Flores

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quinta-feira, 25 de julho de 2019

O Diretor do INPE disse que o presidente do Brasil é covarde e pusilânime. Em pequena resenha sobre o livro de Moreno, exponho o que significa a coragem na guerra, dos tempos antigos aos nossos dias. RR O livro indicado é Minds Wars, de J.D. Moreno.


Ao comentar a guerra no século 19, Hegel afirma que nela deixou de existir o heroismo pessoal. A luta entre soldados assumiu plena frieza porque entre os exércitos aumentou o papel das máquinas como os canhões, etc. Quem atira usa aqueles instrumentos quase nunca enxerga o inimigo alvejado. Assim, as paixões de ódio e pavor são atenuadas em proveito de um belicismo burocrático. O retrato da guerra exposto nas “Lições sobre a Filosofia do Direito” é similar ao produzido por outros analistas como Max Weber, ao discutir o Estado e a sociedade civil modernos. A burocracia, ela mesma um imenso engenho mecânico, toma conta dos atos religiosos, dos políticos e destes aos letíferos. Weber chega a dizer, com desconsolo, que o futuro da humanidade encontra-se no ordenamento burocrático que afasta o poder dos governantes e legisladores, juízes e clérigos,  empresários e trabalhadores.

Cito o capítulo de J.D. Moreno que discute a mediação de instrumentos e remédios nos combates de hoje. O autor de “Mind Wars, Brain Research and National Defense” recorda a “Ilíada” nos versos em que Homero celebra a coragem dos heróis gregos : “Eles não lutam à distância com arcos ou lanças, mas com uma só mente, que os prende uns aos outros em combate cerrado com suas potentes espadas”. Assim, a valentia cede passo, pensa Moreno, a cada nova invenção técnica, das catapultas ao canhão, deste às bombas dirigidas por satélites. Líderes militares refratários aos incrementos técnicos são deixados para trás, no tempo histórico. O General Patton disse a jornalistas que a Força Aérea teria extraído dos soldados a oportunidade heróica. Moreno deixa de indicar, mas estrategistas importantes como Clausewitz discordam de Hegel e dos que afirmam ter a coragem e a batalha face a face perdido lugar na guerra moderna. Mesmo hoje, uma guerra só ser dita vitoriosa se os pés de um infante pisam o solo dos vencidos, garantindo a sua posse permanente ou provisória.

Moreno exemplifica os riscos da aplicação técnica de meios, sem domínio completo de todos os atos necessários para a plena eficácia. Ele cita os terroristas chechenos que invadiram um teatro em Moscou (outubro de 2002). As forças policiais (na verdade, forças armadas russas) colocaram o derivado de cloridrato de fentanil pelo buraco de  uma parede, para incapacitar os sequestradores. O gás lhes causou sono, permitindo matá-los. Mas o efeito colateral foi dramático: homens, mulheres, crianças também cairam sob a ação do gás, gerando 128 mortes, com muitas internações mais de pessoas em estado grave. É que os policiais que aplicaram o gás, e mesmo os que operavam o serviço médico, não possuiam saberes e maiores informações sobre os seus efeitos.

No mesmo tempo em que a tragédia ocorria na Rússia, indica Moreno, a National Academy of Sciences, dos EUA, apresentou um relatório sobre o uso militar de “armas não letais”, incluindo “calmantes” como o referido derivado de cloridrato de fentanil. O final do relatório diz que a Convenção sobre Armas Químicas é ambigüo o bastante, quando se trata de armas daquele tipo.  O Pentágono assume atitude similar, afiançando que o uso daquelas armas é decisivo para que missões delicadas sejam bem sucedidas. Críticos dos costumes oficiais norte-americanos chamam a atenção para a perigosa proximidade entre armas químicas não letais e letais. Muitos se interrogam sobre o uso das últimas por ditadores que tiveram o apoio dos EUA, como Sadam Hussein na guerra contra o Irã.

O livro de J.D. Moreno traz informações preciosas para os que militam na defesa dos direitos civis democráticos. Vale a pena (apesar da tristeza causada pelos números e procedimentos analisados por ele) estudar os seus argumentos, comparando-os com o de outros analistas de posição contrária à sua. Mas é impossível fechar o volume sem o sombrio pressentimento de nem sempre a técnica e a ética encontram-se no rumo de melhor a vida humana.

segunda-feira, 22 de julho de 2019

É muito comentado o costume do atual presidente brasileiro de empregar pseudologias sem detença. De fato, ele é campeão no assunto. Todo dia seus lábios soltam mentiras em dose excessiva até para seus admiradores. Um tema que estudo desde longa data é a razão de estado e, nela, a mentira. O artigo abaixo é 2013, séculos em termos políticos, minutos em plano histórico. Segue para reflexão.

Mentira e democracia  
Roberto Romano O Estado de S.Paulo,8.12.13 

John Mearsheimer, especialista em questões bélicas e diplomáticas, publicou em 2011 o livro Por Que os Líderes Mentem -­‐Toda a Verdade sobre as Mentiras na Política Internacional. Ele comenta as práticas do governo americano após os ataques ao World Trade Center. Para Mearsheimer, a Casa Branca mentiu ao alegar a existência das armas de destruição em massa no Iraque, ao dizer que Saddam Hussein colaborava com Osama bin Laden, ao proclamar que o ditador iraquiano estava implicado nos ataques às torres gêmeas, ao anunciar negociação pacífica quando a invasão do Iraque estava pronta. Mearsheimer não é jacobino ("liberal"), sua posição tem forma conservadora. Após apresentar o que nomeia mentiras de George W. Bush, ele as justifica. Dada a anarquia imperante na vida internacional (conhecida desde Tucídides, Maquiavel, Hobbes e Hegel), todos os Estados estão sozinhos se precisam defender a hegemonia.  

Sem aliado seguro não há quem obrigue uma potência a seguir a ordem kantiana de jamais mentir.Afirma o autor que a mentira "é ação positiva, articulada para enganar a plateia alvo". A definição copia a de Santo Agostinho: mentir é "dizer o contrário do que se pensa, com a intenção de enganar" (De Mendacio). A mentira, comenta uma analista, "é boa se ajuda a superar situações sociais ou políticas"(Diana Margarit). Da "nobre mentira" platônica (A República, 414b-­‐c) aos nossos dias, o tema integra a razão de Estado. Frederico II, diz Hegel na Filosofia do Direito, perguntou em 1778 se "é permitido enganar um povo". Mas Hegel tem uma resposta maquiavélica: a plebe "engana a si mesma". 

O governante, se for eminente, conhece o verdadeiro e o falso, tem o direito de usá-­‐los para garantir o Estado contra os ignaros.Tempos atrás surgiu nos Estados Unidos o romance, escrito por um anônimo, intitulado Primary Colors (que resultou no filme Segredos do Poder). A trama é narrada pelo integrante de uma campanha presidencial. O candidato, tudo indica, seria Bill Clinton. O autor diz em prefácio que sua obra é pura fantasia. Mas os detalhes do enredo são confirmados pelas notícias. Após algum tempo surgiu o nome do autor, trata-­‐se de Joe Klein, experiente jornalista político, profundo conhecedor dos bastidores partidários.A campanha presidencial narrada segue receita antiga para ganhar eleições: mover os semeadores de boatos contra os adversários (os spin doctors), usar truques e fraudes virulentas. O mais importante reside na ambígua ética do candidato (Jack Stanton), que se imagina um mocinho, mas usa os meios dos bandidos para vencer. 

Na batalha pelas urnas, os "perversos" inimigos fabricam um elo extraconjugal do político. Detalhe: o fato é verdadeiro, mas para convencer os eleitores seria preciso "aprimorar a prova". Daí, eles unem trechos de várias conversas gravadas, as quais, por si mesmas, nada diziam sobre as alcovas do político. Para refutar o truque os marqueteiros de Stanton colam falas de uma entrevista televisionada e a passam ao público.Mostram, assim, que houve fraude na montagem, mas eludem o trato entre candidato e amante. Relações homoafetivas do adversário são expostas sem clemência. Vale tudo no belicismo eleitoral.Quando um membro da sua campanha quer deixá-­‐lo, "Clinton/Stanton" arrazoa: "Dois terços do que fazemos é repreensível. Sorrimos, escutamos -­‐podem crescer calos em nossas orelhas de tanto ouvir. 

 Fazemos nossos patéticos pequenos favores. Falamos para eles o que desejam ouvir e quando lhes falamos algo que não querem ouvir, usualmente é porque calculamos exatamente o que desejam escutar. Temos uma eternidade de sorrisos falsos. É o preço pago por nós para liderar. Você não acha que Abraham Lincoln foi uma prostituta antes de ser presidente? Você entende, como eu, que há muita gente no jogo que nunca pensa nas pessoas mas só quer vencer?".Comenta um filósofo: "Primary Colors analisa as rotas onde a democracia e seus ideais são erodidos e forçados por uma elite política e pela cultura midiática, em campanhas imersas na sujeira e na contra-­‐sujeira, na corrupção e na tentação de dizer ao eleitorado o que ele deseja ouvir" (Jon Hesk, em Deception and Democracy in Classical Athens). 

Voltemos ao maquiavélico Hegel (a massa engana a si mesma). É suspeito o prazer suscitado quando as carnes podres de um ou outro partido são expostas em boatos dos spin doctors e marqueteiros. O escândalo dura pouco tempo, sendo trocado pelo seguinte, e assim por diante. A vítima real das denúncias encontra-­‐se na instituição política, corroída e impotente. Sem a fé pública, ela não mais oferece a segurança basilar da existência cidadã. Eleições, em casos assim, marcam a morte da vida democrática, não seu vigor.Vivemos a guerra eleitoral de 2014. No mundo e no Brasil domina a propaganda mendaz (cf. Dennis W. Johnson, No Place for Amateurs: How Political Consultants Are Reshaping American Democracy). 

 Se, como diz Mearsheimer, mentiras podem ser aceitas em plano internacional, na vida interna dos povos elas dissolvem a sociedade. Quando os líderes mentem para as plateias, difamam adversários e batem contritos no peito, o regime democrático fenece. Spin doctors, na imprensa e na internet, espalham calúnias e medos. Eles vampirizam os sonhos da plebe. Tudo está programado para destruir os inimigos, no governoe nos recantos oposicionistas, e para rebaixar a cidadania. Lucram os oligarcas que pescam em águas turvas, mas quem lhes serve de instrumento vai para a cadeia.Quando lembramos a tese de George Orwell, pervertida com sarcasmo em Primary Colors-­‐"Se a liberdade tem algum sentido, ela significa o direito de dizer ao povo o que ele não quer ouvir" -­‐, temos a consciência de que já ultrapassamos os limites da escravidão, apelido que damos a uma suposta e melancólica democracia.