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sábado, 8 de julho de 2017

Revista Interesse Nacional, Roberto Romano, Favor e Corrupção

Favor e Corrupção – Algumas Reflexões Éticas

Erich Auerbach, pensador e hermeneuta do século XX, expõe sua visão da propaganda (demagógica e totalitária) na figura do palco e do holofote. Ao criticar o estilo das Luzes militantes (frases rápidas que induzem o leitor a conclusões injustas sobre indivíduos, grupos e instituições), ele recorda que o mundo humano é um imenso palco, onde inúmeras cenas surgem ao mesmo tempo. O propagandista social, político e econômico ilumina uma ou outra cena e deixa as demais na obscuridade. Quem está na plateia tem a sensação de atingir a verdade, pois a parte iluminada é verdadeira. Como, no entanto, os demais aspectos ficam no escuro, ele não testemunha toda a verdade. “E da verdade, faz parte toda a verdade”. Auerbach lembra que a busca do verdadeiro exigiria tempo suficiente para iluminar o maior número possível de cenas. “O público sempre volta a cair nestes truques, sobretudo em tempos de inquietação, e todos conhecemos bastantes exemplos disto, do nosso passado mais imediato. “Contudo, o truque é, na maior parte dos casos, fácil de ser descoberto; mas falta ao povo ou ao público, em tempos de tensão, a vontade séria de fazê-lo. Quando uma forma de vida ou um grupo humano cumpriram o seu tempo ou perderam prestígio e tolerância, toda injustiça que a propaganda comete contra eles é recebida, apesar de se ter uma semiconsciência do seu caráter de injustiça, com alegria sádica”.1A imprensa, os movimentos, os políticos e as instituições estão imersos no tempo rápido, dominado com técnica refinada pela propaganda.
No caso da Ação Penal 470, é possível notar o quão é útil a figura imaginada por Auerbach. Primeiramente, pela seleção das cenas e dos atores. Como em outros escândalos que atraíram o olhar público (desde o “mar de lama” atribuído ao governo Getúlio Vargas pela UDN ao impedimento de Collor, passando pelos “Anões do Orçamento” e similares) faz-se um recorte de atos e personagens, atribuindo-lhes todos os malefícios da República. Quem denuncia os desmandos é tido como herói sem mácula. Não se diz naqueles instantes que o ato de desmascarar, não raro, é uma forma das mais odiosas de poder autoritário e serve para esconder os intentos e atos dos acusadores. “Nada impede que o ator use uma máscara por baixo de outra” diz Elias Canetti no monumento ético e político chamado Massa e Poder. A máscara duplicada no rosto de quem aponta o dedo para os demais é “arma ou instrumento que deve ser manipulado”.2
Para compreender o processo julgado pelo STF é preciso examinar outras cenas transcorridas em tempos recuados da história ética e política. Felizmente, existem revistas como Interesse Nacional que não se pautam pelo tempo rápido e abrem espaço para considerações que exigem uma cronologia alheia à propaganda. As ações tortuosas do passado continuam a existir no presente e se instalam na maioria dos partidos políticos brasileiros. Não posso ser exaustivo. Escolho o que julgo mais grave em nossa ordem social e política. Outros analistas examinarão com argúcia e rigor vários ângulos do tema.

1 Auerbach. Erich: “A ceia interrompida” in Mimesis (São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971), p. 352.
2 “O personagem e a máscara”, Massa e Poder (DF, Ed. Univ. Brasília, 1983), págs. 418 e 419.
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Poderes e Corrupção Roberto Romano


Poderes e corrupção - Por ROBERTO ROMANO *



ROBERTO ROMANO *
As fraturas no Estado brasileiro fortalecem a corrupção que entre nós está sedimentada. Naquele artefato político anacrônico o Poder Executivo é essencial, os demais setores são adjetivos. Ele não se modificou em profundidade desde 1824 e o poder de quem o controla foi hipertrofiado após as ditaduras do século 20. A Presidência, para se manter, deve pedágios aos oligarcas do Congresso e garante a escolha de seus candidatos aos tribunais superiores. Da crise entre o Judiciário e parlamentares pode vir um fortalecimento desastroso do Executivo. A Constituição de 1988 em farrapos não encontra quem a interprete de maneira inconteste. O mito da harmonia entre poderes é desmentido a cada minuto. Para entender o desarrazoado que nos rege, podem ajudar algumas achegas ao pensamento jurídico conservador e liberal.
O Congresso abriga líderes sem compromisso com os programas oferecidos nas urnas. Eles fazem política sem doutrinas, domesticados por verbas ou cargos num farsesco realismo miúdo. Em vez de atenuar os delitos políticos, tal atitude reforça na população a esperança em algum salvador que, da Presidência e de modo autoritário, limparia os costumes. O golpe de 1964, recordemos, foi justificado pelo combate à corrupção. Figuras como Jânio Quadros, Collor de Mello e outras usaram a indignação das massas para chegar à Presidência, lá ficando por breve tempo, sem apoio político.
Na história recente as teses da direita elogiam o Executivo em detrimento dos outros poderes. É o caso de Carl Schmitt, o autor de A ditadura. Emulado por juristas como Francisco Campos, Schmitt cunhou a fórmula segundo a qual "soberano é quem decide sobre o estado de exceção". Ele foi crítico (e, não raro, com acerto) do Parlamento. Para levar a sério a democracia, afirmava, só o povo pode decidir o seu destino e jamais os deputados. Em O Protetor da Constituição, ele apela ao presidente da República, o único vigia seguro da Carta, e menciona o Poder Moderador brasileiro posto acima das pretensões parlamentares. Nega também que o Judiciário possa guardar a Constituição porque age atrasado para sanar desvios institucionais. "A independência é a necessidade primeira para um protetor da Constituição", juízes e deputados não podem cumprir o mister, pois não são independentes o bastante para garantir o Estado. Só o presidente suspende o direito "em virtude de um direito de autoconservação". É o golpe e a ditadura. Schmitt retoma o slogan contra o regime democrático: nele se discute, pouco se decide. Mas a democracia é um processo no qual não existem garantias de vitórias sem amarguras. Cada costume melhorado incentiva o bem público. Hoje, infelizmente, boa parte de nossos parlamentares age como lobistas. Quando se ouve falar em "bancadas" no Congresso, o que temos são grupos que atuam em prol de interesses particularíssimos.
Carl Schmitt não cita por acaso a Carta brasileira de 1824. O Poder Moderador, nela, foi um golpe contra a soberania popular e o Parlamento. Os idealizadores de nosso Estado seguiram a contrarrevolução europeia. O movimento de 1789, no seu entendimento, resultou em anarquia. Para barrar tal ameaça, fomos submetidos ao monarca "pela graça de Deus". Segundo o conservador Guizot, "o mais simples bom senso reconhece a necessidade da limitação de todos os poderes, quaisquer que sejam seus nomes e formas. Abri o livro em que o sr. Benjamin Constant tão engenhosamente representou a realeza como poder neutro, moderador, elevado acima dos acidentes, das lutas sociais, e que só intervém nas grandes crises. É preciso que haja nesta ideia algo muito próprio a mover os espíritos, pois ela passou com uma rapidez singular dos livros para os fatos. Um soberano dela fez, na Constituição do Brasil, a base de seu trono; a realeza é representada como Poder Moderador elevado acima dos poderes ativos, com espectador e juiz".
Segundo Constant, o Poder Moderador é neutro e apanágio da realeza, os ministros respondem pelo governo e os legisladores nada recebem. O julgamento pelo júri é a norma e impera a livre imprensa. No elogio do Poder Moderador feito por Guizot há um desvio do conceito. Constant define aquele poder como neutro para coordenar os demais. Pôr os quatro poderes numa hierarquia vertical foi o golpe em 1824. A tendência centralizadora definiu o Estado com privilégio do chefe, amesquinhando o Parlamento e o Judiciário.
As prerrogativas do Poder Moderador, inconfessadas, persistem hoje na Presidência da República, o que leva às fraturas no Estado, pois o Executivo negocia apoio parlamentar (com várias técnicas), nomeia os juízes do Supremo, controla o Senado, mas é praticamente destituído de responsabilidade. Vivemos como se ainda vigorasse o Título 5, Capítulo primeiro, artigo 99 da Constituição de 1824. Sagrada, a pessoa presidencial não está sujeita a sérios questionamentos. Ela domestica, pela propaganda e controle dos recursos públicos, a soberania popular, distorce a representação do Parlamento. As duas ditaduras que marcaram o século anterior levaram ao paroxismo a distorção da máquina estatal. A Presidência brasileira é absolutista e propensa à ditadura. A lei da reeleição, as medidas provisórias que se eternizam, a prerrogativa de foro para agentes dos poderes definem alguns dos principais óbices para a democracia. E temos a sucessão de crise após crise, porque não existe limite efetivo para o Executivo. Se este último ignora barreiras, o mesmo tentam fazer os demais. Reaparece, surgida da indecisão jurídica nacional, outra fórmula cunhada por Carl Schmitt: política é o campo onde os inimigos são definidos. Inimigo harmônico é quimera, algo tão fantasioso quanto as leis no Estado brasileiro.
* ROBERTO ROMANO É FILÓSOFO, PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNICAMP, E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE 'O CALDEIRÃO DE MEDEIA' (PERSPECTIVA). 

As fraturas no Estado brasileiro fortalecem a corrupção que entre nós está sedimentada. Naquele artefato político anacrônico o Poder Executivo é essencial, os demais setores são adjetivos. Ele não se modificou em profundidade desde 1824 e o poder de quem o controla foi hipertrofiado após as ditaduras do século 20. A Presidência, para se manter, deve pedágios aos oligarcas do Congresso e garante a escolha de seus candidatos aos tribunais superiores. Da crise entre o Judiciário e parlamentares pode vir um fortalecimento desastroso do Executivo. A Constituição de 1988 em farrapos não encontra quem a interprete de maneira inconteste. O mito da harmonia entre poderes é desmentido a cada minuto. Para entender o desarrazoado que nos rege, podem ajudar algumas achegas ao pensamento jurídico conservador e liberal.
O Congresso abriga líderes sem compromisso com os programas oferecidos nas urnas. Eles fazem política sem doutrinas, domesticados por verbas ou cargos num farsesco realismo miúdo. Em vez de atenuar os delitos políticos, tal atitude reforça na população a esperança em algum salvador que, da Presidência e de modo autoritário, limparia os costumes. O golpe de 1964, recordemos, foi justificado pelo combate à corrupção. Figuras como Jânio Quadros, Collor de Mello e outras usaram a indignação das massas para chegar à Presidência, lá ficando por breve tempo, sem apoio político.
Na história recente as teses da direita elogiam o Executivo em detrimento dos outros poderes. É o caso de Carl Schmitt, o autor de A ditadura. Emulado por juristas como Francisco Campos, Schmitt cunhou a fórmula segundo a qual "soberano é quem decide sobre o estado de exceção". Ele foi crítico (e, não raro, com acerto) do Parlamento. Para levar a sério a democracia, afirmava, só o povo pode decidir o seu destino e jamais os deputados. Em O Protetor da Constituição, ele apela ao presidente da República, o único vigia seguro da Carta, e menciona o Poder Moderador brasileiro posto acima das pretensões parlamentares. Nega também que o Judiciário possa guardar a Constituição porque age atrasado para sanar desvios institucionais. "A independência é a necessidade primeira para um protetor da Constituição", juízes e deputados não podem cumprir o mister, pois não são independentes o bastante para garantir o Estado. Só o presidente suspende o direito "em virtude de um direito de autoconservação". É o golpe e a ditadura. Schmitt retoma o slogan contra o regime democrático: nele se discute, pouco se decide. Mas a democracia é um processo no qual não existem garantias de vitórias sem amarguras. Cada costume melhorado incentiva o bem público. Hoje, infelizmente, boa parte de nossos parlamentares age como lobistas. Quando se ouve falar em "bancadas" no Congresso, o que temos são grupos que atuam em prol de interesses particularíssimos.
Carl Schmitt não cita por acaso a Carta brasileira de 1824. O Poder Moderador, nela, foi um golpe contra a soberania popular e o Parlamento. Os idealizadores de nosso Estado seguiram a contrarrevolução europeia. O movimento de 1789, no seu entendimento, resultou em anarquia. Para barrar tal ameaça, fomos submetidos ao monarca "pela graça de Deus". Segundo o conservador Guizot, "o mais simples bom senso reconhece a necessidade da limitação de todos os poderes, quaisquer que sejam seus nomes e formas. Abri o livro em que o sr. Benjamin Constant tão engenhosamente representou a realeza como poder neutro, moderador, elevado acima dos acidentes, das lutas sociais, e que só intervém nas grandes crises. É preciso que haja nesta ideia algo muito próprio a mover os espíritos, pois ela passou com uma rapidez singular dos livros para os fatos. Um soberano dela fez, na Constituição do Brasil, a base de seu trono; a realeza é representada como Poder Moderador elevado acima dos poderes ativos, com espectador e juiz".
Segundo Constant, o Poder Moderador é neutro e apanágio da realeza, os ministros respondem pelo governo e os legisladores nada recebem. O julgamento pelo júri é a norma e impera a livre imprensa. No elogio do Poder Moderador feito por Guizot há um desvio do conceito. Constant define aquele poder como neutro para coordenar os demais. Pôr os quatro poderes numa hierarquia vertical foi o golpe em 1824. A tendência centralizadora definiu o Estado com privilégio do chefe, amesquinhando o Parlamento e o Judiciário.
As prerrogativas do Poder Moderador, inconfessadas, persistem hoje na Presidência da República, o que leva às fraturas no Estado, pois o Executivo negocia apoio parlamentar (com várias técnicas), nomeia os juízes do Supremo, controla o Senado, mas é praticamente destituído de responsabilidade. Vivemos como se ainda vigorasse o Título 5, Capítulo primeiro, artigo 99 da Constituição de 1824. Sagrada, a pessoa presidencial não está sujeita a sérios questionamentos. Ela domestica, pela propaganda e controle dos recursos públicos, a soberania popular, distorce a representação do Parlamento. As duas ditaduras que marcaram o século anterior levaram ao paroxismo a distorção da máquina estatal. A Presidência brasileira é absolutista e propensa à ditadura. A lei da reeleição, as medidas provisórias que se eternizam, a prerrogativa de foro para agentes dos poderes definem alguns dos principais óbices para a democracia. E temos a sucessão de crise após crise, porque não existe limite efetivo para o Executivo. Se este último ignora barreiras, o mesmo tentam fazer os demais. Reaparece, surgida da indecisão jurídica nacional, outra fórmula cunhada por Carl Schmitt: política é o campo onde os inimigos são definidos. Inimigo harmônico é quimera, algo tão fantasioso quanto as leis no Estado brasileiro.
* ROBERTO ROMANO É FILÓSOFO, PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNICAMP, E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE 'O CALDEIRÃO DE MEDEIA' (PERSPECTIVA). 
Fonte: O Estado de S. Paulo





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JC Debate, Decepção com a política.06/07/2017




sexta-feira, 7 de julho de 2017

Sputinik, 06/07/2017. A Lava Jato em Debate, compara à Operação Mãos Limpas. Entrevista com vários analistas, incluindo Roberto Romano


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    Manifestação em Brasília em defesa da Operação Lava Jato

    Lava Jato x Mãos Limpas: Brasil conseguirá lavar a corrupção que resistiu na Itália?

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    “É ingenuidade pensar que processos criminais eficazes contra figuras poderosas, como autoridades governamentais ou empresários, possam ser conduzidos normalmente, sem reações. Um Judiciário independente, tanto de pressões externas como internas, é condição necessária para suportar ações judiciais da espécie”.

    "Entretanto, a opinião pública, como ilustra o exemplo italiano, é também essencial para o êxito da ação judicial".
    Os trechos acima foram escritos em 2004 pelo juiz federal Sérgio Moro, então desconhecido do público brasileiro, em artigo intitulado “Considerações sobre a Operação Mãos Limpas (Mani Pulite, em italiano)”, publicado na revista CEJ, do Conselho da Justiça Federal. O estudo desta operação, que torpedeou o sistema político italianos nos anos 1990, deu o norte que a Operação Lava Jato seguiria, dez anos depois, desnudando a corrupção no país de uma maneira nunca antes vista.
    Do início inspirado por encontros entre investigados em um posto de gasolina de Brasília (daí o nome Lava Jato), no qual eram feitos pagamentos ilegais, até o presente que implica até mesmo o atual presidente da República, Michel Temer (PMDB), já foram instaurados 1.765 procedimentos, 207 prisões (entre preventivas, temporárias e em flagrante), 158 acordos de delação premiada, 157 condenações que totalizam 1.563 anos, 7 meses e cinco dias de prisão, e um total ressarcido de R$ 38,1 bilhões (incluindo multas) aos cofres públicos.
    Os números são impressionantes, assim como foram com a Mãos Limpas, deflagrada em 1992 e que durou dois anos, tendo investigado 6.059 suspeitos (872 empresários, 1 978 administradores locais e 438 parlamentares, dos quais quatro haviam sido primeiros-ministros) – destes, 3.200 foram levados a julgamento. Ao final, 1.300 foram condenações e o desaparecimento dos dois principais partidos do governo à época – o Socialista Italiano (PSI) e a Democracia Cristã (DC). Contudo, as mãos sujas pela corrupção não ficaram mais limpas após o fim da operação na Itália.
    Em maio de 1994, o empresário Silvio Berlusconi tornou-se primeiro-ministro e, entre as suas muitas argumentações para chegar ao posto, defendeu a Mãos Limpas. No poder, patrocinou leis que enfraqueceram o Judiciário italiano, e a corrupção e os seus velhos personagens tiveram espaço para permanecer ou se rejuvenescer no poder. Os juízes envolvidos na Mãos Limpas, aliás, tentaram até mesmo se aventurar pela política após o fim da operação, mas sem sucesso.
    Teria o Brasil uma oportunidade para não repetir o mesmo enredo protagonizado pelos italianos? Às vésperas de 2018, ano de eleições presidenciais no país, o exercício de futurologia expõe certas limitações, mas há elementos de comparação entre as duas realidades que permitem visualizar as possibilidades que possuem mais força hoje.
    Avanços
    Desde o seu início, a Lava Jato expôs à sociedade brasileira e ao mundo um dos maiores esquemas de corrupção do planeta, “prêmio” este concedido pela ONG Transparência Internacional. As negociações envolvendo o superfaturamento de obras em troca de pagamentos de propina por empresários para políticos e seus partidos, foram combustível em um país que já vinha de uma mobilização popular por melhores serviços públicos (em 2013) e eleições presidenciais acirradas (em 2014). O impeachment da eleita, Dilma Rousseff (PT), também sofreu a influência das repercussões da operação.
    Em entrevista exclusiva à Sputnik Brasil, o doutor em sociologia pela Universidade de Oxford Celso Rocha de Barros avaliou como avanços os resultados obtidos pela Lava Jato até aqui. De acordo com ele, a operação – aqui inseridos a Força-Tarefa com componentes do Ministério Público Federal (MPF) e o Poder Judiciário – vem resistindo de maneira surpreendente aos ataques dos demais poderes (Executivo e Legislativo), diretamente atingidos pelas descobertas da Lava Jato.
    “Estamos em uma encruzilhada. Fico surpreso com isso, o normal seria já terem matado a Lava Jato, mas até o Judiciário vem resistindo aos avanços neste sentido. É lógico que o sistema político não vai cair sem espernear, isso é esperado e normal. A questão central quando pensamos na Lava Jato [em comparação à Operação Mãos Limpas] é saber não se vai acabar ou não como na Itália, mas sim qual será o grau dos avanços aqui. O que é certo é que [a corrupção] não vai acabar inteiramente”, avaliou.
    Salvas as devidas realidades temporais e nacionais, o enredo escrito por ambas as operações é ligado quase que umbilicalmente. “As investigações judiciais dos crimes contra a administração pública espalharam-se como fogo selvagem, desnudando inclusive a compra e venda de votos e as relações orgânicas entre certos políticos e o crime organizado”, escreveu Sérgio Moro, em seu artigo de 2004, a respeito da operação italiana. “A corrupção envolve quem paga e quem recebe. Se eles se calarem, não vamos descobrir, jamais”, disse o juiz, em outro trecho.
    Com as eleições de 2018 a vista no Brasil, Celso Rocha de Barros considera “difícil livrar” aqueles políticos que já caíram por intermédio da Lava Jato. “Pensa no Eduardo Cunha [ex-presidente da Câmara dos Deputados, preso em Curitiba desde outubro de 2016]: ele só se livrar se for por meio de uma delação premiada. Eu acho que quem caiu, caiu. Vai ser difícil se livrar. Pensando nas eleições do ano que vem, vai ser difícil também haver candidato contrário à operação”.
    Retrocessos
    Em uma de suas conclusões a respeito da Mãos Limpas, Sérgio Moro destacou, nos idos de 2004, que “talvez a lição mais importante de todo o episódio seja a de que a ação judicial contra a corrupção só se mostra eficaz com o apoio da democracia”, e que ela “quem define os limites e as possibilidades da ação judicial”. “Enquanto ela contar com o apoio da opinião pública, tem condições de avançar e apresentar bons resultados”, completou no mesmo trecho.
    Envolvido diretamente na operação italiana, o ex-juiz Gherardo Colombo deixou algumas lições a respeito da sua experiência na luta contra a corrupção. De acordo com ele, que abandonou a carreira por acreditar que não seria possível combater tal mal por meio da magistratura, parte do problema que levou a uma sensação amarga, ao final da Mãos Limpas, teve a participação da própria população da Itália.
    “A corrupção não diminuiu […]. Para mim, a cidadania, os cidadãos comuns tiveram uma parte importante na decretação do fim da Mãos Limpas porque, no início, eram todos entusiastas na Itália das investigações, pois elas nos levavam a descobrir a corrupção de pessoas que estavam lá em cima. Mas, conforme elas prosseguiram, chegamos à corrupção dos cidadãos comuns: o fiscal da prefeitura que fazia compras de graça, que não fiscalizava a balança do vendedor de frios, que continuava a vender apresuntado como se fosse presunto…”, disse Colombo, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo.
    Doutor em filosofia e professor de Ética Política no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, Roberto Romano, analisou a pedido da Sputnik Brasil as situações do passado e do presente que ligam a operação italiana com a brasileira. Segundo o docente, a Mãos Limpas não conseguiu prever o resultado da operação em outros poderes do Estado. Além disso, como disse Colombo, a indignação popular na Itália não acompanhou a população às urnas na eleição seguinte.
    “Como dizia o grande Norberto Bobbio [filósofo, escritor e historiador italiano] ao analisar a Mãos Limpas, o eleitorado não correspondeu, na hora do voto, ao sentimento de comprovação da indignação causada pela operação na Itália. Se você pesquisa, todos achavam ótima a limpeza do país, mas o resultado foi a vitória do candidato [Berlusconi] considerado corrupto, que tem uma rede de apadrinhamento muito grande”, comentou Romano.
    'Futurologia'
    A ascensão de Michel Temer à presidência da República, em 2016, vem sendo marcada por uma mobilização da classe política em torno do “estancamento da sangria”, para citar uma fala do senador Romero Jucá (PMDB-RR) – um dos caciques mais influentes do partido de Temer – durante uma interceptação com o ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado. Nela, Jucá dizia ainda “Michel é [Eduardo] Cunha” e que o então vice-presidente seria a saída para barrar os avanços da Lava Jato contra a classe política.
    Mudanças no Ministério da Justiça e as denúncias feitas por policiais federais a respeito dos cortes de recursos para a corporação – o que também afeta, em algum grau, a Lava Jato – formariam uma composição do movimento contrário à operação, que teve outros capítulos no Congresso Nacional, com o avanço de um projeto de abuso de autoridade (que atingiria magistrados), uma proposta pelo fim do foro privilegiado (que poderia tirar do Supremo Tribunal Federal uma infinidade de processo envolvendo políticos), e a desfiguração da proposta das 10 Medidas contra a Corrupção, sugerida pelo MPF e por setores da sociedade civil.
    Para o sociólogo Celso Rocha de Barros, tal movimento da classe política contra a operação era esperado, porém os resultados disso ainda são incertos. Ele explicou que o Supremo vem dando mostras de que movimentos políticos nem sempre vêm conseguindo articular junto ao Judiciário ações a seu favor, mas que um efeito colateral que já vem se desenhando – a desorganização ainda maior do sistema partidário – pode gerar uma versão tupiniquim da Mãos Limpas.
    “A Lava Jato [e os seus avanços] pode até ser que o Judiciário segure, mas se os partidos políticos quebrarem, um Berlusconi aqui é quase certeza. Quanto maior a desorganização do sistema partidário, maior a chance de vencer o candidato mais rico. Acho que existe um risco real disso, é algo que me preocupa bem mais. É mais provável isso acontecer [em 2018] do que a Lava Jato ser interrompida”, ponderou.
    A visão de que a política e seus principais atores, assim como foi na Itália, terá uma preponderância no Brasil quanto ao futuro da Lava Jato, é compartilhada pelo professor Roberto Romano. De acordo com o filósofo, a disparidade do poder central em relação aos municípios (estes sem recursos e dependentes da verba vinda de Brasília para suas políticas públicas) é algo que deveria ser atentado na tentativa de modificar as relações que construíram a corrupção da Lava Jato.
    “Juízes, promotores e apoiadores da operação sonharam que o Estado brasileiro poderia ser mudado através dessas ações. Aí vem a impotência, porque você não pode assumir por meio de juízes e procuradores o poder do Estado e a sua totalidade do eleitorado […]. A moralização é importante, mas não dá conta do sistema todo. É preciso tocar no problema central, das eleições, da federação brasileira, da concentração de dinheiro na esfera federal. É mais amplo e complexo. Com o uso das armas que têm, [juízes e procuradores] agem muitas vezes de maneira arbitrária, achando que terão o apoio do eleitor. Acho que é um erro, como ocorreu na Itália. Sem mudar isso, e sem partidos realmente democráticos, você estará sempre enxugando gelo com toalha quente”, concluiu.
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