Flores

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quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Com o "fascismo", "socialismo", "liberalismo" e tantos outros "ismos", temos uma carga de ambiguidade excessiva. Cada um imagina ter o "ismo" bem conhecido, o dos demais é vazio. Nada que a erística não tenha ensaiado ao longo dos milênios. "Conservadorismo" é um daqueles termos camaleão que tomam cores inusitadas e desnorteam quem sobre eles parola. O trecho abaixo é um pequeno comentário às Leis de Platão. Nele se estabelece um conservadorismo consequente, que serviu para todos os modelos de conservação apresentados desde o filósofo até os nossos dias. Quem não conhece o trecho platônico, ignora o que de fato é conservadorismo. É algo bem mais elevado do que a mera demagogia que hoje se espraia nas praças e nos palácios. RR


 Trecho do artigo "Sobre o Segredo e o Silêncio", de Roberto Romano, REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 134-146, dezembro/fevereiro 2010-2011.


A justa medida, diz Platão, é essencial na ordem política e nas relações do corpo (alimentos) ou técnicas (nos navios, não se pode usar mais velas do que o preciso). Na alma não podem ser usufruídos direitos excessivos.Sem justa medida tudo se inverte.Ali a abundância de carnes que leva à doença, aqui a ilimitação (hybris) que gera a injustiça (adikia). A alma dos jovens não suporta o peso do poder, logo é infectada da mais grave doença, a desrazão (anóia). Contra tais excessos cabe ao legislador prudente, graças à justa medida, tomar precauções. E chega o instante dos pesos e contrapesos do poder. Em Esparta, em vez do rei único, existia uma dupla de reis reduzindo o poder à justa medida. Além disso, o voto de 28 anciãos que possuem, nos assuntos mais graves, poder igual ao dos reis. Há um terceiro salvador com o poder dos Eforos, algo que se aproxima do sorteio. O governo de Esparta combina poderes, o que leva à salvação coletiva. Juramentos não controlam a alma de um jovem candidato à tirania. Importa limitar a medida dos poderes, fundir num só os três poderes.

No mundo conhecido, adianta Platão, existe de um lado o poder autocrático dos persas e o temperado de Esparta. É preciso sempre o tempero, o acorde correto. Tal teoria do poder tem como pressuposto uma visão do universo e da sociedade como harmonia. Na ordem política deve ser mantida a ordem antiga sob o domínio das antigas leis. Nela, o povo não tinha soberania nos assuntos mas era escravo voluntário das leis. Quais leis seriam as referidas? As relativas à música. Na época antiga a música era dividida segundo espécies e formas próprias. As preces aos deuses eram cantos, hinos. Depois havia uma espécie de canto segundo espécies e formas próprias. As preces aos deuses eram cantos, hinos. Depois havia uma espécie de canto oposto: lamentos chamados “trenos”. Os peans eram uma espécie distinta, outra ligada ao nascimento de Dionisos seria o ditirambo, etc. Reguladas as coisas, não era permitido abusar de uma das formas, transpondo-a para outras. O poder de julgar sobre elas e julgar com conhecimento de causa e punir os transgressores não pertencia às vaias ou aplausos, mas era decidido por homens sábios que tudo ouviriam em silêncio e, com a varinha nas mãos, estabeleceriam a ordem e advertiriam crianças e professores. Esta a ordem aceita pelos cidadãos, sem que eles tivessem a audácia de recorrer à gritaria para opinar.

Os poetas foram os primeiros a corroer as leis da música. Eles são dotados para a poesia mas nada conhecem da Musa enquanto fonte de legitimidade e fé pública, misturam as formas e levam tudo a se confundir, pretendem mentirosamente, em sua desrazão involuntária, que na música não existe lugar para a retidão e que, além do prazer que se encontra no seu gozo, não existe meio correto de decisão, melhor ou pior. Eles inculcam na massa o hábito de infringir as leis e a audácia de se acreditar capaz de decidir. Resultado: antes, o público não falava no teatro (era ἄφωνος), depois, começou a falar como se entendesse o que é belo na música, ou não, surge então uma “teatrocracia” (θεατροκρατία) depravada que substitui o poder dos melhores juízes. Se apenas em música, e em música apenas, surgisse uma democracia composta por indivíduos de uma cultura liberal, não ocorreria algo tão desastroso. Mas na verdade é pela música que se iniciou, entre nós, com a crença na sabedoria de todo mundo para julgar, a atitude subversiva. Nenhum medo os retinha pois se acreditavam sábios, e essa ausência de medo gerou a impudência, audácia de não temer a opinião de quem vale mais do que nós. Eis a impudência detestável, efeito de uma liberdade cuja arrogância é levada ao excesso.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Encontro de Editoras Universitárias. Palestra de Roberto Romano sobre a crise do livro e o pedantismo

Quando se fala na crítica do pedantismo, o ponto cultural e política de referência é o Renascimento. Definidas as técnicas da impressão, editores e acadêmicos lançam a corrida ao livro, à fama, aos lucros. A passagem de manuscritos gregos e romanos ao prelo, seu trabalho de escrita na análise filológica e histórica, demandam imenso labor coletivo. Mas tudo é feito tendo em vista a venda dos volumes, seja aos potentados do poder, aos donos das finanças, aos proprietários das religiões, em especial a protestante com a Biblia. Gradativamente o livro se “democratiza” e atinge setores cada vez mais amplos, anunciando a nova era científica, humanística, estatal.

Entre os ávidos consumidores das letras surgem indivíduos que delas se nutrem mas, sem equilíbrio psicológico ou social, se empanturram. A figura do pedante é o elemento perene da ironia intelectual, do século 16 aos nossos dias. Ainda na Encyclopédie, Diderot afiança que o pedante é alguém “de uma presunção gárrula que fadiga os outros com o exibicionismo de seu saber em todo gênero, e pela afetação de estilo e maneiras”. Seriam os pedantes os culpados da má fama das letras, assim prejudicando a erudição correta.

O avanço técnico trazido pela imprensa foi um salto enorme em termos civilizatórios. Permitiu descobrir os pretéritos (do Ocidente, do Oriente) e o futuro, com invenções ou apropriações de saberes já existentes nas sociedades as mais diversas. As novas propostas de estudo cosmológico na física, nas matemáticas, na geografia, na medicina, na arte náutica, etc., mudaram a face do mundo humano e natural, nem sempre para a melhoria ética, como constataram escritores que seguiam Erasmo, um pouco mais tarde Pascal e outros.

A critica do pedantismo seguiu a primeira via citada, a do uso errado da erudição para exibicionismos que, não raro, traziam o ridículos aos seus autores. Tal é a via seguida por Montaigne. A outra, segue o caminho de Francis Bacon, amigo das técnicas, das máquinas e acérrimo adversário dos saberes livrescos.

Montaigne critica o pedantismo porque ele é um jeito de “mobiliar a cabeça com a ciência”. Mobiliar, sabemos, tem o sentido de repetir na mente procedimentos costumeiros, institucionais. A memória entra no aprendizado pedante. Nada que não tenha sido o ensino de Giordano Bruno, assumido pelo jesuíta Mateo Ricci, tal como relata Francis Yates. Mobiliar, alojar na própria cabeça fórmulas estabelecidas, o ponto define uma concepção espacializada do saber, o que dele extrai a sua ponta aguda, o entendimento, ou wit, “uma alma mais viva e desperta”diz Montaigne. O conhecimento pedante diminui o vigor intelectual, atenua a força do pensamento devido ao descanso no que foi forjado pelos escritores pretéritos. De tanto viver com o mundo passado, o pedante se torna estranho às existências presentes, tornando-se ridículo. Professores pedantes recebem salários por tornar a consciência dos alunos pesada de citações, piores. O aluno pedante recebe e faz circular certa moeda “inútil para qualquer uso”senão o exibicionismo acadêmico ou social.  Um livro na biblioteca ou na memória é algo externo ao intelecto, ao juízo próprio. Além disso, eles pode trazer a vaidade, a tolice de um saber vácuo. O essencial, adianta Montaigne numa sentença que será mantida por I. Kant, encontra-se no juízo. Quem dele não é assistido, dirá ainda Kant, é o perfeito idiota. O pedante não faz experiências, ele repete as alheias, sendo marcado pela opinião, a famosa doxa exorcizada nos diálogos platônicos.

Repetir ou inventar? A oposição, na qual Montaigne prefere o segundo termo, encontra em Francis Bacon uma outra via, que também valoriza o intelecto, mas o encaminha às novas formas técnicas do saber. Segundo Bacon, Aristóteles o ditador escolástico, adequava o mundo à sua lógica e não vice-versa. Donde a inanição do saber por ele representado. Assim, vem a invenção do Novo Organum, no qual se procura indicar o caminho da indução, ou seja, a saída da mente para o mundo externo. Bacon critica o perene onanismo dos intelectos votado ao saber pedante. Nele, os acadêmicos admiram o próprio espirito e dele não saem. Duas vias existem na ciência: a que vai da experiência aos axiomas muito gerais. A outra se eleva da experiência aos axiomas que se tornam gerais gradualmente. É preciso, para chegar ao saber, tornar a própria inteligência uma tabula rasa, da qual os preconceitos (os idola) seriam afastados pouco a pouco. Um espírito pode ser potente, mas se não passar pela experiência, seu exercício pouco ajudará a humanidade. Para desenhar um círculo perfeito é preciso virtuosismo sobre humano. Mas se usamos um  instrumento, como o compasso, todo ente humano pode efetivar o referido círculo. O método é o instrumento que, inventado em certa época, pode se aperfeiçoar, democratizando o saber, a sua comunicação.

Deixo o Renascimento e recordo um dos mais importantes etonólogos do século 20, André-Leroi Gourhan. No seu entender, “o técnico comporta-se frente à matéria, que ele ataca, em função de certos meios de atividade, do mesmo jeito que o ser vivo, no interior de seu meio”. Só há produção para o ente vivo, para a técnica, para as sociedades, sob constrangimento. A evolução transforma o constrangimento em tendência adquirida pela espécie. As faculdades do cérebro e das mãos, em milênios, se tornam tendências inconscientes, mas ativas nas sociedades.

O instrumento é conseqüência da mão. “O homem não é um resultado, ele é um produto, e mesmo seu produto, um ser que soube e pode acomodar sua contingência, aproveitar a si mesmo e ao meio”. A humanidade vive, desde época remota, no “meio técnico” cuja tendência é substituir o natural.
Nenhuma técnica existe isolada e toda sociedade é politécnica. O instrumento ou processo ausente num coletivo humano encontra-se em outro, premido à sua invenção pelos desafios naturais. São fatos diferentes “ter” um instrumento e “fixar” o mesmo instrumento. Só na segunda via o objeto é “digerido” pelo meio, “integrado ao seu capital, porque é harmônico à politécnica preexistente ao grupo.” (Guérin). Entre a vida e a morte, o instrumento técnico possibilita uma tripla sequência comportamental (agressão, aquisição, alimentação), de preensão (lábio-dental, digito-palmar, interdigital e projeção), de percussão (dentária, manual, unguear).  Para quem se apresta a olhar o ente humano com as lentes da etnologia, portanto, nada surpreende quando se trata de perceber os acréscimos trazidos ao corpo e à mente pelas próteses avançadas de nossos dias. Se nós mesmos somos o resultado técnico de nossa atividade corporal, quando novos instrumentos auxiliam a aumentar nossa força e poder sobre o universo e sobre a sociedade, tal fenômeno inscreve-se numa continuidade milenar, durante a qual produzimos o que entendemos como homo sapiens.
O que ocorreu, e me aventuro a parafrasear Gourhan, com o pedantismo? Muitos conseguiram “ter” o novo instrumento, o livro impresso, mas poucos o conseguiram “fixar”, digerir. O número dos que usam livros e pouco fixam tendências profundas em matéria científica, técnica, humanística se mantêm constante. A voga de edições de divulgação ou aparato exibicionista de ciência cede o passo aos escritos de auto-ajuda, romances levemente pornográficos, biografias, etc. Em 2013, na Europa, os números eram aproximadamente os seguintes, em termos editoriais: Inglaterra 184000, Alemanha 93.600, França 66.530, Espanha 76430, Itália 61100, para os mais importantes mercados. Os elementos são fornecidos por Jakub Marian. Outro colaborador de site especializado marca: em 2013 na França os campeões de vendagem são Asterix, algo previsível, e três livros contendo os 50 matizes de cinza, 50 mais claras, 50 mais sombrias. 25 % dos livros vendidos eram romances, 21% de juventude, 13% de turismo, 8% escolares, 6% quadrinhos, 6% de aperfeiçoamento docente.
As edições eletrônicas, em 2014 na França, cerca de 8, 300 milhões de livros foram “baixados”. Havia 1 milhão de compradores de livros contra 26 milhões de livros impressos, Cerca de ¾ dos compradores de livros eletrônicos, também comprarm livros físicos. Mas o livro eletrônico representa apenas 1/6 dos negócios totais do livro, e 2/4 dos volumes de venda.