conservadores. Não por acaso, nos meios que defendem a “pureza” natural, a preservação da natureza, se percebe tal visão conservadora do universo.

Elemento nuclear dessa visão é a idéia de uma “biosfera”, antítese da visão mecânica do universo. Subsumida naquela noção encontra-se a antiga doutrina da “alma do mundo”, ou seja, o universo como ser vivo. Tais especulações se apresentam por exemplo em escritos sobre a Gaia, hipótese lançada por James E. Lovelock (17 ). Na antiga visão pitagorica (na verdade, um amplo conjunto de pensadores que engloba várias escolas filosóficas) (18 ) se determina que o mundo resulta da harmonia, ordenada na proporção da escala musical. Existem trabalhos que indicam o peso do instrumento monocórdio (ou kanon) na filosofia pitagórica e platônica.
Analogia significa “igualdade de ratios” ou proporções. “A palavra também é o módulo ou sistema das ratios no seu número total que fornece as ‘divisões do monocórdio’, o ponto preciso no qual a corda vibrante pode ser interrompida com uma ponte móvel, para ressoar os intervalos fixos ou fundamentais da escala musical, a oitava (2:1); a quinta (3:2); a quarta (3:4); e o tom maior (8:9). As íntegras 6, 8, 9 e 12 constituem o menor número total com o qual o sistema simétrico de ratios que se encontram –a moldura natural das antigas e modernas escalas diatônicas– pode ser expresso”. (19 ) O mais antigo sobrevivente dos livros sobre o monocórdio é de Euclides, o instrumento deve ser mais antigo. Seu uso e significação foram expostos por Ernest G. McClain, sobretudo no livro The Pythagorean Plato (20 )

Tomando os números usados ou derivados similares aos números do monocórdio “McClain identifica seu emprego que se espraia em alegorias numéricas, mitos, metáforas encontradas nos mais antigos livros. Quando Platão caracteriza o bom homem como ‘vivendo 729 vezes mais feliz e o tirano mais penosamente pelo mesmo intervalo’ (República 587e), ele usa o número que define o tríton (a sexta força do três; ou seja, 6/5 acima do tom fundamental). A tensão entre o homem bom e o tirano é comparada à pior dissonância possível no sistema da música ocidental” (cito sempre Graham Pont).

McClain analisa as alegorias numéricas de Platão e mostra como sua teoria política foi modelada pela teoria musical, com as Constituições de Calípolis, Atenas, Atlântica e Magnésia, correspondendo a quatro diferentes “temperamentos”, incluindo a escala temperada, durante bom tempo tida como invenção moderna. A chave das analogias músico-políticas seria a seguinte: a palavra grega syntagma pode se referir tanto ao sistema político quanto ao musical. Um autor recordado por Graham Pont apresenta uma análise importante neste campo. No escrito intitulado Classical and Christian Ideas of World Harmony (21), diz Graham Pont, Leo Spitzer deseja explicar os sentidos compostos da palavra alemã Stimmung e descobre suas relações no arranjo total dos termos harmônicos que ressoam na lingua européia. Com base apenas filológica, Spitzer divide aqueles termos em dois grupos: primeiro os relativos a acordo como “acorde”, “concorde”, etc. O segundo os relativos a “temperança” (tempo, temperamento, etc) . Os dois grupos correspondem à distinção entre ajuste (tuning) pelo número total e tempero (pequenos ajustes que envolvem proporções irracionais).

Spitzer estava intrigado com o significado da raiz das palavras do segundo grupo, um segmento de interrupção. De origem incerta, a variedade das palavras em ‘temp’ e sua ampla distribuição testemunha a existência de uma cosmologia musical muito antiga. Palavras como temenos (lugar sagrado), ‘templo’, ‘tempo’, ‘temperado’, and ‘término’ todas se referem a divisões do espaço e do tempo baseadas, supostamente, nas matemáticas comuns, as quais devem ter sido musicais na origem. A forte associação das ciências musicais e espaciais foi confirmada por Árpád Szabó (22), que argumenta serem os termos da geometria pré euclidiana derivados da teoria musical. Por exemplo, “diastema” significa um intervalo, espacial ou musical, como “corda” ainda tem uma significação musical.

Quando Hotmann, portanto, recorre à noção de Harmonia e a determina a partir das Leis platônicas, trata-se de um poderoso impulso e uma reflexão complexa sobre o Estado, no instante em que se instaura a monarquia absolutista. O problema ético do tempero e da harmonia no comportamento social e político é bem conhecido e analisado no período anterior a Hotmann, como em Montaigne. Basta abrirmos o ensaio “Sobre a moderação” (23 ) O comentário segue rumo à justa medida na ordem das práticas e valores. “Podemos amar a virtude em demasia, e nos comportar com excesso numa ação justa”. Montaigne diz gostar das naturezas “temperadas e médias. A imoderação diante do próprio bem, se não me ofende, me espanta e me coloca em dificuldade para a nomear”. Nem a mãe de Pausanias que arremessou a primeira pedra para matar seu filho, nem o ditador Postumios que mandou matar o seu filho cujo ardor na batalhar o fez jogar-se contra os inimigos, antes de ser a hora, me parecem justos, mas estranhos. “Não gosto de aconselhar, nem de seguir, uma virtude tão cara e selvagem”. E Montaigne cita o texto platônico : “Calicles, em Platão (Górgias) diz que a extremidade da filosofia é nociva, que tomada com moderação ela é agradável e cômoda, mas que no fim ela torna um homem selvagem e vicioso, desdenhoso da religião e das leis comuns, inimigo das conversas, inimigo dos prazeres humanos, incapaz de toda administração política (…) Ele fala a verdade, pois em seu excesso ela escraviza o nossa franqueza natural e nos desvia, por um sutileza importuna, do belo e claro caminho que a natureza nos traçou”. A lição de moderada atividade é vital quando se trata da arte política. (24 ) Nos tempos de Montaigne se tornava exacerbada a luta entre huguenotes e católicos radicais, entre os dois e o Estado francês.

“Nossos ancestrais foram maravilhosamente sábios e avisados ao bem determinar o governo político, de modo que considero seguro dizer que alí reside o único e verdadeiro remédio para todos os nossos males, ou seja, reformar nosso modo de vida no molde das virtudes exibidas por aqueles grandes personagens e reduzir o nosso Estado corrompido, como se ele fosse música dissonante, ao belo e antigo acorde dos tempos de nossos pais”. Assim reza o início da Franco Gallia. A França antiga, segundo Hotmann, seria temperada e harmoniosa como desejam os filósofos. “Nossos maiores, almejando manter sua república na bom temperamento, praticaram a mistura das três espécies de governo”.

O autor da Franco Gallia compara, no mesmo escrito, o Estado cujo governo se tempera e possui Conselhos efetivos e os dirigidos por dois conselhos, o primeiro deveria ser hegemônico, mas não é, ou seja, o Conselho Ordinário e outro, que deveria ser adjunto, mas se torna hegemônico, o Conselho privado que auxilia o monarca. “O primeiro tende a prover o bem de toda a república, universalmente. O outro, pensa apenas em se servir das comodidades e vantagens de um homem. Depois, visto que tais conselheiros moram num só lugar, ou não saem da corte principesca, eles não poderiam ver, nem conhecer o estado das províncias, que são mais afastadas. Melhor, ocorre muito frequentemente que sendo apegados às delícias e volúpias da corte, eles se corrompem e se deixam facilmente conduzir à um desejo de dominar, e ao desejo de fazer com que suas casas aumentem, de modo que no final eles se fazem conhecem não como conselheiros do reino, e do bem público, mas aduladores de um rei, e ministros de suas dissoluções e das suas”.

O Reveille Matin (1573/1574) afirma que nenhum povo estabeleceu um governante com autoridade absoluta para fazer o que bem lhe aprouvesse. A soberania encontra-se também nos demais magistrados, que possuem o direito de resistir à tirania. Os dirigidos deveriam obedecer o soberano apenas na medida em que ele obedeceria as leis e o contrato que o colocou no mando. Se um rei como Carlos 9 massacra seus súditos, é tempo de colocá-lo fora do trono. A Noite de São Bartolomeu seria motivos suficiente para tal expulsão.
Tanto Hotmann quanto o Reveille Matin consideram que a legitimidade para depor o governante reside nos magistrados inferiores. E tal doutrina eles a retiram de Calvino. Vimos que o reformador exigia obediência sem restrições ao governante, salvo em caso de ordens contrárias à fé. Mas ele confessa que em Atenas (falamos de um humanista) e Esparta existiam funcionários cuja missão era de vigiar o soberano, aplicando-lhe censuras conforme a gravidade de seus atos. Nos tempos modernos poderia ser retomada a experiência daqueles magistrados. Hotmann em Franco – Gallia e Teodoro de Beza no Du Droit des Magistrats afirmam que o rei partilha o poder com representantes do povo (embora, como vimos, o “povo” não era assim tão próximo da efetividade democrática, mas de certa aristocracia) e Beza chega ao ponto de enunciar que os representantes possuem o direito de afastar reis corrompidos ou injustos.

Segundo Hotmann em tempos pregressos “toda a administração do reino estava inteiramente à disposição da assembléia dos Estados, que se chamava (…) às vezes Placitum, pois como diz o uso da lingua latina (Placitum) propriamente indica a resolução e a conclusão final que se toma sobre determinada matéria debatida e disputada por vários. É por tal motivo que Cicero e outros autores chamam máximas tidas como certas e indubitáveis entre os filósofos (placita)”. Quando as decisões passaram a ser escritas em francês, diz Hotmann, a palavra placitum foi traduzida, “por ignorância ou malícia” como “tel est notre plaisir”. De qualquer modo, era imperativo ouvir a opinião (avis) do povo. Hotmann fala do governo inglês e espanhol, no sentido do império da lei sobre o monarca e no costume deste último ouvir a assembléia. Ele cita o texto lido pelos espanhóis quando um rei era coroado : “Nos qui valemos tanto como vos, y podemos mas que vos, vos elegimos rey con estas y estas conditiones : intra vos y nos, un que manda mas que vos”. Dada a presença geral do costume, conclui Hotmann, “não apenas esta liberdade tão bela de manter assembléias gerais de conselho, é uma parte do direito das gentes, mas até mesmo que os reis, por má prática e astúcias oprimem esta santa e sagrada liberdade, não devem mais ser tidos como reis, mas como tiranos, como os que violam o mais santo direito que sempre existiu entre os homens, e rompem os próprios liames da sociedade humana”. O tema aparece também em Teodoro de Beza (25 ).

Sagradas que sejam as razões do conjurados, devemos atentar para outros fatores além da religião na luta de parte considerável da nobreza contra o rei. Quando se fala do Estado moderno é preciso pensar na sua estrutura funcional. “Do ponto de vista da sociologia, o Estado moderno é uma ‘empresa’ com o mesmo título de uma fábrica. Nisto consiste precisamente seu traço histórico específico. E também deste modo se acha condicionada de maneira homogênea a relação do mando (Herrschafttsverhältnis) no interior da empresa”. (26). A separação (Trennung) entre os meios de administração e o seu operador, tanto na empresa quanto no Estado, define a burocracia que opera sine ira et studio, maquinal e hierarquicamente. O Estado absolutista, podemos dizer, montou o protótipo da referida empresa. Ele separou os nobres dos meios de administração feudal que eles herdaram de seus ancestrais. De modo idêntico, ele separou as cidades do auto controle administrativo.

As urbes que resistiram durante toda a Idade Média, após o esfacelamento do Império romano, guardaram seus costumes, sua administração e, sobretudo, o controle de seus impostos. Quando Igreja e Estado começaram a exigir taxas e impostos que iam além da capacidade daqueles centros urbanos, eles se levantaram contra os dois poderes centralizadores. As massas que fugiam dos feudos —o ar da cidade liberta— empregavam artifícios como as peregrinações. Os senhores feudais não podiam proibir tais expressões de piedade, mas os camponeses iam aos santuários como Compostela, e não retornavam aos domínios. Outro meio de movimentação de massas foi o comércio. O fato é que as referidas massas se concentravam, sem trabalho e costumes urbanos, nas periferias das cidades. As corporações fechadas não lhes proporcionavam emprego. O resultado foi a insegurança coletiva nas cidades. Por isto, “as primeiras constituições políticas urbanas tiveram a Paz como preocupação maior, elas apareceram como ´atos de Paz´ (Marc Bloch, A Sociedade Feudal). Para deixar clara esta violência, vejamos uma crônica da época: “No dia seis de maio o irmão Alberto de Mântua chegou a Florença e ali fez reinar a paz sobre 95 casos de homicídio; então pacificou em Bertinora; depois em Siena; depois em Castelnuovo; depois em Forlimpopoli; e finalmente em Imola pacificou 28 casos de homicídio” (Corpus Chronicorum Bononiensium, citado por R.W. Southern). Tais cifras são espantosas, se as compararmos com os habitantes das cidades. Em 1200, Florença tinha 30 mil habitantes. Tudo isso é bem exposto no dito espalhado por toda a Europa: “comunia est tumor plebis, timor regni, tepor sacerdotii” (A cidade é o tumor da plebe, o medo dos reis, o relaxamento dos padres: De rebus gestis Ricardi Primi, também citado por Southern).

É nessa brecha da insegurança geral que as cidades, gradativamente, cedem sua autonomia aos poderes papais e reais, com a centralização do poder e o aumento da força repressiva física. A estrutura do judiciário passa aos Reis e à Santa Sé, sempre disputada pelos dois poderes. E para manter a polícia e os exércitos, além de todo o aparato de mando central, recrudescem ao mesmo tempo os impostos e os saberes sobre a demografia, a economia, etc. já citados.

NOTAS
1) “Defense of Poetry”, in Shelley’s Literary and Philosophical Criticism (John Shaw Ed., Oxford, 1909), p. 121.
2) Cf. Para uma análise percuciente e válida até hoje, cf. Abrams, M.H. : The mirror and the lamp (Oxford, Univ. Press, 1971), p. 51.
3) Cf. Hayter, Aletheia : Opium and the romantic imagination (London, Faber and Faber Ed., 1968), p. 84 e ss.
4) Cf. Catherine Kintzler : “Montesquieu et la musique” no Blog da escritora (Mezetulle, http://www.mezetulle.net/) acessado no dia 09/01/2009, 10 horas.
5) Cf. De l ‘Esprit des lois (Ed. Pléiade, volume II), pp. 270-273. O trecho citado por Montesquieu refere-se ao Batalhão sagrado de Tebas, composto por amantes masculinos e cuja bravura suscitou os elogios de Filipe da Macedonia : “Pereçam miseravelmente os que suspeitam tais homens de ter feito ou sofrer algo desonesto!”. E continua Plutarco : “Não foi a paixão de Laios, como desejam os poetas, que introduziu em Tebas o amor de que falo; mas seus próprios legisladores que, para moderar e suavizar, desde a mais tenra idade, o caráter violento daquele povo, fizeram usar a flauta em todas as suas ocupações e divertimentos. Eles honraram aquele instrumento e se puseram a nutrir, nos ginásios, este amor puro e virtuoso, para domar o natural daqueles jovens. Foi portanto com sabedoria que tais legisladores deram como protetora de sua cidade a deusa Harmonia, a qual é dita filha de Marte e de Venus, para insinuar que, quando a ousadia e a coragem são temperadas pelas graças e pelo atrativo da persuasão, os povos usufruem do governo melhor ordenado e perfeito, fruto natural de uma feliz harmonia”.
6) Cf. Dictionnaire de Musique, ed. Pléiade cit. p. 921. Para uma análise da harmonia e do platonismo no pensamento de Rousseau, em especial na música, cf. Eigeldinger, J-J. : “Tartini, Rousseau et les Lumières” no mesmo volume V da Pléiade (onde se encontra o Dictionnaire de Musique), pp. 1694 e ss. Sobre o nexo entre política e arte, em especial no campo do teatro, passando pela filosofia de Platão, cf. o fragmento “De l ‘imitation théatrale”, mesmo volume da Pléiade, pp. 1196 ss.
7) Cf. Béatrice Didier : La musique des Lumières (Paris, PUF, 1985), p. 20.
8) Carta a Madame de Warens (27/01/1749). Didier, p. 43.
9) Écrits sur la musique, citado por Didier, p. 408, que remete também para o verbete “Opera” do Dictionnaire de Musique.
10) Didier, p. 44.
11) Cf. Roberto Romano: “Wagner, o conceito no palco” in Corpo e Cristal, Marx romântico (RJ, Ed. Guanabara Koogan, 1985). O livro está esgotado, mas pode ser lido em bibliotecas universitárias.
12) “Quant aux grecs, il leur paroissoit si honteux de l’ ignorer, qu’ un musicien et un sçavant étoient pour eux la même chose, et qu’ un ignorant étoit désigné dans leur langue par le nom d’ un homme qui ne sçait pas la musique. Ce peuple ne se persuadoit pas que cet art fût de l’ invention des hommes, et il croyoit tenir des dieux les instrumens qui l’ étonnoient davantage. Ayant plus d’ imagination que nous, il étoit plus sensible à l’ harmonie : d’ ailleurs, la vénération qu’ il avoit pour les loix, pour la religion et pour les grands hommes qu’ il célébroit dans ses chants, passa à la musique qui conservoit la tradition de ces choses. la prosodie et le style étant devenus plus simples, la prose s’ éloigna de plus en plus de la poësie. D’ un autre côté, l’ esprit fit des progrès, la poësie en parut avec des images plus neuves ; par ce moyen, elle s’ éloigna aussi du langage ordinaire, fut moins à la portée du peuple, et devint moins propre à l’ instruction.” (Essai sur l’origine des connoissances humaines [Document électronique] : ouvrage où l’ on réduit à un seul principe tout ce qui concerne l’entendement humain / par l’abbé de Condillac , no Site Gallica da BNF, acessado no dias 11/01/2009, as 10 horas AM. Quanto às inovações, também temidas por Platão, diz Condillac: “ Six cent ans avant Jésus Christ, Timothée fut banni de Spartes, par un décret des éphores, pour avoir, au mépris de l’ ancienne musique, ajouté trois cordes à la lyre ; c’ est-à-dire, pour avoir voulu la rendre propre à exécuter des chants plus variés et plus étendus. Tels étoient les préjugés de ces temps-là”. (ed. cit).

13) Jean-Philippe Rameau, Splendeur et Naufrage de l ‘Esthétique du Plaisir a l ’Age Classique (Paris, Le Sycomore, 1983).

14) Cf. A. Ed. Chaignet : La Vie et les écrits de Platon (Paris, Didier et Cie., 1871), pp. 403 e ss.
15) Isherwood, Robert M. 1973. Music in the Service of the King: France in the Seventeenth Century. Ithaca: Cornell University Press.
16) Toda a sequência deste trecho tem como base o artigo de Graham Pont, “Philosophy and Science of Music in Ancient Greece: Predecessors of Pythagoras and their Contribution”, Nexus Network Journal, vol. 6 no. 1 (Spring 2004), http://www.nexusjournal.com/filename.html Discordo do autor quanto à sua comparação antropológica entre Grécia arcaica e tribos aborígenes da Austrália. E também discordo de outros pontos. Mas sua explanação sobre a música e os nexos com a vida social e política servem bastante aos nossos propósitos.
17) Lovelock, James E. Gaia: A new look at life on Earth. (Oxford, Oxford University Press, 1979).
18) Basta recordar os argumentos postos por Cicero no De natura deorum contra os epicuristas, relativos à providência: um monte de palavras jogadas para cima não fariam a Ilíada, um monte pedras também jogadas jamais resultariam num pórtico ou obra de arte, supõe a idéia da harmonia no desígnio produtor do universo e da ordem humana.
19) Graham Pont, op. cit.
20) New York, Nicolas Hays Ed. 1978.
21) Spitzer, Leo : Classical and Christian Ideas of World Harmony: Prolegomena to an Interpretation of the Word “Stimmung” (Baltimore, Johns Hopkins Press, 1963).
22) Szabó, Árpád : The beginnings of Greek mathematics. (Dordrecht, D. Reidel, 1978)
23) Livro I, capítulo XXX, na edição Pléiade na página 195 ss.
26) Para uma análise correta das atitudes defendidas por Montaigne, cf. Jean Starobinski, “A ação calma” in Montaigne em Movimento (SP, Cia. das Letras, 1993), pp. 246 e ss.
24) O texto de Hotmann é de 1574, na tradução francesa que estou usando. Já em 1519, o tratado fundamental de Plutarco sobre a bajulação, “Como distinguir o amigo do adulador”, era conhecido na tradução de François Sauvage, a partir do latim de Erasmo. Em 1537 Antoine du Saix traduz novamente o tratado, com o nome exato de “La touche naifve pour esprouver l ‘amy et le flatteur, inventée par Plutarque, taillee par Erasme et mise a l’usage francoys par noble homme frere Antoine du Saix, commendeur de Bourg. Uso a edição moderna de Robert Aulotte : Plutarque en France au XVIe siècle (Paris, Ed. Klincksieck, 1971), pp. 15 ss. ”Or, il n’ est pas facile aux riches et aux Roys de dire ces parolles suyvantes: ‘A mon gré j ’eusse quelque pauvre personne encores plus indigente que ung mendian qui, en voulent mon bien et toute craintes ostée, me parlast de courage, en bon amy’. Mais, comme les joueurs de Tragedies et moralitez on besoing de musiciens et instrumentz qui supllient à leurs fainctes et pareillement ont mestier de gentz qui leurs applaudissent, de mesmes les grands seigneurs s’ en aydent. Pourtant, en sa Tragedie Merope admonestoit ainsi que ceulx là nous debvions faire noz amys qui ne dissimulent point pour le plaisir d ‘aultruy et chasser loing horas de l’ enceinte de nostre maison ces meschantz qui ne servent que de complaire et gracieuser. Toutestfois, les susdictz grands maistres font au rebours, car ilz chassent et fourbanissent de leur court ceulx qui se soubstiennent leur opinion, qui resistent par raison 1a leur concupiscence seulement en leur maison, mais aussi jusque aux affaires secretz et au dedans de leurs affections, les pipeurs chocquareroz”. Ed. Du Saix cit. p. 76.
25) Du droit des Magistrats, ed, cit. p. 39 e ss.
26) Cf. Max Weber : Wirtschaft und Gesellschaft. Fünfte Revidiert Auflage ,1972, p. 825.