Trecho do artigo "Sobre o Segredo e o Silêncio", de Roberto Romano, REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 134-146, dezembro/fevereiro 2010-2011.
A
justa medida, diz Platão, é essencial na ordem política e nas relações do corpo
(alimentos) ou técnicas (nos navios, não se pode usar mais velas do que o
preciso). Na alma não podem ser usufruídos direitos excessivos.Sem justa medida
tudo se inverte.Ali a abundância de carnes que leva à doença, aqui a ilimitação
(hybris) que gera a injustiça (adikia). A alma dos jovens não suporta o peso do
poder, logo é infectada da mais grave doença, a desrazão (anóia). Contra tais excessos
cabe ao legislador prudente, graças à justa medida, tomar precauções. E chega o
instante dos pesos e contrapesos do poder. Em Esparta, em vez do rei único,
existia uma dupla de reis reduzindo o poder à justa medida. Além disso, o voto de
28 anciãos que possuem, nos assuntos mais graves, poder igual ao dos reis. Há
um terceiro salvador com o poder dos Eforos, algo que se aproxima do sorteio. O
governo de Esparta combina poderes, o que leva à salvação coletiva. Juramentos
não controlam a alma de um jovem candidato à tirania. Importa limitar a medida
dos poderes, fundir num só os três poderes.
No
mundo conhecido, adianta Platão, existe de um lado o poder autocrático dos persas
e o temperado de Esparta. É preciso sempre o tempero, o acorde correto. Tal teoria
do poder tem como pressuposto uma visão do universo e da sociedade como
harmonia. Na ordem política deve ser mantida a ordem antiga sob o domínio das
antigas leis. Nela, o povo não tinha soberania nos assuntos mas era escravo
voluntário das leis. Quais leis seriam as referidas? As relativas à música. Na
época antiga a música era dividida segundo espécies e formas próprias. As
preces aos deuses eram cantos, hinos. Depois havia uma espécie de canto segundo
espécies e formas próprias. As preces aos deuses eram cantos, hinos. Depois
havia uma espécie de canto oposto: lamentos chamados “trenos”. Os peans eram
uma espécie distinta, outra ligada ao nascimento de Dionisos seria o ditirambo,
etc. Reguladas as coisas, não era permitido abusar de uma das formas,
transpondo-a para outras. O poder de julgar sobre elas e julgar com
conhecimento de causa e punir os transgressores não pertencia às vaias ou
aplausos, mas era decidido por homens sábios que tudo ouviriam em silêncio e, com
a varinha nas mãos, estabeleceriam a ordem e advertiriam crianças e
professores. Esta a ordem aceita pelos cidadãos, sem que eles tivessem a
audácia de recorrer à gritaria para opinar.
Os
poetas foram os primeiros a corroer as leis da música. Eles são dotados para a
poesia mas nada conhecem da Musa enquanto fonte de legitimidade e fé pública, misturam
as formas e levam tudo a se confundir, pretendem mentirosamente, em sua
desrazão involuntária, que na música não existe lugar para a retidão e que,
além do prazer que se encontra no seu gozo, não existe meio correto de decisão,
melhor ou pior. Eles inculcam na massa o hábito de infringir as leis e a
audácia de se acreditar capaz de decidir. Resultado: antes, o público não
falava no teatro (era ἄφωνος), depois, começou a falar como se entendesse o que é
belo na música, ou não, surge então uma “teatrocracia”
(θεατροκρατία) depravada
que substitui o poder dos melhores juízes. Se apenas em música, e em música
apenas, surgisse uma democracia composta por indivíduos de uma cultura liberal,
não ocorreria algo tão desastroso. Mas na verdade é pela música que se iniciou,
entre nós, com a crença na sabedoria de todo mundo para julgar, a atitude
subversiva. Nenhum medo os retinha pois se acreditavam sábios, e essa ausência
de medo gerou a impudência, audácia de não temer a opinião de quem vale mais do
que nós. Eis a impudência detestável, efeito de uma liberdade cuja arrogância é
levada ao excesso.
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