23 Fevereiro 2017
“O decoro surgiu na Grécia e recebeu um nome: Aidós.
Trata-se da vergonha imposta a quem não se comporta em público. Penas
severas eram aplicadas aos que, por educação falha ou vício de caráter,
desrespeitavam os cidadãos de Atenas. Sem a vergonha os
valores democráticos empalidecem porque o corpo e a língua indecorosos
mostram que a lei foi corroída pela selvageria”, escreve Roberto Romano, professor, filósofo e autor de ‘Razão de Estado e Outros Estados da Razão’, em artigo publicado O Estado de S. Paulo, 23-02-2017.
Segundo ele, “o representante não pode tratar os cidadãos como crianças. Ele deve ser o portador de uma gravitas dicendi.
“Suruba”, “canalha” e quejandos são termos levianos. A boca suja pode
ser aceita entre malandros, na sua vida íntima. Mas na língua de quem
decide sobre os bens públicos, com repercussões vitais sobre o País,
semelhantes vocábulos indicam apenas... levitas indigna de qualquer
democracia”.
Eis o artigo.
Quando a realidade política e social se degrada e atinge o insuportável, o discurso apodrece, evidencia sinais de morte. As formas administrativas do Brasil
agonizam. Contra o que dizem muitos colegas da universidade, seguidos
por inúmeros jornalistas, discordo da tese segundo a qual as nossas instituições
“funcionam normalmente”. A menos, claro, que o critério da normalidade
seja o hábito de formar quadrilhas para o roubo das riquezas físicas ou
espirituais de um povo.
Mesmo em situações de crise a instituição e os indivíduos que a
manejam devem manter o decoro. Esse é um cálculo difícil. Um gramático
inglês do século 16 exemplifica: se a duquesa vai à corte, ela não pode
usar roupas mais brilhantes do que a rainha. Mas se a mesma pessoa usa
vestimentas inferiores às de suas iguais, é indecorosa. No cálculo do
aceitável em sociedade, consideram-se o corpo próprio e os demais. E
cada um merece tratamento relativo à sua dignidade.
O decoro surgiu na Grécia e recebeu um nome: Aidós. Trata-se da vergonha imposta a quem não se comporta em público. Penas severas eram aplicadas aos que, por educação falha ou vício de caráter, desrespeitavam os cidadãos de Atenas. Sem a vergonha os valores democráticos empalidecem porque o corpo e a língua indecorosos mostram que a lei foi corroída pela selvageria.
Na Idade Média o decoro foi retomado pelos monges. A
roupa e os gestos não poderiam depor contra um religioso que,
supostamente, tinha optado pela pobreza. Frades vestidos como barões
eram a prova de que os votos sagrados haviam sido desobedecidos. Daí o
uniforme das ordens, sem enfeites de prata, ouro, pedras preciosas. A
“dama pobreza”, segundo Francisco de Assis, exige que seus pretendentes vivam como ela, vestida apenas pela graça divina. A língua deveria seguir a mesma regra.
Da Renascença em diante, o decoro passou a nortear
as palavras, as roupas, os gestos dos reis, dos nobres, dos burgueses.
Ele é um exercício de respeito aos outros e meio de garantir o respeito a
si mesmo. Quem não tem prerrogativas, mas quer exercê-las, é
indecoroso. Um hóspede que toma o papel da dona da casa, indicando aos
demais o lugar onde devem tomar assento, é indecoroso. E se a anfitriã
deixa o indiscreto fazer o gesto inconveniente, ela é indecorosa. Sua
prerrogativa não deve ser negada sequer pelo marido, pelos filhos, pais,
etc. Se um bispo comum, numa visita papal, ousa dar a bênção Urbi et Orbi... ele não apenas enlouqueceu, mas seu ato é indecoroso.
Uma regra que ajuda a decidir as inclinações à moda chinesa, quando
pessoas estão diante da porta: não é a mais jovem, mais bonita, mais
velha a ceder a passagem. Dá o lugar quem o possui. Se o mais jovem é
presidente da República, ele cede a passagem, primeiro aos velhos,
depois às mulheres, depois aos demais. Não é falta de respeito um
inferior na escala governamental passar primeiro. É indecoro do que
detém o mais alto cargo não ceder a passagem, mostra que ele ignora a
etiqueta e as verdadeiras prerrogativas do seu posto.
Assim, na escrita, diz o citado gramático inglês do século 16: se um
autor não usa imagens no texto, é indecoroso por desprezar a fantasia e o
gosto do leitor. Se as usa aos borbotões, é indecoroso, pois despreza
inteligências e culturas. O poeta decoroso jamais dirá algo como “a face
rosada e fina do general”. É indecente um general ter faces que só
cabem às crianças e às raparigas em flor.
Se uma autoridade quer ser respeitada, deve respeitar o povo (que
fica chocado com palavrões e outras marcas de indecoro). Certas falas
devem ser evitadas. Não por causa do hipócrita “politicamente correto”.
Trata-se de algo sério. Os reitores são “magníficos”, mesmo se não
ostentam magnificência. A comunidade acadêmica é a proprietária do
título, usado em seu nome. Deputados, senadores, edis são
“excelentíssimos” não porque sejam dotados de excelência. O título
pertence ao soberano, o que possui a maiestas, termo latino para designar o ente mais elevado no coletivo. Na monarquia, a maiestas
é apanágio do rei, que usa o título em nome do povo. Na democracia é o
próprio povo que a empresta, a cada eleição, aos representantes. É assim
que o decorum exige tratar o povo com respeito. Não por “boa
educação”, mas por subordinação da “autoridade” diante de quem a
“autoriza”. E a regra funciona para todos os Poderes, incluindo o Judiciário e o militar. Sem tal respeito, temos larápios da soberania, não representantes.
A expressão “soberania popular”
e o termo “majestade” incomodam ouvidos indecentes. Mas eles permitem
reconhecer a força das normas democráticas. Somos herdeiros do mundo
grego e latino em práticas e valores. O Direito e a política não fogem à
regra. No Estado moderno as ideias de soberania e majestade, contra o
exercício ditatorial ou aristocrático do mando, aplicam-se à totalidade
dos cidadãos (Thomas, Y., L’Institution de la Majesté, em Revue de Synthèse, julho/dezembro de 1991).
Faltar com o decoro diante da maiestas é destruir a fé pública. Um político não tem o direito de ser leviano. Seu ofício exige ponderação, a gravitas. Para os romanos, a gravitas comanda uma atitude “que não se curva em proveito do sucesso político passageiro" (Yavetz, Z., La Plèbe et le Prince).
O representante não pode tratar os cidadãos como crianças. Ele deve ser o portador de uma gravitas dicendi.
“Suruba”, “canalha” e quejandos são termos levianos. A boca suja pode
ser aceita entre malandros, na sua vida íntima. Mas na língua de quem
decide sobre os bens públicos, com repercussões vitais sobre o País,
semelhantes vocábulos indicam apenas... levitas indigna de qualquer
democracia.
Se as mãos de muitos políticos brasileiros estão sujas, que eles pelo menos limpem a língua. De preferência com muito sabão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.