Flores

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sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Dada a desconfiança que impera em nossas formas sociais, uma reflexão sobre o problema. E sobre as consequências, inclusive econômicas e políticas, da ausência de fé pública. Roberto Romano


A ética e a confiança nas trocas humanas, sociais, comerciais, políticas....
Roberto Romano


Um grande pensador, o prêmio Nobel Elias Canetti, no monumento sobre ética e política intitulado Massa e Poder, analisa a mão humana, fonte de aperfeiçoamento que nos produziu pelo trabalho. As mãos decidem a produção para a vida e para a morte na indústria, no comércio, na guerra. Canetti captura a essência dos atos técnicos e da nossa origem genérica. A mão teria sido produzida pela nossa estadia nas árvores, quando estávamos longe da plenitude humana. Sua primeira marca de origem é a separação do polegar. A estrutura vigorosa daquele dedo, o maior espaço entre ele e os demais permitem o uso daquilo que, antes, era “apenas garra para segurar os galhos”. As mãos, com tal ajuda, permitem aos macacos o deslocamento nas árvores, em todas as direções.

 Detalhe  relevante, pensa Canetti: as mãos, assim liberadas, adquirem novo uso. As duas mãos podem fazer a mesma coisa num só momento. Enquanto uma busca alcançar o galho seguinte, a outra segura o anterior. Esta simultaneidade do tempo tudo modifica no vínculo do animal com os altos vegetais. Antes, um ato vinha depois do outro. Agora, o sincronismo permite mudar o movimento no espaço e no tempo. Ocorre maior rapidez sincronizada nos atos. A mão que segura não pode soltar o corpo. Ela adquire tenacidade inédita, mas precisa soltar o corpo rapidamente, seguindo a velocidade da outra mão, a que agarra o galho. “Portanto, é o soltar com a rapidez de um relâmpago a nova aptidão que se agrega à mão; antes a presa nunca era solta, a não ser sob coerção ex-trema e de forma pouco habitual. Assim, pegar e soltar se sucedem, e conferem ao macaco a leveza que tanto admiramos nele.” Os humanos conservaram essa propriedade das mãos. Ela possibilita que uma faça sempre o jogo da outra. E nesta faina manipulativa surge, pensa Canetti, o comércio. Nele, enquanto a mão segura um objeto, a outra é estendida, cheia de desejo, rumo a ele. “A alegria difundida e profunda que o homem encontra no comércio em parte pode ser explicada porque perpetua configurações de movimento sob a forma de atividade psíquica. Em nada o homem ainda está tão próximo do macaco como no comércio.”

Mas voltemos, diz o pensador, a um instante prévio na gênese do ser humano. Porque as mãos puderam aprender a agir ao mesmo tempo, em sincronismo, vencendo as primeiras barreiras da temporalidade diacrônica? “Nos galhos das árvores a mão aprendeu um modo de segurar que já não tinha mais a finalidade da alimentação imediata. O caminho curto e monótono da mão para a boca foi interrompido desta maneira. Quando o galho se quebrou na mão, nasceu o porrete, com o qual se consegue criar distância. Assim como a postura ereta jamais perdeu sua marca patética, da mesma forma o porrete, com todas as suas modificações, jamais perdeu sua função primária: como vara mágica e como cetro, ele se manteve como atributo de duas importantes formas de poder.” Essas teses de Canetti são ilustradas por um dos mais belos filmes já produzidos, verdadeiro poema trágico sobre as técnicas e os saberes humanos. Refiro-me a 2001, uma Odisseia no Espaço. Nele, se atenuarmos o evolucionismo, percebemos uma rigorosa análise sobre a invenção do porrete, a sua passagem para níveis sofisticados de instrumentalização, a sua permanência enquanto meio, ao mesmo tempo de vida e morte. Macacos reunidos exalam medo. Outro grupo de símios se aproxima. Começa a luta corpo a corpo. Súbito, um indivíduo agarra certo osso (não um galho, como em Canetti) e o bate sobre o corpo macio de um outro. E o mata. O duro osso, na sequência fílmica, é jogado para o alto e surge uma nave cósmica, cuja forma é a de um fino e elegante porrete. O foco passa ao interior do meio de transporte e agora uma caneta, finíssimo porrete, flutua e depois é recolhida por determinada aeromoça. A sombra da guerra vai do início ao final da película. Na cena derradeira, o quarto barroco imaculadamente branco onde alguém come e bebe, uma taça de cristal se quebra. A pessoa morre. A frágil vida humana, do embrião às mais artificiais formas de moradia, é simultânea à morte. Todos os instrumentos gerados ao longo da carreira diacrônica buscam afastar o nada e conservar o ser.

Na cultura barroca, sabemos, a morte se apresenta em anamorfose, nas pinturas da vida. Como numa fábula, não mais das mil e uma noites, mas de 2001 anos, tudo fazemos para adiar a diluição de nossa espécie. Mais do que nunca adquire verdade o enunciado de Spinoza: “o esforço para conservar a si mesmo é o único e primeiro fundamento da virtude” (Ética, parte 4, proposição 22, corolário). Canetti indica que a grandeza das mãos se encontra na sua paciência. “Os processos tranquilos e compassados da mão criaram o mundo em que queríamos viver. O oleiro, cujas mãos sabem modelar formas de argila, aparece como o Criador já no início da Bíblia”. Não acompanho aqui, por falta de espaço, o caminho inteiro de Canetti na gênese do ser humano. Ele mostra que o nexo entre a mão e a palavra se evidencia na mímica manual. O filósofo termina o exame do tema ao recordar a inocência dos atos digitais, a sua facilidade para nós. Esta conivência é fonte de nossos progressos técnicos. Mas ao mesmo tempo ela permite um descuido com os frutos daquelas mesmas progressões. A mão ágil não opera de imediato tendo em vista matar ou pegar. Ela se transformou em nossos dias num instrumento puramente mecânico e os seus inventos têm esta marca. Por tal motivo ela é perigosa, “o que ela provoca aparentemente diz res-peito apenas às mãos, à sua agilidade e capacidade de realização, à sua inócua utilidade. Em qualquer momento em que esta mania mecânica destrutiva das mãos, transformada num complexo sistema técnico, se associa com o intento de matar, ela fornece a parte automática, irreflexiva, o processo resultante, o vazio e o que existe de especialmente inquietante para nós neste processo; uma vez que ninguém quis que isto acontecesse, tudo ocor-reu como que por si mesmo”. As considerações extremas do pensador desalentam: “os múltiplos ramos deste impulso de destruição mecânica vinculam-se à evolução da tecnologia. Apesar de o homem ter aprendido a dominar o duro com o duro, a mão continua sendo para ele a última instância de tudo isso. A vida independente da mão teve as mais monstruosas consequências. Ela foi, sob mais de um aspecto, nosso destino”. (Massa e Poder, Ed. Universidade de Brasília, 1986, pp. 233-242).

Essas considerações sobre a gênese da humanidade, tal como a conhecemos hoje, trazem um alerta ético fundamental, no exato sentido da palavra. Se o gesto de estender a mão é a base de nosso caminho rumo às técnicas da vida e da morte, o gesto oposto, o de recolher as mãos no instante em que os demais dependem de nosso braço é um ataque à própria ordem geradora de nossa existência. Um exemplo: o empresário ou trabalhador que no mercado só aprendeu a pegar objetos, sem deles abrir mão para os demais, é ao mesmo tempo um absurdo lógico e moral. Imaginemos a cena primitiva imaginada por Elias Canetti. Se o macaco tivesse aprendido apenas a pegar o galho, sem aprender a soltá-lo, jamais teria existido humanidade e, com ela, a indústria, o comércio, a política etc. É por tal motivo que o indivíduo ou grupo que opera apenas em seu favor, sem observar regras éticas, econômicas, políticas que aperfeiçoem o bem comum, é visto como simples predador, jamais como fecundo líder que abre novos caminhos para a humanidade. É neste plano que as fraudes, a espionagem industrial, os produtos piratas e toda a panóplia de instrumentos que visam apenas o lucro imediato deste ou daquele indivíduo, deste ou daquela firma, não apenas recebem sanção negativa das leis, mas são atingidos pela ojeriza de todos os que, no mercado, trabalham segundo as regras morais. Longe de ser um “detalhe” nos negócios, os procedimentos eticamente corretos constituem, na verdade, o seu núcleo mais poderoso, mas também o mais delicado. Imagine-se, leitor, na ponta de um galho, de árvore altíssima. No outro galho um outro ser humano abre as mãos para você. Caso seu corpo seja salvo por aquele gesto, a sua confiança nele e no gesto é mantida, e fortalecida. Caso ele retire a mão e você caia no abismo, certamente um outro observará o fato inteiro. E terá sempre desconfiança nas mãos estendidas. Imagine agora o mercado onde falte absolutamente a confiança mútua. Ninguém mais fará negócios, produzirá instrumentos, aceitará papéis ou a palavra empenhada.

Se os leitores quiserem alguma pista para entender a crise atual que abala as economias do planeta, ela é fornecida pelo escrito de Elias Canetti. Caso contrário, perguntem às vítimas de “investidores” (que deveriam ser a mão estendida) se elas se animam a retirar seus recursos do bolso e colocá-los nas mãos de grupos que não devolvem objetos ou lucros em troca do que recebem. O símbolo maior da atitude antiética, no caso, é a distribuição de bônus pelos dirigentes da AIG. Aquela firma, por motivos vários, quase faliu no início de 2009. Recebeu bilhões do governo norte-americano. Em vez de sanar os erros de gerência e restabelecer a confiança dos que pagam impostos, ela arrancou “prêmios” milionários para seus operadores. Trata-se de um golpe mais letal no mercado do que muitas fraudes anteriores, como no caso da Enron e de outras. Reflitamos: se um indivíduo puxa o braço para trás, em instante de perigo, e não nos atende, se um comerciante recebe nosso dinheiro e não entrega a mercadoria proposta, diminui a confiança no comércio. Se tal fato ocorre com firmas imensas, o medo e a desconfiança atingem a dimensão de um tsunami ético. É o que assistimos em nossos dias.