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sábado, 28 de outubro de 2017

Ideal fascista está sendo retomado, alerta filósofo Roberto Romano, professor de Ética e Ciência Política da Unicamp


Entrevista

Ideal fascista está sendo retomado, alerta filósofo

Roberto Romano, professor de Ética e Ciência Política da Unicamp

Glossário


Um velho espectro político volta a rondar o mundo ocidental, com riscos inclusive ao Brasil. E seu nome é fascismo. O alerta é do filósofo e professor de Ética e Ciência Política Roberto Romano, da Unicamp. Ele vê na atualidade o renascer de uma preocupante onda de interesse acadêmico por obras de intelectuais que ajudaram a construir a base teórica dos Estados totalitários surgidos na Alemanha e na Itália no período entre as duas Guerras Mundiais.

O ponto principal de preocupação de Romano é o interesse renovado pela obra do jurista e filósofo Carl Schmitt. Autor "maldito" durante muito tempo por defender a ditadura como melhor forma de governo, o teórico alemão começa a ser revisto em universidades. A intenção seria aproveitar algumas ideias dele, jogando "a parte podre fora". Para Roberto Romano, porém, isso é inviável.
Segundo ele, em boa parte dos casos, os defensores de Schmitt surgem de "órfãos de Marx e do stalinismo" – ainda interessados em derrotar o liberalismo.

Romano diz ainda que o temor com o renascimento dessas ideias é ainda maior diante do clima de irracionalismo criado por alguns fanáticos religiosos, da alta taxa de desemprego, do enfraquecimento dos Estados nacionais e da violência social do mundo atual. Ele afirma também que a visão do adversário político como inimigo a ser derrotado, perigosamente inserida na campanha presidencial brasileira deste ano, é uma amostra do risco do renascimento de radicalismos totalitários no país.

O senhor afirma que há um renascimento do interesse pelo pensamento nazista no mundo. De onde vem esse interesse?
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Da perda dos paradigmas éticos e políticos que nortearam os séculos 19 e 20. Com o enfraquecimento do liberalismo no início do século 20, surgiram propostas de ordenamento da sociedade com maior ênfase nos coletivos, e não tanto nos indivíduos e grupos. A sociologia romântica acentuou os laços comunitários contra a vida urbana e industrial, com seu "Estado máquina" [nazifascista]. Essa sociologia é um dos muitos pontos que ajudaram a edificar, nos estratos mais reacionários, uma ideia de coesão e disciplina vertical. E, nesta ideia, a vontade seria a diretriz, não a racionalidade.
De modo geral, [György] Lukacs [pensador marxista húngaro] descreveu a mudança de modelos, do racional para o irracional. Ele mesmo, como discípulo de [Max] Weber [alemão, considerado o pai da sociologia], havia procurado uma saída para a ordem mecânica e burocrática do mundo moderno. Encontrou na revolução proletária internacional. Na outra ala dos seguidores de Weber, na sua direita, encontravam-se sociólogos e juristas reacionários como Carl Schmitt. Schmitt, que também criticava as formas mecânicas e liberais, serviu momentaneamente aos nazistas.

Nos anos 70 do século 20, pensadores que, na esteira da crítica à União Soviética deixaram de aceitar pressupostos do pensamento marxista, passaram a ver nos escritos de Carl Schmitt um instrumento para continuar a recusa do liberalismo. Órfãos de Marx e do stalinismo, eles acentuam a resistência às formas liberais do Estado, sem no entanto acreditar mais numa "revolução proletária internacional". Esses escritores ajudam a estabelecer o relativismo, a corrosão dos padrões éticos e se colocam como geradores do éter de ideias que paira sobre os movimentos nazifascistas. É preciso lembrar que esses movimentos jamais deixaram de existir na Alemanha, na Europa, no mundo. Os demais, não saídos do campo marxista, partilham os mais variados matizes do pensamento conservador ou francamente reacionário, não aceitam as luzes, a democracia, etc. Estes últimos são os que mais gasolina injetam nos movimentos irracionalistas e fascistas que hoje se apresentam na cena mundial.

Quais são os indícios desse novo interesse por esse pensamento?

Obras de autores como Schmitt são editadas na Europa, na Ásia, nos EUA, na América do Sul. Seminários, publicações jurídicas ou supostamente filosóficas se espalham, sempre com o mote de, inicialmente, livrar Schmitt e seus pares da "pecha" de nazistas. Teses universitárias surgem, e tomam como dados inquestionáveis os dogmas do decisionismo político e jurídico; as teses sobre a política como exercício da inimizade; os "desvios" da modernidade no pensamento liberal e socialista democrático, etc.

O que pregam esses intelectuais?

Pregam o afastamento imediato das mediações jurídicas e políticas liberais e o reforço do poder decisório dos líderes que movem o Executivo. Em suma, pregam a ditadura do Poder Executivo nas matérias estratégicas dos países, em detrimento do Legislativo e do Judiciário.

O senhor afirma que os intelectuais que tentam fazer um "renascimento" da obra de Carl Schmitt tentam separar o resto de sua obra, evitando a defesa da ditadura, por exemplo. Isso é possível?

Não. Mesmo autores irracionalistas escrevem textos que se caracterizam como um todo. Impossível arrancar do decisionismo schmittiano a sua atribuição ao chefe de Estado de poderes ditatoriais.

Qual o risco real de um grupo de intelectuais defenderem ideais como os que levaram à ditadura de Hitler na sociedade atual?

Embora a conjuntura seja outra, e não exista mais a bipolaridade geopolítica entre comunismo e nazifascismo, a crise que gerou naquela época os movimentos totalitários se apresenta agora, em outra face, mas tão corrosiva quanto nos anos 20 do século passado, no campo dos valores, das instituições, das ciências. Massas sem emprego, desindustrialização comandada e em proveito do capital financeiro, corrosão dos Estados, violência social, preconceitos, fanatismos, irracionalismo religioso sectário, todos elementos são férteis sementeiras de ódio. E permitem pensar e agir na política como se ela fosse uma guerra civil, não como uma instância de diálogo e cooperação entre cidadãos que discordam mas buscam o bem coletivo. No fascismo, o "bom coletivo" é o meu. Os demais devem ser derrotados e expulsos da cena pública e, mesmo, da vida.

Esse interesse existe também no Brasil? Onde?

Em nossas universidades existem muitos pesquisadores e professores que apresentam o pensamento de Schmitt como algo "neutro", que não traria nenhum perigo para a ordem democrática. Sou contra escritores como Yves-Charles Zarka, um mestre do pensamento filosófico e político atualmente, que recomenda retirar os textos de Schmitt das prateleiras, em livrarias e bibliotecas. Creio ser preciso ler aquele autor, e todos os autores relevantes na história de nosso tempo. Mas uma coisa é ler; outra é aceitar e espalhar as doutrinas genocidas. 

Agora, pensemos um pouco sobre a última campanha eleitoral para a Presidência – com os insultos, os ataques de lado a lado, a redução dos concorrentes a inimigos – para perceber os possíveis frutos da corrosão nos movimentos políticos, se eles aceitarem a tese de que o outro deve ser aniquilado. É bom recordar que, em nosso caso, todos os partidos que lideraram as campanhas saíram da esquerda, sendo notával a ausência, nelas, de elementos conservadores. Neste vácuo, a pregação fascista (intolerante, racista a pretexto de ser regionalista) toma fôlego, à espera de seu momento certo.

A tensão étnica e religiosa que ressurge na Europa, especialmente com o crescimento do Islã, tem a ver com esse pensamento?

Sim. O Islã é visto como o inimigo, na ausência do comunismo. Mas o inimigo pode ser qualquer religião, ideologia, partido político. A redução da política à dimensão de uma guerra gera apenas a fratura no social e no Estado. 

Como combater esse tipo de ideal que vem ressurgindo?

A única forma de combater eficazmente o fortalecimento fascista é viver a democracia, mesmo com todos os seus defeitos. Qualquer apelo ao voluntarismo, à radicalização das próprias teses em detrimento da voz alheia, da redução dos que pensam diferente ao estatuto de inimigo, resultam em favor dos que consideram impossível o convívio democrático respeitoso, nos parâmetros dos direitos humanos. A única fórmula para combater o fascismo, em pensamento e atos, é viver e valorizar a democracia.

 

     

“O perigo real é o retorno do fascismo”. Entrevista com o filósofo Rob Riemen






“O perigo real é o retorno do fascismo”. Entrevista com o filósofo Rob Riemen

Revista ihu on-line


28 Outubro 2017

“No momento, negamo-nos a ver o retorno do fascismo. Dizem-me que falo dos perigos do populismo. Não é assim. O populismo é como os mosquitos, um pouco irritantes. O perigo real é o retorno do fascismo. O fascismo é o cultivo político de nossos piores sentimentos irracionais: o ressentimento, o ódio, a xenofobia, o desejo de poder e o medo. Não deveríamos confundir os dois conceitos. Devemos chamar o fascismo por seu nome”, afirma Rob Riemen (Países Baixos, 1962), ensaísta, filósofo e diretor do prestigiado Nexus Institute.

Riemen esteve recentemente no México para apresentar a obra Para combatir esta era. Consideraciones urgentes sobre el fascismo y el humanismo (Taurus, 2017), uma poderosa alegação em favor do humanismo como antídoto contra o renascimento do fascismo. Concedeu-nos esta entrevista em uma manhã nublada, como nosso tempo.

A entrevista é de Laura Emilia Pacheco e Fernando García Ramírez, publicada por Letras Libres, 21-10-2017. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Em seu primeiro livro, retoma o ideal democrático de Thomas Mann da “nobreza de espírito”. A nobreza de espírito, que é individual, pode se opor ao avanço do fascismo, um movimento da sociedade de massas?

Em 1947, enquanto trabalhava em Doutor Fausto, Mann escreveu sua conferência A filosofia de Nietzsche à luz de nossa experiência. Nela dizia que nenhuma medida técnica, instituição política, nem ideia de governo mundial conseguiria avançar para uma nova ordem social sem que antes se desenvolvesse um clima espiritual alternativo. Para Mann, a única forma de deter os avanços do fascismo era mediante a nobreza de espírito. Concordo.

O fascismo nasceu no interior da sociedade. A ignorância da sociedade de massas é também uma ignorância dos valores espirituais e morais. O fascismo surge neste contexto. Como afirmo em Para combatir esta era: apesar do progresso científico e tecnológico e do enorme acesso à informação, a força dominante de nossa sociedade é a estupidez organizada. Não se detém o fascismo através da economia, da tecnologia ou da ciência, nem sequer através das instituições – porque dependem das pessoas que as formam -, mas, sim, com uma mentalidade distinta. Mann, Camus, Sócrates e muitos outros pensadores advertiram que a “nobreza de espírito” é um dos ideais mais democráticos que existem. Para cultivá-la não é necessário dinheiro, ser tecnologicamente habituado ou ter um título universitário. A nobreza de espírito é uma mentalidade, é saber do que se trata a dignidade humana.
'Para combatir esta era'  é um chamado às elites políticas, econômicas, acadêmicas e intelectuais. Elites que, no entanto, parecem estar atravessando uma crise. Afirma que “geraram o vazio espiritual no qual o fascismo pode crescer outra vez”.

Enfrentamos dois problemas diferentes. O primeiro é o tipo de elites dominantes em nossa sociedade. As elites políticas, econômicas e midiáticas são as que têm mais poder e influência. São definidas e validadas pela quantidade, não pela qualidade. No mundo da cultura, não obstante, o conceito tem um significado distinto: a elite expressa a qualidade. Pensemos na União Soviética de Stalin: de um lado, estavam as elites do poder, os dirigentes do partido e, como contrapeso, uma minúscula elite moral representada por [Boris] Pasternak, [Osip] Mandelstam, [Anna] Akhmátova e, posteriormente, [Joseph] Brodsky. Uma das coisas que ocorre em nossa era do capitalismo rampante é que a única elite que reconhecemos é a do poder, que só expressa quantidade. O fato de as elites intelectuais e artísticas estarem marginalizadas reflete que os mais altos valores da sociedade atual são os do comércio e da tecnologia. É indispensável fazer um chamado às elites, incluindo a elite acadêmica: tem uma posição privilegiada que acarreta uma responsabilidade que não estão aceitando. Teriam que ser combatentes contra esta era.

Parte do fenômeno ao qual enfrentamos hoje foi retratado por Hermann Broch no terceiro volume de Os sonâmbulos, onde analisa o declive dos valores. Para Broch, não é que já não existam valores, mas, ao contrário, em consequência de já não existir um valor universal e transcendental, todos os valores se fragmentam e se tornam pequenos. À classe política só interessa o poder, à classe militar só interessa ter mais armas, aos médicos só interessa ter mais remédios, ao mundo tecnológico só interessa desenvolver mais tecnologia. Já não existe um sentido de responsabilidade geral. E não só isso: esses grupos não falam o mesmo idioma, não se comunicam, não existe um diálogo entre eles.
Em seu romance O homem sem qualidades, Robert Musil coloca esses grupos – generais, empresários, intelectuais e aristocratas – em conversa. Para Musil, eles se reúnem porque estão em busca da “grande ideia”. É uma bela metáfora que Musil retoma de Os demônios de Dostoievski. Perdemos a “grande ideia”. Em termos mais acadêmicos, diríamos que perdemos o grande relato. As consequências sociológicas dessa ausência são imensas. Na Idade Média, por exemplo, as pessoas faziam parte de uma grande ideia única. Isso se acabou, por bons motivos, mas agora temos uma sociedade completamente fragmentada, individualizada, com uma classe governante que perdeu o sentido comum ou o bom sentido, e não temos um governo que queira velar pelo bem comum.

Contribuiu para a deflagração da Segunda Guerra Mundial o fato das elites ficarem em um processo de sonambulismo, adormecidas. Está ocorrendo novamente. Para Hermann Broch, o sonâmbulo se nega a ver a tormenta. No momento, negamo-nos a ver o retorno do fascismo. Dizem-me que falo dos perigos do populismo. Não é assim. O populismo é como os mosquitos, um pouco irritantes. O perigo real é o retorno do fascismo. O fascismo é o cultivo político de nossos piores sentimentos irracionais: o ressentimento, o ódio, a xenofobia, o desejo de poder e o medo. Não deveríamos confundir os dois conceitos. Devemos chamar o fascismo por seu nome.

Ao que se deve que a sociedade negue a assumir que o fascismo está de volta?

Ao embaraço de políticos e acadêmicos. Ao menos é o que acontece no Ocidente. Adverti isto, há alguns anos, quando publiquei nos Países Baixos O eterno retorno do fascismo, o primeiro ensaio de Para combatir esta era. Recebi um tsunami de respostas negativas. Nos jornais, apareciam artigos enfurecidos, assinados por políticos, que diziam que eu deveria me sentir envergonhado. Os acadêmicos também se irritaram porque eu disse que na academia se dedicam a escrever notas de rodapé, ao invés de se envolver politicamente. Não me permitiram dizer que o deputado neerlandês Geert Wilders é um fascista.

Aceitar o retorno do fascismo representa um problema para alguns pensadores progressistas, pois significa que nossa sociedade tem fantasmas que se negam a morrer. Embora há exceções, os acadêmicos em geral não sabem nada. O problema fundamental que está atingindo a academia é a confusão entre a ciência e a verdade. Sabemos a respeito da brilhante ideia que teve Descartes ao separar a alma do corpo. Foi a partir desta nova ideia que pudemos fazer descobertas científicas. Mas, tempo depois, em 1725, Giambattista Vico advertiu que, apesar da grande admiração que tinha por Descartes, não devíamos cometer o erro de pensar que o paradigma científico – mesmo que adequado para explicar o que ocorre na natureza – nos faria compreender o ser humano e sua sociedade, porque somos uma espécie espiritual.

Nossos sentimentos e emoções vão além do paradigma científico. Os acadêmicos, no entanto, se negaram a escutar a advertência de Vico, ou a esqueceram. Constantemente, as humanidades têm que provar que são científicas e lhes impõem a necessidade de inventar teorias. Simon Schama explicou que a história é composta por uma série de relatos, mas são poucos os historiadores que contam algo. Tudo são teorias. Isto se aplica também para a psicologia e a sociologia. Existe um mal-entendido no campo das humanidades e com sorte um dia nos darão mais conhecimentos que dados. Ao não compreender, não fazem parte do debate público. Como não há evidência empírica de que enfrentamos o fascismo, negam-se a pensar que está de volta.

Enfrentamos um novo gnosticismo e quem o cultiva é essencialmente a esquerda: “as pessoas” se sentem traídas, “as pessoas” não sabem o que fazer. Em certo sentido, isto é tão antidemocrático como o fascismo. Eis, aqui, onde estamos atolados. O que não temos é um “humanismo cívico”. O que a sociedade perdeu é a noção de humanismo no discurso cívico. Isso é algo que devemos recuperar o quanto antes, porque, caso contrário, nos dirigimos ao desastre.

Mas, não há somente ciências da natureza, também existem a ciência política e a ciência econômica. Ou seja, a quantificação de elementos econômicos e políticos de um ponto de vista científico.

Se a economia fosse uma ciência, por que não conseguiu prever a crise econômica de 2008 ou a enfrentar? A ciência política se reduz só a dados e não contribui em nada. Ao querer se concentrar neste paradigma, a ciência se limita. O argumento de Giambattista Vico é que se queremos compreender o ser humano e entender a sociedade, precisamos de história, poesia, filosofia, música e arte. Isto nos dará um conhecimento absoluto? Não, porque o ser humano transcende o conhecimento absoluto.

Pensa-se que falar de alma e espírito humano é antiquado. Se isso é correto, perdemos o rumo. Qual é a essência do ser humano? Sócrates diz que é a alma. Em suas Disputaciones tusculanas, Marco Tulio Cícero escreveu sua famosa sentença de onde provém nossa noção de cultura: “o cultivo da alma, isso é a filosofia”. E, certamente, junto à filosofia, perdemos a busca da sabedoria, o cultivo da alma. De modo que não deve nos surpreender o tipo de mundo em que vivemos.

Não sou contra a informação e os fatos, mas não necessariamente são conhecimento, nem sabedoria. Os poetas e os artistas dizem que a linguagem é como um espelho que nos diz se somos autênticos. Ao final de Apologia, Sócrates adverte que, sem a linguagem das musas, sem a linguagem da música, da poesia e da arte, seria impossível nos expressar; seria impossível compreender nossos sentimentos e lidar com nossas frustrações, temores e solidão. Por isso, é importante ter essa linguagem que – como já disse [Marcel] Proust – é o que nos permite entender o outro. Nunca seremos capazes de apreciar e articular nossas experiências mais profundas sem a linguagem das musas.

As sociedades que estão dominadas pelo medo são propensas ao contágio do populismo, mas o medo é inevitável em sociedades como as nossas, assediadas pelo terrorismo e a violência do narcotráfico.

Não são as sociedades, somos nós mesmos. Nossa psique está invadida pelo temor: somos a única espécie que tem consciência de sua mortalidade. O temor é um sentimento inerente ao ser humano. Mais que de uma educação ou de uma filosofia, Sócrates falava de uma Paideia: de como viver a vida. Um de seus elementos é como lidar com nossos temores. Perdemos os instrumentos que nos permitem fazer isso. Por que sociedades são tão inseguras? Por que dependem tanto de psiquiatras? Por que depositamos nosso sentido de bem-estar e confiança nos bancos, nas companhias de seguros e nos sistemas de pensões? Em parte, é porque nossa sociedade se tornou muito mais materialista e acreditamos que as seguradoras irão cuidar de nós. Para que devo cultivar minhas habilidades ou certo caráter se, enquanto minha conta de banco estiver boa, estarei bem? Sócrates pensava que o valor é a habilidade de se conquistar a si mesmo, o valor para cultivar nossa alma, e queria que recebêssemos uma educação que nos tornasse corajosos, conquistar nossos temores, frustrações, inseguranças de modo que tenhamos a coragem para agir.

Imaginemos uma sociedade na qual nos déssemos conta de que a autêntica segurança não deveria vir de nossa conta bancária, mas de nós mesmos. Imaginemos uma sociedade na qual, em verdade, tratássemos de nos educar para sermos corajosos. É a única maneira de se opor ao que está ocorrendo. Isto não significa que não haverá mais tragédias, mas como sociedade seríamos muito mais fortes.

Afirma que o medo leva os povos a buscar um líder que os salve e proteja. Sua advertência de que o fascismo está de volta, não é uma forma de provocar medo nas elites?

Ao falar de elites nos referimos à elite do poder. Isso já acontece nos Estados Unidos, onde a classe que compõe os financistas de Wall Street está em ascensão. É exatamente o que ocorreu na Alemanha nazista por falta de cálculo, oportunismo e pensamento estratégico: as elites – não só as elites do poder, mas também muitos acadêmicos e intelectuais – pensavam que Hitler não podia ser tão mau. Enquanto o líder fascista se dedica a seus próprios interesses, parece que não importa para ninguém. Chegado o momento, se as coisas se colocam muito mal em um regime totalitário, não há possibilidade de erguer a voz. Por que as pessoas precisam tanto da figura de um líder? Por que a sociedade anseia um herói? Os heróis atuais são as celebridades. Sabemos que Trump pôde chegar à Casa Branca graças ao fato de que, durante doze anos, apareceu constantemente na televisão. Assim, de forma grande, é a fome de líderes, heróis, gurus e messias. É por este motivo que procuro fazer uma defesa do humanismo. Se alguém é suficientemente afortunado na vida, encontra um mestre: um homem ou uma mulher que possa o ensinar a desenvolver suas habilidades e talento. A humanidade pode ser dividida entre as pessoas que precisam de um mestre e o procuram e as pessoas que não o procuram, mas estão impressionadas com o líder poderoso ao qual podem se submeter.
Dostoievski disse isso com grande eloquência em O Grande Inquisidor. Nele, apresenta a Jesus Cristo não como um líder poderoso, nem como herói. Apresenta-o como um mestre. Um mestre, além do mais, que não traz boas notícias. A má nova é que Jesus Cristo não está aqui para nos fazer felizes, mas, ao contrário, para nos tornar livres. Precisamos de um mestre quando queremos desenvolver a qualidade de ser livres. Precisamos de um líder ou uma celebridade quando queremos ser felizes.

Na França e nos Países Baixos, os candidatos com discursos fascistas perderam as eleições. O fascismo foi detido na Europa?

Nos Países Baixos não detivemos o fascismo. Geert Wilders é líder do atual segundo partido mais importante e principal opositor do partido no governo. Isto significa que no debate parlamentar ele é o primeiro a falar. Pode dizer o que quiser, sem nenhum tipo de responsabilidade. Por outro lado, o vencedor da eleição, Mark Rutte, publicou uma carta aberta em todos os jornais holandeses intitulada Ser normal. Aí diz que, como holandeses, damos as boas-vindas a todos sempre e quando se comportarem de uma maneira “normal”, como o restante dos cidadãos neerlandeses. Vá! Ser normal significa que você deve ser igual ao outro. Não posso pensar em um argumento mais racista e xenófobo. Pouco depois, o líder do partido Apelo Democrata-Cristão disse que todos em meu país devem saber o hino nacional de cor e que cada vez que seja escutado, devemos ficar em pé e colocar a mão sobre o coração. Querem criar instrumentos para nos fazer todos “normais”.

Na França, por outro lado, Macron teve muita sorte. É jovem e tem pouca experiência. Em geral, a votação parlamentar é de 70 a 80%. Ele só obteve 48%. Caminha em um terreno sensível e está em uma posição muito mais complicada que a de Obama quando venceu a presidência em 2008, e já vimos o que ocorreu após os oito anos de seu governo. De modo que não nos enganemos pensando que, de repente, sem tomar nenhuma iniciativa real, detivemos o fascismo. A União Europeia se encontra em um momento muito delicado. É tão disfuncional que, na Hungria, não pode enfrentar a Viktor Orbán, um fascista absoluto. Também sabemos o que aconteceu no Reino Unido e na Polônia. As forças que querem destruir a Europa são inegáveis.

Qual é a pertinência de 'Para combatir esta era'?

Sem Trump o livro não teria aparecido em espanhol, nem em outros idiomas. No caso de Trump, não acredito que haja um processo de destituição. Se chegasse a ocorrer, não esqueçamos o que disseram Levi, Mann e Camus, após a destruição da Alemanha de Hitler e o desmoronamento do fascismo na Itália: não cometamos o erro de pensar que o fascismo desapareceu com a guerra. Após a guerra, Camus publicou A Peste para deixar assentado esta mensagem. Podem passar dez ou cinquenta anos, mas o fascismo reaparecerá. Está acontecendo, agora, com Trump e Erdogan. Mas, mesmo se eles se forem, o fascismo permanecerá.

Em 1929, José Ortega y Gasset nos advertiu, em 'A rebelião das massas', sobre a ascensão do fascismo. As sociedades livres lutaram contra as nações fascistas pela liberdade. Os líderes que enfrentaram o fascismo – Estados Unidos e o Reino Unidos –, hoje, possuem um governo populista. Que caminho tomar?

Os Estados Unidos não têm um governo fascista, mas, sim, um presidente que é. Este é um exemplo de que a liberdade e a democracia não podem se dar por assentadas. Talvez devamos dar um salto muito mais extenso e entender que o modelo de Estado-nação é relativamente novo em nossa história, que como modelo tem dificuldades, e que isso abre o espaço para o surgimento do nacionalismo. A partir deste cenário, pode crescer o fascismo. Não há fascismo ou racismo sem nacionalismo.

No final dos anos 1930, Thomas Mann, Hermann Broch e alguns intelectuais estadunidenses como Robert Maynard Hutchins – que então era o reitor da Universidade de Chicago – se reuniram a pedido de Elisabeth Mann Borgese e seu esposo, o escritor Giuseppe Borgese, um dos poucos intelectuais italianos que se negou a fazer o juramento de lealdade a Mussolini e se exilou nos Estados Unidos. Em 1938, Borgese pensou que a guerra era inevitável e que deviam vencê-la. Pensava que, após a guerra, os políticos estariam muito agoniados, sendo assim, os intelectuais tinham que sair da torre de marfim e escrever algum tipo de material a partir do qual poderiam se estabelecer novos princípios.

O grupo se reuniu algumas vezes em Atlanta, em 1939, pouco antes da guerra. Em março de 1940, publicaram The city of man. A declaration on world democracy, onde se perguntavam: o que precisamos fazer após a Guerra? Eles mesmos responderam: um governo mundial, um parlamento mundial, direitos humanos universais. A partir deste pequeno livro nasceu a ONU.
Cabe a nós, intelectuais - gente privilegiada que podemos viver cuidando de ideias e do significado das palavras -, unir-nos, explicar o que ocorre e como avançar. Estamos atolados entre dois paradigmas que não nos permitem avançar. Nossa conversa girou em torno do paradigma do retorno do fascismo. Contudo, há outro paradigma com o qual estamos lidando: a sociedade capitalista-científica-tecnológica que se rege pelo tipo de ideologia que vem do Vale do Silício. Uma ideologia que se baseia na falsa noção de que com a tecnologia e a neurociência podemos resolver tudo. Como dizia Obama com frequência: Fix it first. Isso tampouco nos permitirá avançar. Isto abebera o fato de que não há ideias. Tive um debate acalorado com um professor que dizia que para se ter uma Europa unida era necessário retornar à Idade Média, sob a forma da cristandade. A saída não está em um retorno ao passado.

Celan, Brodsky, Pasternak e muitos outros exerceram a arte da tradução. Por que Thomas Mann escreveu José e seus irmãos? Começou a escreveu sua tetralogia quando se deu conta de que existia um homem chamado Adolf Hitler. Mann, que vivia em Munique, escutou a retórica de Hitler, compreendeu sua ideologia e percebeu que queira criar uma nova religião laica. Sendo assim, começou a escrever seu livro. Tomou a Bíblia e se propôs voltar a contar – a traduzir – a história de José e seus irmãos.

Paul Celan – depois que os nazistas o cercaram junto com sua família em um gueto, enviaram seus pais para um campo de extermínio, onde assassinariam sua mãe e morreria seu pai, e o mandaram para um campo de trabalhos forçados, de onde finalmente foi libertado – teve que traduzir.
O grande relato que esperamos, o tipo de história que precisamos ter para que renasça o humanismo laico ou religioso será, justamente, um que volte a contar histórias; será uma tradução, como o Renascimento foi uma tradução. Goethe disse que a verdade já existe, a única coisa que precisamos fazer é repeti-la e traduzi-la. Daí minha rejeição aos acadêmicos. Não estão fazendo seu trabalho. Por outro lado, a cada dia admiro mais Andrei Tarkovski, porque com seus filmes conseguiu traduzir valores fundamentais em histórias. A noção de sacrifício, que pertence ao mundo da religião, ele a traduziu em um relato claro. Todos os meus heróis são tradutores. Empreenderam a tarefa de transmitir ou traduzir valores, as coisas que na verdade importam, para nos dar uma visão do mundo que protegesse a noção do que é uma civilização democrática. Se não somos capazes de fazer isto, estamos perdidos.

Qual a sua opinião da reação que Trump gerou dentro dos Estados Unidos?

Não podemos aceitar o que ocorre. Trump não venceu no voto popular. Muita gente compreende o que ocorre. Hillary disse que agora faz parte da “resistência”, algo que me causa certo mal-estar, pois do lado do mundo do qual venho as pessoas que pertenciam à resistência arriscaram sua vida para lutar contra os nazistas. Neste momento, não há um só estadunidense cuja vida corra perigo, de modo que seria melhor dizer que se é parte da oposição. Recortemos este fato: aquilo que é possível nos Estados Unidos resulta impossível na Rússia. Este tipo de oposição faria com que, na Rússia ou na China, você fosse executado de imediato. Ainda há certa liberdade na Hungria, embora a cada dia se torna mais difícil pertencer à oposição. Se Trump consegue aumentar sua base de seguidores, segue propagando notícias falsas e continua com sua política para com os meios de comunicação, para que as pessoas prefiram abrir seu Facebook ao invés de ler o Washington Post, estaremos em uma situação vulnerável. No pior dos casos, será reeleito por um segundo período. Não é impossível.

Seu livro é uma defesa dos valores espirituais absolutos. Não é uma aspiração muito elevada neste momento de emergência?
É uma aspiração elevada procurar o amor de sua vida? É uma aspiração muito elevada necessitar da amizade? É uma aspiração muito elevada sentir a necessidade de perseguir nossas paixões, de fazer algo que tenha algum significado? As coisas das quais falo não são moralistas, abstratas ou poéticas, são as coisas que estão no centro do ser humano. É uma aspiração muito elevada confiar em seus amigos e não se sentir traído? Estas são as coisas das quais falo. Tudo se tornou difícil e complicado porque o ser humano não só aspira, como também sente medo e frustração. Na realidade, falo de coisas muito básicas.

Nota da CNBB sobre o trabalho escravo

Nota da CNBB sobre o trabalho escravo

“O Espírito do Senhor me ungiu para dar liberdade aos oprimidos” (cf. Lc 4, 18-19)

Reunido em Brasília-DF, nos dias 24 a 26 de outubro de 2017, o Conselho Permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB manifesta seu veemente repúdio à Portaria 1129 do Ministério do Trabalho, publicada no Diário Oficial da União de 16/10/2017. Tal iniciativa elimina proteções legais contra o trabalho escravo arduamente conquistadas, restringindo-o apenas ao trabalho forçado com o cerceamento da liberdade de ir e vir. Permite, além disso a jornada exaustiva e condições degradantes, prejudicando assim a fiscalização, autuação, penalização e erradicação da escravidão por parte do Estado brasileiro.

Como nos recorda o Papa Francisco, “hoje, na sequência de uma evolução positiva da consciência da humanidade, a escravatura – delito de lesa-humanidade – foi formalmente abolida no mundo. O direito de cada pessoa não ser mantida em estado de escravidão ou servidão foi reconhecido, no direito internacional, como norma inderrogável” (Papa Francisco, Dia Mundial da Paz, 1º de janeiro de 2015). Infelizmente, esse flagelo continua sendo uma realidade inserida no tecido social. O trabalho escravo é um drama e não podemos fechar os olhos diante dessa realidade.

A desumana Portaria é um retrocesso que, na prática, faz fechar os olhos dos órgãos competentes do Governo Federal que têm a função de coibir e fiscalizar esse crime contra a humanidade e insere-se na perversa lógica financista que tem determinado os rumos do nosso país. Essa lógica desconsidera que “o dinheiro é para servir e não para governar” (Evangelii Gaudium, 58). O trabalho escravo é, hoje, uma moeda corrente que coloca o capital acima da pessoa humana, buscando o lucro sem limite (cf. Papa Francisco, Mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, 2014).

Nosso País no qual, por séculos, vigorou a chaga da escravidão de modo legalizado, tem o dever de repudiar qualquer retrocesso ou ameaça à dignidade e liberdade da pessoa humana. Reconhecendo a importância da decisão liminar no Supremo Tribunal Federal que suspende essa Portaria da Escravidão e somando-nos a inúmeras reações nacionais e internacionais, conclamamos a sociedade a dizer mais uma vez um não ao trabalho escravo.

Confiamos a Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, a proteção de seus filhos e filhas, particularmente os mais pobres.

Brasília, 26 de outubro de 2017
Cardeal Sergio da Rocha/ Presidente
Dom Murilo S. Krieger / Vice-Presidente
Dom Leonardo U. Steiner / Secretário-Geral

Recherches sur Diderot et sur l'Encyclopédie

Comptes-rendus

Gerhardt Stenger, Diderot, Le combattant de la liberté, Paris, Perrin, 2013, 790 p., ISBN 978-2-262-03633-1

Odile Richard-Pauchet
p. 302-305

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Texte intégral

1Nous avions déjà souligné dans ces colonnes (cf. RDE, oct 2006, p. 296-300, à propos de l’ouvrage du regretté Raymond Trousson, Denis Diderot, ou le vrai Prométhée, Tallandier, 2005), le dilemme certain qui se pose au chercheur désireux de biographer Diderot. S’agissant d’un modèle aussi protéiforme, comédien, insaisissable que cet auteur rompu aux pièges et aux séductions de l’autoreprésentation, quel point de vue choisir qui ne soit ni sévère ni complaisant, enclin ni à la mythification ni à la condamnation, ni à la déformation ? Quelle organisation donner à cette anamorphose intellectuelle qui lui tint lieu de vie ? L’autre question, cela va sans dire, concerne l’énorme masse documentaire à brasser, dans des domaines multiples et désormais souvent séparés, comme la littérature, la philosophie et la science, que si peu d’entre nous maîtrisons dans toute leur étendue. Certes, l’on peut encore faire confiance, pour se laisser guider, à l’ouvrage princeps, le « Wilson », base de travail exhaustive et fidèle. Mais il s’agissait ici de mettre toutes ses connaissances à jour en dépouillant des bibliographies récentes, de manière à donner des éclairages nouveaux aux faits et aux œuvres relues, récemment étudiées ou défrichées, tant il est vrai que le champ diderotien offre - et c’est certes un bonheur - l’impression d’une chantier neuf, ou en perpétuelle réouverture. Il semble que Gerhardt Stenger ait largement évité ces deux écueils : trouver un ton juste et affable, cerner au plus près le bonhomme Diderot, sans pose, sans caricature, avec humanité. S’informer d’autre part, au plus près des découvertes récentes, tout en injectant dans l’ouvrage quantité d’analyses personnelles et pénétrantes de chacune des œuvres du philosophe. Cette méthode de la « biographie intellectuelle » permet au lecteur de suivre une chronologie éclairante et fidèle, ponctuées de pauses philosophiques étudiant, au sein du parcours du philosophe lui-même, ses ouvrages majeurs en profondeur. Ceux qui souffriront de la longueur de ces pauses intellectuelles pourront passer leur chemin, et rallier l’étape suivante. Marquées d’un didactisme que nous avons pour notre part fort apprécié, mais que d’aucuns trouveront appuyé (l’ouvrage est parfaitement adapté à un lectorat d’étudiants, presque un manuel en diderotie), ces analyses pourront ça et là paraître redondantes. Elles n’en sont que plus efficaces, écrites dans un langage clair, parfaitement maîtrisé, rejetant soigneusement le jargon. Gerhardt Stenger se serait-il inspiré du langage des femmes, dont selon Diderot lui-même, le « ramage simple, facile, uni, ôtera[it] aux idées l’air abstrait, hérissé et pédantesque que notre savoir scolastique leur donne plus ou moins » (à Sophie Volland, 9 septembre 1762)... Le parti-pris intellectuel de la biographie repose sur l’étude d’un itinéraire quadri-partite : Naissance d’un philosophe ; L’Encyclopédiste ; Le Bon, le Vrai et le Beau ; enfin Le Bourgeois révolutionnaire. Elle décrit la formation intellectuelle d’un philosophe marqué par des choix de vie tranchés exprimant la rébellion du sujet (études, bohème parisienne, premiers essais littéraires), mais aussi par les coups forts du destin (brouille avec le père, mariage atypique, décès des enfants ; rencontres décisives, philosophiques et amoureuses). Elle fait ensuite le choix d’un parcours essentiellement informé par l’encyclopédisme comme vocation assumée, intellectuelle, idéologique et politique. Puis elle examine la façon dont l’œuvre s’infléchit esthétiquement, montrant avec beaucoup de sub- tilité comment les Salons forment l’exutoire d’une carrière encyclopédique par trop monolithique, d’une œuvre parfois insatisfaisante (le théâtre), et peut-être d’une affectivité bridée : les Salons jaillissent, surtout entre 1765 et 1767, là où les lettres à Sophie se tarissent. Telle une variable d’ajustement de la création littéraire, ils se tairont ou se tariront à leur tour quand l’œuvre personnelle aura pris son essor : « la pauvreté des derniers Salons va de pair avec l’explosion créatrice dans le domaine de la philosophie et de la fiction romanesque » (p. 694), avec Jacques le Fataliste notamment. La dernière partie de l’ouvrage examine précisément ce jaillissement tardif, lorsque le philosophe aux yeux enfin dessillés par la réalité, peut- être celle entrevue lord du voyage à Bourbonne, s’affirme désormais, tel Voltaire devant l’affaire Calas, comme un homme d’action, un penseur engagé. Un ethos puis une véritable praxis se dégageront des derniers ouvrages ou collaborations : Le Rêve de d’Alembert, Dialogues sur le commerce des blés, Histoire des deux Indes, ainsi que les textes écrits pour Catherine II, sont autant de tentatives pour répondre à des questions traitant de l’humanité et de ses choix vitaux. Certains resteront marqués au coin de la méditation, de la rêverie intellectuelle ou de l’ironie (Supplément au voyage de Bougainville, Le Neveu de Rameau, Entretien d’un philosophe avec la Maréchale de***), mais la fermentation qu’ils engendrent est de nature à ne plus laisser son époque - ou sa postérité - en repos. Et cela, même si l’opus tardif (l’Essai sur la vie de Sénèque et ses métamorphoses) indique assez clairement la lucidité du philosophe à l’égard de sa capacité à infléchir de façon décisive le cours du réel. Cette quadri-partition, lisible et convaincante au regard du découpage plus flou du Wilson (Les Années d’apprentissage/L’Appel à la postérité), et de la fragmentation extrême du Trousson (23 chapitres non regroupés), apporte corps et cohérence à une vie intellectuelle dont la principale affaire fut peut-être de s’en trouver, mais dont l’extrême intel- ligence fut d’y renoncer. Seul peut-être l’opus déjà paru de Pierre Chartier (Vies de Diderot, Paris, Hermann, 2012, 3 volumes), d’une dimension double, certes, sera à même d’épouser au plus près cet itinéraire de la pensée dans toute sa vérité et son organicité - et partant, dans sa dimension aléatoire, erratique, voire dans sa fantaisie calculée. Mais sa valeur idéologique et politique n’en apparaît aussi que mieux ici, se découpant en ombres chinoises bien visibles sur les pans de murs de cette « exposition vivante » que nous propose Gerhardt Stenger. On regrettera seulement - car il faut bien valider d’un regret la colossale entreprise remise ici sur le métier, à l’occasion de l’année Diderot ¢ l’absence de références devenues canoniques : celle à Jean Starobinski (d’une manière générale, pour tout ce qui relève du langage chez Diderot) ; à Pierre Chartier (théories du persiflage et de la mystification) ; à Pierre Frantz, sur le Théâtre, et à Marie Leca-Tsiomis, trop peu citée en ce qui concerne le chantier encyclopédique. Quelques points litigieux mais véniels : p. 19 et 490, le nombre d’enfants nés au foyer Diderot varie de 4 à 5 (ils seront en réalité plus nombreux) ; le père de Diderot est déclaré « odieux » tel qu’il apparaît dans l’Entretien un père avec ses enfants, texte où le personnage est marqué d’une intelligence certes ambiguë mais attachante (p. 19). Sur le rôle exact de Diderot, en prison, conseillant Rousseau sur le parti à prendre dans la rédaction de son futur Discours sur les sciences et les arts (p. 125), la prudence est certes de mise, mais c’est aussi, on le regrettera, le parti de l’auteur. Le parallèle effectué entre le baron d’Holbach et le personnage de Wolmar, dans La Nouvelle Héloïse, est peu convaincant (p. 145). De même l’idée (p. 180), peu vraisemblable que Sophie ait pu lire, grâce à Diderot, Richardson en anglais, quand lui-même l’a découvert et apprécié dans la traduction française du Genevois Monod (voir l’article de Shelley Charles, RDE no45, 2010). Enfin l’on aura noté l’étonnant « manège à trois », proposé à Diderot par Mme de Maux, plus proche peut-être du ménage à trois, mais il est vrai fort évocateur et poétique (p. 497)... Cette liste un peu mesquine ne doit pas occulter de véritables réussites littéraires comme les pages très fermes consacrées aux Salons, ou plus loin, personnelles et fort originales, celles qui étudient le Neveu de Rameau (p. 578-582). On sera aussi particulièrement reconnaissant à l’auteur pour ses analyses philosophiques d’œuvres moins connues, sur lesquelles il ouvre de véritables perspectives : ainsi la Réfutation d’Helvétius, (p. 589- 606), suivie des « Observations sur Hemsterhuis », publiées en regard de la Lettre sur l’Homme et ses rapports (du même Hemsterhuis) par Georges May (p. 607-614, chapitre « Le Matérialisme en question »). D’une façon générale, et concernant la conception même de l’œuvre diderotienne, l’idée, reprise à Jacques Proust, est suivie avec passion, qu’ « En mettant en évidence la désagrégation du langage philosophique traditionnel, Diderot a donné accès à un nouveau type de connaissance, à une forme de logique qui comprend le décousu, le rire et le rêve » (p. 115). Ou pour le dire plus simplement avec Éric-Emmanuel Schmitt : « si Diderot écrit autrement la philosophie, c’est qu’il écrit une autre philosophie ».

Canalhas e canalhinhas de esquerda ou direita adoram usar a internet, sobretudo nas redes "sociais" para destruir quem não concorda com seus donos, líderes ou seja lá qual for o nome dado aos que mandam na consciência militante. No caso do privilégio de foro, é ridículo notar como a esquerda e a direita se calaram sobre ele durante tantos anos. Até hoje o assunto é evitado em certas rodas "empenhadas"daquelas ideologias. Claro, o instituto ajudava seus representantes no Congresso, nos governos estaduais, etc a escapar incólumes das safadezas em nome das "causas". Quando, hoje, idiotas me chamam de "conservador"e "golpista", vale recordar que em casos similares fui dos poucos a assumirem uma posição....de esquerda, ou ética se quiserem. Desculpem o desabafo, mas a má fé chegou a um ponto insuportável. Querem saber? Eles recebem o que merecem dos que mandam nos dinheiros do Brasil, em detrimento do povo. Roberto Romano


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São Paulo, domingo, 09 de abril de 2000


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Laterones!

Foro privilegiado é negócio oligárquico ou atributo de monarquias aristocráticas



ROBERTO ROMANO

Presenciamos tanta corrupção política no Brasil que não temos tempo para refletir sobre o supremo furto, cometido no cotidiano do Parlamento. Refiro-me ao roubo dos valores maiores que fundamentam a vida pública democrática. Sem correta ética social, afastamo-nos da segurança coletiva. E, sem esta, não tem sentido elaborar leis para todos os cidadãos.
Os atos cínicos que se tornaram frequentes em nossos Legislativos, Executivos, Judiciários têm como base o sequestro da igualdade cidadã. Quando a discriminação de pessoas e de cargos é instituída numa república democrática, essa última deixa de ser digna até mesmo do próprio nome.
Espinosa, filósofo admirador de Maquiavel, forneceu as bases modernas da vida democrática. Naquele regime, "nenhum indivíduo transfere seu direito natural para um outro indivíduo (em proveito do qual, desde então, ele aceitaria não mais ser consultado). Ele o transfere para o todo da sociedade em que se integra; os indivíduos permanecem, deste modo, todos iguais, como antes, no estado de natureza" ("Tratado Teológico Político"). Desde então, as lutas dos povos livres definiram, enquanto conquista inalienável, o direito à igualdade.
O Brasil, após 500 anos, dificilmente pode ser visto como uma república democrática. Aqui as oligarquias antigas e recentes assaltam o poder público, sugam impostos e riquezas. Acostumadas a se nutrir do esforço alheio, elas agarram privilégios, vilipendiam os preceitos da justiça e das regras cidadãs. Alguns exemplos bastam: em data recente, parlamentares instituíram no Congresso o nepotismo oficial, integrantes do Executivo quebram regras e leis, sem vislumbre de punição, magistrados substituem a toga pelo banco dos réus e são apoiados de modo corporativo.
O último atentado ao nosso direito público está sendo discutido no Parlamento. Talvez seja ele o roubo pior e mais profundo, na incessante busca de se abolir a igualdade. Trata-se do "foro privilegiado" dos mandatários, algo que vai além das prerrogativas inerentes aos cargos. No efetivo, temos aí a proposta de um salvo-conduto para os administradores ímprobos. São tantos corruptos no país inteiro que o STF, mesmo multiplicado por mil, não será bastante para os julgar com rigor.
No pretérito, diz o padre Vieira, "os que assistiam ao lado dos príncipes chamavam-se "laterones". E depois... chamavam-se "latrones'". A licença política proposta no Parlamento amplia o guarda-chuva protetor da exceção: dos príncipes aos parlamentares, como não poderia deixar de ser numa falsa república. Políticos afoitos dizem não permitir que um juiz togado julgue "alguém que recebeu milhões de votos". Isso sacraliza a tirania. Usando esse critério, Hitler não foi julgado. O mesmo diga-se de Augusto Pinochet e de Fernando Collor.
Roubar dinheiro público é hediondo. Pior é subtrair direitos coletivos, atribuindo-os apenas a uma casta que parasita os governantes. A tentativa de roubo dos nossos direitos, a busca de privilégios corruptos, deve ser barrada por nós. Enquanto isso, é bom espalhar o "Sermão do Bom Ladrão", do padre Antônio Vieira. Larápios devem receber a punição. Mas, adianta o padre, "haverá, porém, algum político tão especulativo que a queira limitar a certo gênero de sujeitos, e que funde as exceções...". Os desonestos dizem que em pessoas "de inferior condição será bem que se executem estes e semelhantes rigores, e não em outras de diferente suposição".
Foro privilegiado é negócio oligárquico ou atributo de monarquias aristocráticas. De qualquer modo, é tirania em estado puro. Mandemos aos congressistas, por telegrama, fax, e-mail ou carta simples, a frase de Vieira: "Em matéria de furtar não há exceção de pessoas, e quem se abateu a tais vilezas perdeu todos os foros".


Roberto Romano, 53, filósofo, é professor de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Sinesp.


TemerLivreO SINESP manifestou-se pela investigação de todas as denúncias que envolvam a vida pública, política ou pessoal dos mandatários do país quando, no dia 02 de agosto de 2017, a Câmara Federal rejeitou a possibilidade de investigação de denúncias contra o presidente encaminhadas pela Procuradoria Geral da União.

Agora, na segunda rejeição do mesmo Congresso nacional, no dia 25 de outubro, de pedido de abertura de investigação enviado pelo Suprem Tribunal Federal, o Sindicato volta a se manifestar com a indignação e a repulsa que a situação merece e que está se tornando dominante na população brasileira.

Nos dois momentos foram vários os motivos alegados pelos Deputados, muitos dos quais também envolvidos em suspeitas de corrupção e alvos de processos.

Sem entrar no mérito dos argumentos dos nobres parlamenares, para o SINESP a ética, a transparência nas relações entre corporações públicas e empresariais e o poder público estão acima de qualquer motivação para enterrar procedimentos que seriam, antes de tudo, esclarecedores e fundamentais para fortalecer o ambiente democrático.

No 21º Congresso do SINESP, realizado entre os dias 26 e 29 de setembro passados, foi aprovada pelos congressistas uma Moção de Repúdio “Contra Temer e seus aliados no Congresso Nacional que aprovaram a Reforma Trabalhista e a terceirização”, que não por acaso são os mesmos que votaram para livrar o presidente da investigação e de uma possível perda do mandato.

O SINESP, mais uma vez, manifesta-se pela investigação de todas as denúncias que envolvam  a vida pública, política ou pessoal de cidadãos brasileiros, sobretudo dos investidos de mandatos nos legislativos e executivos em todas as instâncias da federação, nos limites da Lei e da Constituição Federal e garantidos os direitos à plena defesa, com isenção e sem prejulgamento.


Sobre esse tema, veja dois textos esclarecedores publicados no Portal UOL e na Folha de São Paulo:

Rejeição da denúncia contra Temer ameaça democracia e mostra "força bruta do dinheiro", diz Roberto Romano

O professor de ética e filosofia Roberto Romano, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), vê como ameaça à própria democracia brasileira o resultado da votação na Câmara dos Deputados que arquivou a segunda denúncia contra o presidente Michel Temer (PMDB).
"O resultado mostra que efetivamente estamos nos últimos momentos do Estado Democrático de Direito", afirmou nesta quarta-feira (25) ao UOL.

Veja como votaram os deputados na segunda denúncia.

Para Romano, o arquivamento da primeira denúncia, em agosto, e o de agora mostram que "os operadores do Estado não estão mais em condições mínimas de seguir a liturgia dos cargos", como determina a Constituição.

O professor nota a prevalência, no resultado, do "jogo da força bruta do dinheiro", na "cooptação [compra]" do voto dos deputados federais pelo governo Temer. "Não vi tamanha desfaçatez nem no mensalão", comparou Romano, referindo-se ao escândalo da compra de apoio de congressistas em meados dos anos 2000, durante a Presidência de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Outro fator que demonstra a ameaça à democracia brasileira é a ausência de participação do eleitor na definição do destino político do país. "O cidadão está totalmente afastado [do nível decisório] e desconfiado dos operadores do Estado", aponta. "O resultado desta quarta-feira é uma volta a mais na descrença popular no sistema representativo [do Congresso]."

Para o professor, o momento se agrava devido à falta de partidos organizados de verdade e de lideranças políticas.

Ele vê o PMDB como uma facção que tomou o poder, o PSDB como um partido dividido e o PT dependendo única e exclusivamente de Lula, agora às voltas com problemas com a Justiça. 

“Governo das cotoveladas"

Quanto ao futuro de Temer, Romano diz que será o do "governo das cotoveladas". Um governo sem respaldo, sem respeito, em que prevalecerá o tamanho do cotovelo, a força bruta, do interlocutor.

"Se as crises antes eram anuais, semestrais, mensais, agora serão diárias. Temo pelo futuro, inclusive pela tradição de saídas desastrosas brasileiras para crises na história", opina, se referindo às Forças Armadas.


Veja a opinião de Clovis Rossi, colunista da Folha de SP

Temer fica, mas mais frágil como pessoa física e presidente

Michel Temer voltou duas vezes nesta quarta-feira (25): a pessoa física teve alta, depois de um episódio (necessariamente agudo) de caráter urológico; e o presidente da República teve alta da Câmara para voltar ao Palácio do Planalto com a certeza de que ganhou o "fica, Temer".
Mas tanto a pessoa física como o presidente voltam mais fracos.
Por pequeno que seja o problema urológico, sempre debilita uma pessoa, ainda mais quando ela tem 77 anos, como Temer, e está em tratamento clínico de um problema cardíaco.
No caso do presidente, a debilidade havia sido medida pelo Datafolha antes da votação da segunda denúncia contra Temer: ele começara o mandato (o definitivo) com 14% de ótimo/bom, o que já era insignificante. Perdeu dois terços e ficou no mais recente levantamento com apenas 5%.
Era inevitável que os deputados que deveriam decidir sua sorte tivessem presente esse declínio na popularidade presidencial, tanto que o governo teve que promover uma autêntica xepa na feira fisiológica que marcou todo o processo.
Xepa para assegurar não a rejeição da denúncia, o que era inevitável, dada a maioria que o governo detém na Câmara, mas, simplesmente, para que os deputados dessem o quórum para que a votação fosse iniciada.
Posto de outra forma: foram necessárias cenas explícitas de fisiologia para que os deputados simplesmente cumprissem o elementar dever de trabalhar e, no caso dos governistas, de votar a favor do governo.
Não estava nem nunca esteve na pauta a análise jurídica da denúncia contra Temer. O que valeu, tanto na primeira como na segunda votação, foi o interesse dos parlamentares em manter Temer na Presidência, independentemente das acusações contra ele, pela simples e boa razão de que o presidente se tornou refém do Congresso, exatamente pela sua fragilidade.
Fragilidade, de resto, evidenciada pela redução no número de votos pró-Temer, na comparação com a votação da primeira denúncia: 233 agora x 262 antes.
A questão seguinte relevante é esta: Temer tem condições para anabolizar o seu governo? Ou, ao contrário, ficará condicionado por uma espécie de parlamentarismo branco, que, de certa forma, reproduziria o que houve no governo José Sarney (1985-90)?
Sarney, presidente acidental (pela morte do titular, Tancredo Neves), dependia muito para governar da boa ou má vontade de Ulysses Guimarães, presidente da Câmara e do PMDB, então fortemente majoritário.
ULYSSES
Há, no entanto, uma diferença fundamental: Ulysses tinha uma dimensão política imensamente superior à de Rodrigo Maia, o atual presidente da Câmara, político menor, mas que começa a se insinuar como candidato a ser o homem forte da etapa final do presente governo.
A coalizão que conspirou para derrubar Dilma Rousseff e, por extensão, entronizar Temer não fulaniza a sua agenda liberal. Para os agentes de mercado -peças fortes da coalizão -, tanto faz quem vai conduzir a agenda. O importante é mantê-la, ainda que desidratada.
Para a grande maioria dos congressistas, que são a segunda perna da coalizão, a agenda torna-se aceitável sob duas condições: uma, a de que seu apetite fisiológico seja saciado; outra, a de que as reformas liberais não sejam tão impopulares que votar por elas os leve à não serem reeleitos.
Tais condições em tese inviabilizam reformas que tenham o vigor desejado pelos agentes de mercado.
Salvo surpresas, portanto, Temer salvou-se apenas para entrar na senda da mediocridade que marcou o final do período Sarney, ambos presidentes acidentais.

Jornal da Unicamp

NOTÍCIAS

A modernidade moldada pelo vazio

Giorgio Sica mostra, em O vazio e a beleza, a influência da arte nipônica sobre o Ocidente 

A tímida abertura do Japão ao Ocidente num processo de contato e lenta saída do estado de isolamento do país é relatado no livro O vazio e a beleza, de Giorgio Sica.
Os primeiros navios do comodoro norte-americano Matthew Perry atracaram na baía de Edo (atual Tóquio), Japão, em julho de 1853. Mas o contato inicial do país com os europeus no século XVI e as decorrentes obras missionárias antecipariam, naquele contexto, a proibição do cristianismo na ilha, o surgimento de uma burguesia mercantil e o aperfeiçoamento das artes, num esforço de liberdade contrário à censura xogunal.
Manifesta-se, então, no segundo contato, um duplo processo de influência cultural: no Oriente, o que Sica define como “um dilacerante processo de modernização” a partir da era Meiji. Na Europa, uma forte influência artístico-cultural, num fenômeno conhecido por “japonismo”. Do contato inicial do Ocidente com a arte nipônica – notadamente por meio de sua influência na pintura impressionista e pós-impressionista –, sucede também o contato com o haiku e tanka, métricas próprias à poesia japonesa.
De In the station of the metro, de Pound, passando pelas influências do teatro em Yeats, e relacionando o japonismo à poesia clássica japonesa, Sica propõe esse movimento como essencial para compreender a evolução da “sensibilidade estética” no contexto ocidental entre fins do século XIX e início do século XX. Van Gogh, Monet e Degas estão entre os artistas que iniciam a busca pelos processos de descoberta da arte nipônica no campo das artes figurativas.
Traçando os primeiros contatos com a língua e a escrita chinesas para enfim chegar à organização estatal centralizada e à propagação do budismo, a recuperação do papel exercido pela China no processo de formação da civilização japonesa é aqui fundamental. Com uma análise da influência da língua japonesa no processo de composição do haiku – por meio da polissemia, dos efeitos sugestivos e da variedade de trocadilhos próprias à língua, bem como sua ausência de gêneros, declinações e conjugações – Sica reconhece na poesia nipônica o que define como “respeito pelo ‘espaço reservado ao desconhecido’” (p. 27), isto é, a valorização de uma estética do “não dito” numa espécie de produção que sugere uma “polinterpretabilidade”. Numa análise comparativa da poesia japonesa com a poesia chinesa, Sica busca exprimir uma defesa conjunta da arte como expressão por ambos os mundos, ainda que as diferenças entre as duas culturas sejam significativas.
O autor associa a ideia do “não dito” ao conceito de páthos da arte grega – definido como detentor do impalpável e expresso também por este, o páthos assemelha-se à poesia japonesa –, o que se aproxima da perspicaz análise da arte do teatro de marionetes feita pelo dramaturgo japonês Chikamatsu, renomado autor de teatro bunraku.
Num minucioso trabalho de recuperação histórica, Giorgio Sica retoma uma das mais importantes antologias poéticas da história nipônica, o Kokin waka shu, em prefácio de Tsurayuki, em que esse exemplifica o nobre sentido da poesia e a identidade inerente entre poesia e vida expressa pelo povo do Sol Nascente. O autor introduz uma análise do surgimento do divino (o Kami) na poesia nipônica e da característica comunitária de sua produção (dos katauta aos renga). Sendo o poema o que o autor chamaria de “imprimir algo ao universo partilhado da linguagem”, é resultado de uma espécie de impessoalidade expressa nos autores anônimos de waka ou tanka e impermanência dos seres e das coisas identificada à tradição budista.
O vazio e a beleza também retoma os principais nomes dedicados ao conhecimento da arte nipônica e seus princípios por meio da recuperação de particularidades da poesia japonesa aos poetas ocidentais. Propondo uma análise do processo de ampliação do contato da cultura ocidental com a poesia nipônica e de sua recepção como um consequente alargamento da temática difundida pela poesia no ocidente, parte do livro é dedicada à análise do contexto de desenvolvimento do japonismo.
Inicialmente, o livro apresenta uma investigação do fenômeno do japonismo na Europa, respectivamente na França (que se inicia na Paris do século XIX) e Itália, e posteriormente nos Estados Unidos a partir de 1880. Em segunda parte, Sica apresenta análises detalhadas da influência da poesia japonesa na poesia ocidental. No universo anglo-saxão essa influência inclui Pound, Hulme e Wilde, tendo sido difundida no século XIX dentre outros pelo grupo “The Rhymers Club”, fundado por W. B. Yeats e Ernest Rhys. No século XX, e.e.cummings, em estreita relação com a pintura, interessa-se pelo imagismo num contexto de difusão de um Japão idealizado.
Também a poesia japonesa na Itália merece longa análise, seguida pelo mundo Francês, numa sequência minuciosa que analisa elementos próprios a diversos poetas – passando por Mallarmé (a partir de uma “poética do mundo flutuante que inclui Goncourt e Zola”), Paul Éluard, Paul Claudel e Rilke – sob a ampla influência do haiku japonês.
O que Sica apresenta como “mundo Japão” define novos horizontes para o cenário artístico-literário europeu e americano. O autor nos guia pelo processo de formação de uma nova consciência estética ocidental, do começo da difusão da influência japonesa por meio da arte na França à consolidação do japonismo como influência decisiva no ocidente.
A disseminação cultural japonesa no Ocidente foi gradual, inicialmente ganhando popularidade por toda a Europa com o status de exótica por possuir uma perspectiva artística totalmente diferente da conhecida na época. No cerne da arte nipônica exprimia-se uma ligação indissolúvel entre o belo e o vazio, Giorgio Sica nos revela o mistério e a beleza de uma literatura constituída por meio dessa língua que valoriza a polinterpretabilidade. O livro sintetiza o impacto dessa nova consciência estética no Ocidente e da arte intimamente ligada à natureza. Não é de se surpreender que o interesse e fascínio de um vasto número de personalidades e intelectuais tenham sido despertados. 
 

Foto: ReproduçãoServiço
Título: O vazio e a beleza - De Van Gogh a Rilke: Como o Ocidente encontrou o Japão
Autor: Giorgio Sica
Editora Unicamp | Edição:
Ano: 2017
Páginas: 280
Preço: R$ 60,00

Link do livro