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quarta-feira, 25 de abril de 2018

Fronteiras do Pensamento. PALESTRA FEITA EM PORTO ALEGRE, POR Roberto Romano/Unicamp ELEIÇÕES, MENTIRAS, RAZÃO DE ESTADO.


Fronteiras do Pensamento.

PALESTRA FEITA EM PORTO ALEGRE, POR Roberto Romano/Unicamp

ELEIÇÕES, MENTIRAS, RAZÃO DE ESTADO.


1) Mentiras


Durante o tenso debate encenado sobre a retórica, no Górgias, Sócrates insiste: os cidadãos procuram corretamente conselhos em todas as técnicas, do campo náutico à medicina. Os retores, aproveitando tal confiança em juízos especializados, afirmam que também o seu mister é uma técnica,  persuadir os que decidem a norma política. Sócrates replica de modo direto, afirmando que, apesar dos retores, a política e a moral exigem saberes técnicos, os quais devem ser adquiridos antes que o retor ensine as pessoas a persuadir. Caso contrário, ocorre apenas que o ignorante imagine saber mais do que os especialistas. ([1]) Trata-se a retórica de um saber ou apenas de experiência, algo limitado ao incerto e inseguro campo empírico ? A resposta socrática é positiva. retórica é forma empírica de ação e pensamento. E o que se produz com ela? Certa gratificação e prazer. Quem é gratificado pela retórica? O povo. A arte de persuadir seria, então, algo belo e bom ? Longe disso. A retórica é prática que, sem poder ser considerada uma ciência, pertence a pessoas perspicazes e sem medo, superiormente dotadas para a lisonja. A retórica é uma empiría, como a arte de cozinhar.

No fim do diálogo Sócrates desafia Cálicles e sua profecia do julgamento que levou o filósofo à morte, dizendo que só um homem sem justiça (adikount´anthrôpon) o conduziria ao tribunal, pois é deslocado (atopon) que um homem justo denuncie ao tribunal um outro que não comete injustiça. Não seria de espantar se a sentença dos juízes fosse a condenação à pena capital. E Sócrates enuncia a sua auto-percepção: “Acredito que eu sou, em companhia de alguns atenienses (oimai met´oligôn Athênaiôn) o único  homem hoje ocupado em assuntos estatais. Por isto, as palavras que pronuncio não se destinam a agradar, mas dizem o que mais vale, não o mais agradável. Sou incapaz das finuras aconselhadas por você, de modo que não saberia o que dizer diante do tribunal. Eu seria julgado como seria julgado o médico que acusasse certo cozinheiro face a um tribunal de crianças. O cozinheiro poderia dizer, justificando-se : “crianças, eis um homem que lhes causa misérias. Ele machuca (…), aos lhes cortar ou queimar. Ele seca e sufoca, de modo que vocês não sabem para onde fugir. Eles lhes dá para beber o que é amaríssimo, forçando a sua fome e sede! Não comigo, que lhes dou grande quantidade de variadas guloseimas doces! Paralisado pelas necessidades de sua situação, o que poderia dizer o médico? Suponha que ele diga a verdade : ´Tudo o que fiz, era para a sua saúde !´. Alguns clamores, protestos, os juízes não seriam violentos?” . Algo análogo, diz Sócrates, enfrentarei no tribunal.

O Górgias ataca a política ateniense e os políticos. Nele, dois ideais são confrontados com a experiência. Sócrates elege o ideal que o conduz à felicidade pessoal. Atrás dele surge a imagem de Platão, destinado à política por origem familiar e pelas suas próprias inclinações. O diálogo apresenta o problema, desenvolvido na República e nas Leis, da sociedade justa ou injusta ([2]). O ataque é dirigido às cidades mal administradas, “que medem seu ´poder pelo número de navios nos portos e dólares no tesouro, o seu ´bem estar´ pelas condições de consumo dos cidadãos. Tal seria a sociedade ateniense, a de Péricles, cujos princípios corruptos conduzem à corrupção das instituições musicais, dramáticas, políticas e sociais”. ([3]) Platão condena os políticos por adular os preconceitos da massa. Sócrates diz no Górgias: “Prefiro que a lira seja desprovida de acordo e dissonância, e que o mesmo ocorra com o côro pelo qual sou responsável, e que a maioria dos homens esteja em desacordo comigo, e me contradigam, em vez de não ser, eu mesmo, consoante comigo mesmo e me contradizer”. O termo usado para falar em acordo musical e político, nesta passagem, é “homologein”, importante na ordem jurídica ocidental.

A retórica é adulação dos governados, algo que se transforma em tirania quando os demagogos atingem o poder. No processo eleitoral democrático o povo esquece o que exige na vida particular. Nesta última, quando se busca o auxílio de um médico, artesão, etc., a busca é por indivíduos técnicamente bem treinados, competentes. Nas eleições e consultas ao povo, tal elemento é afastado, salientando-se a corrente de palavras que opera com  feitiço, um encantamento dos eleitores. Assim, eles confiam a direção do Estado a pessoas incompetentes e sem retidão. No Górgias, Platão distingue as “epistemai-téknai” fúteis das sérias. Existiria uma retórica perversa e pervertida, aproximada à lisonja e à cozinha (inferior à ginástica e à medicina) e a boa retórica,  que ensina e produz a virtude, superior à ginástica e à medicina. ([4])

Não cabe aqui seguir as inspeções modernas do pensamento platônico no âmbito político. Como fruto das utopias renascentistas, do socialismo no século 19 e 20, do nazismo sobretudo, críticos de Platão indicam nele um teórico totalitário. E neste rumo, também foi acentuado a “solução” platônica que substituiria as eleições democráticas, doentes de virulenta demagogia, produtoras de servidão voluntária. Karl Popper, na conhecida obra sobre a sociedade aberta,  acusa o suposto ou real totalitário. Leo Strauss assume atitude diferente face à “noble lie”. A fórmula tem uma polissemia que exige prudência. As duas palavras  —gennaion pseudos— foram interpretadas de formas contraditórias. Sejam quais forem as exegeses, a “nobre mentira” instalou-se no mais profundo nível da Razão de Estado. Com as descrições da Guerra do Peloponeso, em especial o episódio da ilha de Melos, ela fornece a armadura dos que, dirigindo o Estado, desconfiam de eleições e debates, fogem da transparência e da “accountability”. Eleições livres (livres sobretudo de manipulações eleitorais) e razão de Estado formam um par de muito difícil consonância.

Platão imagina que determinadas situações exigem a nobre mentira. Consciente de que a educação não basta para manter três setores hierarquizados de guardiães, auxiliares e produtores na suposta “cidade bela” (Kallipolis), Sócrates afirma que os três grupos devem crer que estão em determinado grupo porque nasceram da terra. Todos os cidadãos precisam ver cada um dos outros como irmãos. Mas um grupo é misturado com ouro, outro com prata, outro com bronze. Que mentira será eficaz para conseguir a divisão entre os três setores (filósofos/reis, guardiães, trabalhadores) ? Surge a fórmula da mentira como remédio (hos pharmakon chresimon), o mais parecido com a verdade. ([5])  A tese platônica espanta porque, mesmo na democracia demagógica de Atenas, o ideal era não mentir em assuntos de Estado.


Jon Hesk, discute a tese de Platão e mostra dois exemplos de mentira condenada no campo democrático. A primeira, se passou nos EUA de nosso tempo, com o comportamento de Oliver North na crise Iran/Contras. Dois comitês do Congresso tentaram convencer North de que era errado enganar os legisladores, o povo americano e o governo iraniano. Um político diz ao militar investigado que existem vínculos essenciais entre a transparência, a honestidade e a política normativa na América, ao contrário do que se passa nas terras não democráticas. Um senador (Hamilton) se perturba com o apelo de North à noção de que ocasionalmente é necessário e justificável mentir ao povo.

Mas Demóstenes, em discursos virulentos, também denunciou a mentira e o engodo como ameaças ao processo democrático. Mentiras podem existir em regime tirânico, diz ele, ou numa oligarquia, porque tais sistemas não exigem o debate dos cidadãos e dos que decidem as políticas públicas. ([6]) O pensamento ocidental, desde o Renascimento, divide-se entre os que defendem a mentira do Estado (e a sua ordem burocrática) e os que  estabelecem, como Humboldt, os limites da ação estatal. Rousseau indica o ponto: “o pretexto do Bem Público é sempre o mais perigoso flagelo do povo”  ([7]) A fórmula da razão de Estado é simples:  “salus populi suprema lex esto”. Um comentador de Rousseau matiza o dito do genebrino: as mentiras oficiais causam danos insuspeitados. O “legislador, embora justificadamente use mentiras e outras formas de engodo para atingir as pessoas com seus propósitos, deveria persuadir em vez de forçar o povo comum a aceitar seus ditames” ([8])


2) Razão de Estado


Os comentadores da Razão de Estado indicam a inconexão nela encoberta entre quem fala com poder e quem obedece. “O político mente para ganhar eleições; o desempregado mente para conseguir emprego, e até existe quem minta exclusivamente para chamar a atenção”. Mentir é próximo de manipular, pois é um ato unilateral: “eu” engano, minto, e “eles” não devem perceber. A razão de Estado é uma política paradoxal porque tende a reduzir todo enunciado político à manipulação dos dirigidos, neles criando a aceitação temporária do que se diz e se faz. A adesão aos atos do governante é fabricada com meticulosa astúcia. A cada vez o engano deve ser retomado, sem que se acumule realmente qualquer obediência cuja origem seja a vontade efetiva do coletivo.

A razão de Estado arruina a fé pública porque é “um engano radical, uma ruptura de fé que arruina todo contrato discursivo; na mentira [e na Razão de Estado, RR] o ouvinte não é capaz de explicitar nenhuma estrutura; trata-se de um discurso ´fora da lei´”. ([9]) Quando descoberta, a mentira precisa de razões excusas para justificar seu abuso. A verdade não precisa se desculpar, salvo justamente diante da razão de Estado, como se apreende da história desta política que não ousa dizer seu nome. Os julgamentos das seções especiais de Justiça em Vichy, os julgamentos de Moscou e muitos outros julgamentos demonstram esse ponto.

Quais mentiras operam na cultura ocidental, berço da razão de Estado? Na ficção, que sem dúvida não é verdadeira mas também não é mentirosa, pois não intenta enganar.  Na lingua política comum, não presa à Razão de Estado, pois nela se encontram os eufemismos, as evasivas, os silêncios, as desinformações. Esta lingua promete sem prometer e deseja agradar e conseguir votos, persuadir mais do que convencer. Mas não pode ser dita mentirosa, e sim demagógica. Nela, os interesses pragmáticos se sobrepõem a todos os demais interesses. A lingua da publicidade exagera para persuadir, é prescritiva de modo sutil. ([10]) A fala cotidiana conta com fórmulas mentirosas, que não podem ser tomadas ao pé da letra. Assim nas desculpas, saudações, expressões de contentamento ou tristeza. “Existem classes e profissões nas quais se pressupõe, por princípio, que forçam os seus representantes a mentir, como, por exemplo, os teólogos, os políticos, as prostitutas, os diplomatas, os poetas, os jornalistas, os advogados, os artistas, os fabricantes de alimentos, os operadores da bolsa, os juízes, os médicos, os falsificadores, os gigolôs, os generais, os cozinheiros, os traficantes de vinho”. ([11]) Mas as mentiras profissionais são partilhadas. Passemos ao caso da mentira como ato de violência e poder.

A mentira real se identifica com a injustiça. Ela é  violência só  justificada pela aceitação do violentado. Nela, as duas partes —mentiroso e enganado— sabem que estão mentindo um ao outro, mas ao dirigido só resta aderir ao dominante. Na mentira real a competência linguistica é assimétrica: mente-se à criança, ao doente, ao fraco, ao vulnerável, ao que depende de tutores. A Razão de Estado se instala com a dominação assimétrica absolutista. É o caso de James I, que afirma ser o rei “accountable” apenas perante Deus. Aos súditos, ele ensina e manda sem que eles possam exigir prestações de contas. A luta contra a Razão de Estado formou as revoluções democráticas na Inglaterra, na América e na França. Na democracia, a competência lingüistica é simétrica e compartilhada.

A Razão de Estado contraria o genero humano porqueque sua mentira é injustiça que não toma governantes e governados como iguais, mas reduz o governado a meio do governante. A mentira se oculta na Razão de Estado, porque senão ela perde efeito.  Fé pública e verdade garantem deveres, leis,  contratos. Pitt Rivers ([12])  afirma que a mentira mede a hierarquia. Mentir é uma relação que se faz cima para baixo. Trata-se de saber quem possui direito à verdade. Mentira é não dizer a verdade a quem possui direito a ela. A ordem que chega de cima não é mentira, mas palavra de poder, modelo de ação para quem a recebe. Quem precisa fazer sua informação subir mente se esconde não a purifica o conveniente para o seu nível. Os totalitarismos “nunca reivindicaram a si mesmos como prováveis, mas como verdadeiros”.

3) Eleições

Se quisermos conhecer a “realidade” de um coletivo humano, as eleições ajudam bastante. Mas os escrutínios eleitorais trazem muitas incertezas. Em primeiro lugar, pensa François Dagognet ([13]), porque o poder, desde o início, “se imiscui na operação e a embrulha: ele deseja em demasia uma ´representação´que lhe seja favorável”. Nas eleições e nos escrutínios, são misturadas três imagens: “a real (se esta palavra tem algum sentido) a normativa ou potencial, pois se trata de encontrar uma direção futura, a desejada ou procurada, porque os manipuladores tendem a se perenizar e cuidam bem de desregular os indicadores”. O ponto maior é que eleições visam menos o conhecimento de ideais, ou exigências coletivas, e geram mais a afirmação de poder de grupos. Na história eleitoral os grupos poderosos reduziram o voto público (com as mãos erguidas, em voz alta, etc) em proveito do voto secreto. O voto secreto é mais indicado, quando se trata de instaurar a justiça e a liberdade? Leiamos Montesquieu: “A lei que fixa o modo de dar os bilhetes dos sufrágios  é lei fundamental na democracia. É um grande problema saber se os sufrágios devem ser públicos ou secretos. Cicero escreve que as leis que os tornaram secretos nos últimos tempos da República foram em grande parte a causa de sua queda”. ([14]) E Rousseau afirma o seguinte: “quanto à maneira de recolher os sufrágios, ela era entre os primeiros romanos tão simples quanto seus costumes, embora menos simples do que em Esparta. Cada um dava seu sufrágio em voz alta, um funcionário os anotava…Este uso era bom, enquanto reinou a honestidade entre os cidadãos e cada um tinha vergonha de fornecer publicamente seu voto a uma deliberação injusta ou assunto indigno, mas quando o povo se corrompeu e os votos passaram a ser comprados, foi conveniente que eles fossem dados em segredo”. (Contrato Social, IV, IV).


4) Justiça

Dos retores criticados no Górgias à “nobre mentira” da República, daí ao elogio da dissimulação e do engodo trazidos pela Razão de Estado, passando aos procedimentos de Goebbels e similares, para atingir a era dos que Vance Packard chamou “Os persuasores ocultos” e atualmente nas técnicas de persuasão à distância analisados por Peter Sloterdijk ([15]) ou nos laboratórios de neurotecnia que visam mover pessoas com o uso de meios eletrônicos ([16]), temos a constante busca da justiça, conduzida por alguns seres humanos, mas também a perene afirmação da injustiça, pela maior parte dos que dirigem os Estados. A democracia resistiu aos totalitarismos, mas rende-se, cada vez mais, aos encantos e facilidades de legitimação trazidos pelas eleições, ganhas na sua maioria com poderosa assessoria dos novos retores, os donos do marketing político. Se os retores gregos embelezavam as palavras com fins de persuasão, hoje os seus herdeiros embelezam todo o corpo dos políticos, fabricam seres artificiais com ajuda de todas as formas cosméticas. O Brasil foi bem servido nesta faina de cosmetizar a política para reforço da injustiça. Platão diz que a Justiça é como um bicho escondido em moitas. Ela foge das mãos e pernas dos que a procuram. Poucos podem atingi-la em tempo certo. Eleições também enganam e mostram enganos. E tudo isso pertence à ordem do poder político.





[1] Cf. Kennedy, G. A. : On Rhetoric: A Theory of Civic Discourse (Oxford University Press, 1991) ; Sarkar, H. : “Kant. Let us compare”. The Review of Metaphysic, volume 58, 2005.
[2] E.R. Dodds, Gorgias. A revised text with introduction and commentary (Oxford, Clarendon, 1992, second impression), p. 31.
[3] Dodds, op. cit. p. 33.
[4] Cf. Brès, Yvon: La Psychologie de Platon (Paris, PUF, 1973), p. 52.
[5] Cf. Hesk, J. : Deception and Democracy in Classical Athens (Cambridge, University Press, 2000), p. 154.


[6] Cf. Hesk, op. cit.
[7] Citado por Besse, G. : “J.-J. Rousseau: maître, laquais, esclave” . In Hegel et le siècle des Lumières,  livro coletivo organizado por J.  d´Hondt (Paris, PUF, 19749.
[8] Watkins, F. “Introdução” a Rousseau Political Writings (Thomas Nelson & Son Ed.) 1953.
[9] H. Parret, “Élements d´une analyse philosphique de la manipulation et du mensonge”, Documents de Travail, Università di Urbino, 1978, citado por Victoria Camps.
[10] Neste plano, o clássico de Vance Packard, The hidden persuaders (New york, David Mac Kay & Co. 1957) é a referência fundamental.
[11] Herman Kesten (Ed.) : Schwierigkeinten, heute die Wahrheit zu schreiben (Munique, 1964), citado por H. Weinrich, Metafora e menzogna; la serenità dell´arte (Bolonha, Il Mulino, 1976). Cf. Camps, p. 36.
[12] Pitt Rivers Honor and social status” . In J.G. Peristiany (Ed.), Honor and Shame: The Values of Mediterranean Society Chicago: University of Chicago Press, pp. 19-77. Citado por Amélia Valcárcel na edição espanhola : Antropologia del honor, Barcelona, Crítica, 1979, pp. 30 e ss.
[13] “Élection” in Philosophie de l´Image (Paris, Vrin, 1984), pp. 186 ss.
[14] O Espirito das Leis, II, cap. II. Citado por Dagognet.
 15 Die Verachtung der Massen (FAM, Sonderdruck, Suhrkamp, 2000).
[16] Moreno, J. D.  Mind Wars. Brain Research and National Defense (NY, Dana Press, 2005).

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Sobre a responsabilidade docente. Conferência de encerramento do Congresso sobre Ensino Médico, Faculdade de Medicina da Unicamp, 21-04-2018.




Sobre a responsabilidade docente.

Ao ser convidado gentilmente para falar nesta competentee grave Faculdade de Medicina, separei vários temas trazidos pela ética,  bioética, educação e política. Precisei, no entanto, efetivar uma escolha, a qual recaiu sobre a noção de responsabilidade. Tenho publicações próprias sobre o problema. Mas, sem me preocupar em ser original nos considerandos, decidi seguir extensamente dois trabalhos de colegas europeus sobre o tema. Os ouvintes ou leitores portanto, a partir dos links que indico abaixo –notas 7 e 10–  podem recuperar a totalidade daquelas análises, mais ricas do que sugere o meu aproveitamento. A inspeção daqueles textos mostrará que deles fiz amplo uso, quase uma paráfrase, porque estou mais inclinado a com eles concordar do que discordar, dados os pontos que atraem minha atenção no delicado momento universitário brasileiro. Roberto Romano



Sobre a responsabilidade docente (texto da conferência0.



“ O homem só pode se tornar homem pela educação. Ele só é o que dele fez a educação. É preciso bem notar que o homem só é educado por homens e por homens que foram igualmente educados. Eis porque a falta de disciplina e de instrução (...) em alguns homens faz deles péssimos educadores de seus alunos”. (Imanuel Kant, Tratado de Pedagogia).




Ao discutir os “ profetas da cátedra”  e o suposto direito que possuiria o professor de apresentar opiniões pessoais na sala de aula, Max Weber afirma que “a lição (Vorlesung) deve ser diferente da conferência (Vortrag)”. A primeira exige o rigor calmo, o apego aos fatos, a sobriedade. Tais itens se perdem se nela são aceitos discursos “ao estilo da opinião pública como na imprensa”. O controle externo é apropriado nas qualificações docentes especializadas. Mas “não existe qualificação especializada para a profecia pessoal” que livre os mestres do controle. Como todo mundo, eles têm outros meios para propagar seus ideais continua Weber, mas sem exigir o bastão do governante ou reformador no seu bornal. “Na imprensa, reuniões públicas, associações, ensaios, em toda avenida aberta para qualquer cidadão ele pode e deve agir como exigem o seu Deus ou demônio”. O professor deve incentivar no aluno a força de cumprir tarefas de modo correto, identificar fatos, mesmo os pessoalmente desconfortáveis, distingui-los das próprias avaliações, subordinar a sua pessoa à faina e refrear o impulso de exibir desnecessariamente o gosto próprio ou demais sentimentos. Não é verdade –diz Weber– que uma pessoa seja ferida quando não pode mostrar a si mesma em toda ocasião. Idiossincrasias como ódio e amor precisam ser controladas no ensino da ciência. É gosto pobre misturar questões pessoais com análises especializadas. Se o culto da personalidade domina a cátedra, o ofício público se torna superficial, as consequências são nocivas. ([1])

O pior, no pretenso direito de professar valorações em sala de aula, é que assim ficam desacreditadas as instâncias políticas e culturais, as discussões públicas. Embora crítico de I. Kant, Weber partilha a tese kantiana sobre o uso público e privado da razão. “Por uso público da própria razão entendo o que qualquer um, enquanto letrado (Gelehrter), dela faz perante a assembleia do mundo também letrado. Chamo uso privado àquele que alguém pode fazer da sua razão num certo cargo público ou função a ele confiada”. ([2]) O professor, no uso público da razão, pode e deve se pronunciar sobre temas que movem o coletivo, governo, religião, etc. No uso privado, não lhe cabe emitir juízos de valor. Um médico do SUS, um engenheiro de trânsito, um general, e todos os que movem serviços,  podem e devem analisar em público o funcionamento daquelas instituições. Mas no momento em que operam como funcionários eles não podem definir normas  ad hoc, oriundas apenas de seu querer, ou de seus colegas. Pelo uso público eles têm o direito de sugerir outro funcionamento, outras regras, até mesmo a ampliação institucional ou restrição. No uso privado, enquanto a própria instituição não for alterada pelo Estado com base na sociedade, cometem uma falta se negligenciam regras ou criam outras, por eles inventadas. Se desejam mudar a vida social, exerçam o juízo público, assumam os riscos das controvérsias, dos interesses contrariados, das angústias inevitáveis. Mas quando se trata de aplicar o saber no cargo, que tal coisa seja feita da maneira a mais conforme às regras de direito constitucional. O professor tem o dever de Estado de levar os estudantes aos seus próprios juízos, ensinando sobretudo os métodos de pesquisa e análise, de modo que os alunos dele não dependam para pensar. De certo modo, o mesmo diz Hegel sobre o ensino do saber: “Quando escrevo na lousa teoremas matemáticos, não estou jogando pedras na cabeça dos alunos. Penso com os teoremas e convido os estudantes a com eles pensar”. O que mais se deve temer em sala de aulas é a invocação de valores que se digladiam na vida social. Numa sociedade moderna, ao contrário do monoteísmo, ocorre o politeísmo axiológico. O professor que assume as vestes do profeta não cumpre sua missão e, por outro lado, usurpa um mister que não lhe cabe. A sala de aula e o laboratório, não se equiparam ao palanque nem ao púlpito. Em tal ponto entra o princípio da responsabilidade na docência e pesquisa.
 

No pretérito, as pessoas perguntavam se a culpa pelas desgraças seria dos deuses. Hoje, elas interrogam a ciência, a técnica, os alvos humanos. A busca de culpados mostra que tais problemas são discutidos sob o signo das paixões e do medo. Para desculpar o ser divino foi criada uma doutrina teológica, a Teodicéia. Nela são discutidas questões clássicas: se Deus é bom, como pode existir o mal no mundo é uma delas. Leibniz escreveu uma Teodicéia e nela adianta que o mal é ilusão de ótica humana. Como não podemos abarcar o infinito, o vemos pelo prisma da finitude. Aí, a nossa carência ótica nos dá a falsa impressão do malefício. Se bem praticarmos o cálculo, chegaremos ao resultado da nulidade do mal. Os homens teriam desculpa?  Hans Jonas reflete sobre a tragédia de Hiroshima e Nagasaki. Longe de terem sido fatalidade guerreira, tais eventos revelam horror no uso irresponsável das técnicas. Após a energia nuclear o mundo passou a ser radicalmente alterado pelos homens. O que antes era um nexo externo entre a nossa espécie e a natureza agora tem acréscimo da técnica e resulta em desastres. Daí a proposta do “princípio responsabilidade” em nova ética. O título do livro publicado por Jonas, O Princípio de Responsabilidade, à procura de uma ética para a civilização tecnológica ([3]), merece análise. Quando falamos em “responder”, de imediato vêm à tona formas jurídicas. Respondere no direito latino significa “garantir em troca, assegurar”. Trata-se da responsabilidade diante de alguém que possui direitos. O vocábulo se aproxima da fórmula democrática sobre a accountability. Com os Levellers do século 17, autoridades do Estado e profissionais têm o dever de prestar contas à cidadania. Os modernos Estados democráticos foram instaurados naquela base. Após Napoleão, a ordem ética arrefeceu, fortalecendo a irresponsável razão de Estado em vigor antes das revoluções inglesas do século 17 e das suas congêneres norte americana e francesa, no 18.  A ética da responsabilidade é essencial na ordem efetivamente democrática de nossos dias.  

Voltemos a H. Jonas. Antes das recentes inovações tecnológicas, o sujeito humano não podia alterar o mundo, apenas partes dele. Autores como Karl Marx, negaram interpretar o universo, exigiram a sua alteração. ([4]) A profecia de Marx, imoderado admirador da técnica, foi realizada na era atômica. Com ela surge enorme aporia jamais antes proposta às mentes humanas. Não se trata apenas do sentido de nossa existência, mas da própria existência. É possível, com o simples manejo de botão, arrancar a vida do planeta, aniquilar a Terra, torná-la totalmente outra.

Não só no campo bélico se instala a busca de impor outras formas ao mundo, chegando à sua destruição. Em setores da pesquisa e da prática existe o desejo de alterar a estrutura do próprio ente humano. No controle dos comportamentos, na medicação,  exercício da engenharia e medicina surgem fatos que atraem os atentos. Cito, escolhendo entre muitos, Jonathan Moreno. Especialista em bioética, consultor do Congresso e do governo nos EUA, vem dele o alerta para as vias da pesquisa, quando se tenta modificar corpos e almas visando a "melhoria" do padrão humano. ([5]) Realizamos tais projetos, mas nada garante que eles estão à nossa altura, ou que temos o direito de os efetivar. ([6])

Não podemos manter atitude despreocupada diante de  façanhas técnicas. Temos o dever de preservar a vida humana e a do planeta contra experimentos e aparelhos que não garantem o nosso patrimônio biológico ou espiritual. Jonas não segue Rousseau e menos ainda os ecologistas místicos. Nele não ocorrem frases ridículas sobre a "mãe natureza" ou sentenças tolas como "os terremotos e tsunamis têm origem no abuso humano". Seu diagnóstico é matizado e admite que a técnica possui valor inquestionável. O perigo reside na imprudência.

Responsáveis diante de quem? Tal é a pergunta de Jonas. Não perante a natureza, pois ela não é portadora de direitos. Somos eticamente responsáveis pela nossa vida no uso dos recursos naturais. Não sendo possível interromper o movimento científico e técnico, importa lutar contra a tecnocracia. É preciso que administradores e políticos respondam diante dos governados e de toda a humanidade. Urge que eles sigam o mandamento o qual manda agir "de tal modo que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente humana na Terra, durante o maior tempo possível". Jonas não tem fé em governos que se regem pelos alvos do poder, mas interpela a responsabilidade de todas as pessoas. O imperativo categórico é universal.

"A tecnologia, ao contrário da ciência, justifica a si mesma apenas pelos seus efeitos, não por si mesma e, assim, dados certos efeitos, avanços posteriores podem se tornar indesejáveis". (Jonas). Diante de situações dolorosas, a responsabilidade define tarefas para os que, sem misticismo ecológico, desejam ser sucedidos por seres humanos na partícula do universo cujo nome é Terra, "no maior tempo possível". Sem responsabilidade, morre a esperança.

A noção de responsabilidade, antes do século XX, significava  atribuir um ato a um agente,  algo a alguém para uma sanção, negativa ou positiva. A palavra adquiriu o sentido de um encargo: indivíduos ou grupos se encarregam de outros devido à fraqueza ou dependência, próximos ou não. Temos a idéia de precaução, atenuando-se a de reparação jurídica ou religiosa. Temos o princípio da responsabilidade pelos outros. Qual é a nossa responsabilidade na vida coletiva, eis a pergunta. Segundo Jonas, ela se extende para a humanidade inteira, no presente e no futuro.

Quando falamos da responsabilidade como encargo, recuperamos a noção antiga do vocábulo, grega e romana. Trata-se da solicitude para com os demais humanos, recuperar uma ordem anterior ou reparar um dano sem que o tenhamos produzido. O sentido mais amplo da noção encontra reúne dois elementos importantes: o Estado e a cultura. A responsabilidade tem dupla face: a impessoal (partilha funcional das tarefas) e a subjetiva (seres humanos vulneráveis que devo ajudar). Na primeira, assumimos ou não as tarefas a nós atribuídas e por nós aceitas. Podemos cumpri-las com competência ou imperícia, mas é a nossa função pública. Se as executamos com competência, mantemos a vida pública. Se as cumprimos de modo imperfeito, prejudicamos o Estado e a sociedade. Além da competência precisamos garantir o trato responsável diante das pessoas concretas que temos diante de nós.

Volto a Max Weber. Na sociedade burocrática, organizada de modo racional, os profissionais podem reduzir sua operação, como indivíduo ou grupo, ao funcionamento mecânico, automático. Quem assim opera segue normas e regras, by the book, sem olhar para casos singulares com maior cautela. Na sociedade e ou Estado burocratas juizes, diz Weber, operam como a máquina que distribui refrigerantes : posta a moeda, vem a garrafinha. Dita a lei, segue a sentença, sine ira et studio. O juiz máquina impõe sua figura maquinal ao cidadão sem outras considerações sobre a validade ou sentido legítimo da lei. O mesmo para profissões rotinizadas: perde-se nelas a responsabilidade pelo outro. Aplicadas as regras, tudo o mais tem valor menor. O juiz máquina perde o sentido da justiça. O pensamento jurídico anterior ao nosso corrigia o defeito da lei mecânica com a prática da epikéia. Esta última julga caso a caso e procura verificar os motivos de uma ação errada ou criminosa. Sem abandonar a lei, ela corrige excessos ou defeitos do ordenamento normativo. Por exemplo: num convento todos os frades devem acordar as 4 da madrugada para as rezas. Mas se alguns ficam até aquela hora no estudo ou trabalho,  estão dispensados do exercício coletivo. Seria legal os punir, mas injusto. É com base na epikéia que se considera, nas decisões judiciais, os atenuantes de um ato. É com base nela que se concede prêmios aos que fazem mais e melhor do que manda a lei.

Prudência e precaução determinam a justiça e a responsabilidade dos agentes. ([7]) Daí, seguimos para um antigo preceito ético, a liberdade em limites objetivos e subjetivos. A liberdade profissional em todo campo relevante, não consiste apenas na escolha de opções possíveis. Ela tem origem na ação válida científicamente, com a mediação de pessoas livres que devem consentir num trato.


Os primeiros códigos de ética médica, por exemplo, surgem com mudanças importantes na pesquisa e no ensino, na modernidade. ([8]) Tais códigos são escritos por John Gregory (1725-1773) e Thomas Percival (1804). De semelhantes escritos surgem os códigos das associações médicas americana e canadense, criados em 1847 e 1867. Partindo do princípio de que a medicina seria vocação altruísta, eles insistiam sobre a partilha da responsabilidade entre médicos, pacientes, sociedade, criando uma identidade de coesão coletiva. Na época e mesmo hoje, críticos enxergam naqueles documentos algo que visa proteger os médicos da concorrência e do controle externo efetivados por leigos ou Estado. Outros os defendem, pois eles insistiriam sobre a boa moral, o saber científico, as competências técnicas e a compaixão, ordenada pelo juramento hipocrático.


Os dilemas do ensino empenham numerosos atores e campos: antropológicos, doutrinários, financeiros, políticos, econômicos, sociais, éticos. Cada terreno é um leque de posições conflitantes. Na educação técnológica atual, a escolha de uma via é mais cheia de riscos do que nos tempos passados. Decidir reanimar uma pessoa queimada em demasia pode lhe trazer sequelas ou grave desfiguração. Entramos no território da antropologia, da ordem social, dos preconceitos, das doutrinas religiosas, sem falar nos custos. Reanimar um bebê de 24 semanas pode acarretar sequelas neurológicas. Conceber uma criança para salvar o irmão atingido pelo câncer, pode trazer resultados psicológicos, por ela não ter seu nascimento desejado por si mesmo. A medicina determina os cuidados mais próprios para certo doente, em certo contexto, em tal momento, numa decisão partilhada com o doente ou seus próximos. O problema é o de permanecer humano, num procedimento científico. ([9])


Volto à sala de aula. O estudante tem o direito de ser assistido e mesmo socorrido pelos mestres. Estes últimos devem saber que  excesso de confiança no próprio conhecimento pode se transformar em arrogância o trato educacional. Aí não há resposta na relacionamento, pois ocorre apenas uma fala, a do professor. A resposta com humanidade parte das pessoas  –mestre e aluno– como portadoras de multiplas potencialidades,  e considera os limites do ser humano, incluindo sua conivência com o pior e o melhor. Aí se encontra o terreno mais árduo do ensino responsável, o lugar onde decisões não podem ser tomadas by the book, mas exigem do profissional o maior treino para a prudência. O professor que age de modo mecânico ou pretende transformar os alunos em suas  réplicas, foge da responsabilidade.

O comportamento responsável adquire dimensões mais amplas do que no trato interpessoal. Hoje a técnica modela  corpos, tanto de indivíduos quanto de sociedades, transforma  elos sociais, traços de poder,  instituições, autoridade. Nascimento e morte, casamentos, esportes, assessoria policial, escolas, atividades profissionais, tratos entre indivíduos e grupos passam por crivos psicológicos ou biológicos. Mesmo empréstimos bancários exigem garantia de vida o bastante para pagá-los, garantia dada por exames clínicos. A gestão coletiva da saúde governa a vida pública e se impõe como bem a não ser discutido. Há um ideal de peso, de colesterol, tensão, equilibrio alimentar que assume o papel de norma social. A noção de bem estar se torna imperativo moral. Não seguir recomendações médicas assume as marcas do antigo pecado. Quem fuma, come, bebe sem obedecer as normas, se torna “ responsável”  por sua doença. Como diz uma especialista, Dominique Folscheid, “em vez da pessoa ser o fim da saúde a saúde passa a se tornar o fim da pessoa, no limite, a saúde é absolutizada de tal modo que não se faz mais a diferença entre o ‘salvamento’ médico e a salvação” religiosa. Tal culpabilização generaliza de modo imprudente o princípio da responsabilidade. No fim, todos são culpados e ninguém o é. ([10])


A tentação de transformar o aluno, nele inculcando os ideais do professor, resulta em desastres. Dei tais exemplos para sugerir que o aprendizado e o ensino se tornam ainda mais árduos em nossos tempos. Conhecemos tragédias recentes na história da investigação e trabalho médico, os dramas trazidos pela formação profissional competente, mas com pequeno peso da ética da responsabilidade. No plano macro, temos o triste exemplo dos campos de concentração onde milhões foram abatidos. Daí, para os experimentos narrados por Jonathan Moreno em Risco Indevido, o passo é mais rápido. Mas a crítica de Weber aos professores que julgavam seu direito transformar a consciência dos estudantes mostrou toda acuidade nos anos duros vividos na república de Weimar. A tarefa de fazer dos alunos seguidores de crenças professorais resultou no morticínio massiço e no espetáculo tremendo de alunos e docentes queimando livros em praça pública, nos auto da fé nazistas.

 “Usarei meu poder para socorro do adoecido, segundo o melhor da minha habilidade e juízo; evitarei, com ele, ferir ou enganar todo e qualquer homem”, diz o juramento de Hipócrates. Tal fórmula inclui o professor em sala de aula ou laboratório. A falta de responsabilidade ética acelera a imprudência. Assim, resta a receita de Platão nas Leis, quando se trata de formar jovens  dedicados a cuidar das mentes e corpos : é preciso  mostrar a diferença entre a caça aos bichos e a caça aos homens. A primeira é permitida para alimento. A segunda é proibida, inclusive e sobretudo a caça ao dinheiro e à ascensão social, ou escalada política. Cabe aos magistrados e aos professores mostrar, com exemplos inequívocos, tal diferença. Aí começa a dificuldade do ensino, inclusive nas melhores instituições.  Termino com o desafio de Max Weber, a diferença entre lição (Vorlesung) e conferência (Vortrag).  Até onde, no desejo de transformar estudantes e neles estabelecer uma nova consciência ética os docentes podem ir, ao apresentar seu ideário sobre o mundo, a sociedade, a ciência. Não se deve impor opiniões pessoais na lição (Vorlesung) porque é preciso apresentar aos alunos o procedimento científico de acordo com o estágio em que se encontra o saber. Expostos os fundamentos, incentivar as interrogações,  incertezas e certezas dos alunos para que eles encontrem, no horizonte esboçado pelo docente, o seu próprio itinerário.  O mais relevante alvo do ensino, inclusive médico, é preparar estudantes para o juízo prudente e próprio, o maior esteio da ética. Já na conferência acadêmica, onde os pares que trabalham em diversos campos acadêmicos se reúnem em igualdade efetiva ou virtual, é dever apresentar novas teses, meios de intervenção, idéias, polêmicas. Sim, no exercício nas salas de aula e laboratórios, os estudantes também exercem o sentido da pesquisa e podem explorar novos aspectos de problemas. Os profissionais do ensino têm a responsabilidade grave de ponderar com eles, lhes apresentar dificuldades técnicas ou éticas sem impor ideários políticos, religiosos, ideológicos. São tarefas diante do Estado e da sociedade nas quais reside o múnus de ensinar sem moldar ou destruir consciências, o que faz dos estudantes autômatos que aprendem a seguir receitas by the book.  Tal alvo não pertence à periferia do ensino, mas ao seu núcleo mais espinhoso.


[1] Max Weber: Wissenschaft als Beruf, 1917-1919, Politiks als Beruf 1919. (Tubingen, J.C. B. Mohr, 1994) p. 109 e ss.
[2] I. Kant: « Resposta à pergunta: O que é o esclarecimento? ». Textos seletos – Edição Bilíngue. Trad. Raimundo Vier; Floriano de Sousa Fernandes. (Petrópolis: Vozes, 1985). 

[3]  Existem várias traduções, a mais acessível é a norte-americana : The imperative of responsability, In search of an ethics for the Technological Age (Univ. of Chicago Press, 1985).
[4] “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diversas maneiras, mas trata-se de transformá-lo”. “Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert, es kommt aber darauf an, sie zu verändern”.
[5]  Cf. Jonathan M. Moreno : Mind Wars, brain researche and National Defense e também Undue Risk, secret experiments on humans. Sobre os mesmos temas, cf Hans Jonas : "Philosophical Reflections on Experimenting with Human Subjects" in Daedalus, vol. 98, 2 1969, pp. 219-247).
[6] Sobre o assunto, cf. Jerôme Goffete: “Modifier les humains, anthropotechnie versus médecine” in Jean-Noel Missa e L. Perbal (coord.) “Enhancement” éthique et philosophie de la médecine d´amériolation (Paris, Vrin, 2009).
[7]  Éric Gagnon e Francine Saillant,  “Sources et figures de la responsabilité aujourd´hui” revista Éthique publique vol. 6, numero 1, 2004. https://journals.openedition.org/ethiquepublique/2064

[8] Heather MacDougall, PhD, and G. Ross Langley, MD : L’Éthique Médicale d´hier, d´aujourd´hui et de demain,  localizável  no endereço eletrônico seguinte : pdfall.com/.../Telecharger_PDF_7.php?...l'éthique_médicale




[9] Um interessante trabalho sobre o tema foi publicado pelo médico Pedro Lain Intralgo : The Therapy of the Word in Classical Antiquity (New Haven, University of Yale, 19700.


[10] Marie-Jo Thiel: “ L´ambiguité de la responsabilité dans les questions d´éthique médicale” . https://journals.openedition.org/rsr/641