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quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Roberto Romano : θεατροκρατία : Ruídos e harmonia, as massas desafiam os donos do Estado.Revista Comciência, Labjor/Unicamp-SBPC, 10/09/2013.


θεατροκρατία : Ruídos e harmonia, as massas desafiam os donos do Estado.

Roberto Romano

Para as crianças mortas na Síria, pela venenosa razão estatal.

As massas, nas ruas do mundo (Nova York, Paris, Cairo, Damasco, Tunis, Rio de Janeiro, São Paulo) inauguram uma nova era política. Seus cantos podem anunciar guerras civis ou abrir sendas para novos experimentos no elo entre poderes e povos. A violência na política, economia ou religião, em todas as sociedades, gera revolta e organiza indivíduos até agora silentes. Governos e imprensa exorcizam o “vandalismo” que ameaçaria a “ordem estabelecida”. Avenidas se transformam em campos de batalha como na Síria, ou em vias de pacificação provisória, em Tunis. Gritos brotam das gargantas, condenam um desarrazoado que reduz o mundo à triste “waste land” sem presente ou amanhã. Na cultura, desde os primórdios, temos o embate entre os ruídos assustadores e assustados e a ordem racional. Jamais nenhum deles reuniu hegemonia absoluta. Todo discurso exorciza a morte, falta absoluta de sentido. E nada apresenta a morte de maneira mais dura do que a guerra civil ou entre Estados. (1 )

“A guerra de agora é ruído. Em especial o ruído gerado pelos Stukas quando mergulham sobre a sua cabeça e o vento que faz as sirenes berrarem muitas vezes, como loucas. Guerra é o ruído da bomba ao cair. Grosso, pesado ruído. Depois o ruído dos vidros quebrados e das paredes tombadas. Depois o ruído do silêncio. O silêncio que a eternidade agarra por um segundo e depois deixa rápido escapar. Mais do que tudo o mais, hoje, é o ruído das pessoas desesperançadas, feridas, de alma queimada. Quando o instante de silêncio se vai, elas berram ou murmuram, ou apenas lamuriam. (…) Você pode esquecer o que enxerga. E o que cheira, mas jamais esquece os ruídos. Eles batem na sua cabeça e fazem ver Belgrado, quando estamos no Cairo. Eles nos fazem cheirar carne humana queimada em Corinto, quando estamos em Nova York. Ruídos não permitem o sono. Você imagina saber algo sobre ruídos? Espere até ouvir os ruídos da guerra, então pode acreditar no que digo. Os ruídos da guerra logo conduzirão o mundo à loucura”. (St. Robert John : From the Land of silent people). (2 ).

Antes de Robert John, outros exprimiram a loucura da guerra no embate da lógica contra o absurdo. “Imagine as coortes bárbaras que inspiram terror só com as suas faces e o som de suas vozes. Nos dois lados da batalha, o temível barulho das armas, odioso rosnar da grande multidão… o espantoso alarido das trombetas, o trovão dos canhões…. a espantosa carnificina”. Trata-se da investida feita por Erasmo de Rotterdam contra a guerra. ( 3) Não por acaso um contemporâneo de Erasmo escreveu a cena bela e terrível na qual os berros e as imprecações dos soldados são congelados e soltos quando o mundo esquenta e libera o horror pretérito. (4 ) Ainda Erasmo, inimigo dos instrumentos berrantes da música, condena a polifonia seguida de sons estridentes “que evocam a imagem da guerra ou da violência geral”. Em carta a Nicolas Varius (26/09/1526) ele proclama: “Platão considera que o gênero musical no Estado é de grande importância, o que teria ele dito se escutasse tal música entre cristãos?” (5 )

A crítica da guerra, no instante em que os Estados nacionais europeus se firmam e os governos adquirem a ética da raison d’État em detrimento dos povos, une-se, na consciência dos humanistas, à lembrança ilusória de Platão, o arquiteto da política ocidental. Embora sua faina tenha sido pacificar as massas, tanto físicas quanto espirituais, Platão projeta o plano do Estado, tal como subsiste em nossos dias. ( ) Nele, apenas os competentes navegadores do navio público têm o direito de impor caminhos à massa inepta. A separação entre dirigidos e dirigentes encontra nos textos platônicos a sua primeira forma técnica e, ousemos dizer, científica. Tal abismo entre as multidões e os líderes é formulada nas Leis contra os ruídos que destruíram, segundo o filósofo, a democracia ateniense. As considerações que farei nas linhas seguintes giram ao redor daquele texto fundador, no ponto mais delicado da ordem política: o econômico que implica a propriedade. Platão faz um personagem do diálogo, o ateniense, anunciar que para definir a igualdade entre cidadãos seria preciso impor normas à propriedade fundiária e às dívidas. Quando um legislador deseja mudar algo naquele plano, todos se levantam contra ele e alegam que não se deve mexer no caso.

Mas os homens, adianta Platão, possuem um comum objeto de desejo, tudo ocorre conforme as exigências de nossa alma. O legislador deve estabelecer normas tendo em vista a virtude, o pensamento refletido, a opinião, o amor (eros), o desejo que concorda com as primeiras atividades de nossa alma. A ruína dos governos ocorre porque eles não sabem dizer quem deve mandar e quem deve ser mandado, na sua ignorância sobre o que mais importa nos assuntos humanos. Qual ignorância é visada? A produzida quando tendo julgado bela uma coisa, ou boa, não a amamos mas a odiamos. Então amamos e procuramos o que é perverso e injusto. Tal discordância entre pena e prazer e a opinião razoável é a suprema ignorância porque ela é própria da massa popular (πλῆθος) pois a parte da alma sujeita à pena e ao prazer corresponde exatamente, no Estado, ao povo e à massa. A massa ignara não deseja obedecer os magistrados e as leis.(6 ) O mesmo ocorre nos indivíduos, se os bons princípios são ineficazes, pois vence o que é dissonante. Nenhuma magistratura pode ser atribuída a alguém que padeça de semelhante ignorância. Deve-se, ao contrário, chamar de sábio o caráter oposto, e lhe atribuir os cargos. A sinfonia (συμφωνία), mais bela e elevada consiste no mais alto saber (σοφία), partilhado pelo homem razoável. Quem carece de tal ciência não pode ser um salvador (σωτήρ) do Estado. Quem manda deve possuir títulos para tal nos grandes Estados, nos pequenos e nas famílias. Nestas, o pai ou a mãe comandam os filhos. No Estado, as pessoas de alto nascimento comandam os de baixa extração. Depois, os anciãos dirigem os jovens, o escravo deve ser ordenado pelo senhor, o fraco deve ser conduzido pelo forte.

No comando natural da lei as pessoas obedecem voluntariamente, sem recurso à violência. Mas na democracia existe o sorteio e comanda o vencedor com ajuda do acaso. Temos aqui uma fonte de sedição (στάσις) . As causas da ruína e perda de potência (δύναμις) do povo grego foi ignorar as palavras de Hesíodo segundo a qual, em muitos casos, “a metade vale mais do que o todo”. Sempre é prejudicial por a mão sobre o todo, quando basta fazer isto com a metade, a justa medida vale mais do que o que o desmedido pois é melhor do que o pior. Os governantes arruinados foram atingidos pelo mal que consiste em ambicionar ter mais do que permite a lei. Eles louvam a lei em palavras. Mas não a respeitam de fato. Este choque entre a fala e o ato é a mais grave ignorância, tida no entanto, sobretudo pela massa, como sabedoria. Em razão de tal dissonância se corrompem as belas normas da constituição. A justa medida é essencial na política, como no corpo (alimentação) ou técnicas (nos navios, mais velas do que o preciso), na alma direitos excessivos. Sem ela, tudo se inverte, a abundância de carnes leva à doença, a ilimitação conduz à injustiça. A alma dos jovens não suporta o peso do poder, logo ela é infectada da mais grave doença, a desrazão. Contra tais excessos cabe ao legislador, graças à justa medida, tomar precauções.

Essa teoria do poder supõe o universo e a sociedade como harmonia. E na política deve ser mantido o domínio das antigas leis nas quais o povo não tinha soberania, era escravo voluntário das leis. Quais leis ? As relativas à música. Na época antiga a música era dividida segundo espécies e formas próprias. Não era permitido abusar de uma delas, transpondo-as para outras. O poder de julgar com conhecimento de causa e punir os transgressores não pertencia às vaias ou aplausos, mas era decidido por sábios que tudo ouviriam em silêncio e, varinha nas mãos, estabeleceriam a ordem e advertiriam crianças e professores. A ordem era aceita pelos cidadãos que não ousavam recorrer à gritaria para dar sua opinião.

Os poetas inculcaram na massa o hábito de infringir as leis e a audácia de se acreditar capaz de decidir. Resultado: antes, o público não falava no teatro (era ἄφωνος), depois, começou a falar como se entendesse o que é belo na música. Surge a “teatrocracia” (θεατροκρατία) depravada que substitui o poder dos melhores juízes. Se apenas em música, e em música apenas, surgisse uma democracia, não ocorreria algo tão desastroso. Mas pela música se iniciou a crença no saber de todo mundo para julgar, a atitude subversiva. Segue-se a audácia de não temer a opinião de quem vale mais. Após tal liberdade, vem outra que consiste em não aceitar voluntariamente ser um “escravo” da autoridade. Depois vem a fuga da “escravidão” diante do pai e da mãe, diante dos antigos e a busca de um meio para burlar as leis. E ocorre o desprezo dos juramentos, da fé publica, o desprezo dos deuses. O livro III das Leis indica as tarefas do legislador: promover no Estado a amizade entre os cidadãos, com base no pensamento racional. A correta constituição deve ser temperada. Todo poder deve possuir limites, tanto no lado do povo quanto no lado do príncipe. Atenas se inclinou em demasia para o lado democrático, a Pérsia do outro. A Pérsia se enfraquece porque a obediência dos povos, nela, é servidão, mas Atenas adoece porque a liberdade se transforma em licença, perde o sentido da autoridade. O poder político deve ser distribuído na proporção da virtude, cujos graus são os seguintes : bens da alma unidos à temperança, bens do corpo, a riqueza. (7 )

Da terra aos meios urbanos de controle político, Platão inaugura a máquina estatal para gerir a massa dos ignaros, algo repetido ad nauseam por seus êmulos da moderna Raison d’État. ( 8) Desde então, os que governam possuem, supostamente, a receita para a harmonia social, econômica, política. Eles usam a polícia, o exército e a censura (9 ) para controlar as multidões, além da propaganda sem peias. (10 ) A divisão entre os que sabem e os ignorantes determina o imaginário que separa as multidões ruidosas e bárbaras dos que, nos palácios, supostamente defendem a cultura, a civilização, a paz. Platão sempre teve seguidores entre os amigos do poder. Hegel, por exemplo, define o Estado como “organismo, desenvolvimento da Ideia segundo o processo de diferenciação de seus diversos momentos”. Com a Revolução Francesa, fruto das Luzes, pensa ele, o social se fragmentou por causa da igualdade política. O filósofo recorda a surrada fábula do estômago e dos membros: “O organismo é composto de tal natureza que se todas as partes não concordarem na identidade, se uma só delas torna-se independente das outras, vem a ruína do Todo”. Quem fala em igualdade ou liberdade nesse plano, diz Hegel, “assume o ponto de vista da populaça”. O conceito de organismo, lembra Norberto Bobbio, (11 ) encontra-se na concepção hegeliana do político, do jurídico e do social. A “populaça” é exorcizada : “É opondo à soberania do monarca se começou, numa época recente, a falar em soberania do povo. Considerada nessa oposição, a soberania popular é integrante desses pensamentos confusos que se baseiam nas representações grosseiramente populares. Sem o seu monarca e sem a organização que a ele se liga necessariamente, e de modo imediato, o povo é massa informe que já não é mais um Estado” (Filosofia do Direito § 279 nota) (12 ). 

No século vinte os Estados invocaram a “soberania popular” e mantiveram um aparato burocrático que assumiu, sine ira et studio, poderes hierárquicos, transcendentes e decisivos. Ordens das “autoridades”, como as do Rei, não se discutem, pois tel est son bon plaisir. Bancos Centrais possuem força maior do que a de Luis XIV e Napoleão. Os donos do mando atual, a pretexto de “globalização” e outros sinais sonoros vazios, recusam a democracia em prol da especulação financeira global. Resulta que as populações são jogadas no desemprego, na insegurança, nas guerras. Sem justificar seus monopólios da força, da norma jurídica, dos impostos, o poder público negligencia os serviços coletivos. O povo deve gerar riqueza, sem o básico da educação, saúde, transporte, segurança jurídica. Sem atender a tais requisitos o Estado perece, torna-se cada vez mais um absurdo instrumento sem vida. Aumenta a morte coletiva e surgem os signos do retorno ao estado de natureza, tanto nas periferias pobres das urbes quanto nos bairros enriquecidos. A responsabilidade por uma catástrofe política e social e pelo fim inglório da república deve ser partilhada entre políticos arrogantes que se julgam superiores ao povo e intelectuais idem. As massas, com seus alaridos “bárbaros”, ou “vandálicos”, abrem um caminho estranho à Raison d’État ( ) cuja “harmonia” é na verdade o caos dissonante imposto a ferro e fogo aos povos, o massacre dos milhões, a indústria bélica e seus barulhos horrendos. Conseguirá o Estado se recompor em novas bases? Ou seguiremos rumo à exacerbação de sua violência “legítima”? A semelhança das sereias que atormentaram Ulisses, qual propagandista conduzirá as gentes para o abismo sob maviosas cantigas? A propaganda, sabemos desde Goebbels, é arma importante em tal guerra. Mas pouco a pouco até mesmo ela se desgasta. Saudemos a nova esperança dos povos e de sua primavera. Esta, muito rápido, se tranforma no inverno mortal por obra dos poderes estatais, como vemos na Síria, no Egito e…last but not least, no Brasil da repressão brutal aos gritos de liberdade que vêm das ruas, contra os piores abusos cometidos nos palácios. 
Notas
(1) As páginas seguintes supõem o trato com vasta bibliografia sobre a Razão de Estado, tema que estudo na Unicamp há bom tempo. O texto e a bibliografia foram postos nos seus elementos essenciais. No final de 2013 está prevista a publicação de um livro meu com trabalhos extensos sobre a racionalidade estatal contra a soberania popular.

(2) NY, Doubleday,1942. Stuka: Sturzkampfflugzeug, bombardeiro da Luftwaffe, Segunda Guerra Mundial;

No adágio Dulce bellum inexpertis (A guerra é aprazível para quem não a conhece). (1515). Cf. Pugliatti, Paolo: Shakespeare and the just war tradition (Farnham, Ashgate, 2010) p. 42
“Pantagruel, ouvindo o escândalo que Panurgo fazia, exclamou (…) escutemos antes para saber do que se trata ! Talvez sejam os nossos. Não vejo ninguém. E no entanto percebo cem mil vozes ao nosso redor. (…) O capitão respondeu: ‘Senhor, não tenha medo de nada. Aqui se encontram os confins do mar glacial, onde se passou no começo do último inverno uma grande e bandida batalha entre os Arismapiens e os Nefelibatas. Então tudo gelou no ar, as palavras e os gritos dos homens e das mulheres, o choque das massas, a batida das lanças, das armaduras, os relinchos dos cavalos, e todo o estrondo de um combate. Agora que o rigor do inverno passou e retorna a paz e a duçura dos belos dias, o que gelou se faz ouvir e entender.’Por Deus, disse Panurgo, acredito. Mas poderíamos ver mais de perto? (…) Eis, eis, disse Pantagruel, eis algumas que não se descongelaram’ . E nos jogou então às mancheias punhados de todas as cores. Vimos palavras vermelhas, verdes,azuis, negras, douradas. Elas se fundiam porque esquentavam em nossas mãos e as ouvíamos perfeitamente. Mas não as compreendíamos, porque era uma lingua desconhecida. O irmão João apertou um grande número em suas mãos, o que fez um som igual ao das castanhas que estouram quando jogadas ao fogo sem terem sido fendidas, e nos sobressaltamos todos de espanto. ‘Aquela palavra foi um golpe de foice no seu tempo’ disse o irmão João. Panurgo pediu outras a Pantagruel. Este respondeu que só havia a dos amantes que empenhavam sua palavra. ‘Então as venda! ‘replicou Panurgo. ‘Só os advogados vendem palavras, respondeu Panurgo. Eu venderia de preferência o silêncio, muito caro!’ E ele jogou na ponte três ou quatro punhados. E vi palavras bem picantes, palavras injuriosas, (…) palavras horríveis, e outras muito desagradáveis de serem vistas. E quando todas se fundiram, ouvimos : ‘hin, hin, hin, hin, his, ticque, torche, lorgne, brededin, brededac, frr, frrr, frrr, bou, bou, bou, bou, traccc, trac, trr, trr, trr, trrr, trrrrrr, on, on, on, on, ououououon (…) e não sei mais que outras palavras bárbaras. Eram os ruídos do choque e do relinchar dos cavalos no assalto. Eu quis colocar algumas palavras vermelhas no óleo, para as conservar bem. Mas Pantagruel me impediu e declarou que era loucura guardar aquilo que nunca falta”. Pantagruel
, Quarto livro, capítulos LV e LVI in Oeuvres complètes de Rabelais(Paris, Gallimard, La Pléiade, 1938), pp. 711 e ss. Trata-se, em Rabelais, de um ensaio de sinestesia cuja agudeza terá ecos no romantismo. A audição colorida, da qual o poema de Rimbaud é um avatar (o batido “Voyelles”) encontra aqui um peso antropológico e político perene, bem mais amplo do que na imagética romântica.


(3) Citado por Jean Claude Margolin, Erasme et la musique (Paris, Vrin, 1965), p. 63

(4) Mcclelland, J.S. : The crowd and the mob, from Plato to Canetti (London, Unwin Hyman, 1989).

(5) Morrow, Glenn R. : “Plato and the rule of law” in Vlastos, Gregory (Ed.) : Plato, a collection of critical essays, ethics, politics, and philosphy of art and religion
(Notre Dame, University of notre Dame Press, 1978), pp. 144 e ss.

(6) Cf. A. Ed. Chaignet : La Vie et les écrits de Platon (Paris, Didier et Cie., 1871), pp. 403 e ss. Pantel, P. Sch. (ed.) Athènes et le politique, dans le sillage de Claude Maussé (Paris, Albin Michel, 2007).

(7) Cf. sobretudo Naudé, Gabriel: Considérations politiques sur les coups d’État (Paris, Gallimard, 2004) e Giovanni Botero, La ragion di Stato (Roma, Donzelli Editore, 1997). Yavetz, Zvi: La plèbe et le prince, foule et vie politique sous le haut-empire romain (Paris, La découverte, 1984).

(8) Catteuw, L. : Censures et raisons d’État
(Paris, Albin Michel, 2013).

(9) Malcolm, N. : Reason of State, propaganda, and the Thirty Years War (Oxford, Clarendon Press, 2007).

(10) Cf. Estudos sobre Hegel, Direito, Sociedade Civil, Estado
. São Paulo. Unesp, 1989.

“Das Volk, ohne seinem Monarchen und die eben damit notwendig und unmittelbar zusammenhängende Gliederung des Ganzen genommen, ist die formlose Masse, die kein Staast mehr ist” , Grundlinien der Philosophie des Rechts in Werke in zwanzig Bänden (FAM, Surhkamp, 1970), V. 7, p. 447. Karl Marx analisou de modo consistente as afirmações hegelianas sobre a forma do regime e do povo, na monarquia e na democracia. Não cabe aqui discutir tal sofisma anti-democrático de Hegel.

(11) Lazzeri, Christian e Reynié, D. : La raison d’État, politique et rationalité e Le pouvoir de la raison d’État (Paris, PUF, 1992).

(12) Livro até hoje essencial sobre a propaganda e sua forma de escravizar as massas, cf. Tchakhotine, Serge: Le viol des foules par la propagande politique
(Paris, Gallimard, 1952).

domingo, 18 de novembro de 2018

Descobri que entre os amigos do FB há um parente de um grande homem e filósofo, Professor Ubaldo Puppi, de quem tive a honra de ser discípulo e afilhado de crisma. Quando ele faleceu o Instituto Fé e Ciência de Curitiba me pediu uma homenagem. Ela foi publicada no site do Instituto, mas não está mais à vista. Aproveito o encontro do familiar do professor, para repetir aqui a homenagem. Para quem não o conheceu, ele foi secretário de Jacques Maritain, voltou ao Brasil e quando lecionava na Faculdade de Filosofia de Marilia foi preso por "subversão", devido à delação de duas senhoras que nem merecem o título de conservadoras, visto serem apenas fanáticas. Após muitas dificuldades ele venceu o processo (AINDA EXISTIAM JUÌZES NO PAÌS) e voltou à cátedra. Católico fervoroso, nunca ouvi dele nenhuma reclamação pelo que sofreu. Suas aulas eram brilhantes e suscitaram muitas vocações intelectuais. Deus o tenha na su glória.

ANO 6 - ED 73 - SETEMBRO DE 2005
ARTIGO
Professor Puppi, um testemunho
Roberto Romano
Patet igitur ex praedictis quod, sicut anima hominis elevabitur ad gloriam spirituum caelestium ut Deum per essentiam videat (…) ita eius corpus sublimabitur ad proprietates caelestium corporum, inquantum erit clarum, impassibile, absque difficultate et labore mobile, et perfectissime sua forma perfectum. Et propter hoc apostolus dicit resurgentium corpora esse caelestia, non quantum ad naturam, sed quantum ad gloriam. Unde cum dixisset quod sunt corpora caelestia, et sunt terrestria, subiungit quod alia est caelestium gloria, alia terrestrium. Sicut autem gloria in quam humana anima sublevatur, excedit naturalem virtutem caelestium spirituum (…) ita gloria resurgentium corporum excedit naturalem perfectionem caelestium corporum, ut sit maior claritas, impassibilitas firmior, agilitas facilior et dignitas naturae perfectior. Summa contra Gentiles De qualitate corporum glorificatorum (Liber 4, caput 86) (1)

Anjos. Esta foi a primeira palavra que ouvi, em companhia de outros jovens, de Ubaldo Puppi. A cidade era Marilia e o ano podia ser 1962 ou 1963. No Instituto Bicudo de ensino oficial secundário, numa sala de aula que reunia alguns estudantes da JEC, falava o professor de filosofia com a tranqüila seriedade dos sábios. Anjos. Risos surgiram, inevitáveis, quebrando o silêncio de um sábado modorrento, comum no interior paulista. Sem ira ou hilaridade o professor replicou : "anjos, sim". E ouvimos belíssima exposição sobre a essência dos corpos angélicos, a sua diferença em relação a nós, sua proximidade do poder divino, a pureza absoluta da mente e o controle de seu movimento. Passados muitos átimos, termina a aula. Saímos pensativos e preocupados. Anjos, quando berra a injustiça brasileira ? Anjos, quando o imperialismo ameaça a esquerda e a sociedade nacional? Anjos, quando o golpe de Estado se anuncia nas falas do IBAD e de Carlos Lacerda ? Anjos, quando as reformas (agrária e demais, anunciadas pelo governo) são indicadas pela imprensa como agressões comunistas ? Anjos…
Pouco tempo depois escutamos o mestre, agora na Faculdade de Filosofia de Marilia. Sua fala silenciava as realidades celestes e nos dirigia para os temas aflitivos da política nacional : fome no campo e na cidade, exploração imperialista, injusto usufruto das rendas, coronelato, capangagem, etc. Tratava -se não de anjos, mas do mundo bestial, no capitalismo sem peias. Puppi, com outro professor amigo, comandou o curso de preparação de monitores para o método Paulo Freire. Em companhia de Antonio Quelce Salgado, ele era a fonte onde jovens secundaristas e universitários sorviam o pensamento mais translúcido sobre a opaca realidade brasileira. Encontrá-lo era uma alegria: sem pedantismo, sem nariz erguido, sem crueldade (algo muito comum na filosofia universitária), ele respondia as perguntas e arrazoava - sempre- meditando sobre as origens empíricas e as dificuldades lógicas dos problemas. Ensinava da maneira eficaz, não parecia ensinar. 
No curso Paulo Freire, ou "sobre a realidade brasileira", como o chamávamos, acotovelam-se jovens e adolescentes sequiosos de saber e justiça. Mas também se apresentavam corações e cérebros opaco almas sombrias movidas pelo preconceito e ódio. Duas senhoras se notabilizaram nas palestras por suas falas conservadoras. Mas os trabalhos seguiam um ritmo natural. Entre a leitura dos textos e o lazer, um divertimento era seguir Puppi e seu colega, proprietário de um carrinho velho (se bem me lembro, verde escuro) pelo "tobogã" da Avenida São Luiz, no trecho entre a praça de São Bento e a Faculdade de Filosofia. Na descida, muitos de nós pulavam na boléia, rindo e aproveitando o ar livre. Na subida…não raro o carro enguiçava e lá íamos empurrando o heróico veículo até um ponto seguro. Dentro, nos atirando desafios, os dois professores amigos. O nome que demos ao veículo cômico e anacrônico? Catarina.
Chega 1964 e a tempestade de ódios e delações trazida pelo golpe civil e militar. Aparece a prática hedionda do chamado "dedurismo". Pessoas de bem são delatadas por pessoas que se imaginavam de bem, mas eram diabólicas. Puppi e seu colega foram apontados como perigosos subversivos a serviço de Moscou. Com a maré das acusações contra eles, tentam sair da cidade…pilotando a velha Catarina. Não foram longe. Detidos, voltaram para Marilia onde os esperava a baixeza humana em estado quase puro. Demitidos da Faculdade, foram obrigados a providenciar os recursos vitais de sua família de maneira digna, mas humilhante. Puppi vendeu produtos de consumo doméstico nas portas e procurou vender livros aos seus antigos alunos. Conforme ele mesmo me confidenciou, teve decepções com vários deles. Dias de sofrimento, entretanto, que ele dominou com a fé cristã e a temperança dos justos. Nunca o vimos desesperado ou sombrio: o sorriso gentil e nobre manteve-se em seus lábios, intocado. 
Certamente as horas mais escuras, quando até mesmo os santos sofrem o ataque da acedia, ele as partilhou com a companheira de todas as horas: a bela, gentil, cultivada e fina Dona Edi. É difícil encontrar um casal bem feito. Temos tal certeza pelos relatos sobre a gênese do pecado (se formos cristãos) ou pelas narrativas do Banquete platônico sobre o ser original, uno e completo, que se tornou inimigo desde o arrogante desafio aos deuses. O casal Puppi era uma rara exceção. Estar com os dois sempre foi uma alegria porque o sentimento e a inteligência se manifestava em ambos, não distribuidos segundo padrões numéricos, mas enquanto diversas operações de corpos. O lado masculino chamava para aspectos estratégicos da vida. Mas o feminino, suavemente, apresentava o sentido real das coisas. 
Ao retornar às salas de aula, por ato da justiça contra o arbítrio, Puppi retomou a brilhante carreira acadêmica. Um detalhe fundamental: na juventude extrema, ele esteve entre os noviços dominicanos, na França. Alí, estabeleceu os laços com a filosofia tomista e o canto gregoriano, que dominou até os últimos dias. Depois foi colaborador do maior pensador católico do século 20, Jacques Maritain, filósofo que buscava trazer a doutrina social e política da Igreja para os tempos modernos, sem trair a essência religiosa. O convívio com poderosas inteligências e vontades retas, como as de Jacques e de Raïssa, formou o pensador Puppi. Ao retornar ao Brasil, ele publicou alentado volume que visava refutar a fenomenologia husserliana. Certamente o livro teve poucos leitores. Tentei inspecionar a sua totalidade, mas desisti. Não tinha cultura ou cabeça para seguir as agudas sentenças e análises do autor. Só mais tarde captei, em parte, as demontrações de Ubaldo Puppi. Mas o professor, já naquele momento, reavaliava sua crítica à fenomenologia, acrescentando solidez aos argumentos. Filósofo com rigoroso treino metodológico, adquirida no tomismo, Puppi não se prendeu à escolástica: aberto ao pensamento e ao Ser, sua pesquisa jamais admitiu limites. É desse modo que redigiu páginas brilhantes e finas sobre estética (certamente a companhia de Dona Edi foi importante), ética, política, religião.
Ao retornar para a nossa terra, o Paraná, Puppi assumiu a tarefa árdude traduzir o pensamento para a polis democrática. Secretário da Educação, Presidente do Conselho Estadual de Educação, Assessor de políticos e de instituições públicas, o mestre lutou como poucos pela ética na vida estatal. Recebeu críticas e elogios, mas a constante maior era o respeito que suscitava em todos. Presença relevante no Instituto Fé e Ciência, ele encerrou com chave de ouro a sua vida pública, ajudando a trazer a reflexão filosófica e teológica ao mundo do saber técnico e científico. 
Meu testemunho sobre sua pessoa não pode ser entendido como o de um intimo. Nossos encontros, após 1965, tiveram a peridicidade dos cometas. Em 1980 convivemos no Departamento de Filosofia do qual ele era Chefe, em Marilia. Depois, compartilhei, sob sua regência, os trabalhos de oficialização da Unicentro, em Guarapuava, Paraná. A justiça e a segurança de seus juizos levaram o labor a bom termo. Nos encontramos pela última vez no Instituto Ciência e Fé. Depois, apenas nos relacionamos pela voz, ao telefone. Mas jamais esquecerei uma bela tarde de verão, em Marilia, na igrejinha próxima à Faculdade de Filosofia, quando me tornei afilhado de Crisma do casal feliz, Ubaldo e Edi. Quando recordo aquele ato, a paz invade o meu corpo inteiro. 
Anjos…hoje Puppi vive numa glória antecipada pelos seus dias na terra. Sua agilidade mental, sua claridade, seu domínio do corpo elegante, todos os bens corporais e anímicos foram infinitamente potencializados pela Graça. Esperemos receber o presente de abraçar aquela individualidade poderosa na sua vida celeste. À Dona Edi, que o ajudou tanto na marcha rumo ao Absoluto, nosso abraço afetuoso. Quando ela o encontrar, a felicidade de ambos será perfeita, porque os dois partilharam
L ´Amor che move il sole e l ´altre stelle
¹- "Assim como a alma humana será elevada à glória dos espíritos celestes até ver a essência de Deus, também o corpo do homem será sublimado até possuir as propriedades dos corpos celestes: claro e impassível, sem dificuldade ou esforço, conduzido à mais completa perfeição. Eis porque o Apóstolo diz dos corpos ressuscitados que eles serão celestes, não por sua natureza, mas por sua glória. E depois de enunciar que existem corpos celestes e terrestres, acrescenta : uma é a glória dos corpos celestes, outra a glória dos corpos terrestres. Assim também a glória à qual é elevada a alma do homem ultrapassa a excelência natural dos espíritos celestes e a glória dos corpos ressuscitados ultrapassa a perfeição natural dos corpos celestes pela maior clareza, impassibilidade mais firme, agilidade dos movimento e mais elevada dignidade de natureza". Tomás de Aquino, Suma contra os gentios, "A qualidade dos corpos glorificados", Livro 4, capítulo 86.