Entrevista
A intolerância virou o pão de cada dia, também na escola
Roberto Romano fala sobre professores que defendem a sua tribo, pais que exorcizam o desconhecido e a corrosão ética dos costumes dos alunos de classe média
- Denise Drechsel
- [21/03/2017]
- [15h57]
Pixabay
Quando
alguém está diante de uma situação que não entende ou domina, tem medo e
intui a presença de um perigo a ser exorcizado. E se fecha em tribos. É
este o cenário do mundo atual com consequências questionáveis para a escola, de acordo com Roberto Romano,
doutor em Filosofia pela Universidade Sorbonne de Paris e professor de
Ética e Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A
enxurrada de informações das mídias sociais e o despreparo de
professores e pais para lidarem com elas levam a um ambiente de
intolerância, polarização e segregação. Em entrevista para a Gazeta do Povo, o filósofo descreve o momento atual e delineia quais seriam as rotas de fuga para evitar a barbárie.
Por que existe o medo do pluralismo no ambiente escolar, por parte dos pais e professores?
Vivemos
uma situação inédita na história da humanidade que é a simultaneidade.
Até o século XX, trabalhamos sempre em termos diacrônicos. Nós fazíamos,
um povo fazia, outro povo fazia, e depois de anos os próprios
envolvidos iam tomar consciência e os outros também. Hoje, se você
acessa o Google, vai saber o que acontece na Coreia e no Japão,
imediatamente.
Há uma avalanche de informações e, ao
mesmo de propaganda. E como não há mais sociedades solidamente
estabelecidas em termos e princípios jurídicos, políticos, etc., com a
famosa globalização, tão cantada em prosa e verso, aparece a
‘feudalização’ da sociedade, indivíduos que se reúnem em grupos, tribos,
para atacar ou para se defender.
“Hoje, o professor
está reagindo quase como um integrante do Facebook; quando entra na sala
de aula, ou o aluno bate palmas para o que ele diz ou é um inimigo que
deve ser destruído”
Não
existe propriamente divergência de conhecimentos, mas pura inimizade
ideológica. A escola ou o professor assume posturas de ordem
ideológico-política quando veicula slogans, não ensina o profundo do
conhecimento. Por exemplo, na linguagem politicamente correta, no
descrever situações, muitas vezes você tem estereótipos e aquilo é
imposto aos alunos.
E os pais, que muitas vezes não têm
uma cultura profunda, mas a rama, baseada ‘no que ouviu dizer’, agem
quase que de maneira instintiva, sem refletir, sem procurar as razões.
Se uma pessoa não tem condição de comparar, de examinar, de questionar
na raiz, evidentemente vai exorcizar como se fosse um fantasma.
Muitas
vezes, quem defende um lado não tem conhecimentos profundos sobre o
assunto, e quem critica, menos ainda. Então estão discutindo em cima de
fantasmas, e quando estamos no nível dos fantasmas só Freud explica.
Isso vem piorando?
O
professor, digamos, à moda antiga, podia ser autoritário, mas tinha
conteúdos para passar que relativizavam a sua própria opinião. Então se
fosse uma pessoa de direita ou de esquerda, tinha certo compromisso com
uma ideia de objetividade, não podia ir além daquilo, não era a crença
dele contra a crença do aluno ou de outro colega.
Hoje,
o professor está reagindo quase como um integrante do Facebook; quando
entra na sala de aula, ou o aluno bate palmas para o que ele diz ou é um
inimigo que deve ser destruído.
Por vezes, não tem
mais o professor transmissor conhecimentos e valores, mas um indivíduo
que procura feudalizar a sua escola, a sua classe e os seus alunos. O
professor foi colocado em uma posição de indivíduo que tem de fazer a
sua tribo. E aí a coisa piora muito.
Aí aparecem movimentos como o Escola sem Partido.
Sim, com o discurso ‘não queremos ideologia na escola, mas a nossa ideologia é de direita’.
Mas, não há um viés de esquerda em sala de aula?
A
história da esquerda no Brasil está dividida entre dois momentos
importantes, no momento que surge, quando propõe modificações
estruturais na sociedade, e o momento que é cooptada pelo Estado, pelos
partidos políticos, etc., ela se torna tanto mais fechada e inculta
quanto mais ela está ligada a interesses imediatos.
Se
você tinha um professor de esquerda que não tinha interesses em
política, em cargos, a atitude era um pouco mais democrática. Agora,
quando além da defesa das próprias ideias defende interesses materiais
consideráveis – e a Lava Jato
e o mensalão estão aí para provar isso –, a intolerância é
institucionalizada. Quando alguém defende interesses de ordem material
com tamanha virulência, evidentemente quem não pensa como ele e que
também tem interesses materiais vai retrucar do mesmo modo, com
intolerância.
Quais são as consequências desse cenário?
No
renascimento, apareceu uma figura que era ridícula, e foi
ridicularizada até o século XX, que é a figura do pedante. O que é o
pedante? É aquele lê tudo não entende nada. Ele se empanturra de
informações, mas ele não processa essas informações, e daí julga os
outros como inferiores, porque não leram a quantidade de livros que ele
leu.
Hoje temos o pedantismo macro, que é o pedantismo
da internet: uma pessoa tem todas as informações e não tem nenhuma.
Existem sites maravilhosos, mas para isso é preciso ter o básico do
conhecimento, como as pessoas não têm, acreditam em tudo, aquilo que
leem se torna uma palavra das escrituras, e não simplesmente uma
demonstração, ou uma tese científica que possa ser questionada.
E se a isso se soma o comportamento tribal, não há saída.
Há muito de subjetivismo no debate.
Quando
aparece a intolerância, os argumentos são lugares-comuns da retórica. É
interessante lembrar-se do Górgias [um dos diálogos de Platão], porque
ele traz bem essa questão. A intolerância trabalha com a aparência, mas
se recusa ir até a essência das coisas, porque isso iria prejudicar suas
crenças.
E você tem muita gente que prega a
tolerância, mas que não canais inclusive para se manifestar, porque a
intolerância virou o pão de cada dia.
E os debates no
Brasil não são debates. Às vezes se organizam debates, por exemplo,
sobre Lula. O que você vê é ou todos contra o Lula ou todos a favor de
Lula. Não há a possibilidade de questionar os erros e acertos, colocar
os dois lados. Ou um debate sobre a Escola sem Partido.
Se há representantes dos dois lados, quase se matam e não sai resultado
nenhum. É um debate de surdos: porque para entender a razão do outro é
necessário estudar e estar aberto a argumentos.
Às
vezes sou chamado para participar de eventos e, em determinadas
plateias, sei a linha de pensamento das pessoas e faço de propósito
algumas citações, “o Neoliberalismo”... e todo mundo levanta e bate
palmas. Porque há slogans, as pessoas não têm conhecimento profundo, dos
matizes. Saio dando risada e chorando ao mesmo tempo, é uma coisa muito
triste quando não é possível sair desse nível.
No Brasil, a crise ética e de intolerância é pior?
É
uma coisa muito estranha. Aqui no Brasil tem as elites que vivem em um
mundo separado da vida social e uma grande massa que faz uma autofagia
cotidiana. Pobre mata pobre, pobre rouba pobre, violenta, etc.
Pouco
a pouco a situação tende a piorar, inclusive, porque até pouco tempo
atrás, meninos e meninas da classe média já eram consumidores de droga,
agora eles estão se transformando em vendedores de droga. Há uma
corrosão em termos éticos muito mais importantes do que nós imaginamos.
Como mudar esse quadro?
Acho que vamos levar um bom tempo para digerir essa simultaneidade. No renascimento, por exemplo, houve um boom
cultural, e vimos ao mesmo tempo um Erasmo de Rotterdam, que pregava a
tolerância, o diálogo, etc., e também um Lutero, que era a favor da
intolerância.
Mas a própria prática autoritária e
intolerante tem limites. Quando você segrega de tal forma um grupo, a
própria sociedade tenta a encontrar uma saída de atenuação dessa
situação. Porque senão é a guerra civil, a barbárie.
Mais filosofia no ensino médio ajudaria?
Não.
Sabe como se faz filosofia no ensino médio? Pega um manual, enfia na
cabeça das pessoas, eles decoram frases e não conseguem entender o
sentido daquelas frases no conjunto do pensamento do autor. Então,
formam-se papagaios.
Ao invés de pegar o manual de
filosofia e fazer a criança e o rapaz a decorarem, porque não ensinar a
pensar, por exemplo, por meio da poesia. Ensinar a ouvir os sons, a
perceber a forma, a pensar como o poeta arquitetou aquilo, o que ele
está dizendo, etc. Isso tudo ensina a pensar e forma mais para a
filosofia do que os grandes manuais.
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