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terça-feira, 17 de abril de 2018


ESCOLA SUPERIOR DA PROCURADORIA GERAL DO ESTADO DE SÃO PAULO.

CURSO DIREITOS HUMANOS, MODULO IIº - 1º SEMESTRE DE 2008
06/03/2008

Hobbes e o mando teológico, algumas considerações
Roberto Romano
(texto provisório).

Basileùs kaì iereùs eìmi
“Sou rei e sacerdote”.

A frase acima, dita por Leão 3º, imperador romano que reinava com sede em Bizâncio, foi dirigida contra o Papa Gregório 2º, em 734 DC.  Entender os choques entre o papado e o império romano dirigido do oriente com a Itália sem imperador nominal, invadida pelos bárbaros de modo continuado é captar o que se decide em teoria no Leviatã, mil anos depois. Bem sei que os paradigmas de hoje regem os atos e noções, no máximo, nos limites do tempo regido pela publicidade, pela mídia, o tempo curto. Mas questões como o Estado e a Igreja exigem maior permanência na história. Caso contrário, fica-se na superfície e nas citações de lugares comuns, que pouco adiantam no reino do pensamento.

No século quinto, podemos encontrar uma era de transição entre o antigo e poderoso império romano e a sua dissolução, na medida em que o povo da península se mescla com vândalos, godos, francos, e outros, num amálgama que segue o ritmo de séculos. Alarico entra na Itália em 408, surge a Cidade de Deus, para desculpar os cristãos pela desgraça. Em 412, o pelagianismo (o homem pode, por suas forças apenas, atingir a salvação) é condenado no Sínodo de Cartago. O Concilio de Efeso discute o nestorianismo ( Cristo teria duas naturezas distintas, uma divina outra humana). Entre 440-442 os vândalos tomam conta do Mediterrâneo, Átila aterroriza o império e invade a Gália em 450. Entre invasões e paz, lutas políticas e religiosas, guerras e cismas, muitas tensões se manifestam no Leste e no Oeste do Estado cuja civilização tinha sido coberta pelo cristianismo. Um problema comum de religião e política, encontra-se na mistura de grego e latim para designar dogmas e conceitos jurídicos. Só para dar alguns exemplos, termos como physis e natura, ousia e essentia, prosopon e persona, sem os quais não haveria pensamento teológico ou jurídico, não possuem significação unívoca nas duas línguas, dão lugar a equívocos conceituais e práticos gravíssimos. O cristianismo aguça as ambigüidades e provoca embates ao redor das verdades trazidas pelos Evangelhos.

Para visualizarmos os pontos acima, os quais, insisto, tem importância estratégica no Leviatã,  é preciso recordar alguns pontos nucleares. O primeiro é que o batismo permite aos indivíduos, grupos ou povos o ingresso na Igreja. Mas ele não basta para governá-la. A ordenação é conditio sine qua non. Ela divide, para o correto ordenamento coletivo, a Igreja em dois elementos, o clero e o laicato. Leigo vem do adjetivo grego laïkos, derivado do substantivo laós, “povo”. Clero vem de clericus, tradução latina do adjetivo grego klêrikos, do substantivo klêros, cujo sentido é “parte”. Clero é a parte eleita e no início da Igreja todos os cristãos a integravam, em oposição aos gentios. Posteriormente, no interior da Igreja, os sacerdotes opostos aos não ordenados.  Existem médicos, juristas e outros profissionais de hoje que se julgam postos na parte eleita e reservam para os que deles discordam o epíteto, no seu entender infamante, de “leigos”. E tais pessoas, não raro, se consideram democratas. Eles são os padres de seu ofício. O grande idealizador dessa taxinomia é Dionisio, o pseudo-areopagita. São por demais conhecidas a fortuna e a crítica dos escritos dionisíacos. Basta recordar que ele define uma escala vertical que vai dos entes mais elevados aos de menor elevação. Os mais próximos da Verdade divina, indizível em língua humana, são os anjos. Depois os sacerdotes, os nobres e finalmente o povo. A doutrina assim determinada chega aos nossos dias, mas antes passou pela visão de Santo Tomás e determinou a forma e o conteúdo do Ancien Régime.

Para que o povo seja governado, além do batismo, ou antes e como base daquele sacramento, é preciso que o reino divino seja o telos a ser atingido. O caminho do Paraíso é a meta comum de todos. E se o Éden primevo situa-se antes da Queda no tempo e no espaço finitos, no mundo, o céu também-se difere da finitude. O governo da Igreja tem como seu múnus conduzir o laós, o povo, ao reino celeste, à semelhança de Moisés que dirigiu seu povo pelo deserto, na busca da Terra Prometida. De Moisés ao Cristo, deste a São Pedro, a linha dos condutores seria ininterrupta, no entender dos que defendem o mando do Sumo Pontífice. Quando o papa Leão 1º fala de si mesmo como o substituto de Pedro, “cuius vice fungimur”, ele expressa o estilo da monarquia em termos de governo. () “Embora existam muitos pastores e muitas ovelhas no povo de Deus, é Pedro, propriamente, quem governa cada um dos que o Cristo também governa principalmente.”  () Na época de Leão 1º o título de Vigário de Pedro é novo, embora a idéia seja antiga.

Note-se que o título de vigário é seguido pelo de príncipe, no contexto do principatus, que na verdade define-se como nome de governo romano. () No caso da Igreja, trata-se de conduzir o povo (o leigos, a plebe) ao seu fim. Misturam-se nos títulos dos sacerdotes eclesiásticos atribuições de várias procedências, como o de pastor usado na  Grécia e no Antigo Testamento. () A origem mais direta, evidentemente, encontra-se nos Evangelhos ( Lucas 15:1­7; João 10:27 e 21:15­17).

Todos conhecem a imagem corporal da Igreja, corpo místico de Cristo, elaborada por São Paulo na Primeira Epistola aos Corintios. () O uso das metáforas corporais é antigo como a Grécia, quando se trata de imaginar o Estado. Em Platão o seu uso é constante, mas em Roma ela surge em contexto de polêmica entre patriciado e plebe  na fábula de Menenius Agrippa () Importa que o corpo da Igreja não é apenas espiritual, pois ele reside no mundo e se dirige para o não mundo, o Eterno. 


Um ponto essencial das representações cristãs é o que se liga à noção de Kayrós. Trata-se do tempo certo, nem antes nem depois, no qual o cristão passa pela sua experiência decisiva, na sua morte e no Apocalipse. Ambos permitem sair do mundo. Mas se não há morte, ou se ela é adiada para um átimo só conhecido pelo Senhor, a Igreja segue, peregrina, no mundo. E o que é o mundo, para o cristianismo. A melhor resposta é encontrada na Primeira Epistola de João (2, 15-17). “Não ameis o mundo nem as coisas que existem no mundo (...) Porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne ( epitimia tês sarkós), concupiscência dos olhos (epitimia tôn oftalmon) e a soberba da vida (alazoneia tôn biou), não procede do Pai, mas do mundo. Ora, o mundo passa, bem como a sua concupiscência, aquele que faz a vontade de Deus, permanece para sempre (aiôn)”. Enquanto o indivíduo ou coletivo vive no tempo e no espaço, ele deve sofrer a prova do Kayrós. Se passa ao Eterno, é liberado. Mas se está no tempo e no espaço, ainda não é perfeito e deve ser corrigido no plano espiritual ou material. Os principes laicos são sujeitos à disciplina da religião  a qual, por sua vez, está nas mãos do príncipe consagrado : sub religionis disciplina saeculi potestates subjectae sunt, diz Isidoro de Sevilha no livro das Sentenças. O príncipe secular deve fortalecer o religioso, com o  terror. ()
A palavra que designa o corpo eclesiástico ou político sai ora do latim, ora do grego : comunio, koinonia, societas, unitas. A origem do conceito, no entanto, tem como base o direito romano tardio. No século segundo depois de Cristo, o jurista Pomponius distingue três corpora. O que nos interessa é o terceiro : ...ex distantibus constat, ut corpora plura non soluta, sed uni nomine subjecta, veluti populus, legio, grex. E quem dirige o corpo da república cristã ? Com evidência, o Papa. Mas é preciso retomar a história do império romano, dividido em oriente e ocidente, com o basileus reinando em Bizâncio e o papa, seu vice, na Itália.  A reivindicação pontifícia do principado (o principatus de que já falamos) era naturalmente atacada pelo monarca (autokrator). Os choques se acentuaram à medida que o poder do pontífice se firmou na Igreja e no mundo político italiano, com a resistência às invasões barbaras. Se o plano temporal era discutido, o espiritual não recebia dúvidas de quem defendia o Sumo Pontífice: naquela esfera, o mando imperial nada teria a dizer, sobretudo quando se tratava de assuntos ligados à disciplina do clero, dos fiéis, e das crenças, os dogmas. Os imperadores do oriente, como no caso da imperatriz Irene, tinham certeza de possuir uma superioridade naqueles planos, pois convocavam concílios, aceitavam ou não indicações para ordenações, etc. O sentido e a interpretação das verdades religiosas era um monopólio disputado pelo papa e pelo imperador. Gradativamente o segundo perde o controle do assunto, em favor do primeiro.
Mas o império, por ficção jurídica, era uno, com distintas atribuições. Do ponto de vista constitucional o papa encontrou dificuldades para exigir a plenitude dos poderes. Supostamente nada mudara no império, salvo a capital. Resistir aos decretos emitidos pelo basileus do oriente, cujo título também era Rex sacerdos, seria na prática uma  alta traição. O único meio, para o sumo pontífice, de se liberar da moldura jurídica que o prendia ao basileus seria sair da própria moldura. Com esse movimento, haveria liberdade maior para o príncipe romano e perda incomensurável de prestígio para o todo do império. É bom recordar que o papa não possuía os meios coercitivos e que estes deveriam ser fornecidos pelo braço secular. Na Itália, tal ajuste era difícil, dada a crescente fragmentação dos centros políticos. Ao crescer no tecido do antigo império, o papado  manteve seu prestígio, no entanto, por estar situado na capital de sempre, Roma. E se a subordinação ao basileus grego impede o crescimento e a liberdade da igreja romana, o correto é dele se emancipar. Tal é o trabalho empreendido pelo papa Gregório 7º e o processo emancipador inicia justamente com o problema essencial do Estado, além da força física e da norma jurídica: a luta pelo controle dos impostos.
Gregório recusa a taxação definida em decretos de Leão 3º. Pela constituição do império, ele seria obrigado a obedecer. Para seguir seu intento, o sumo pontífice aproveita a revolta geral contra os impostos de Bizâncio, que se espraia por toda a península italiana. A palavra de ordem era desobedecer o “estrangeiro” basileus. O papa, praticamente o vice-rei da Itália, tomba no crime de alta traição. E o processo contra ele foi iniciado, embora não tenha recebido a repercussão do réu, apesar da tentativa de assassiná-lo. O imperador não desejou levar adianta o caso e ofereceu ao papa, em troca da retirada do processo, a aceitação do sumo pontífice da proibição das imagens no culto. O papa responde à oferta com posição firme, contra o basileus. E a resposta foi em grego  : “Nosso poder e autoridade derivam do príncipe dos apóstolos, Pedro, e poderíamos, se quiséssemos, fazer um julgamento sobre tua pessoa. Mas o julgamento sobre tuas ações já foi pronunciado por tua pessoa, sobre ti e teus conselheiros; eles e tu, depois do julgamento, permaneceis amaldiçoados”. Logo a seguir, exclama o papa: “Escuta, imperador, deixa de agir como padre, e siga a sagrada igreja, como é teu dever. Dogmas não são o assunto de imperadores, mas de pontífices, porque nós temos o sentido e a mente de Cristo...e tu, imperador, não podes ter a mente certa para os dogmas; tua mente é muito rude e marcial”.()
Só os ordenados, o clero (os ierói)  têm o sentido e a mente de Cristo, só eles podem dizer quem é cristão ou quem deixa de ser cristão. Preste-se muita atenção: dado que ser cristão é integrar um corpo, uma respublica, a cidadania é concedida pelos ierói, e apenas por eles. As ameaças físicas não abalam Gregório 7º, visto que se fosse perseguido lhe bastaria entrar três milhas pelo interior da Itália, para fugir do basileus. É neste contexto que se realiza a liberação da Igreja romana do império, nominalmente controlado desde Bizâncio. Mas não podemos esquecer o ponto reivindicado por Leão 3º: o de ser ao mesmo tempo rei e sacerdote.
O monarca, nos antigos tempos do império bizantino, era considerado como arkiereùs basileús, ou em latim Rex sacerdos. Tal status vem de longa data no império, não apenas do oriente, mas também do ocidental. A tradição vem do helenismo oriental e da velha noção de Roma antiga, segundo a qual o imperador representa o divino. Augusto era aclamado como salvador do mundo, o que seguiu até o ano 400 DC, o que também ocorre em Constantinopla, representações já nos tempos cristãos mostram o imperador como Deus e os patrícios como apóstolos.  Deus na terra, o imperador bizantino era dito isokristós (igual a Cristo) e autokrator kaisar. É por tal deificação que lhe eram submetidos os mais árduos problemas teológicos, e também os mais difíceis problemas práticos: trata-se de um monarca cujo governo abrange o cosmos (gês apasés monárkos). Deste modo, ele se julga governante em assuntos espirituais e materiais do imperium christianum. 

Essas titulações e prerrogativas seguiram, embora não enfáticas como no pretérito, até os dias de Carlos Magno. Este foi considerado rector da verdadeira religião (declaração do Concilio de Mainz, em 813). Esta função de rector populi Christiani fez dele legislador em todos os assuntos como a liturgia, educação religiosa, batismo, disciplina eclesiástica, dias festivos, sacramentos e outros. Bispos e arcebispos eram indicados pelo imperador, e todos os decretos sinodais deveriam passar pela sua aprovação. 

Na estratégia para se livrar da moldura jurídica imperial, um elemento importante encontra-se na fraude chamada Doação de Constantino, surgida nos primeiros cinqüenta anos do século oitavo depois de Cristo. A sua base “histórica” é a Legenda sancti Silvestri (por volta do quinto século)  na qual se narra a conversão do imperador.  Ela foi elaborada nos tempos em que ocorreu o primeiro choque significativo entre o papado e o império, relativo à jurisdição sobre o clero, matéria de fé e doutrina. Decisiva foi a publicação do Henoticon, um texto do imperador de 482, cuja causa teológica foi o monofisismo (atribuição de uma só natureza, a divina, ao Cristo) e pelo qual o imperador sozinho, sem um sínodo, pela primeira vez decreta por lei a fé do império. O Concilio da Calcedônia foi afastado pelo ato imperial, o que definiu o primeiro movimento histórico do césaro papismo. É inventada, então, outra fraude, a de que o concilio de Nicéia (325 AD, cuja conclusão mais relevante em termos de fé era a de que DeusFilho e Pai são "de uma substância", o Filho é "gerado" (João 1. 14,18), não criado, foi submetido ao papa Silvestre para ser aceito. O alvo era definir que não mais existiria espaço, como no tempo de Constantino, para o imperador decretar em assuntos de fé e doutrina. 

O autor da Legenda narra que Constantino, oito dias após se converter, ajoelhou-se e colocou sua coroa abaixo e molhou seu manto com lágrimas de arrependimento. Fica sugerido que a coroa imperial foi tomada em custódia pelo papa. O sugerido na Legenda é dito no texto da Doação. Nesta, Constantino arranca de si e entrega ao papa Silvestre todos os ornamentos imperiais, as insígnias e símbolos, incluindo o cetro, a lança, o orbe terrestre, os estandartes “et diversa ornamenta imperialia”  ao sumo pontífice. Até a morada do imperador (palatium nostrum) e a cidade de Roma, todas as províncias italianas e ocidentais (loca et civitates) foram entregues ao bispo de Roma. A Doação fez do papa o real imperador, o Rex sacerdos, ou como diz Ullmann, um Papstkaiser, uma cópia ocidental do basileus hiereus. E como ainda diz Ullmann, embora o papa não usasse a coroa imperial, ele passou a ter a sua situação invertida diante da forma constitucional do Estado. Em vez de ser o vice do imperador de Bizâncio, ele era a fonte do poder imperial. O imperador derivaria o seu poder do papa, e só poderia governar com a concessão pontifícia. Começa a liberação real da Igreja e de seu Chefe diante do poder imperial. 

Apesar dessa afirmação unilateral do mando pontifício, pode-se dizer que o problema teológico político não se resolve. Relações entre Igreja e Estado, como enuncia Ernst Kantorowicks formam verdadeiro híbridos nos dois campos. A troca de insígnias, símbolos, prerrogativas passam de um campo ao outro. O papa é adornado sua tiara com a coroa dourada, usa a purpura imperial. O imperador usa, sob a coroa, a mitra, calça sapatos pontificais e outros adornos clericais, recebe como bispo o anel em sua coroação. “O sacerdócio mostra aparência imperial e o reino exibe um toque clerical”. () Assim, o aparato hierárquico da Igreja Romana “tendeu a a se tornar um perfeito protótipo de uma absoluta e racional monarquia com base mística, enquanto ao mesmo tempo o Estado mostrou uma tendência crescente a se tornar uma quase Igreja ou corporação mística com base racional”. () O autor, ao longo de seu livro, evidencia o tema da Igreja corpo místico e também a questão do Estado, república mística. Se estabelece uma passagem do político ao teológico e deste ao político. O círculo será rompido, e apenas de maneira especulativa, nos séculos 17 e 18, sobretudo nos pensamentos de Pascal, Hobbes, Spinoza. No primeiro, como resultado final do absoluto transcendente, o Estado é reduzido à pura força, ao “mundo”. Fruto, pois das três concupiscências enunciadas por São João, citadas acima. Em Hobbes, todo o espiritual se esvazia em favor do físico, mas não a partir da força natural. O Estado não é algo que possa ser encontrado no interior da natureza, mas é máquina que potencia ao máximo o poder coletivo contra os átomos individuais. O maquinista soberano segura na mão os símbolos dos dois poderes concorrentes, o religioso e o imperial. Em Spinoza, o teológico é expulso do campo noético político. Teologia e política são incompatíveis. 

Como exercício apenas, permito-me citar um artigo meu, publicado em revista nacional, que na verdade é um pequeno fragmento da pesquisa que desenvolvo sobre a razão de Estado, a ditadura e demais campos que interessam a todos os que sobreviveram ao Holocausto e às duas guerras mundiais. Refiro-me ao aspecto totalitário do pensamento hobbesiano, visto exatamente pelo prisma que apontei até agora, a passagem e o sentido do campo estatal para o eclesiástico, e vice-versa.

Ao contemplar a Virgem nas artes, medievais ou quando surgia a Renascença, notamos a desproporção entre o seu tamanho e o dos pecadores. Corpos trêmulos abrigam-se sob a mulher que esmaga o mal. O pagamento do pecado é a morte (Romanos 6,23), mas a salvação se oferece, gratuita. Cada um dos fiéis encontra em Maria a sua porta para deixar o vale de lágrimas. Os cristãos estão no mundo, mas caminham para o invisível . A coroa de Maria garante o triunfo sobre o Inferno. No culto à Virgem o tempo dos cristãos vai do agora ao instante da morte. Desprotegidos em termos seculares, os cristãos submetem-se aos barões ou peregrinam pelos centros onde Maria os reconforta. Os conflitos entre Estado nacional e Igreja centralizada surgem ao redor do mando soberano. Segundo G. Duby, “a coroação de Maria na catedral celebra (…) solenemente, a soberania da Igreja romana” . Com o tema da Virgem rainha e mãe, o papa Inocêncio III a reivindicava para a soberania plena da Igreja. Tendo na lembrança os enunciados acima, examinemos a Virgem enquanto figura do poder. Na pintura e nas doutrinas religiosas não existem pessoas isoladas, todas se colocam sob o manto de Maria/Igreja, o que lhes dá segurança e certeza da salvação. Na Virgem da Misericórdia, leigos e clérigos são protegidos igualmente pelo manto soberano da Mãe de Deus. As batalhas entre a Santa Sé e os reis conduzem a pintura para a propaganda política. No texto Sicut universitatis conditor (1198), Inocêncio 3º proclama que “O Criador do universo estabeleceu duas grandes luzes no firmamento dos céus; a maior para iluminar o dia, a menor para dirigir a noite. Ele fez o mesmo para o firmamento da Igreja universal, da qual falamos como se fosse um céu, e definiu duas grandes dignidades; a maior para proteger e governar as almas (os dias), a menor para proteger e governar os corpos (as noites). Tais dignidades são a autoridade pontifical e o poder real. A lua retira sua luz do sol, sendo inferior a ele em tamanho e qualidade, em posição bem como em eficácia. O poder real deriva sua dignidade da autoridade pontifícia: e quanto mais ele escapa da esfera daquela autoridade, menos luz o adorna; quanto mais dela se aproxima, mais aumenta seu esplendor” .

 Nas escaramuças entre os poderes surge o Policraticus.  O poder real, afirma Jean Salisbury, se quiser escapar ao label da tirania, deve ouvir e obedecer a Igreja. E vem a profecia: o Estado exigirá para si a força física ilimitada. O corpo social, no Policraticus, é relevante porque a dualidade entre os poderes — espiritual e secular — começa a se definir. Se a tarefa do príncipe é manter a boa saúde do corpo estatal, o sacerdote tem a missão de aconselhar neste labor, como se fosse a alma da República. Caso o rei abuse do poder e desobedeça aos mandamentos religiosos, mergulhando a comunidade na injustiça, a sua morte é correta e abençoada. No imaginário religioso foram geradas imagens contraditórias do soberano laico, da monstruosa à respeitável. Mas elas não se recobrem, deixam espaços para os cidadãos decidirem sobre a obediência hegemônica, a religiosa ou a secular. Igreja ou Estado não integra os indivíduos numa unidade sem fissuras. As imagens da Virgem, signos da soberania eclesiástica, mostram o quanto o poder legítimo protege os súditos até a hora da morte. Com a secularização do Estado e da cultura, o indivíduo só tem segurança quando preso ao corpo estatal.

 Com Hobbes o cidadão perde o direito de seguir a consciência religiosa contra o poder. A causa deste veto encontra-se na ficção do pacto, no qual todos os indivíduos contratam a sujeição comum ao soberano, sendo autores do Leviatã. Ir contra este último significa destroçar a si mesmo, o que seria ilógico na óptica assumida pelo filósofo. “Constituído o Estado, a personalidade inteira do povo passa sem reserva à do soberano, seja esta a personalidade física de um indivíduo, seja ela a personalidade artificial de uma Assembléia. Só na última e por ela o povo é pessoa, enquanto é apenas uma simples multidão sem ela e, portanto, não pode ser pensado como sujeito de qualquer direito diante do soberano” . A principal renúncia, no pacto, determina que os indivíduos não têm direito de professar a sua religião como lhes interessa.

Hobbes investe contra o universo cristão, cuja doutrina afirma que a natureza participa da sobrenatureza divina, e fundamentava a dualidade dos poderes, o secular e o religioso. O pacto ocorre no mundo e reúne a todos e a cada um. Se todos se sujeitam a todos, os que quiserem retornar à vida anterior ao pacto serão esmagados, mesmo que sejam muito fortes. E temos a imagem célebre do Leviatã para definir o nexo entre as pessoas e o coletivo. Vejamos uma outra vez a figura monstruosa
 No Leviatã, os seres humanos integram o corpo do gigante sem nenhum intervalo, dando-se a unidade absoluta das partes no corpo do Estado. No caso da Virgem, percebe-se não apenas a diferença do tamanho (Maria imensa, os súditos pequenos) mas os corpos não se fundem. Tal distância corresponde à transcendência do poder religioso. Maria intercede pelos homens, mas seu corpo não é formado por eles. O soberano hobbesiano não depende de nenhuma transcendência porque expressa de imediato a vontade dos que o constituem e conhece diretamente a vontade coletiva. Não existe intervalo entre o coletivo e cada um dos que assumiram o pacto de submissão. E se por acaso surgir alguma fissura entre ambos, o indivíduo que a produz é réu de traição a si mesmo, porque deseja o pacto. O poder é imanente em termos absolutos, o que simplifica ou mesmo suspende a questão da legitimidade. O Leviatã protege os indivíduos deles mesmos. Ou cada um aceita integrar-se nele, ou assume a guerra primitiva que põe a sua própria existência em risco perene. Cada um, a partir do pacto de submissão, sente e pensa como um “nós” que domina as veleidades de autonomia e independência individual.

 Horst Bredekamp, estudioso do fascínio pela máquina que assalta a alma ocidental, escreveu bela análise sobre o Leviatã, protótipo do poder mecânico onde se integram os indivíduos num coletivo finito, contrário à transcendência religiosa. Em Estratégias Visuais de Thomas Hobbes, ele expõe a gênese das imagens utilizadas pelo filósofo e as suas fontes nas teorias ópticas, na retórica e nas tradições místicas. Seu mote encontra-se nas palavras de Hobbes: os homens podem prever a sua própria preservação e uma vida com maior contentamento. Eles só podem fugir da guerra que surge das paixões “quando não existe um poder visível para lhe impor respeito” (Leviatã, segunda parte, Of Commonwealth). Hobbes, argumenta Bredekamp, inicia a moderna teoria do Estado a partir da óptica, matéria que estudou durante anos e inseriu em sua obra principal com figuras tão cuidadosamente escolhidas que resultam de estratégias visuais. O autor também observa o De corpore (1655), onde Hobbes desenvolve sua teoria das marcas e sinais. As marcas ajudam a memória, os sinais definem-se por sua publicidade. Eles comunicam assuntos e podem dar início a ações. Bredekamp dá como exemplo de um sinal público o colapso das Torres Gêmeas em 11 de setembro. O sinal do Estado encontra-se na unidade. O contrato que o forma é mais do que um acordo, pois trata-se da união real de pessoas (in personam unam vere omnium unio). Nele, as vontades são reduzidas a uma só.

Com base nessa imanência absoluta do Estado, fortificaram-se na modernidade teorias e práticas cujo paroxismo ocorreu nos Estados fascistas e estalinistas do século 20. Hobbes não tem culpa pela radicalização de seu protótipo político. Ele não precisaria mesmo ser chamado ao Tribunal de Nuremberg a exemplo de seu admirador, Carl Schmitt . () E não se pode afirmar que a estrutura de mando cujo modelo é a transcendência efetiva os sonhos de salvação nela prometidos. O fato é que Estados modernos ainda não se livraram da cautela teológica, outros Estados colocam-se diretamente sob ela (ou pelo menos seus governos, como é o caso dos EUA nos dias de G.W. Bush e dos sacerdotes que definem a sorte do Irã e de outras terras) ignorando tudo o que, desde as Luzes, se conquistou no plano democrático. O modelo hobbesiano surge como paradigma do césaro papismo, no qual a religião é jogada em plena consciência invisível dos governados. Ela não tem estatuto público. As tentativas de radicalizar o banimento do fato religioso positivo, as igrejas existentes, mesmo das consciências, terminou em desastre, como ocorreu com o jacobinismo da Revolução francesa e com a URSS e seus dependentes. Vejamos, no futuro, o que pode advir para os dominados, ao dispor do do Leviatã ou dos sacerdotes infalíveis. Futuro pouco lisonjeiro.
Roberto Romano

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