A ética e a confiança nas trocas humanas, sociais,
comerciais, políticas....
Roberto Romano
Um grande pensador, o prêmio Nobel Elias Canetti,
no monumento sobre ética e política intitulado Massa e Poder, analisa a
mão humana, fonte de aperfeiçoamento que nos produziu pelo trabalho. As mãos
decidem a produção para a vida e para a morte na indústria, no comércio, na
guerra. Canetti captura a essência dos atos técnicos e da nossa origem
genérica. A mão teria sido produzida pela nossa estadia nas árvores, quando
estávamos longe da plenitude humana. Sua primeira marca de origem é a separação
do polegar. A estrutura vigorosa daquele dedo, o maior espaço entre ele e os
demais permitem o uso daquilo que, antes, era “apenas garra para segurar os
galhos”. As mãos, com tal ajuda, permitem aos macacos o deslocamento nas
árvores, em todas as direções.
Detalhe relevante, pensa Canetti: as mãos, assim
liberadas, adquirem novo uso. As duas mãos podem fazer a mesma coisa num só momento.
Enquanto uma busca alcançar o galho seguinte, a outra segura o anterior. Esta
simultaneidade do tempo tudo modifica no vínculo do animal com os altos
vegetais. Antes, um ato vinha depois do outro. Agora, o sincronismo permite
mudar o movimento no espaço e no tempo. Ocorre maior rapidez sincronizada nos
atos. A mão que segura não pode soltar o corpo. Ela adquire tenacidade inédita,
mas precisa soltar o corpo rapidamente, seguindo a velocidade da outra mão, a
que agarra o galho. “Portanto, é o soltar com a rapidez de um relâmpago a nova
aptidão que se agrega à mão; antes a presa nunca era solta, a não ser sob
coerção ex-trema e de forma pouco habitual. Assim, pegar e soltar se sucedem, e
conferem ao macaco a leveza que tanto admiramos nele.” Os humanos conservaram
essa propriedade das mãos. Ela possibilita que uma faça sempre o jogo da outra.
E nesta faina manipulativa surge, pensa Canetti, o comércio. Nele, enquanto a
mão segura um objeto, a outra é estendida, cheia de desejo, rumo a ele. “A
alegria difundida e profunda que o homem encontra no comércio em parte pode ser
explicada porque perpetua configurações de movimento sob a forma de atividade
psíquica. Em nada o homem ainda está tão próximo do macaco como no comércio.”
Mas voltemos, diz o pensador, a um instante prévio
na gênese do ser humano. Porque as mãos puderam aprender a agir ao mesmo tempo,
em sincronismo, vencendo as primeiras barreiras da temporalidade diacrônica?
“Nos galhos das árvores a mão aprendeu um modo de segurar que já não tinha mais
a finalidade da alimentação imediata. O caminho curto e monótono da mão para a
boca foi interrompido desta maneira. Quando o galho se quebrou na mão, nasceu o
porrete, com o qual se consegue criar distância. Assim como a postura ereta
jamais perdeu sua marca patética, da mesma forma o porrete, com todas as suas
modificações, jamais perdeu sua função primária: como vara mágica e como cetro,
ele se manteve como atributo de duas importantes formas de poder.” Essas teses
de Canetti são ilustradas por um dos mais belos filmes já produzidos,
verdadeiro poema trágico sobre as técnicas e os saberes humanos. Refiro-me a
2001, uma Odisseia no Espaço. Nele, se atenuarmos o evolucionismo,
percebemos uma rigorosa análise sobre a invenção do porrete, a sua passagem
para níveis sofisticados de instrumentalização, a sua permanência enquanto
meio, ao mesmo tempo de vida e morte. Macacos reunidos exalam medo. Outro grupo
de símios se aproxima. Começa a luta corpo a corpo. Súbito, um indivíduo agarra
certo osso (não um galho, como em Canetti) e o bate sobre o corpo macio de um
outro. E o mata. O duro osso, na sequência fílmica, é jogado para o alto e surge
uma nave cósmica, cuja forma é a de um fino e elegante porrete. O foco passa ao
interior do meio de transporte e agora uma caneta, finíssimo porrete, flutua e
depois é recolhida por determinada aeromoça. A sombra da guerra vai do início
ao final da película. Na cena derradeira, o quarto barroco imaculadamente
branco onde alguém come e bebe, uma taça de cristal se quebra. A pessoa morre.
A frágil vida humana, do embrião às mais artificiais formas de moradia, é
simultânea à morte. Todos os instrumentos gerados ao longo da carreira
diacrônica buscam afastar o nada e conservar o ser.
Na cultura barroca, sabemos, a morte se apresenta
em anamorfose, nas pinturas da vida. Como numa fábula, não mais das mil e uma
noites, mas de 2001 anos, tudo fazemos para adiar a diluição de nossa espécie.
Mais do que nunca adquire verdade o enunciado de Spinoza: “o esforço para conservar
a si mesmo é o único e primeiro fundamento da virtude” (Ética, parte 4,
proposição 22, corolário). Canetti indica que a grandeza das mãos se encontra
na sua paciência. “Os processos tranquilos e compassados da mão criaram o mundo
em que queríamos viver. O oleiro, cujas mãos sabem modelar formas de argila, aparece
como o Criador já no início da Bíblia”. Não acompanho aqui, por falta de
espaço, o caminho inteiro de Canetti na gênese do ser humano. Ele mostra que o
nexo entre a mão e a palavra se evidencia na mímica manual. O filósofo termina
o exame do tema ao recordar a inocência dos atos digitais, a sua facilidade
para nós. Esta conivência é fonte de nossos progressos técnicos. Mas ao mesmo
tempo ela permite um descuido com os frutos daquelas mesmas progressões. A mão
ágil não opera de imediato tendo em vista matar ou pegar. Ela se transformou em
nossos dias num instrumento puramente mecânico e os seus inventos têm esta
marca. Por tal motivo ela é perigosa, “o que ela provoca aparentemente diz
res-peito apenas às mãos, à sua agilidade e capacidade de realização, à sua
inócua utilidade. Em qualquer momento em que esta mania mecânica destrutiva das
mãos, transformada num complexo sistema técnico, se associa com o intento de
matar, ela fornece a parte automática, irreflexiva, o processo resultante, o
vazio e o que existe de especialmente inquietante para nós neste processo; uma
vez que ninguém quis que isto acontecesse, tudo ocor-reu como que por si
mesmo”. As considerações extremas do pensador desalentam: “os múltiplos ramos
deste impulso de destruição mecânica vinculam-se à evolução da tecnologia.
Apesar de o homem ter aprendido a dominar o duro com o duro, a mão continua
sendo para ele a última instância de tudo isso. A vida independente da mão teve
as mais monstruosas consequências. Ela foi, sob mais de um aspecto, nosso
destino”. (Massa e Poder, Ed. Universidade de Brasília, 1986, pp.
233-242).
Essas considerações sobre a gênese da humanidade,
tal como a conhecemos hoje, trazem um alerta ético fundamental, no exato
sentido da palavra. Se o gesto de estender a mão é a base de nosso caminho rumo
às técnicas da vida e da morte, o gesto oposto, o de recolher as mãos no
instante em que os demais dependem de nosso braço é um ataque à própria ordem
geradora de nossa existência. Um exemplo: o empresário ou trabalhador que no
mercado só aprendeu a pegar objetos, sem deles abrir mão para os demais, é ao
mesmo tempo um absurdo lógico e moral. Imaginemos a cena primitiva imaginada
por Elias Canetti. Se o macaco tivesse aprendido apenas a pegar o galho, sem
aprender a soltá-lo, jamais teria existido humanidade e, com ela, a indústria,
o comércio, a política etc. É por tal motivo que o indivíduo ou grupo que opera
apenas em seu favor, sem observar regras éticas, econômicas, políticas que
aperfeiçoem o bem comum, é visto como simples predador, jamais como fecundo
líder que abre novos caminhos para a humanidade. É neste plano que as fraudes,
a espionagem industrial, os produtos piratas e toda a panóplia de instrumentos
que visam apenas o lucro imediato deste ou daquele indivíduo, deste ou daquela
firma, não apenas recebem sanção negativa das leis, mas são atingidos pela
ojeriza de todos os que, no mercado, trabalham segundo as regras morais. Longe
de ser um “detalhe” nos negócios, os procedimentos eticamente corretos constituem,
na verdade, o seu núcleo mais poderoso, mas também o mais delicado. Imagine-se,
leitor, na ponta de um galho, de árvore altíssima. No outro galho um outro ser
humano abre as mãos para você. Caso seu corpo seja salvo por aquele gesto, a
sua confiança nele e no gesto é mantida, e fortalecida. Caso ele retire a mão e
você caia no abismo, certamente um outro observará o fato inteiro. E terá
sempre desconfiança nas mãos estendidas. Imagine agora o mercado onde falte
absolutamente a confiança mútua. Ninguém mais fará negócios, produzirá
instrumentos, aceitará papéis ou a palavra empenhada.
Se os leitores quiserem alguma pista para entender
a crise atual que abala as economias do planeta, ela é fornecida pelo escrito
de Elias Canetti. Caso contrário, perguntem às vítimas de “investidores” (que
deveriam ser a mão estendida) se elas se animam a retirar seus recursos do
bolso e colocá-los nas mãos de grupos que não devolvem objetos ou lucros em
troca do que recebem. O símbolo maior da atitude antiética, no caso, é a
distribuição de bônus pelos dirigentes da AIG. Aquela firma, por motivos
vários, quase faliu no início de 2009. Recebeu bilhões do governo norte-americano.
Em vez de sanar os erros de gerência e restabelecer a confiança dos que pagam
impostos, ela arrancou “prêmios” milionários para seus operadores. Trata-se de
um golpe mais letal no mercado do que muitas fraudes anteriores, como no caso
da Enron e de outras. Reflitamos: se um indivíduo puxa o braço para trás, em
instante de perigo, e não nos atende, se um comerciante recebe nosso dinheiro e
não entrega a mercadoria proposta, diminui a confiança no comércio. Se tal fato
ocorre com firmas imensas, o medo e a desconfiança atingem a dimensão de um
tsunami ético. É o que assistimos em nossos dias.