Esta
entrevista caiu como bomba na academia e me trouxe cortes de bolsas,
para mim e meus orientandos, perseguições de partidos políticos, inclusive de esquerda. Ao
observar a colusão dos dois lados nos dias de hoje, sorrio. Às vezes me
perguntam o preço da integridade. Um dos custos é ouvir militantes
enceguecidos (o que é quase tautologia) afirmando que no período FHC eu
nada fiz para criticar a política dominante de então... Republico esta
entrevista, extraída do site da Revista Caros Amigos,
porque nela, além das críticas ao governo FHC, encontram-se debates
sobre a universidade e sobre o Brasil que podem servir como pista de
estudo para os mais jovens.
Roberto Romano
Revista Caros Amigos entrevista com Roberto Romano
Este
filósofo, professor da Unicamp, sabe e sente na pele o que está
acontecendo com a universidade brasileira. O quadro é mais que
comprometedor, ultrapassa o limite da falta de responsabilidade. E só
não vê quem não quer.
Sérgio de Souza - Como começa sua vida, professor?
Roberto
Romano - Uma parte da minha família é do Rio Grande do Sul, que subiu e
que sumiu talvez no ar, não sei onde. E outra parte é de caipiras de
Tatuí e Itapetininga, que desceu e se encontrou no norte do Paraná, onde
nasci e vivi boa parte da infância e adolescência. E depois São Paulo,
onde fiz parte de movimentos estudantis, de movimentos católicos, de JEC
inicialmente. E por isso fui parar nos dominicanos. Fui dominicano doze
anos, saí e essa é a minha vida.
Marina Amaral - O senhor foi atraído pela filosofia nessa época dos dominicanos ou depois?
Roberto
Romano - Não, bem antes. Tínhamos em Marília um professor chamado
Ubaldo Puppi, que lecionava filosofia e era também um líder católico de
esquerda, foi preso em 1964. Quando surgiu a AP, a Ação Popular, nós
todos que gravitávamos ao redor do professor Puppi ficamos apaixonados
pela filosofia.
Marina Amaral - E qual a relação entre o convento e o seu interesse pela filosofia?
Roberto
Romano - No convento dominicano iria fazer estudos teológicos apenas
para ordenação e não para a vida confessional, porque eu disse que
queria fazer filosofia mesmo. Então me autorizavam, como a vários
outros, a fazer filosofia na USP. E fizemos. Depois iria fazer o
doutorado em filosofia pela ordem, na Suíça, com o frei Carlos Josaphat.
Marina Amaral - Isso foi quando?
Roberto
Romano - Isso foi em 1967, 68 e 69, fiz o vestibular da USP, passei,
mas aí veio um ano de noviciado, quando a pessoa é proibida de sair do
convento etc., depois fui preso em dezembro de 1969, passei um ano na
cadeia, e aí então voltei para a universidade. E acabei fazendo
doutorado na École des Hantes Études de Paris.
José Arbex Jr. - Como foi a sua passagem do cristianismo do convento para a militância da AP?
Roberto Romano - Fui da AP antes do convento.
Marina
Amaral - O senhor tem sido um dos maiores críticos do ensino superior
no Brasil e até usou a expressão "genocídio programado"...
Roberto
Romano - É muito interessante que comecemos a falar de universidade,
porque o que aconteceu nestes últimos seis anos no Brasil foi um
desmonte programado, intencional, racional, de todo um sistema de
produção de saberes. O ministro Paulo Renato chegou a dizer na revista
Exame que seria ótimo imitar a Coréia, não incentivar cursos de
pós-graduação no país e mandar gente, por exemplo, para Harvard, porque
era mais barato. Isso esconde o quê? Esconde o desmonte dos
laboratórios, esconde a produção de remédios, esconde a pesquisa sobre
AIDS, sobre o câncer, sobre uma série de coisas que estavam sendo feitas
aqui. Há certos cientistas, nada radicais, como o senhor Ésper
Cavalheiro, pró-reitor da Universidade Federal Paulista, que diz: "O
dinheiro do Pronex (Programa Nacional de Excelência) não vem e eu tenho
tecido cerebral apodrecendo no laboratório". Isso eu chamo de genocídio
programado. Porque é impossível que essas pessoas que estão no governo, a
começar pelo presidente da República, não saibam o que estão fazendo.
Você pode até ser condescendente com pessoas como Collor, que é um
menino rico do Nordeste, um sinhozinho, e que tem aquela cultura para
enganar trouxa, fala muitas línguas... Agora, a formação do Fernando
Henrique não lhe permite dizer que não sabia. Portanto, ele e o seu
ministério, a começar pelo ministro Paulo Renato, têm uma
responsabilidade muito grande sobre o que está acontecendo. Ao abraçar o
Antônio Carlos Magalhães, e ao abraçar essa via do possível, o que fez
ele? Escolheu o caminho da tradicional dominação brasileira,
violentíssima, paternalista e mentirosa. Fui este ano a Salvador para
dar uma palestra, no dia do aniversário do Antônio Carlos Magalhães. Me
senti mal. A mais de 5 quilômetros da casa desse senhor, havia faixas e
mais faixas de municípios não sei das quantas com os dizeres "o
município tal está prostrado aos pés do Antônio Carlos Magalhães", uma
coisa assim terrível. E, quando outro, o ministro Francisco Weffort, que
tem duas teses sobre populismo e portanto sabe o que está falando, diz
que Antônio Carlos Magalhães tem condições de conquistar a simpatia
popular, isso para mim é crime. Não tem outro nome. Existe uma pesquisa
do professor José Arapiraca, já falecido, da Universidade Federal da
Bahia, interessantíssima, sobre o nome das escolas do Nordeste e da
Bahia. Então, "Padre Vieira", trinta escolas, "Antônio Carlos
Magalhães", trezentas e cinqüenta e poucas escolas. (risos) Isso é roubo
do patrimônio simbólico público!
Sérgio de Souza - Em que nível se daria o genocídio programado?
Roberto
Romano - Se alguém conhece a estrutura de dominação de classe do
Brasil, se conhece a irresponsabilidade das elites dirigentes em relação
à população, e intencionalmente desmonta laboratórios, como aconteceu
infelizmente aqui em São Paulo, qualquer visita ao Butantã, por exemplo,
já dá idéia do que está por trás. Quer dizer, essa pessoa, vou lhe dar
outro nome, que não é muito de esquerda mas infelizmente é um dos
elementos essenciais do governo Covas, o senhor Ioshiaki Nakano, teve o
cinismo de dizer a um grupo de cientistas: "Hoje, na era da Internet, a
gente não precisa mais de institutos de pesquisa aqui no Brasil.
Apareceu uma moléstia, você acessa a Internet, vem o remédio e está tudo
resolvido". (risos) Isso não é genocídio programado?
José Arbex
Jr. - Professor, uma postura que acho admirável no professor Milton
Santos é quando ele fala que o intelectual é um traidor. É aquele que
trai as expectativas que depositam nele em obediência unicamente a suas
próprias convicções. Analisando, por exemplo, o que os intelectuais
estão fazendo na USP ou na Unicamp, fico abismado com a paralisia geral,
há uma desarticulação total na universidade. Por que isso?
Roberto
Romano - Concordo em gênero, número e caso com o professor Milton, em
todas as atitudes, e digo mais: sempre repito, para irritação dos meus
colegas, que não existe instrumento mais flexível no universo do que a
espinha dos intelectuais. (risos) Por exemplo, a questão dos direitos
humanos. Vou dizer coisas que aconteceram. Anos atrás, fui procurado
pela Anistia Internacional para servir como intermediário junto às
universidades de São Paulo em relação a um programa de educação para os
direitos humanos. Diziam eles: "Não somos pedagogos, psicólogos,
filósofos ou sociólogos, somos liberais. Mas temos algum dinheiro e
queremos fazer livros e programas etc. Então precisaríamos da assessoria
dessas pessoas".. Procurei na Unesp as pessoas que poderiam dar
andamento ao projeto, e ela convocou uma reunião para discutir com o
pessoal da Anistia Internacional. Dessa reunião resultaram alguns grupos
de estudo. Boa parte deles, como tenho uma língua horrorosa, mesmo
assim ficou um pouco atraída porque iria existir dinheiro para a
publicação, mas em todo caso estavam lá.
Sérgio Pinto de Almeida - Quem sabe, umas passagens aéreas também. (risos)
Roberto
Romano - Há um autor que diz isso, que as universidades de hoje estão
se transformando no seguinte: a pessoa mais importante é o gerente de
recursos, e os professores todos são globetrotters que vão vender o
logotipo pelo mundo afora. Bom, no caso da USP eu não procurei, porque
lá existem grupos de estudos contra a violência, pela consciência negra
etc., enfim, falei: "Não é necessário, o pessoal da Anistia que entre
novamente em contato com eles". E fui à Unicamp, a minha universidade.
Falei com o pró-reitor de pós-graduação, José Dias, que me indicou todos
os diretores que poderiam estar interessados, sobretudo da área de
humanas. Além do que, conheço bastante a universidade. Pois bem, a
Faculdade de Educação da Unicamp recebeu o pessoal da Anistia, numa
reunião de congregação, durante cinco minutos, o presidente, que era o
diretor, disse: "Agora acabou, que vamos tratar agora de assuntos
sérios".. E o pessoal da Anistia saiu sem nada, nada foi discutido, nada
foi feito. Mas no meu instituto foi pior. Ele é coalhado de gente de
esquerda, gente que escreve livros de direitos humanos. E a congregação
do instituto se recusou a receber a Anistia Internacional porque não era
um "assunto acadêmico", e numa congregação só se conversam assuntos
acadêmicos. Diante da recusa, procurei a diretora do instituto, a
professora Mariza Correia, antropóloga, pensando: "Pelo menos uma
conversa com a diretora do instituto, já que a congregação não quer
conversar".. Chegamos na porta do gabinete da diretora, e demos com o
aviso: "Audiências todas canceladas, porque estamos discutindo as bolsas
da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino
Superior)". Meti o pé na porta, entrei berrando feito um italiano e
disse: "Pelo menos em cinco minutos a senhora vai ceder". Aí cedeu.
Agora, sabe quando foi isso? Isso foi uma semana depois do Carandiru.
José Arbex Jr. - Nossa!
Roberto
Romano - Então, quando você fala de ética, tenho algum problema de
ordem conceitual. Ética, no sentido aristotélico, no sentido hegeliano, é
o conjunto de hábitos físicos e mentais que foram produzidos
historicamente e que se tornaram automáticos, de tal modo que as pessoas
fazem e não têm consciência. Por exemplo, a ética do trânsito
brasileiro é das mais hediondas do mundo, mas é ética. Distingo isso
daquilo que chamamos de consciência moral. Então, nesse sentido, a ética
intelligentsia brasileira é a ética de servir ao sinhozinho. Essa é a
ética, a de produzir uma imagem de si como bastante radical para ter
condições de negociar depois uma adesão retumbante.
Milton Santos - Não será também a ética da subserviência à intelligentsia forânea hegemônica?
Roberto
Romano - Ah, sim, o senhor pôs o dedo na ferida: temos uma
intelligentsia que coloca para si mesma o padrão internacional, e que
vive aqui num eterno banzo de uma França não existente. Enquanto isso,
convive muito bem com a casa-grande.
Leo Gilson Ribeiro - O
senhor não acha que os exemplos semeados por Simone de Beauvoir, Sartre,
opostos à covardia Merleau-Ponty, durante o período de ocupação da
França, também não serviram de parâmetro para muitos intelectuais, entre
aspas, brasileiros agirem de maneira aética?
Milton Santos - Eu
queria fazer uma interrupção. Serão intelectuais mesmo ou só letrados?
Acho que houve uma multiplicação do número de letrados, e uma redução do
número de intelectuais.
Roberto Romano - É verdade, essa
distinção sartriana acho fundamental. Existem os filósofos, os
parafilósofos – que trabalham todo dia –, os pensadores e os ideólogos.
Os filósofos são aqueles que criticam, que abrem caminho, que se
arriscam, que arriscam o erro, isso é um elemento fundamental. Não
existe pensamento filosófico ou científico sem direito de errar. E esse
direito está sendo negado pelo tipo atual de avaliação da universidade.
Você tem de acertar sempre, é a fábrica de pãozinho, a receita foi dada,
um mestrado é feito em dois anos e meio, três anos, e um doutorado em
quatro. E dane-se quem não fez isso aí. E na avaliação também da
produção teórica.
Milton Santos - Eventualmente, talvez a gente
pudesse cruzar com a questão do totalitarismo, acho que foi levantado
que na vida acadêmica isso hoje tem um papel muito forte. Totalitarismo
mesmo.
Roberto Romano - O senhor acha?
Milton Santos - Acho, sim.
Sérgio
Pinto de Almeida - Deixa eu colocar uma provocação no ar, que é o
seguinte: há uma fé nas pessoas de que existem sinais claros de
descontentamento na sociedade. No caso do meio universitário – não vamos
nos restringir ao intelectual da colocação do professor Milton, mas no
meio acadêmico –, quando o senhor conta um episódio tão patético como
esse da Anistia indo à Unicamp, quando a gente vê uma série de
manisfestações isoladas de professores, pergunto: não é possível esses
professores, um da Unicamp, um da Unesp, um da UFRJ etc., criarem uma
instância mas não burocrática, um fórum de discussão com uma programação
que possa ser levada de forma mais sistemática, ordenada, por meio de
encontros, de seminários, uma programação que possa ter alguma
representatividade, algum percurso pelo país? Será que essa também
burocracia da universidade não restringe a ação dos descontentes?
Roberto
Romano - Acho que sim. Talvez por isso o professor Milton esteja
falando de totalitarismo hoje na universidade. Porque as coisas são
dadas, o pacote é dado, e o modo de executar e de avaliar são dados. São
a priori, e você tem de levar em conta a priori. E, se não leva em
conta, você tem sempre o bate-estaca de plantão, que está ali do lado.
Quer dizer, fiz parte da avaliação da CAPES deste ano da Filosofia.
Milton Santos - Filosofia da USP ou do Brasil inteiro?
Roberto
Romano - Do Brasil todo. Até agora, o comitê de avaliação era soberano.
A partir deste ano, não, você tem acima dos avaliadores um conselho
superior. E esse conselho superior estabeleceu determinados parâmetros
do que é ciência, do que é pesquisa, do que não é etc. Antes, os
avaliadores tinham sempre a possibilidade de se comunicar com os
programas e dizer: "Olha, está faltando tal coisa, tal dado etc."..
Agora chegamos e estava tudo no computador, o que existia eram dados do
computador. E antigamente as notas eram A, B, C, A+, também era uma
bobagem, mas enfim... Aí recebemos a seguinte ordem: "A nota será
numérica, de 0 a 7; 7 apenas aqueles programas que tenham condições de
‘concorrer internacionalmente’ (ri) em termos de produção científica".. E
o que tínhamos eram os dados do computador. Não existiam pessoas, não
existiam instituições, não existia nada, existiam números. Publicou
cinqüenta artigos, foi a não sei quantos não sei o que etc. etc. e o
peso específico. E um dos elementos que contam é o tempo de titulação
dos alunos. Então, se um programa, por exemplo, levou em média quatro
anos e meio, ele perde pontos. Note, não sou fanático da qualidade, acho
que quantidade também tem um elemento muito importante. Mas você
absolutamente recusa esse critério, a possibilidade do erro. Quer dizer,
um menino vai fazer doutorado na área de biologia. Ele parte de um
conhecimento, ele tem informes, ele tem um orientador que é uma pessoa
responsável etc. etc. Mas ele não vai programar o sistema lógico
restrito. Ele vai encontrar elementos que são imponderáveis, que podem
inclusive colocar por terra todo o aparato intelectual que ele
movimentou na produção do projeto. E vai ter de recomeçar, e muitas
vezes é dessa maneira que se faz ciência. Você nega aquelas verdades
estabelecidas ou mostra que aquelas verdades não abrangem todo o real.
Ora, isso está negado, porque, se alguém ficar mais cinco meses revendo a
sua tese, às vezes nem revendo hipóteses mas revendo a própria tese, o
seu programa perde pontos. Havia um sistema de cooptação do número de
bolsas com a nota da CAPES, que agora está desvinculado. Agora, você não
tem mais relação entre a produção e a nota. E recursos. Antigamente, se
um programa obtinha nota A, ganhava direito a determinado número de
bolsas. Hoje, não, ele pode ter nota 7 e esse direito não está
garantido, porque o conselho superior vai decidir.
Marina Amaral - E quem é esse conselho superior?
Roberto Romano - O conselho superior tem sumidades que me dispenso de dizer o nome, porque...
Marina Amaral - Mas são reitores, pessoas ligadas ao governo?
Roberto
Romano - Que são ligadas ao governo, evidentemente. Mas que haja grande
refinamento intelectual... Alguns até têm uma formação boa, é uma
produção boa mas são de uma arrogância! Vou dar um exemplo: no caso da
Filosofia, não demos nenhum 7, demos nota 6 para seis programas. Aí
recebemos um papel assim, sem timbre, sem nada, onde uma das pessoas,
que agora é assessora do Bresser Pereira no CNPq, redigia assim: "Senhor
coordenador e membros. Não é possível que tais e tais programas - no
caso, Federal do Rio Grande do Sul, Federal do Rio de Janeiro e PUC do
Rio de Janeiro – sejam nota 6, porque não tem o número de publicações
adequado. Providencie sobre isso". E nem assinado!
Leo Gilson Ribeiro - É como na universidade americana: publique ou pereça?
Roberto
Romano - É pior. Aqui eles têm essa exigência. Agora, como você pode
chegar a publicar aqui no Brasil? Quais são as condições de publicação?
As editoras universitárias são poucas, a grande maioria não tem pessoal
qualificado – e aí quero destacar uma honrosa exceção, a editora da
Unesp, que é muito boa – e as editoras privadas ou não têm capital ou
não têm interesse em publicar. Então, isso eu não teria coragem de
chamar de totalitário, mas chamaria de autoritarismo atroz.
Marco
Frenette - Professor, nessa dificuldade de publicação não entra um
pouco também a linguagem hermética, e às vezes extremamente confusa até
para os próprios acadêmicos?
Roberto Romano - Isso também.
Marco
Frenette - Costumo pegar livros que são simplesmente ilegíveis, e isso
inviabiliza a publicação para um público um pouco maior que o acadêmico.
Roberto
Romano - Essa é uma condição para a formação das quadrilhas
universitárias. Aliás, a quadrilha que deu certo foi a dos economistas.
José Arbex Jr. - Deu certo?
Roberto Romano - Deu certo, porque estão acabando conosco.
Marina Amaral - Para eles, deu certo; pra nós, não.
Roberto
Romano - Você produz o idioleto, que só seria dominado pelos que seriam
exímios naquela área. Então, esse idioleto é o filosofês, é o
sociologuês, é o antropologuês etc., e o economês. Aí, o sujeito usa
esse negócio, e isso é o que possibilita muita picaretagem e receber
muito dinheiro supostamente em cima de pesquisa. Agora, acontece que,
quando isso é traduzido em livro, evidente que o grande público não é
composto pelos elementos da quadrilha. Você tem um público muito
heterogêneo, que pode, digamos assim, não concordar com essa linguagem.
Bom, aí dana-se.
Marco Frenette - Ele se vê obrigado a escrever nessa linguagem para ter um mínimo...
Roberto
Romano - Para ter o reconhecimento dos seus pares. E para que o
assessor, quando bater o olho em três palavras-chaves... Tem até
palavra-chave! Isso eu acho que é uma coisa...dizem que é para facilitar
a consulta. É nada!
Milton Santos - Agora, os que são normais, desculpe a pergunta, não deveriam se recusar a comparecer nesses comitês?
Roberto Romano - Acho que sim, eu...
Milton Santos - Não é nada direto.
Roberto Romano - Não, é verdade, o senhor tem toda a razão.
Milton
Santos - Há dez anos que não vou lá. A minha discordância com a sua
observação de agora é o tempo, porque há dez anos que vi que é
impossível estar lá, que esse processo já estava se delineando há dez
anos. De indução, e agora de um consenso que permitiu que o senhor fosse
lá, e que ao meu ver não deveria ter ido.
Roberto Romano -
Confesso ao senhor que fiquei bastante preocupado pelo fato de ir, e
pelo fato de ter sido convidado. O senhor tem razão, porque não poupo...
Sérgio Pinto de Almeida - Ganha para ir?
Roberto Romano - Você ganha a passagem, o hotel, o lanche no meio da tarde.
Marina Amaral - E essa CAPES é constituída como?
Roberto
Romano - Ela é uma instituição do Ministério da Educação, e teve como
função inicial justamente melhorar o padrão de formação dos professores,
dos pesquisadores.
Milton Santos - Foi o Anísio Teixeira que idealizou isso, não foi?
Roberto Romano - Anísio Teixeira. E pouco a pouco ela começou a assumir uma atitude de financiadora.
Milton Santos - De policiamento do trabalho.
Sérgio Pinto de Almeida - De distribuição de verbas também.
Roberto
Romano - Sim, sobretudo de distribuição de verbas. Bolsas de estudo,
dinheiro para projetos, um projeto de curso, de trabalho etc.
José
Arbex Jr. - O senhor não acabou de responder a pergunta do Sérgio Pinto
sobre a articulação de professores que tenham uma percepção crítica...
Roberto
Romano - O problema é que não sei o que acontece do governo Sarney pra
cá... Sei um pouco, tinha instrumentos de intimidação, a Rede Globo,
essas chantagens todas, isso eu sei, mas acho que é alguma coisa um
pouco mais complexa. Precisaríamos conversar um pouco mais sobre isso.
Mas não chega a existir a força para as pessoas se reunirem. No mês
retrasado estive em Santa Catarina, num fórum de pesquisa da Federal de
Santa Catarina. E é uma coisa interessante, porque as pessoas estão
chegando a um ponto que nem sequer para conseguir esses recursos, ou
para entrar em contato com os fornecedores de recursos, se reúnem mais.
No ano passado fiz cinqüenta viagens pelo Brasil inteiro, falando da
questão da autonomia universitária, criticando a política do governo
etc. Não que eu esteja falando do Ibope, mas normalmente as audiências
não passam de quinze a vinte pessoas, em mesas-redondas com gente de
peso nacional e internacional. E nessa de Santa Catarina tinha mais
gente na mesa do que no plenário! Com a seguinte mudança: na mesa, fora
eu, que não tinha peso nenhum do ponto de vista político-institucional,
estavam o diretor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo), o diretor científico da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Rio Grande do Sul e o diretor científico daquilo que eles
chamam de fundação, lá de Santa Catarina. Sabe, então, nem os puxa-sacos
estão se reunindo mais. (risos)
Marina Amaral - O senhor está dizendo que a universidade não debate mais?
Roberto
Romano - Não, e existem meios e ilusões que estão alimentando esse
estado de coisas. Na Unicamp, quando o Paulo Renato era o reitor,
desenvolveu a idéia de fazer a universidade assim, (faz um desenho),
quer dizer, a Unicamp é uma bolinha e os núcleos de pesquisa ficariam na
periferia. Então, cada núcleo de pesquisa em cada área arrecadaria
recursos do Estado ou da iniciativa privada para as pesquisas, de tal
modo que as pessoas desse grupo de pesquisa estariam liberadas da
servidão universitária, constitucionalística etc. etc. Fiz parte de um
deles, não por opção minha, mas porque era chefe do departamento, e o
chefe do departamento tinha de fazer parte do conselho do núcleo de
estudo de políticas públicas. Mas pedi demissão, dizendo: "O
departamento que mande outra pessoa" – justamente, a partir do primeiro
relatório sobre o governo Montoro. Se vocês forem na Unicamp, peçam esse
primeiro relatório e vejam o que é aquilo. É uma peça de propaganda
pura e simples. Onde a estatística foi falseada etc. etc., no estilo
pior do ideólogo, enfim, esses grupos. Então, haveria na física, na
engenharia etc. etc., e a universidade seria reduzida aos professores
que dariam aulas e que, portanto, não fariam pesquisas. Isso deu errado
porque o Plano Cruzado deu no que deu. Depois veio o Plano Collor, e
esses núcleos ficaram meio fantasmáticos na Unicamp. Com a vinda do
Pronex, as pessoas que faziam parte desses núcleos adquiriram uma
esperança nova. "Virá o dinheiro do Pronex, somos excelentes" etc.
Então, você tem espaço para os excelentes dentro dos prédios, eles são
considerado excepcionais etc. etc. Veja, o que acontece quase sempre é
que, quando não há essa defesa ou essa permanência dentro dos quadros
mínimos do que seria uma universidade, os grupos procuram a solução
pessoal. E correm atrás dessa ilusão. Então, no caso, durante quatro
anos, o Pronex serviu exatamente para abafar a possibilidade de você
reunir as pessoas para discutir a universidade no sentido exato da
palavra. Eles não estavam interessados na universidade.
Marco
Frenette - Não seria possível pensar a universidade de uma tal maneira
que quebrasse esse isolamento? Porque os produtores são os professores. E
o aluno sofre muito. Universidade pública, ou privada, o que acontece é
que se enche uma sala com cinqüenta alunos, e a pessoa se forma em
letras e você pergunta de um Schiller, um Goethe, ele não sabe localizar
esse escritor. Como o senhor vê essa condição da universidade como
fornecedora de conhecimento para os alunos?
Roberto Romano - Vou
dizer uma coisa que é meio complicada, mas não gosto de pedagogo.
Sobretudo não gosto das faculdades de educação. Chamo a Faculdade de
Educação da Unicamp de Pentágono, (risos), não por causa de o prédio ter
cinco pontas, mas porque ela domina praticamente toda a atividade
docente, da graduação à pós, e a avaliação também, criando situações
tragicômicas. Por exemplo, um médico que trabalhe com seus estudantes
numa enfermaria, ensinando etc., não é promovido na Unicamp porque não
tem o número de horas-aula. A hora-aula é a terminologia do
flanelógrafo, quer dizer, uma sala com aquele negócio lá, aquilo é
hora-aula. Os padrões são esses. A linguagem é muito reveladora. Temos
"grades curriculares" não é por acaso. O próprio Schelling, no momento
em que era ainda meio fã da Revolução Francesa, teceu considerações
sobre o ensino na universidade alemã e dizia: "Mas quem fez os
currículos, baseado em que, para quem?" Quer dizer, o jovem entra e tem
de seguir aquelas cadeiras, aquelas disciplinas – o nome também é
disciplina –, e quando ele sai está com aquelas disciplinas na cabeça e
no corpo. Mas isso não tem quase nada mais a ver com o que as pessoas
estão fazendo. No nosso caso, da filosofia, existe história. Por
exemplo, não é por acaso que um dos intelectuais mais respeitáveis do
país, mas teve uma história de autoritarismo muito grande que é o
Tristão de Athayde, ficou muitos anos no Conselho Federal de Educação, e
lá ajudou a elaborar um currículo de filosofia que é imposto até hoje. A
USP tem até hoje metafísica, só que ela dá outra coisa, mas ela tem
aquilo, uma coisa muito complicada. Então existe a intenção do
currículo, que corresponde a determinados interesses, no caso eram os
interesses católicos, e existe a realização dos curricula. Mas o
problema não está aí, o problema está em outro aspecto. Gosto de ser
bastante prático nos momentos práticos: a Unesp é uma universidade
criada pelo Maluf para abrigar um ex-Secretário de Educação dele. Pegou
todos os institutos de ensino isolados superiores do Estado, e fez a
Unesp, cuja sede legal era em Ilha Solteira, e a sede real é na praça da
Sé, em São Paulo. O que fazia, por exemplo, no dia de reunião do
conselho universitário, com que os diretores pegassem um avião e os seus
motoristas fossem de carro esperá-los no aeroporto de Congonhas, para
levar para a praça da Sé, e enchiam a praça da Sé de tal modo com seus
carros, que o trânsito ficava congestionado. Mas era uma instituição
criada de cima para baixo, autoritária, com laivos de fascismo. Quando
começou o governo Montoro, a Unesp fez um congresso de modificação, de
reinstauração. E criou três comissões grandes: ensino e pesquisa;
carreira docente; e poder na universidade. Ensino e pesquisa, você
entrava facilmente na sala, porque tinha umas quinze, vinte pessoas.
Carreira docente, um pouquinho mais, porque isso interessava alguns
professores. Você não conseguia chegar perto da sala do poder. Então,
esse é um retrato perfeito da cabeça desse pessoal. Poder, para mim, é
algo que se concentra naqueles três monopólios que o Estado se arrogou, e
que retirou da sociedade.
Leo Gilson Ribeiro - Quais?
Roberto
Romano - Monopólio da força física, só o Estado tem o direito de
prender ou declarar guerra, nenhum particular tem mais esse direito.
Segundo monopólio, a norma jurídica. Só o Estado pode editar leis
cogentes para todo e qualquer indivíduo ou ele próprio. E o terceiro
monopólio é o da gestão do excedente econômico. Só o Estado pode
estabelecer impostos, taxas etc. etc. Onde a universidade tem isso? Onde
um reitor tem isso? O que acontece é que temos representantes do poder
dentro da universidade. Esses reitores são embaixadores do poder, são
servos do poder. E, quando eles têm boas relações com os centros de
poder, seja militar ou policial, como aconteceu na USP durante anos,
mesmo no período anterior à ditadura militar de 1964, seja do ponto de
vista econômico, seja do ponto de vista jurídico, esses sujeitos fazem
as suas universidades até crescer.
Milton Santos - Uma das
perguntas que preparei para lhe fazer é exatamente esta: me parece que
dentro das universidades, talvez em função das novas condições de
realização do trabalho acadêmico, é que essas pessoas que se renovam nos
postos de comando, que distribuem as notas, que organizam o nosso
trabalho impondo normas, inclusive prazos, constituem um grupo que tem
uma certa autonomia de existência, e que se opõe à idéia da
universidade. Isso é grave. E aí já engato com outra questão: será que
estamos abdicando do dever da crítica interna, buscando só criticar o
ministério, mais não sei o que, mais as agências, mas as próprias
universidades recusam essa crítica interna? Acho que um dos objetos da
crítica interna seria ver essa produção interna de buroprofessores. Quer
dizer, são aqueles indivíduos que sai um, entra outro, mas é o mesmo
grupo, que é inútil como esses pró-reitores quase todos, que são pessoas
inúteis porque são intermediários dos quais não necessitamos na
realidade, e que são um estorvo inclusive à produção intelectual.
Roberto Romano - A universidade não consegue autonomia por causa desses grupos.
Milton Santos - Que são internos a ela. E eles não deixam o debate se fazer.
Roberto
Romano - O senhor tem razão. Veja bem, professor, há um elemento que
acho até mais grave ainda. Me parece que a universidade mimetiza, de
maneira perversa até, porque ela é uma espécie de parasita, mimetiza a
estrutura de poder do Estado. No Estado brasileiro, você tem o
Executivo, que supostamente é onipotente, e tem o Judiciário e o
Legislativo, que vivem em função do Executivo. Na universidade, você
criou a figura do reitor, que está acima do conselho, acima de qualquer
coisa. Mas, na verdade, para que essa onipotência exista, é necessário
que tenha os seus grupos de sustentação.
Milton Santos - Os nomeados depois das eleições.
Roberto Romano - Exatamente.
Milton Santos - Eles são cabos eleitorais, não são mais colegas nossos.
Roberto Romano - Não, eles são administradores profissionais.
José Arbex Jr. - É o tacão de fora.
Milton Santos - Ou o cheque de dentro.
Roberto
Romano - No caso da Unicamp, todo candidato a reitor é obrigado a
dizer, quando está em campanha, que a Unicamp é um anãozinho com uma
cabeçona bem grande. A cabeçona é o número de funcionários e de grupos
que ficam na reitoria em detrimento do lugar onde se deveria fazer
pesquisa e ensino. Porque a cada novo reitor é necessário acomodar os
velhos grupos e os novos. Então, você vai aumentando a cabeçona da
universidade. E você tem uma troca fisiológica tão grave como no caso do
poder federal. "Então eu te dou isso, te dou aquilo, você fica com tal
setor, eu te dou tal e tal pró-reitoria, você fica com isso, você fica
com aquilo." Mesmo a atual reitoria da Unicamp, que supostamente é uma
oposição há doze anos de direção, teve de lotear direitinho, bonitinho,
as coisas. Bom, esse é um ponto. Agora, tem outro elemento que é grave e
que normalmente os universitários não gostam de conversar, que é o
problema das fundações. Não vou nem falar da USP, porque sei que aquilo
lá é um horror. Aquilo lá dá vários contos policiais e várias coisas
mais. Na Unicamp tem a Funcamp, você tem uma série de "amps" lá dentro.
Essas fundações são mantidas com dinheiro da universidade, ou com
dinheiro da FAPESP, ou com dinheiro do CNPQ ou com o dinheiro da CAPES.
Então são dinheiros públicos que estão ali.
Milton Santos - Das empresas também.
Roberto
Romano - Das empresas também. Tem um lá, chamado de Uniemp, que é uma
beleza. Mas, na última reitoria, toda vez que a oposição queria, no
conselho universitário, examinar as contas das fundações, o reitor
retirava de pauta. E chegou-se a dizer que eram entidades com direito
privado. É uma monstruosidade jurídica. Não existe. O que aconteceu?
Essas fundações distribuem os dinheiros para pesquisa, para os grupos
etc., evidentemente para quem é amigo do rei. Agora, no caso do
funcionalismo, muitas nomeações eram feitas por ali. No caso do Baneser,
também teve esse negócio. Publiquei um artigo na Folha de S. Paulo, que
dizia: "É preciso furar esse tumor na universidade".
Marina
Amaral - O senhor dizia que é preciso divulgar que as pesquisas estavam
sendo financiadas, quem estava nelas e quais eram os objetivos...
Roberto
Romano - Até hoje, você tem uma banca de doutorado. Alguém fez uma
banca de doutorado, você senta lá, por mais que você saiba que tem um
jogo de cena, tem: "Eu aprovo o teu aluno, você aprova o meu".. Mas
existe um limite, que é justamente o fato de ser pública essa defesa.
Portanto, se houver plágio ou alguma coisa, alguém pode dizer: "Olha,
isso aí está invalidado". Portanto, quem está na banca está empenhando
publicamente o nome. Agora, que responsabilidade pública tem alguém que
julga um projeto de pesquisa no anonimato mais absoluto?
Marina Amaral - Mesmo os projetos que são escolhidos pelas fundações para ser financiados, não é?
Roberto
Romano - Exatamente. Agora, esse anonimato serve para você não prestar
conta dos dinheiros, mas serve também para você cortar idéias, perseguir
inimigos, "definir" um rumo definido do saber.
Sérgio Pinto de Almeida - E você aprova um tipo de pensamento.
Roberto
Romano - Sim. É um mecanismo muito bem-feito. A FAPESP está agora
publicando o nome de quem pediu o projeto, o montante do projeto, o
tempo em que o projeto será feito. Isso já é um avanço, porque as outras
não têm nada disso. Ninguém fica sabendo quem aprovou, quem vai
aprovar. Aí, agora vou contar um caso que é mais grave. Eu estava um dia
no Instituto de Filosofia e recebi o telefonema de um alto dirigente do
CNPq. "Professor, estamos mandando para o senhor um projeto, e vamos
pedir o seu parecer negativo." (risos) Vocês vão ver o negócio, é muito
mais grave. "Estamos pedindo o parecer negativo pra todos." "Não,
mas..." "Por favor, o senhor não fique bravo, o senhor leia o projeto
que o senhor vai entender." Li o projeto e entendi. Era um projeto
liderado por um ex-reitor de uma universidade do Nordeste: Por que
Existe Corrupção no Brasil. Esse projeto indicava quatro filósofos e
cinco sociólogos. E você faria aquilo que eles chamavam de
fenomenologia. Fenomenologia significa pegar o estudante, o monitor, ele
iria para a praça pública e perguntaria ao povo o que achava da
corrupção. Aí os filósofos entravam com alguns textos de Platão, uns
textos de Rousseau, alguma coisa assim, os sociólogos etc., juntava tudo
com as entrevistas e a pesquisa estava feita. Para isso, eles pediam
viagens para Londres, viagem para não sei onde, pediam computadores,
pediam gravadores etc., bolsa para os estudantes...
Milton Santos - Qual era o custo disso?
Roberto Romano - O custo era de aproximadamente 1 milhão de dólares!
José Arbex Jr. - Bom, está explicada a corrupção no Brasil. (risos)
Roberto
Romano - Aí fiz um parecer dizendo que parabenizava os componentes,
porque sou filósofo, tenho uma tendência de idealista e gosto quando o
círculo lógico se completa perfeitamente. Então, os parabenizava porque
era o primeiro projeto corrupto sobre corrupção. (risos) E por que eles
estavam pedindo parecer negativo? Porque já havia dois positivos. E o
projeto foi aprovado, sim, senhores. Evidente que a loucura do 1 milhão
não entrou. Diminuíram as pretensões. Sete meses depois estou de novo no
Instituto de Filosofia, a mesma pessoa me liga: "Professor Romano,
estou mandando um projeto daquele mesmo grupo, e estamos pedindo de novo
aquele seu parecer negativo". Aí o tema não era mais corrupção, porque o
Collor já tinha caído, era o neoliberalismo no Brasil... Então ficaram
alguns indivíduos daquele grupo de professores, saíram outros etc., e
assim uns leriam Locke, outros leriam Rousseau de novo (coitado do
Rousseau!), e aí fariam um levantamento, e para isso pediriam bolsa de
novo etc. etc. Um dos elementos que achei gravíssimo era o projeto ser
um negocinho deste tamanho, mas gordo, porque era nutrido com xerox de
títulos honoris causa daquele ex-reitor. E todo mundo sabe o que
significa um reitor receber um título de doutor honoris causa, quer
dizer, se o professor Milton receber é uma coisa, agora, um reitor é um
pouco diferente. Vamos pensar muito no caso do reitor, pode ser que seja
um reitor...
Milton Santos - Ou um presidente, também... (risos)
Roberto
Romano - É, ou presidente. Muito raramente é pelos belos olhos ou pelo
trabalho científico ou ético da pessoa. Você faz um convênio: você me dá
um honoris causa, eu te dou um honoris causa. Então era um negócio
deste tamanho. Teci considerações sobre a não-possibilidade de aceitar
isso como um projeto. Isso foi aprovado de novo. Então, fico na seguinte
situação ética: não posso colocar isso com todos os nomes e endereços
na imprensa, como me deu comichão de fazer.
Milton Santos - É o dever do sigilo.
Roberto
Romano - É o dever do sigilo, então eu seria "antiético"... (risos)
Agora, tenho de assistir a canalhas roubando, e isso é ao lado de
Caruaru! São pessoas que estão fazendo isso que não é filosofia, que não
é sociologia, que é apropriação de dinheiro público pura e
simplesmente, que é picaretagem, ao lado de Caruaru, onde as pessoas
estão morrendo porque as máquinas não têm como se manter, como melhorar
etc. etc. Então, fico nessa situação, não posso denunciar os dois, não
sei quem foram as pessoas que deram o parecer positivo, está claro?
Sérgio de Souza - É um jogo de cartas marcadas.
Roberto
Romano - Isso nem tem a ver com ética, isso é um tumor. Agora, como é
que a universidade vai fazer a crítica dos políticos, dos etc.etc., se
ela tem esse tipo de prática no seu interior, se o sigilo não é abolido?
Agora, quando eu disse: "Vamos abolir o sigilo" – "Não, os ódios dentro
da universidade aumentarão muito." Falei: "Mas os ódios já existem, o
que ocorre é que eles são abafados". Se o meu projeto não passou, o dia
em que eu virar poderoso: "Ah, você vai ver o que vai acontecer com
você". Quer dizer, os ódios são incubados e se potencializam.
Milton
Santos - Para tornar mais grave, creio que com a tal globalização, e aí
com a desculpa mais uma vez da palavra descoberta, vosmecê fez uma
distinção entre totalitarismo e autoritarismo e me pergunto se o
totalitarismo que hoje se instala com a globalização não pode se
instalar com a aparência de não ser autoritário. Porque acho que um dos
problemas que permeiam a vida social é a própria vida acadêmica.
Roberto Romano - Esse é o ponto.
Roberto
Freire - Quando o senhor estava analisando a política da vida
universitária, o tempo inteiro eu achava que era exatamente igual à
política partidária, à política do Estado, uma coisa só, dos partidos,
da imprensa, ou da mídia, tudo está sendo feito desse jeito. E a
universidade não conseguiu autonomia quando seria um grande papel da
universidade ter a possibilidade de corrigir, denunciar tudo isso.
Sérgio
Pinto de Almeida - E tem mais um detalhe, que é o papel crescente da
universidade particular. Outro dia vi um anúncio na televisão, não sei
se eram escolas da Unip, faculdades do Objetivo, aí o cara falou assim:
"Corpo docente, tal, tal, tal, e você voltado para o mercado. Você vai
ter lugar no mercado". Falava umas quatro ou cinco vezes "o mercado".
Milton Santos - E aqui não tem blablablá. (risos)
Sérgio
Pinto de Almeida - E frisar o mercado. Aí li notícias sobre o assédio a
professores, porque, porque tem uma série de requisitos para
reconhecimento da universidade particular, é quando existem teses,
quando existe professor doutorado, graduado etc. E há um assédio
financeiro em cima desses professores, eles já se aposentam na escola
pública, recebem no auge da carreira, e aí recebem a proposta para ir
para a universidade particular muito mais para ceder o nome, e com isso a
universidade conquistar pontos junto às instâncias...
Milton
Santos - Vou fazer um adendo. Tomei nota de duas ou três questões que
vou ter de fazer. Estou preocupado com a dificuldade de a escola privada
realizar seus objetivos comuns e democráticos sem saber muito o que
quer dizer, hoje. Mas o que é hoje a universidade pública? Será que as
nossas ainda são? Será que a USP ou a Unicamp ainda são entidades
públicas, ou a gente teria de redefinir?
Roberto Romano -
Perfeito, porque o que eu ia começar a dizer é que a grande novidade que
o pró-reitor de graduação da Unicamp anunciou, e foi festejado com
página inteira da Folha de S. Paulo, foi que os cursos de graduação da
Unicamp estariam voltados para o mercado. E, portanto, haveria uma
flexibilização para que os nossos estudantes pudessem competir no
mercado etc. etc. A uma universidade como a Unicamp, que tem um conjunto
de doutores e de pesquisadores importantíssimo, o que significa essa
decisão? Aí a pergunta: foi referendada pelo conjunto dos professores
essa modificação? Ou esses professores assistem ao trabalho desses
tecnoburocratas de tal modo que ficam infensos, na verdade executam
ordens como se viessem de Deus todo-poderoso, e se dizem impotentes.
Quer dizer, há um controle... Quando você tem um pró-reitor de graduação
que propõe uma flexibilização da grade curricular para o mercado, você
já tem então embutida toda uma decisão que vem da cúpula. Pouco importa
se as pessoas que dão nome a isso são progressistas ou não. Agora, a
questão da aposentadoria é outra coisa em que suscito muita antipatia no
meio docente. Porque acho um escândalo moral um professor que recebeu
dinheiro do Estado ou da sociedade, acho que é da sociedade, durante
vinte anos, que fez uma universidade pública de alta qualidade, que foi
muitas vezes para o estrangeiro, fez doutorado, voltou, recebeu verba da
CAPES, do CNPq e da FAPESP, com 47 anos de idade ele se aposenta e vai
se empregar, como é o caso do reitor da USP, Roberto Lobo, em Mogi das
Cruzes, vendendo uma coisa que não é dele. Desculpe, o professor Milton é
uma sumidade, mas o que ele sabe está vinculado ao que o povo
brasileiro pôs nele em termos de aposta. Não é propriedade privada. A
questão do público, acho que você tem toda razão, pensamos o nosso
diploma, o nosso saber como propriedade privada, pequena propriedade
privada, você vai lá e vende e tal. Só que nesse ponto a coisa está
complicada, porque há uns quatro anos um professor titular que se
aposentasse nas universidades paulistas e fosse trabalhar na
universidade privada recebia uns 15.000 dólares e tal, e hoje está
chegando aos 4.000.
Milton Santos - Está barateando...
Roberto Romano - Claro, é a lei do mercado: quanto mais oferta, diminui o salário. (risos)
Wagner
Nabuco - Os privatistas dizem que a nossa universidade é muito cara por
aluno/ano. Isso é verdade, comparando com as universidades
norte-americanas, européias e do mundo? Depois: alguns defendem a
universidade dizendo que uma das coisas que a encarecem muito é o custo
dos hospitais universitários, então faria sentido passar os hospitais
universitários para o Ministério da Saúde, como é o projeto. E, por
último, se o senhor acha possível estabelecer uma quarentena para o
aluno que se forma usando dinheiro público, e então só poderia ir para a
iniciativa privada depois de um ano de trabalho público compulsório.
Roberto
Romano - Em primeiro lugar, a questão do custo da universidade. Se for
universidade, pesquisa, compra de livros, se tiver compra de
laboratório, se tiver tudo isso, é caro mesmo. E será caro em qualquer
situação. Você pode pensar aí modos de apropriação desses instrumentos,
socialização desses instrumentos, de forma que não fiquem esses preços
absurdos. Por outro lado, fazer um curso de física onde o laboratório
não tem máquinas, é visitado a cada seis meses e você fazer tudo na base
do quadro-negro, é barato. Quanto à questão dos hospitais
universitários, dado esse mimetismo, essas relações promíscuas do
executivo universitário com o executivo político, você tem toda uma
série de concessões por parte das autoridades acadêmicas quando se trata
da instalação desses hospitais. Então, de certo modo, houve uma
programada destruição dos meios de saúde pública do Estado de São Paulo,
e naturalmente passaram para as universidades a função de cumprir esse
papel. E daí junto ao Executivo, do prefeito ao governador, com os
nossos políticos, com os deputados, os vereadores etc. A coisa mais
simples que você vê no hospital de clínicas da Unicamp é chegar um
doente que vem do Cabrobó da Serra, com uma infecção no dedo, numa
ambulância onde está escrito "Município de Não Sei das Quantas,
administração maravilhosa", não sei o que e tal. Quer dizer, o que eles
fazem? Eles pegam todos os casos e jogam para a Unicamp, porque aí as
pessoas são gratas a eles: "Foi o prefeito, foi o vereador que colocou
meu pai na coisa e tal". E aí chega todo esse pessoal na Unicamp, e para
ser atendido é uma doideira. Imagina como você pode atender...
Marina Amaral - Não tem regra nenhuma de quem pode ser atendido?
Roberto
Romano - Vai chegando no pronto-socorro, vai "selecionando" e vai
despejando. Ora, isso faz supor que os reitores deveriam ter tido, antes
desse sistema, batido a mão na mesa e ter dito: "A universidade tem a
função de pesquisa etc. e tem uma função social, que vai ser cumprida
dentro dos limites dela, universidade. Mas ela não vai substituir uma
política de desmonte do Estado". Tal como ocorreu no Estado de São
Paulo.
Wagner Nabuco - Quer dizer, destituiu a missão básica do hospital universitário.
Roberto Romano - Que era a pesquisa, o ensino e os serviços.
Wagner Nabuco - Virou um novo SUS.
Roberto
Romano - Virou pior. Porque, como tem o logotipo, e o logotipo é um
negócio seriíssimo, o sujeito foi para a Unicamp cuidar da unha
encravada, mesmo que morra é a Unicamp, não é o SUS. O SUS não tem
logotipo. Agora, a Unicamp tem os melhores especialistas. E aquele
calhorda do vereador tem um dividendo muito maior. Então, esse negócio é
muito grave. Aí a questão da autonomia.
Roberto Freire - Ele comprou um eleitor com dinheiro do Estado.
Roberto
Romano - Exato. E a universidade não tem autonomia, não se torna
autônoma, aí o professor Milton tem toda a razão, é uma coisa que está
dentro dela já.
Milton Santos - Há um plano inclinado, que eu não
saberia datar de quando. Me lembro quando cheguei aqui em São Paulo
para ensinar, até hoje, e sinto realmente um processo de deterioração
muito grande do espírito universitário dentro das universidades. E essa
vontade de ceder ao poder político eleitoral, às vezes imaginando se
tornar secretário de Estado, ou ministro.
Sérgio de Souza - Por falar nisso, que avaliação o senhor faz do atual ministro da Educação?
Roberto Romano - Olha, o ministro atual da Educação... (risos)
José Arbex Jr. - Já falou pela sua reação.
Roberto
Romano - Veja, todos os instrumentos de ascensão social foram
utilizados. Ele estava no Chile, exilado. Aí veio para o Brasil, foi
trabalhar na Unicamp, era professor e foi eleito presidente da
Adunicamp, a associação dos docentes. Aí o sindicato serviu muito bem, e
era para que o discurso de esquerda – me perdoem, de vez em quando falo
umas coisas pesadas, mas acho que existe um chantilly e debaixo do
chantilly um bolo de merda. (risos) Você tem esse chantilly mais para a
esquerda, muito bem cheirosa, mas por baixo o negócio é feio. No caso,
ele foi presidente da Unicamp, e chegou a reitor justamente porque
representava uma mudança etc. etc. etc. Não posso dizer que o reitorado
dele tenha sido totalmente desastroso, porque ele instalou determinadas
coisas que não existiam na Unicamp enquanto universidade. Porque a
Unicamp foi criada pelo professor Zeferino Vaz, que controlava tudo, ela
tem todos os méritos e os defeitos do professor Zeferino Vaz. Ele
contratava, demitia, ele fazia e acontecia. A Unicamp não tinha conselho
universitário, não tinha congregação, não tinha nada, tudo era definido
pelo gabinete do reitor. E, no período Paulo Renato e Pinotti, a
Unicamp adquiriu determinados ramos, como a congregação, como os
conselhos etc. Mas adquiriu também as pró-reitorias, e todos esses
instrumentos do executivo. Nesse período, ele estava se preparando para
ser o quê? Secretário. Foi secretário da Educação do Estado de São
Paulo, ocasião em que o núcleo de estudos políticos – se você olhar o
nome das pessoas que estavam naquele núcleo e olhar agora as pessoas que
estão nessa alta comissão de reformulação do CNPq, vai ver que são os
mesmos – fez aquele relatório maravilha, que era propaganda política e
não relatório de pesquisa. Aí, depois de secretário de Estado, foi ser
empregado do BID.
Milton Santos - Foi para Washington.
Roberto
Romano - Aí voltou, e a receita estava no BID, todos conhecem, e estava
com alguém para executá-la. Esse senhor mente. Por exemplo, na Comissão
de Defesa do Consumidor da Câmara do Deputados, ele foi dar um
depoimento e disse que estava encaminhando para as universidades
privadas, para ajudar as universidades privadas, 300 milhões de dólares.
Questionado pelo deputado Ivan Valente, infelizmente não reeleito, ele
disse que esses 300 milhões de dólares não eram dinheiro público, eram
do BNDES! O que significa isso? Ele deu uma entrevista como ministro,
dizendo que todos os professores da Unicamp são vagabundos, porque
enquanto estava na Unicamp ele dava duas horas de aula. Em lógica
elementar, ele seria reprovado. Que ele fosse vagabundo e desse apenas
duas horas de aula, pode ser um fato, não vou olhar sua folha corrida na
Unicamp. Agora, que todos os professores da Unicamp dão duas horas de
aula, isso é uma mentira. Esse senhor mente.
Sérgio Pinto de Almeida - Mas ele é coerente, porque o chefe dele diz que aposentado é vagabundo... (risos)
Roberto
Romano - Existe uma tática dentro do governo Fernando Henrique que é
colocar alguns garotos-propaganda. E, no caso, o Paulo Renato é o
garoto-propaganda ideal. Ele fala o que bem lhe interessa. Por exemplo,
quando aconteceu essa briguinha entre o Serra e a equipe econômica por
causa dos cortes do orçamento, o que disse Paulo Renato? Está
registrado. Disse que não discutia os dinheiros do ministério dele
publicamente. Disse: "Defendo o meu dinheiro na calada dos gabinetes". A
frase é ipsis litteris. Primeiro, o dinheiro não é dele, é público, e
na calada dos gabinetes, fora do juízo público, é qualquer coisa. Ele
não ligou, já escrevi artigo citando isso na Folha de S. Paulo. Como é
que pode uma autoridade que deveria primar pelo respeito, pela cultura,
pelo espírito, pelo saber etc. agir publicamente dessa maneira, com o
aplauso dos colegas?
Marina Amaral - O senhor acredita que o governo tem mesmo um projeto de privatização das universidades públicas?
Roberto
Romano - A questão que o professor Milton colocou já responde. De tal
modo acuaram os professores, ou os próprios professores encontraram as
saídas, que boa parte dos serviços que deveriam ser gratuitos na
universidade já é paga. Você tem cursos, por exemplo, chamados
convênios, em que professores de inglês dão cursos onde eles cobram.
Isso existe na Universidade do Espírito Santo. A Faculdade de
Administração da USP tem um convênio com uma lanchonete que está fazendo
o prédio de trás. Então, o prédio de trás será da lanchonete até um
certo ano, depois vai passar para a universidade.
Sérgio Pinto de
Almeida - A Sociologia da USP tem catorze xerox instaladas, claro,
particulares, todas com energias de fio puxado da USP.
José Arbex Jr. - Existe hoje universidade pública no Brasil?
Roberto
Romano - Existe o princípio da universidade pública, uma tradição
anterior de universidade pública, mas paradoxalmente excludente. Aí
precisamos discutir um pouco melhor o projeto da USP. Gosto sempre de
lembrar que a USP tem uma origem hedionda. Gosto sempre de citar o texto
do Júlio de Mesquita Filho, quando ele diz que a USP, que a
universidade deve ser, no organismo social, o que o cérebro é no corpo. E
que a função da universidade é estabelecer a disciplina na mentalidade
popular. Mas duas páginas depois ele diz: "Nós temos que cuidar muito do
organismo político brasileiro, e não podemos dar direito de voto a
determinadas regiões" – como a nordestina etc., porque o organismo
brasileiro é meio teratológico, cresceu de um lado e não se desenvolveu
em outro. E que temos um outro problema – o professor Milton acho que
conhece essa frase assim na consciência, porque diz o Júlio
Mesquita
Filho: "Ocorreu na sociedade brasileira um problema seriíssimo, foi
incorporada à cidadania a massa impura e formidável de 2 milhões de
negros, que fizeram baixar o nível da nacionalidade, na mesma proporção
da mescla operada". Vou morrer com essa frase decorada. Então, está dado
o programa. Está claro? Agora, tinha pretensões a coisa pública. Mas
você tem o princípio, você tem efetivamente a possibilidade de lutar por
ela, você tem até na Constituição essa parte, mas você tem uma lei como
a LDB, que já cria todas as possibilidades para a privatização. Por
exemplo, estamos na USP, na Unicamp e na Unesp cuidando de adequar a
universidade à LDB. Uma das primeiras providências é acabar com os
departamentos. Não vai mais ter departamento. Quem vai definir o ensino e
a estrutura mesma dos institutos são o diretor e os coordenadores de
pós-graduação e de graduação. O que quer dizer que já iremos trabalhar
numa estrutura em que a pesquisa está afastada liminarmente. Você vai se
dedicar àquilo que é ensino, como se fosse possível alguém ensinar
alguém sem pesquisar essa coisa.
José Arbex Jr. - Mas não tem um
dado positivo nisso, de você estimular a multidisciplinaridade? O
departmento não estanquiza um pouco a coisa também?
Roberto
Romano - O problema não é esse. O problema é que você não vai ter mais
diversidade. Você vai ter uma raça estudiosa definida pelos
coordenadores de pós e pelos coordenadores de graduação.
José Arbex Jr. - Um parâmetro rígido, e não tem conversa.
Roberto
Romano - E dane-se, já está tudo definido. O professor Milton estava
lembrando, já estamos no instituto com propósitos no seguinte sentido:
"Os professores serão obrigados a ficar no prédio atendendo os alunos de
tal horário a tal horário" – porque tal, não sei o que, tarararará.
José
Arbex Jr. - O senhor teria a noção do que seria uma universidade
pública hoje, nas condições da globalização, do discurso de mercado?
Roberto
Romano - Estudo Diderot, é o meu campo de trabalho. Trabalho com as
luzes do século 18, e acho que estamos até muito precisados. Diderot tem
um plano de universidade que a Catarina II pediu que ele fizesse. Ele
começa dizendo que a universidade é uma instituição aberta para o maior
número de cidadãos. E é onde eles aprendem os princípios básicos de
todos os saberes. Outra coisa que Diderot diz é: "Não vou estabelecer
hierarquia de disciplinas". Quer dizer, todas as disciplinas poderão ser
exercitadas, sobretudo as novas. Mais: "E deve estar voltada
principalmente para aquelas pessoas que não têm recursos para mandar os
seus filhos para a universidade". Isto é, a grande maioria da nação. Diz
ele: "Porque até do ponto de vista estatístico é mais fácil, é mais
correto que você encontre grandes gênios em cem choupanas do que em dez
palácios". Então, esse é o programa burguês de universidade pública, que
foi tão desacreditado. Estamos atrás anos-luz. E mais outra coisa:
"Onde mestres, estipendiados pelo Estado, se dedicariam integralmente a
esse estudo, a esse ensino, não temendo porque teriam uma aposentadoria
digna e respeitável". É o programa burguês do século 17. É a consciência
burguesa. Agora, se comparamos isso com o que existe e com o que
existiu aqui no Brasil, evidentemente não temos universidade pública e
não tivemos nem sequer segundo os parâmetros da burguesia, ou dessa
burguesia mais ilustrada. Quer dizer, estamos mesmo numa situação de
barbárie social. Você teve feudos, onde a intelligentsia se estabeleceu,
estabeleceu o seu programa e se arvorou então a dirigir o Estado. Sobre
isso tenho alguma coisa a dizer também, porque há sempre aquela
discussão sobre o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e a
USP. O ISEB seriam os nacionalistas que teriam aderido ao Estado
autoritário, e a USP seria rigorosa, científica etc. Esqueceram que esse
grupo da USP tinha um projeto de poder. Não é piada, o senhor Fernando
Henrique Cardoso pensava em ser presidente da República desde a época em
que era assistente do professor Florestan Fernandes. Nunca abandonou
esse sonho e fez tudo para isso.
Milton Santos - Será que se pode
localizar nessa trajetória imaginada essa vocação exercida pelo
presidente para ficar cada vez mais próximo do poder americano há mais
de vinte anos, porque não é recente? Será que pode?
Roberto
Romano - Acho que sim. Há uma espécie de namoro, que foi exercitado
nesse período dos anos 60, com a sociologia norte-americana.
Milton
Santos - Mas é mais que a sociologia, são os meios de trabalho. Não é
só o trabalho intelectual, são os meios materiais de trabalhar de quem
participava dos conselhos e das instituições que distribuíam recursos.
Roberto
Romano - Claro. E fundações. Lembro sempre de um caso que a minha
mulher (professora Maria Sylvia Carvalho Franco) conta, e ela tem uma
memória boa: diz ela que o professor Florestan Fernandes foi procurado
por um professor ligado ao Departamento de Estado norte-americano, para
fazer uma pesquisa no Brasil, para saber como a população reagiria a um
golpe de Estado.
José Arbex Jr. - O Florestan Fernandes?
Roberto
Romano - E o professor Florestan Fernandes pôs esse professor para
fora. Parece, penso eu, que nem todos os membros da sua equipe estavam
tão dispostos assim. Não vou dizer mais nada. (risos)
Milton
Santos - Vou fazer uma pergunta, só para lhe fazer falar: pode-se dizer
que há uma regressão da universidade brasileira nos últimos quinze,
vinte anos? Às vezes fico pensando que ela não exerce o seu dever nem
para com a sociedade em geral, nem para com a humanidade, nem para com
ela própria. Quer dizer, que há um processo de autodestruição evidente,
de menosprezo a uma interpretação veraz do que é a sociedade brasileira,
e um desinteresse por uma interpretação correta do mundo.
Roberto
Romano - A sua análise é percuciente. Vou contar mais um caso – que sou
bem caipira nesse sentido: quando Fernando Henrique Cardoso deixou o
Senado para se reintegrar na USP, deu uma aula inaugural. Nessa aula
inaugural estavam presentes o corpo inteiro da Faculdade de Filosofia, e
de toda a USP, a sala estava lotada, os corredores lotados. E esse
professor disse o seguinte: "Deixo o Senado, que é o espaço da ação, e
venho para a universidade, que é o espaço da falação". Se aquelas
pessoas que lá estavam tivessem algum amor pelo saber, algum amor pela
verdade, algum amor pela ética, levantariam e dariam uma vaia nesse
indivíduo. (risos) Mas ele foi aplaudido de pé quando falou isso. Ora, a
universidade, se é universidade, não é falação. Ela produz teoremas,
ela produz vacinas, ela produz pesquisa de átomo, ela produz atos, ela
produz modificações éticas etc., se ela for universidade. Agora, o que é
a prova mais evidente de que aquilo não era a universidade é o fato de
eles terem aplaudido, porque cuspiram para cima e caiu na cara. São
pessoas sem vergonha, que estavam bajulando uma pessoa poderosa.
José
Arbex Jr. - O senhor falou nos últimos quinze, vinte anos, e não por
acaso 99 menos 15 dá 84, que é mais ou menos a época em que a Folha de
S. Paulo publicou a lista dos improdutivos. Acho que essa lista dos
improdutivos é uma espécie de marco na história da universidade recente
no Brasil. As famosas idéias de mercado acabam virando um parâmetro...
Roberto
Romano - Nunca se esqueça de que essa lista dos improdutivos foi
produzida na reitoria, com a colaboração direta da professora Eunice
Durham, uma das conselheiras do Conselho Nacional de Educação e uma das
pessoas mais nefastas para os campi, porque foi justamente a partir do
parecer dela que o reitor Vilhena fechou o conselho universitário da
UFRJ. É uma das pessoas mais nefastas dessa linha burocrática, e
medíocre do ponto de vista da pesquisa, uma das pessoas mais nefastas na
universidade brasileira nos dias de hoje. É oficialismo em duas pernas.
E eu já disse isso em público para ela, e repito quantas vezes eu
quiser. Foi uma coisa hedionda, porque juntou aí o interesse
sensacionalista e a campanha contra a universidade, com interesses de
dentro, de professores que estavam escalando a vida social, escalando a
vida política. E isso é indefensável. Existe uma profissão agora dentro
da universidade que é o avaliador. Não faço avaliação 24 horas por dia,
estudo Diderot, dou aula, faço conferência, discuto com os meus colegas
etc., não faço avaliação. Mas existe gente especializada em avaliação,
existem núcleos de avaliação. Pergunto o seguinte: o que eles fazem no
campo de pesquisa? Quem é antropólogo e que só avalia os outros... De
repente, você só tem avaliadores, que avaliam físicos, matemáticos,
químicos etc. etc. Não conheço indivíduo ou grupo que possa ter um
domínio do saber tão grande que possa avaliar tudo isso. O que quer
dizer que a avaliação, nesse sentido, é picaretagem pura. Existem teses
de doutorado sobre avaliação!
José Arbex Jr. - Em nome do que, de
que projeto ideológico, se é que havia algum, a Folha se empenhou em
publicar essa lista e dar a ela um peso que até hoje repercute na
universidade?
Roberto Romano - A ideologia da Folha nesse
episódio, e continua sendo a ideologia do Estado de S. Paulo, do Jornal
do Brasil etc., é que não pode existir, sobretudo nesse campo, serviço
público e que é necessária uma privatização. Isso está claro.
José Arbex Jr. - O senhor acha que desde 1984?
Roberto
Romano - Desde sempre. O Estado de S. Paulo defendeu a USP dele, a USP
para formar as elites e formar os intermediários entre as elites, o
estado e a população, para disciplinar a mentalidade do povo. Esse
pensamento privatista faz parte dessa visão empresarial. E, quando esses
jornais encontraram na universidade aliados, aí veio o que está aí. A
idéia de produtividade é uma idéia extremamente danosa à pesquisa
científica. Existem pensadores, como é o caso de Wittgenstein, que
teriam tirado zero na CAPES, (risos), porque passaram dezenas de anos
sem publicar quase nada. Então, essa é uma perspectiva ideológica de
privatização, mas que vem de longa data. No caso, com a gestão do
professor Goldemberg, que na própria Folha de S. Paulo chamei de infame,
e repito, porque na questão da privatização o que a imprensa teve foi a
clara adesão e incentivo das autoridades acadêmicas. Começou aí. E hoje
existe pró-reitoria de avaliação. E teses, como eu disse. Você avalia o
quê? Avaliar um saber é uma das coisas mais difíceis do conhecimento. E
qual é o critério? O critério é o quanto. Fez tantas encenações, é um
excelente pesquisador em artes. Meu Deus, então vamos dar nota 7 para o
Ratinho... (risos) mas não está longe, porque, num dos elementos dos
questionários que a dona Eunice Durham introduziu na USP, vem lá:
"Quantas entrevistas para jornais você deu? Quantas entrevistas para a
televisão?" Eu me recuso, nos meus relatórios para a universidade não
cito artigos que escrevi para a Folha de S. Paulo etc., não cito
entrevistas etc. Isso aí é a opinião de um cidadão que tem todo o
direito de falar do jeito que quiser sobre as coisas. Outro é o meu
trabalho onde pesquiso, onde estudo, onde reflito etc. tem outro peso.
Leo
Gilson Ribeiro - Eu queria perguntar sobre essa modificação
teratológica que houve com a universidade. A Universidade de Bolonha,
que é sabidamente no Ocidente a mais antiga, junto com a Universidade de
Paris, e depois junto com as universidades inglesas, em que momento o
senhor determina ou acha que houve esse absolutismo que vivemos hoje, se
isso remonta a Maquiavel, ou se remonta ao absolutismo europeu, ou se é
uma coisa mais recente de uma hegemonia mercantil de determinados
países?
Roberto Romano - A sua pergunta é estrategicíssima,
porque sem tentar respondê-la perderemos anos discutindo a questão da
universidade. Começando com a questão de Bolonha. Uma característica
fundamental de Bolonha, que lhe deu uma autonomia muito grande diante do
papa e dos governantes, é o fato de que ela era composta por uma
congregação de advogados, e que providenciavam o pagamento das suas
despesas. É um ponto fundamental: para ter autonomia espiritual, você
precisa ter autonomia material. As outras universidades, como é o caso
da Universidade de Paris, das inglesas etc.., ou estavam sob o
protetorado do rei, ou protetorado do papa, e recebiam desses poderes,
que na época inclusive se digladiavam, junto com as verbas o verbo.
Recebiam a raça estudiosa, recebiam aquilo que era permitido e aquilo
que não era permitido. Mesmo assim, conservaram um poder muito forte. Um
outro elemento, que o professor Jacques Le Golf lembra, é que "na Idade
Média não existiam a universidade e o poder, existiam a universidade e
os poderes".. Poder do rei, poder do papa, poder da burguesia mercantil
emergente. No caso, os mercadores queriam determinadas coisas da
universidade e não queriam outras. Segundo Le Golf, essa situação piorou
no século 16, quando você tem o estabelecimento do absolutismo
monárquico, tem essa hegemonia do poder real e a universidade se adapta
perfeitamente à função que o Estado queria dela. E Le Golf cita um
discurso do reitor Gerson que diz: "A universidade não tem de ficar
criticando tiranos nem coisa nenhuma. O que ela tem de cuidar é que haja
um governante, e que os donos das galinhas durmam tranqüilos". Quer
dizer, a propriedade tem de ser preservada. Bom, essa situação foi
marginalizando a universidade, que por exemplo esteve afastada do
Renascimento. Praticamente todos os grandes criadores da ciência, da
cultura etc. passaram pela universidade, mas não eram universitários. A
começar com Bacon, Descartes no século 17, Espinosa, todos esses grandes
pensadores estiveram fora e contra a universidade. Descartes andou
correndo pela Europa perseguido pela Faculdade de Teologia de Paris. A
tal ponto, que o acusavam de ser rosa-cruz. E, como existia a lenda de
que os rosa-cruzes ficavam invisíveis, quando foi para Paris fez questão
de aparecer em todas as rodas, para ficar claro que ele não era
rosa-cruz. (risos) Então, a universidade ficou fora do Renascimento, e
fora do engendramento das ciências e das técnicas modernas. E quem
ficava dentro da universidade tentando modificar era perseguido. Nos
séculos 17 e 18, as Luzes não foram instaladas dentro da universidade.
Diderot faz o projeto da Enciclopédia para atingir um público – veio até
parar no Brasil, em Minas Gerais tem lugares onde se encontram
exemplares Enciclopédia até hoje –, para formar um público numa
perspectiva muito mais ampla do que era feito dentro da universidade. Na
Enciclopédia, você tem saberes que a universidade desprezava
absolutamente, por exemplo as artes mecânicas. Um dos elementos
fundamentais da Enciclopédia é a tábua, é o caderno de instrumentos,
porque ele ia lá, chegava no artesão e perguntava: "Olha, como é que se
faz esse instrumento, para que se usa esse instrumento?"
Leo Gilson Ribeiro - O torno, por exemplo.
Roberto
Romano - Exato. Bom, então a universidade não chegou a assumir a
perspectiva total do Renascimento, não chegou a assumir a definição
total das Luzes, mas sofreu, como no Brasil, a contra-revolução. Quer
dizer, quando veio o Termidor, no Estado napoleônico, ela se instalou
perfeitamente na função desejada pelo poder executivo do imperador. E
foi esse modelo de universidade que passava aqui na cabeça de muita
gente. Quando se diz que a universidade está hoje, de certo modo, já
privatizada, a cabeça desse estrato sempre, me perdoem a generalização,
sempre esteve voltada para produzir elites para a Igreja e para o
Estado, produzir pessoas que sirvam bem a um quesito. Essa é a função. E
esse elemento foi reforçado com Napoleão. Esse modelo napoleônico
persiste nessa visão, a de que o executivo define todas as declinações
da universidade.
Wagner Nabuco - Voltando à minha pergunta: como
se apropriar do que é produzido na universidade, com todos esses
defeitos? Como se apropriar de fato para o público que sustenta essa
universidade? De que maneira isso está sendo pensado dentro dela? Falei
da quarentena, o diplomado vai trabalhar no instituto para produzir
coisas para a população antes de ganhar dinheiro igual um louco na
iniciativa privada. O dinheiro é do imposto do povo, como é isso?
Roberto
Romano - Mas aí você precisa também combater essa ideologia do mercado,
que é passada pelos organismos dirigentes. Quando um pró-reitor diz
"olhem a maravilha que fiz – transformar a graduação adequada ao
mercado", na verdade ele está correspondendo a uma exigência que é
anterior, que vem do ministério, e das secretarias: as famosas parcerias
com a iniciativa privada. No fundo, o que os governantes disseram é o
seguinte: "Vocês, professores, que têm saberes, virem-se e procurem
financiamento da iniciativa privada". Não sei como isso é possível num
país de recessão. Que iniciativa privada é essa? Primeiro, a iniciativa
privada brasileira não é conhecida por aplicar em ciência e tecnologia, e
saberes.
Leo Gilson Ribeiro - Há outra nuance também, que é a
famosa fuga de cérebros, principalmente rumo aos Estados Unidos. Havia
uma lei na União Soviética, antes de ela se dissolver, em que a pessoa
que quisesse se transferir para outro país teria de ressarcir o Estado
pela quantia despendida com ela. O Brasil é um supridor gratuito.
Roberto
Romano - A Unicamp tem uma regra estabelecida: todo professor que tenha
ido para o estrangeiro e que tenha rompido o seu contrato precisa
ressarcir a universidade com o salário daquele período de rompimento. Só
que isso vai para a Justiça, e cai. A universidade perde, porque
existem os direitos Por isso sempre defendi, no caso de defesa da
universidade: vamos deixar de colocar apenas como dialogante o Poder
Executivo. Vamos procurar, enquanto comunidade, o Legislativo, o
Judiciário. Porque muita coisa se decide na universidade passando pelo
Judiciário e a gente nem tem consciência disso. Vamos discutir com o
Judiciário, vamos dialogar com o Judiciário. Mas o uso do cachimbo
entorta a boca, as pessoas não pensam, quer dizer, elas não querem,
começando do próprio Legislativo. Muitas vezes você vai conversar com o
deputado... O professor Fava, na época em que foi diretor científico da
FAPESP, contava uma história que, quando a FAPESP precisava aumentar o
seu quinhão no orçamento do Estado, ele foi procurar a Assembléia
Legislativa. Pensou: "Bom, lá terei aliados certos, os professores
universitários que são deputados, e vou ter problemas com as outras
pessoas". Foi exatamente o contrário. Diz ele que Wadih Helu disse: "Mas
a ciência é fundamental", e tal. Já os professores universitários: "Não
precisa desse negócio, já tem dinheiro demais". E é isso. (risos) É um
ponto complicado. Há uma teoria sobre o auto-ódio, o judeu que tem ódio
de judeu, o homossexual que tem ódio de homossexual, e um dos elementos
fundamentais dessa casta ou dessa raça, ou dessa gente que vira
burocrata da universidade é que eles têm ódio de intelectual. Nunca vi
tanto ódio ao pensamento intelectual. Nunca vi tanto ódio ao pensamento
intelectual. Intelectuais que viraram deputados, que viraram assessores,
pessoas que um dia estavam fazendo crítica, e no dia seguinte tomam uma
atitude composta. Até o jeito meio hierático – já vira assim, já fala
assim... (risos) São assessores. Acho que outra profissão horrível é
essa tal de assessores. O meu instituto da Unicamp tem agora no Palácio
do Planalto mais de dez assessores. Eles não estão dando aula e estão
recebendo.
Sérgio Pinto de Almeida - Como assessor, fazendo o que lá?
Roberto Romano - Assessorando, dando conselho, dando opiniões geniais.
Sérgio de Souza - Assessorando a quem?
Roberto Romano - Ah, sei lá. São funcionários da Unicamp, professores da Unicamp, e estão lá "assessorando".
Wagner Nabuco - Vai trabalhar no gabinete do ministro...
Roberto Romano - Na presidência da República.
Sérgio Pinto de Almeida - Entendi que estavam a serviço da escola enviados a Brasília.
Roberto
Romano - Não. Eles estão afastados, recebendo o seu salário. Isso que é
o negócio, essa coisa de classe média. Você vende a assessoria, e na
venda da assessoria vende também a sua ideologia, a sua posição
política. Por isso, o caso Weffort também não foi nenhum escândalo – é
muito comum. São coisas assim, mas é difícil você ter o relacionamento
da universidade mesmo com esses políticos. Por exemplo, o ex-secretário
de Justiça, o Belisário, tem um programa que acho muito interessante,
que é o programa dos cortiços de São Paulo, defender os cortiços. E uma
das fases do programa é oferecer assistência jurídica para aquelas
pessoas que estão no cortiço, para que elas saibam a que têm direito
etc. Ele procurou a Faculdade de Direito da USP, pedindo um convênio. A
faculdade pediu um ano para estudar, e mais um ano para encaminhar. Ele
disse: "Bom, quando a Faculdade de Direito aceitar, o governador do
Estado pode ser o Paulo Salim Maluf, e aí não tem direito de cortiço,
não tem direito de coisa nenhuma". Quer dizer, essa questão do timing,
do tempo. Porque tudo isso supõe uma sensibilidade ao tempo, ao Kairós,
ao tempo da sociedade. Você precisa estar aberto àquilo que as pessoas
estão vivendo. Não adianta nada chegar cinco anos depois como uma coisa
quando é preciso fazer naquele momento. Agora, pergunto: quantos
professores da Faculdade de Direito da USP estão empenhados na luta pela
cidadania pelos cortiços, seja lá o que for? Não vamos "mascar as
palavras", como dizem os franceses. Quer dizer, conheço professor da USP
que é ministro do Desenvolvimento, conheço professor da USP que é etc.
etc., mas com esse empenho conheço o professor Fábio Konder Comparato – e
o professor Fábio Konder Comparato... (risos) e talvez o professor
Fábio Konder Comparato... talvez alguma outra pessoa, para não estar
fazendo uma injustiça muito grande. É complicado, mas não contraditório.
Sérgio
de Souza - Professor, fiquei preocupado com aquela história da
corrupção, do CNPp, do ex-reitor. O senhor disse que por um dever de
ética não se pode denunciar os corruptos?
Roberto Romano - É, por uma norma ética.
Sérgio de Souza - Mas quem denunciaria? Além dessa crítica do ensino, há corrupção mesmo, assim escancarada?
Roberto
Romano - Olha, fiz proposta às associações docentes. Mandei-a também
para as associações docentes da USP, da Unesp e da Unicamp, dizendo o
seguinte: que se fizesse um movimento pedindo ou exigindo o fim do
sigilo dessas fundações. Tenho as cartas, tenho uma caixa negra. E não
recebi nenhuma resposta.
Wagner Nabuco - E alguém do Legislativo não podia buscar uma coisa desse tipo?
Milton Santos - É que está na Constituição, ela proíbe. Mas também está nos hábitos arraigados da nossa categoria.
Roberto
Romano - Claro. Quanto ao Legislativo, uns cinco anos atrás vi que a
situação da universidade paulista estava ficando uma coisa muito
complicada, porque as reitorias têm uma opção preferencial pelo
Executivo, e bom...aí, eu falei: "Mas sou professor titular da
universidade". Professor titular nas universidades paulistas é um cargo
criado pela Assembléia Legislativa, e as reitorias têm um lote
determinado de cargos de professores titulares. Para aumentar esse
número, é preciso ter autorização, é um cargo de Estado. Pensei: "Se
tenho esta responsabilidade, vou até a Assembléia Legislativa e digo que
quero discutir com os deputados as verbas das universidades públicas".
Até em gabinete de pessoas de esquerda muitas vezes eu ouvi o seguinte:
"Professor, está tudo certo, é isso mesmo".. Daí tiravam um dossiê e
perguntavam: "E o que o senhor diz disso dessa fundação? O que o senhor
me conta disso aqui? Como vamos defender mais verba para a universidade
se tem isso aqui?" Vocês já ouviram falar das "Termas Manuelinas"? É um
hotel feito pela Faculdade de Economia da Unicamp, na cidade de
Campinas, um hotel de muito boa qualidade, supostamente para acolher
pesquisadores estrangeiros, mas que é uma colônia de férias muito
interessante para os professores da Faculdade de Economia. E vai
dinheiro lá o tempo todo. "Termas Manuelinas", porque criada pelo bom e
simpático João Manuel Cardoso de Mello. Isso foi denunciado pela
associação docente etc. etc., mas agora silenciou. Silenciou por quê?
Porque agora está em curso a instalação na Unicamp de um Instituto
Superior de Administração, que tem como patrocinadores o professor João
Manuel Cardoso de Mello, o professor Delfim Netto e outros professores. O
problema é que tipo de promiscuidade está ocorrendo, que você não pode
nem sequer discriminar o que é dinheiro público e o que é dinheiro
privado. Se você, como conselheiro da Unicamp, for no conselho da
Unicamp dizer "eu exijo que o reitor coloque as contas da Funcamp para
exame de conselho", ele vai dizer "não".
Wagner Nabuco - E o estatuto permite a ele dizer isso?
Roberto
Romano - Aí é que está, permite e não permite. Sempre lembro de Marx,
no Capital, quando ele está discutindo o tempo do trabalho, sempre chega
uma hora em que a classe trabalhadora entra em confronto com o
capitalista, então um está vendendo mercadoria e o outro está comprando.
E nessa hora é direito contra direito e, quando é direito contra
direito, decide a força. (risos) Agora, que força? Aí que chega o ponto.
Onde vamos encontrar pessoas para quem o elemento público seja um valor
tão grande que lhe permita enfrentar esse tipo de ação, sabendo das
represálias que ocorrerão naturalmente.
Leo Gilson Ribeiro - A imprensa não poderia?
Roberto
Romano - Fiz o máximo que pude. Teve um caso famoso, de um diretor do
CNPq, com a mulher do diretor do CNPq com o irmão do diretor do CNPq,
que importou areia e instrumentos para a pesquisa física. Isso está até
no jornal. Requisitei a documentação e eles mandaram. E o que foi
importado foram arruelas enferrujadas e etc. E com isso o CNPq foi
bigodeado em 40 milhões de uma vez, algo assim. E não aconteceu nada.
Como a operação foi feita nos Estados Unidos, o CNPq teve de entrar na
Justiça americana e a Justiça americana condenou os ex-diretores do
CNPq. Pergunto eu: como alguém pode chegar a ser diretor de uma
instituição científica com esse qualificativo? E mais: é só ele que faz
isso?
Wagner Nabuco - Com esse quadro todo, qual a perspectiva?
Roberto
Romano - Não venham os privatistas com a universidade privada. Porque
aí a coisa é muito pior. O Conselho Federal de Educação foi fechado por
corrupção explícita dos donos das universidades privadas. Fiz parte de
uma comissão de reconhecimento de uma universidade pública do Paraná, a
Unicentro. E nós, a comissão, nos demos três anos para fazer o parecer
inicial. E vimos coisas espantosas. Por exemplo, havia um curso de
informática. E só existiam dois computadores. (risos) O professor de
matemática da Unicamp disse: "Não posso aprovar um curso de informática
com dois computadores". Aí o reitor pro tempore, porque não podia ser
reitor ainda, nos chamou e disse: "Tem um problema sério aqui. É que o
Requião (que era governador do Estado) brigou com a Xerox e brigou com a
IBM. Como ele não pode proibir este negócio, ele baixou uma norma
interna, de boca a boca, que todos os órgãos públicos não irão utilizar
produtos da IBM e da Xerox. Então, os dois computadores que estão aí
foram comprados com o dinheiro da CAPES, que é federal, e isso vai nos
dar um tempo. Esperem, por favor, porque ele está saindo para ser
candidato e o vice-governador já nos disse que vai nos oferecer isso".
Então esperamos mais seis meses, e o curso de informática teve os seus
cinqüenta computadores necessários para funcionar. Quer dizer, é esse
tipo de coisa que o Executivo nacional faz. Eu disse o Requião, mas
podíamos colocar qualquer nome. Então, nessa linha levamos três anos
para fazer o reconhecimento dessa universidade e, quando fizemos,
sabíamos que ela tinha defeitos terríveis. Por exemplo, fiquei
encarregado da biblioteca. Eles listavam como obra fundamental de teoria
as obras do general Emílio Garrastazu Medici. Precisei explicar
longamente que como documento talvez, mas como base teórica..., coisa
nessa linha. Nesse ínterim, pipocou reconhecimento de universidades
privadas no Estado do Paraná que era uma maravilha. Cursos de medicina,
então, era um em cada esquina. Isso se faz à custa de dinheiro, dada
essa corrupção na universidade privada, dada essa ideologia de
privatização, essa pronunciada preferência da grande imprensa em relação
a isso. O fato de o Roberto Lobo ter saído da USP e ido para Mogi da
Cruzes deu esse charme, mas que pesquisa aquilo lá está fazendo? Que
ensino? Eu estava numa mesa da SBPC, estava presente a doutora Eunice
Durham (risos), e eu disse: "As universidades privadas de São Paulo
funcionam ao ritmo de ‘O mundo gira e a Lusitana roda’, porque, quando
vem uma inspeção do MEC, as bibliotecas são emprestadas umas para as
outras". Aí a professora Eunice disse que eu estava fazendo uma
caricatura. Mas, na Universidade Tibiriçá, a biblioteca fica atrás do
caixa! E a biblioteca da faculdade tem isto aqui, (mostra um espaço
mínimo) entre a Enciclopédia Barsa e não sei o que mais. Você só pega o
livro se estiver em dia com o caixa, e a biblioteca é ridícula, não
existe, aquilo não é laboratório coisa nenhuma! Então, não há motivo
para ter medo de fazer crítica à universidade pública, porque
efetivamente a privada tem coisas terríveis.
Marina Amaral - São duas coisas diferentes a universidade privada e a pública?
Roberto
Romano - Por definição, o que é privado tende a formar elementos para,
no caso da luta social, garantir os interesses de quem é privado. Agora,
tem uma coisa também, que venho dizendo há bom tempo e que as pessoas
não levam muito em conta. É um pouco falácia dizer que a universidade
brasileira forma as grandes elites econômicas. Filho de rico, mesmo, não
de classe média, estuda na GV ou estuda em Harvard, Cambridge etc. Não
estuda na USP. Existem levantamentos na própria USP dizendo que o nível
salarial de boa parte dos pais dos estudantes não é lá muito elevado.
Tem esse aspecto. É preciso tomar um pouco de cuidado, o mal, no meu
entender, não é tanto o fato de existir gente rica nas escolas públicas,
porque o problema é anterior, data da luta social e da luta econômica. O
problema é que a universidade está financiando sistematicamente essa
classe média que tem como horizonte a si mesma, a sua pequena
propriedade. Nessa linha, não vejo saída, sou um pouco religioso, e
digo: "É necessário que haja uma metanóia por boa parte da
universidade". Quer dizer, uma conversão da mente. Porque, se
continuarmos pensando dessa maneira, a defesa da universidade pública
gratuita etc., sem outros bemóis no seu interior, vamos caminhar para o
suicídio, porque a classe média vai procurar a sua saída, não existe
nenhum mecanismo possível nessa linha, não vejo uma forma de obrigar a
pessoa a devolver o dinheiro que foi aplicado nela. Se os professores
não se sentem compromissados, se se aposentam com 47 anos de idade, é um
escândalo, se os próprios professores fazem isso...
Sérgio de Souza - Ou vão fazer assessoria.
Roberto
Romano - Vão fazer assessoria, vão ganhar dinheiro, vão fazer parceria
com a iniciativa privada. E agora, nesse projeto de reforma da
universidade, esse negócio das organizações sociais que estão
planejando, as universidades seriam transformadas em organizações que
não seriam do Estado e também não seriam propriamente empresas, seriam
"organizações sociais". Mais ou menos isso, o picaretol sempre começa
por aí. E essas organizações sociais teriam determinada quantidade de
dinheiro, básica, e procurariam junto ao próprio Estado ou à iniciativa
privada os meios que faltam.
Marina Amaral - Essa é ruim.
Roberto Romano - Já há várias. O CNPq é uma organização social. Essas coisas estão sendo feitas.
Roberto Freire - Mas o dinheiro vem do Estado, não é? Do CNPq, por exemplo?
Roberto Romano - O elemento básico é o seguinte: o Estado coloca o dinheiro, e aí teremos a parceria com a iniciativa privada.
Wagner Nabuco - Eleva a produção...
Roberto Romano - Eleva a produção, tira a universidade da crise – são receitas miraculosas, fantásticas!!
Milton Santos - Poder pagar corretamente...
Roberto
Romano - Pagar bem seus professores... professor Milton, já existe uma
coisa que é monstruosa: foram reunidas as nove universidades ditas de
pesquisa do país.
Sérgio Pinto de Almeida - Quais são, professor?
Roberto
Romano - Unicamp, USP, UFRGS, Unesp, UFMG, UFRJ, UnB, Unicesp (federal
de São Paulo), PUC-RJ. Elas já se reuniram mais de dez vezes, reitores,
pró-reitores, todos, e já definiram um plano de salvação delas. E dentro
desse plano você tem a terceirização de serviços, tem a privatização de
serviços etc. etc., e o que os reitores dizem quando são criticados é:
"Bom, mas preciso pagar melhor os meus professores, senão os perco, eles
vão para o exterior". Até quando? Sempre digo, não é o corpo docente
inteiro da UFMG ou da USP etc., mas a sua direção decretou que essas
nove são mais excelentes que todas as outras. E que, se as outras forem
destruídas, tudo bem, porque elas estão salvas. Isso é uma coisa
horrorosa. E essas universidades não terão os entraves burocráticos das
outras. Que de fato são entraves e são burocráticos. Agora, você não vai
resolver isso colocando a universidade na beira da esquina do mercado.
Se você acha que é isso, você está perdido.
Entrevistadores:
Marina Amaral, professor Milton Santos, Leo Gilson Ribeiro, José Arbex
Jr., Roberto Freire, Sérgio Pinto de Almeida, Wagner Nabuco, Marco
Frenette, Sérgio de Souza.