O Palácio e a Praça
Noberto Bobbio
A metáfora do “palácio” usada com
frequência acrescida na linguagem política usual, ppara indicar, com intento não
benévolo, os que governam, reclama, para contraposição, a metáfora análoga da “
praça”, usada, com intenção também pouco benévola, para nomear a multidão dos
que que estão fora (abaixo) e não têm outro poder além de protestar ou
aplaudir: “análoga” porque conota um todo de pessoas mediante o lugar onde se
encontram, como “casa’ para família, “ caserna” para tropa, “castelo” para
senhores, “reino” para monarca , e, passando do nome abstrato ao próprio, “
Itamaraty” para corpo diplomático. (Nota RR: Villa Farnesina no original, prédio onde se aloja o serviço diplomático
italiano, troquei os nomes por motivo óbvio).
Para comentar a manifestação
romana ocorrida em março passado, promovida por um sindicato contra certa
ameaça redução da escala móvel, o “ Corriere della Sera” assim intitulou um
artigo seu : O Parlamento e a “Praça”.
Recentemente outro jornal o título anunciava : Estudantes na “Praça” e o subtítulo
dizia : Palácio Chigi responde em tom conciliatório.(Nota RR, prédio onde fica
a sede do governo italiano). Ainda mais recentemente o jornal La Reppublica
anunciou que Carniti foi escolhido como presidente da RAI (Nota RR, líder
sindical italiano e político) do seguinte modo : "Entra no Palácio um homem da
Praça".
Embora a reiteração da
contraposição seja dos últimos anos (e quem sabe, muitos outros exemplos poderíamos
fornecer), devida à célebre invectiva de Pasolini, a antítese “ palácio-praça” é
antiga e pertence à linguagem política tradicional. Num artigo do primeiro fascículo
da revista do Instituto Italiano de Cultura, em Paris, saída nos presentes dias
com o título “50, Rue de Varenne”, dedicado poor inteiro ao tema da ‘praça”
(apesar de prevalentemente do ponto de vista arquitetônico e, pois, não em
sentido metafórico), tombou sob meus olhos um trecho dos Ricordi de
Guicciardini onde podemos ler: “ e portanto entre o palácio e a praça existe
uma névoa tão espessa ou um muro tão forte...tanto sabe o povo sobre quem
governa ou sobre as razões pelas quais ele age, quanto das coisas que se fazem
na India”.
Se uma pesquisa sobre tal
contraposição, sobretudo sobre o uso de “praça” em significado político, não
fosse ainda sido feita (nunca se sabe), valeria a pena que um jovem voluntário
a efetivasse.
No entanto não me parece
inoportuna alguma observação geral. “Praça” é um dos muitos termos que,
nascidos na lingua comum, se tornaram a cada dia mais populares com a lingua
usada pelos jornais, e podem oferecer um novo e interessante campo de pesquisa,
mesmo para os acadêmicos.
Nas expressões mais correntes, “
manifestação ou demonstração na praça” , “ subir ou descer até a praça”, “apelar
para a praça”, ou então proverbial como “pão na praça e justiça no palácio”, a
palavra indica certa multidão de pessoas que se reúnem espontâneamente e por
vontade própria, ou são convocadas por quem tem voz para ser obedecido, com o
alvo de manifestar, segundo um grau diverso de intensidade, um estado de ânimo,
uma opinião, uma vontade política, que podem ser tanto de protesto, como ocorre
num regime democrático, no qual um direito constitucional gaarantido é o
direito de reunião em público e de livre manifestação do próprio pensamento
mesmo por um meio de reunião pacífico, quanto de consenso, como ocorreu em
nossa terra com a famosa “adunate” fascista na praça de Veneza,(Nota RR:
manifestação a mando de Mussolini para apoio da guerra italiana na Etiópia, cf.
Paul Corner, The fascist Party and Popular Opinion in Mussolini´s Italy,Oxford
University Press, 2012, p. 196) onde a multidão confluia, em parte por vontade
própria, em parte porque enquadrada nas organizações de massa do regime.
As duas maiores características
que permitem definir a “praça” como fenômeno político são, de um lado, a
participação (ou mobilização, segundo o caso) de um número muito alto de
pessoas, e, de outro, o lugar aberto da reunião. Na base de ambos elementos a “praça”
se dinstingue de outras sedes de reunião com fim de protesto ou debate político,
mais restritas e menos abertas, como o salão ou café, um privado, o outro semi
público, onde é possível falar nos países em que as liberdades civis não são
reconhecidas. À diferença dos lugares onde é permitida reunião apenas em poucas
pessoas e às escondidas, a “praça” não é sede de discussões onde se vai para
debater um problema e decidir sobre ele. Os que para lá confluem o fazem porque
têm um alvo comum, de algum modo já estabelecido. Escutam os oradores de um
partido, se é um protesto, de uma petição, de uma reivindicação, sob os olhares
dos senhores que estão no palácio; ou pendem dos lábios do grande demagogo, que
fixa as metas, ordena, indica o inimigo a ser abatido entre os adversários do
governo, e aclamam.
À diferença da Agora, a “praça”
tanto nos regimes autocráticos, quanto nos regimes democráticos indiretosou
representativos, não é nem um lugar onde decisões são tomadas: as decisões que
contam ou já foram tomadas pelos mesmos partícipes (eles se manifestam porque
desejam uma providência ou se contesta uma providência já tomada), ou pelo próprio
ditador (e a massa fala por monossílabos: “ Sim”, “Não”, “ Nós”.
Em um regime de democracia
representativa, que aqui nos interessa, a “praça” é a mais visível consequência
do direito de reunião ilimitado quanto ao número de pessoas que podem o
exercitar, juntas e contemporâneamente. Antes do advento dos regimes democráticos
a faculdade concedida aos cidadãos de se reunir para apresentar petições era
reservada a poucos grupos, de poucos, não mais do que um décimo. De outro modo é
ilícita a reunião e é vetada como “assembleísmo” ou pior como “tumulto” ou “sedição”.
Não existe descrição mais exata de um acúmulo de gente para protestar que se
transforma em tumulto do que a oferecida por Manzoni no capítulo XII de
Promessi Sposi na qual se começa a falar de “praça” e estradas que “ empurravam
os homens, transportados por uma raiva comum, predominados por um pensamento
comum, conscientes ou estranhos, sem dados conta, quase sem ver-se, como gotículas
espalhadas numa imensa encosta”. e se acaba com aquela “fermentação” que “
sempre crescia” porque “ todos os que apertavam as mãos naquela bela empresa,
corriam alí, onde os amigos eram os mais fortes e segura a impunidade”.
“Palácio” e “praça” são duas
expressões polêmicas para designar, respectivamente, os governantes e os governados,
sobretudo o seu trato de incompreensão recíproca, de estranheza, de rivalidade,
ainda hoje, como no trecho citado acima de Guicciardini. E se reclamam um ao
outro negativamente: vista do palácio a praça é olugar da liberdade licensiosa;
visto da praça o palácio é o lugar do poder arbitrário. Se um cai o outro é
destinado a cair.
2 de janeiro de 1986
In Norberto Bobbio, l ´Utopia Capovolta
(Torino, La Stampa, 19900, pp 75- 810.
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