Flores

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quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Palestra no dia 10/10/2018, na Unicamp, sobre os 50 anos da DGA. Na fala apontei para a correta gestão administrativa, garantida pela DGA, para que a universidade não seja violentada em sua essência e autonomia como o foram a de Santa Catarina e Minas Gerais.


Bom dia a todos.

Agradeço a honra de falar aos presentes em dia especial de nossa Universidade. Como prólogo recordo eventos recentes do coletivo universitário no país. Eles servem como corretivo salutar à alegria que sentimos com a nossa feliz efeméride. Começo com o ocorrido na Universidade Federal de Santa Catarina, quando a máxima autoridade foi induzida ao suicídio, acusada de acobertar danos aos recursos financeiros. Depois a invasão da Universidade Federal de Minas Gerais com tema quase idêntico, a má gestão do patrimônio. Aqueles atos foram ditados por agentes do poder estatal para humilhar os campi. Em momentos sombrios como o que vivemos, todo cuidado é pouco para não fornecer aos poderosos, que não apreciam o saber, desculpas para destruir o trabalho de gerações em ambiente de seriedade científica, ética, cívica.

Não desejamos que um dia, em nome de efetivos ou pretensos erros na gestão dos recursos a nós entregue, a Unicamp seja agredida por agentes policiais a serviço de magistrados que pouco sabem sobre pesquisar o verdadeiro, afastar o falso, mostrar aos jovens a via do bom, belo e útil para servir ao povo que paga impostos para receber serviços. Quem pesquisa raramente é  valorizado por governantes de todas as épocas e credos ideológicos ou religiosos.

Tomás Hobbes, no Leviatã, dá um exemplo sobre os nexos entre poder político, cidadania, pesquisadores. Diz ele quando analisa os itens que transformam um simples ser humano em poderoso : “As ciências constituem poder fraco porque elas não existem em qualquer pessoa num grau eminente e, por conseguinte não são reconhecidas. Elas são mesmo inexistentes salvo num pequeno número de indivíduos e, neles,   a propósito de um pequeno número de coisas. Com efeito, a natureza da ciência é tal que ninguém pode se dar conta de que ela existe, sem a ter adquirido em larga medida”. Só reconhece o saber científico quem o possui. Como os saberes são parcelados, alguém pode saber algo, mas ignora outras coisas. A especialização, anterior à ciência e ao ensino moderno, não raro impede captar campos limítrofes das ciências para os quais um pesquisador não tem preparo e informação. Especialistas em direito (é o caso de nossos magistrados, promotores e similares), ignoram por falta de formação e informação a quase totalidade dos saberes desenvolvidos e ensinados nos campi. Daí, quando assumem atitudes impensadas, podem ferir de morte pesquisas complexas, não raro presas a redes nacionais e internacionais.

Em data recente, num Congresso de Promotores Públicos de São Paulo, adverti para a excessiva especialização dos operadores da Justiça e pouca informação sobre o que se passa nas ciências, técnicas, sociedade. ([1]) Daí, atos abusivos que prejudicam a cadeia que transmite saberes e seguem para o bem dos povos, em plano nacional e internacional. Passada a intervenção intempestiva, quem responde pelos danos causados à prática científica, para não falar na insegurança de corpos e mentes que trabalham no campus?

Temos aí uma aporia grave que ameaça o labor universitário, traduzindo no campo  das ciências e das pesquisas práticas imperantes em outros setores do Estado. A situação se complica quando se trata dos governantes e dos governados. Cito novamente Hobbes: “as artes de utilidade pública, como a fortificação, a fabricação de máquinas e outros engenhos de guerra, são um poder porque contribuem para a defesa ou vitória. Mas embora sua verdadeira mãe seja a ciência, mais precisamente as matemáticas, como elas são postas à luz do dia pelas mãos dos mecânicos são consideradas como deles saídas, a parteira passa pela mãe aos olhos do vulgo”. Em nosso Instituto de Matemáticas medram pesquisas até sobre a produção de vinho, e sabemos o quanto a matemática compõe a base da investigação em termos amplos. Mesmo na filosofia, nada pode ser dito sem as matemáticas, da lógica à filosofia da ciência, da política à ética. O maior filósofo do Ocidente, Platão, escreveu na porta de sua escola: “Não entre, quem desconheça geometria”.

A lucidez das frases hobbesianas faz com que tenhamos os olhos ofuscados. Quantas vezes lemos na imprensa brasileira que as universidades públicas gastam em demasia com pessoal cientifico? Quantas vezes autoridades políticas declaram que as mesmas universidades não servem para o bem social, porque nelas deixam de ser cultivados saberes de imediata aplicação? Assim, na encruzilhada acadêmica em nosso país as ciências, que já não têm poderes salvo quando usadas ou movidas pelos líderes da sociedade ou do Estado, atentemos para as armadilhas que poderosos podem armar contra o campus. Candidatos aos cargos públicos raramente conhecem a fundo o que se passa nos laboratórios. E seus eleitores não seguem muito além dos líderes. Todos querem resultados milagrosos, recusam o tempo de maturação das hipóteses, a sua verificação, os métodos, o treino requerido, os recursos materiais, a organização interna que permite seguir adiante sem rupturas no trabalho. Todos, governos e cidadãos, aplaudem resultados visíveis, mas negam gastar tempo e finanças em prazo médio ou longo para atingir tais alvos.

Volto ao início. Hoje, na Unicamp, celebramos o  aniversário de uma estrutura edificada em tempo longo para servir, de modo prudente, como prevenção, anteparo e corretivo de procedimentos administrativos internos. Com semelhante ajuda é possível cumprir o que é certo nos ordenamentos legais e na aplicação das normas, sem fornecer desculpas para a ingerência dos poderes estatais ou sociais na autonomia dos campi.

Infelizmente a autonomia dos campi não foi regulamentada após a Constituição de 88. Várias instituições de poder o foram, como o Ministério Público. Em São Paulo somos norteados por um decreto do Executivo que nos destina parte da arrecadação do ICMS. Crescem as demandas da pesquisa, do ensino e da extensão e, devido à crise geral, sobretudo na economia, os recursos não aumentam segundo a necessidade. Mas volto ao Ministério Público. Ele trouxe apuro no quesito accountability aos serviços públicos. Mas é difícil distinguir o seu múnus dos excessos cometidos. Não raro, movidos não tanto por zelo mas por excesso de poder, integrantes do Ministério Público se imaginam no direito de entrar no  campus para definir, sem pesadas razões constitucionais, o seu funcionamento. Assim, um setor consideravelmente poderoso do Estado pode, a qualquer momento, trazer prejuízo ao funcionamento da universidade. Acrescentemos a campanha, que vem de Margareth Thatcher e Ronald Reagan com ímpeto sempre maior, de privatização absoluta. Os ataques surgem insidiosamente na imprensa e  falas políticas em denúncias de gastos excessivos com pessoal. Depois as falhas, supostas ou efetivas de administração. Finalmente as soluções salvadoras como ensino pago, terceirização radical, desmonte em prol de empresários do ensino. Estes seriam eficazes pois as ações de suas firmas são vendidas na bolsa de valores. Esconde-se na propaganda que fartos recursos públicos são entregues aos pretensos empreendedores, lhes permitindo aplicar o mesmo dinheiro em letras do tesouro norte americano. Quem duvida, consulte o jornal Valor Econômico, pouco dado a teses radicais. 

É nesse plano que a DGA cumpre um papel protetor essencial: ela prevê os aspectos corretos de boa governança, examina o bem fundado nas aplicações de recursos humanos e materiais, vigia para que licitações e outros procedimentos estejam escoimados de equívocos que poderiam trazer para o campus fiscais pouco elucidados sobre as formas científicas de ação.

Outros setores do Estado, como o Tribunal de Contas, podem e se imiscuir, sob o pretexto de examinar e controlar as prestações e relatórios, na ordem interna universitária. Com o caráter político no provimento de cargos naquelas cortes, impropriamente chamadas tribunais, é preciso máxima cautela no uso dos recursos públicos e humanos. Novamente a DGA auxilia a universidade, prevendo as regras exigidas para a aplicação de bens e de pessoal.

Mas não apenas em relação aos atores estatais ou do mercado a DGA auxilia a universidade. Ela procura soluções racionais para problemas de ordem interna, de modo a garantir previsibilidade nos procedimentos gerais e particularizados. Tais ações são ou devem ser movidas por valores éticos como a credibilidade, a integridade, a transparência na gestão. Um ponto estratégico que distingue a DGA de instituições públicas nacionais é a produção de cenários para o planejamento interno e externo. De fato, após a euforia de planejamentos que imperou no século 20, por volta dos anos 50, nota-se um refluxo na moldagem de cenários para situações futuras. As administrações do Estado federal, estaduais e municipais, transcorrem segundo um ritmo intermitente, ao sabor das posições partidárias que chegam ao comando das máquinas públicas. Formas empíricas e pouco racionais de propor e gerir políticas públicas leva a gastos imensos e injustificados, desperdício de talentos humanos incalculável. Ao mesmo tempo em que se procura manter o planejamento, a busca de descentralizar os procesos é essencial, pois impede o engessamento de decisões urgentes, cujo não cumprimento traria prejuízos ao todo universitário. Das compras ao treinamento, dos orçamentos ao cadastro de materiais, são previstas maneiras de não deixar que a máquina universitária emperre, presa a processos desatualizados de ordem burocrática.

Poderíamos enumerar outros pontos, mas o enunciado basta para dizer que, com a DGA, a universidade se prepara para prestar contas de seus recursos humanos e materiais em tempo certo, sem delongas. Tal fato permite prever falhas nos campi e nos seus elos com setores externos. E toda essa faina permite à Unicamp a defesa contra agentes externos poderosos que não têm ideia plena do que se faz aqui, em termos humanísticos e científicos.

Tal atividade propicia proteção à Unicamp no trato com o Estado. Sem atividades como as reunidas na DGA, os esforços de pesquisadores poderiam ser interrompidos por averiguações, processos, sentenças abusivas. Mesmo com a sua guarda, a universidade pública enfrenta e enfrentará campanhas contra ela, dos mais variados interesses, dos privados aos ideológicos e, destes, aos religiosos, políticos, etc. A DGA oferece salvo conduto para nos mover no emaranhado de leis e normas, regras administrativas e jurídicas que marcam a sociedade e o Estado. É preciso indicar que os seus trabalhos têm seu complemento em outros setores. A colaboração com a Procuradoria Jurídica permite armar o campus contra  ataques à sua integridade. O mais estratégico, no entanto, é servir aquela faina para fornecer aos pesquisadores, docentes, estudantes e funcionários uma aparelhagem flexível e descentralizada que traz segurança na ação e previsibilidade prática.

Termino: se as Universidades de Santa Catarina e Minas Gerais contassem com apoios como os que temos na DGA o desrespeito por elas sofrido seria atenuado e menor seria a desolação nelas vivida. Comemoremos o fato de, prudentemente, a Unicamp contar com serviços que ajudam a organizar e prestar contas dos recursos em modo certo e tempo certo, impedindo aventuras de setores poderosos que podem trazer obstáculos gravíssimos aos campi, com ameaças de paralisar o seu espírito e sentido.

Obrigado.




([1]) 5º Congresso Nacional do Movimento do Ministério Público Democrático: Ministério Público e sociedade – 25 anos de construções democráticas. “Cegueira social Especialização do Direito estreita visão de mundo de advogados, promotores e juízes” . Para o professor de Ética Política da Unicamp Roberto Romano, desde a separação das ciências humanas das ciências da natureza, ocorrida no fim do século XIX, teve início um processo de especialização que foi intensificado no Brasil pela redução dos prazos para se concluir mestrados e doutorados. Com isso, os alunos passaram a ter noções de fragmentos, não do todo.O reflexo dessa guinada no Direito é a aplicação fria da lei quando o operador não tem base para entender as complexidades sociais, apontou Romano, afirmando que isso lhes dá “uma falsa sensação de segurança”.Além disso, o filósofo ressaltou que a empolada linguagem jurídica é usada por advogados, promotores e juízes como cortina de fumaça para fugir de questionamentos. “Se eu estou discutindo com alguém e essa pessoa questiona a minha sabedoria, eu jogo na sua cabeça todos os termos técnicos de Direito e acabo com a discussão com um  ‘leigo’. Os ministros do Supremo Tribunal Federal abusam dessa bobagem. Como você pode dizer que 200 milhões de pessoas não sabem nada de Direito e que só a minha sentença é maravilhosa?” Uma forma de acabar com “essa especialização altamente emburrecedora e produtora de pedantismo”, segundo o professor da Unicamp, é tirando o foco do ensino jurídico das leis e transferindo-o para a ideia de Justiça. A seu ver, essa mudança forçaria os alunos e profissionais do Direito a refletirem mais, proporcionando-lhes maior conhecimento das complexidades sociais. Consultor Jurídico, 25/08/2016.https://www.conjur.com.br/2016-ago-25/especializacao-direito-estreita-visao-mundo-profissionais