Flores

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domingo, 18 de novembro de 2018

Descobri que entre os amigos do FB há um parente de um grande homem e filósofo, Professor Ubaldo Puppi, de quem tive a honra de ser discípulo e afilhado de crisma. Quando ele faleceu o Instituto Fé e Ciência de Curitiba me pediu uma homenagem. Ela foi publicada no site do Instituto, mas não está mais à vista. Aproveito o encontro do familiar do professor, para repetir aqui a homenagem. Para quem não o conheceu, ele foi secretário de Jacques Maritain, voltou ao Brasil e quando lecionava na Faculdade de Filosofia de Marilia foi preso por "subversão", devido à delação de duas senhoras que nem merecem o título de conservadoras, visto serem apenas fanáticas. Após muitas dificuldades ele venceu o processo (AINDA EXISTIAM JUÌZES NO PAÌS) e voltou à cátedra. Católico fervoroso, nunca ouvi dele nenhuma reclamação pelo que sofreu. Suas aulas eram brilhantes e suscitaram muitas vocações intelectuais. Deus o tenha na su glória.

ANO 6 - ED 73 - SETEMBRO DE 2005
ARTIGO
Professor Puppi, um testemunho
Roberto Romano
Patet igitur ex praedictis quod, sicut anima hominis elevabitur ad gloriam spirituum caelestium ut Deum per essentiam videat (…) ita eius corpus sublimabitur ad proprietates caelestium corporum, inquantum erit clarum, impassibile, absque difficultate et labore mobile, et perfectissime sua forma perfectum. Et propter hoc apostolus dicit resurgentium corpora esse caelestia, non quantum ad naturam, sed quantum ad gloriam. Unde cum dixisset quod sunt corpora caelestia, et sunt terrestria, subiungit quod alia est caelestium gloria, alia terrestrium. Sicut autem gloria in quam humana anima sublevatur, excedit naturalem virtutem caelestium spirituum (…) ita gloria resurgentium corporum excedit naturalem perfectionem caelestium corporum, ut sit maior claritas, impassibilitas firmior, agilitas facilior et dignitas naturae perfectior. Summa contra Gentiles De qualitate corporum glorificatorum (Liber 4, caput 86) (1)

Anjos. Esta foi a primeira palavra que ouvi, em companhia de outros jovens, de Ubaldo Puppi. A cidade era Marilia e o ano podia ser 1962 ou 1963. No Instituto Bicudo de ensino oficial secundário, numa sala de aula que reunia alguns estudantes da JEC, falava o professor de filosofia com a tranqüila seriedade dos sábios. Anjos. Risos surgiram, inevitáveis, quebrando o silêncio de um sábado modorrento, comum no interior paulista. Sem ira ou hilaridade o professor replicou : "anjos, sim". E ouvimos belíssima exposição sobre a essência dos corpos angélicos, a sua diferença em relação a nós, sua proximidade do poder divino, a pureza absoluta da mente e o controle de seu movimento. Passados muitos átimos, termina a aula. Saímos pensativos e preocupados. Anjos, quando berra a injustiça brasileira ? Anjos, quando o imperialismo ameaça a esquerda e a sociedade nacional? Anjos, quando o golpe de Estado se anuncia nas falas do IBAD e de Carlos Lacerda ? Anjos, quando as reformas (agrária e demais, anunciadas pelo governo) são indicadas pela imprensa como agressões comunistas ? Anjos…
Pouco tempo depois escutamos o mestre, agora na Faculdade de Filosofia de Marilia. Sua fala silenciava as realidades celestes e nos dirigia para os temas aflitivos da política nacional : fome no campo e na cidade, exploração imperialista, injusto usufruto das rendas, coronelato, capangagem, etc. Tratava -se não de anjos, mas do mundo bestial, no capitalismo sem peias. Puppi, com outro professor amigo, comandou o curso de preparação de monitores para o método Paulo Freire. Em companhia de Antonio Quelce Salgado, ele era a fonte onde jovens secundaristas e universitários sorviam o pensamento mais translúcido sobre a opaca realidade brasileira. Encontrá-lo era uma alegria: sem pedantismo, sem nariz erguido, sem crueldade (algo muito comum na filosofia universitária), ele respondia as perguntas e arrazoava - sempre- meditando sobre as origens empíricas e as dificuldades lógicas dos problemas. Ensinava da maneira eficaz, não parecia ensinar. 
No curso Paulo Freire, ou "sobre a realidade brasileira", como o chamávamos, acotovelam-se jovens e adolescentes sequiosos de saber e justiça. Mas também se apresentavam corações e cérebros opaco almas sombrias movidas pelo preconceito e ódio. Duas senhoras se notabilizaram nas palestras por suas falas conservadoras. Mas os trabalhos seguiam um ritmo natural. Entre a leitura dos textos e o lazer, um divertimento era seguir Puppi e seu colega, proprietário de um carrinho velho (se bem me lembro, verde escuro) pelo "tobogã" da Avenida São Luiz, no trecho entre a praça de São Bento e a Faculdade de Filosofia. Na descida, muitos de nós pulavam na boléia, rindo e aproveitando o ar livre. Na subida…não raro o carro enguiçava e lá íamos empurrando o heróico veículo até um ponto seguro. Dentro, nos atirando desafios, os dois professores amigos. O nome que demos ao veículo cômico e anacrônico? Catarina.
Chega 1964 e a tempestade de ódios e delações trazida pelo golpe civil e militar. Aparece a prática hedionda do chamado "dedurismo". Pessoas de bem são delatadas por pessoas que se imaginavam de bem, mas eram diabólicas. Puppi e seu colega foram apontados como perigosos subversivos a serviço de Moscou. Com a maré das acusações contra eles, tentam sair da cidade…pilotando a velha Catarina. Não foram longe. Detidos, voltaram para Marilia onde os esperava a baixeza humana em estado quase puro. Demitidos da Faculdade, foram obrigados a providenciar os recursos vitais de sua família de maneira digna, mas humilhante. Puppi vendeu produtos de consumo doméstico nas portas e procurou vender livros aos seus antigos alunos. Conforme ele mesmo me confidenciou, teve decepções com vários deles. Dias de sofrimento, entretanto, que ele dominou com a fé cristã e a temperança dos justos. Nunca o vimos desesperado ou sombrio: o sorriso gentil e nobre manteve-se em seus lábios, intocado. 
Certamente as horas mais escuras, quando até mesmo os santos sofrem o ataque da acedia, ele as partilhou com a companheira de todas as horas: a bela, gentil, cultivada e fina Dona Edi. É difícil encontrar um casal bem feito. Temos tal certeza pelos relatos sobre a gênese do pecado (se formos cristãos) ou pelas narrativas do Banquete platônico sobre o ser original, uno e completo, que se tornou inimigo desde o arrogante desafio aos deuses. O casal Puppi era uma rara exceção. Estar com os dois sempre foi uma alegria porque o sentimento e a inteligência se manifestava em ambos, não distribuidos segundo padrões numéricos, mas enquanto diversas operações de corpos. O lado masculino chamava para aspectos estratégicos da vida. Mas o feminino, suavemente, apresentava o sentido real das coisas. 
Ao retornar às salas de aula, por ato da justiça contra o arbítrio, Puppi retomou a brilhante carreira acadêmica. Um detalhe fundamental: na juventude extrema, ele esteve entre os noviços dominicanos, na França. Alí, estabeleceu os laços com a filosofia tomista e o canto gregoriano, que dominou até os últimos dias. Depois foi colaborador do maior pensador católico do século 20, Jacques Maritain, filósofo que buscava trazer a doutrina social e política da Igreja para os tempos modernos, sem trair a essência religiosa. O convívio com poderosas inteligências e vontades retas, como as de Jacques e de Raïssa, formou o pensador Puppi. Ao retornar ao Brasil, ele publicou alentado volume que visava refutar a fenomenologia husserliana. Certamente o livro teve poucos leitores. Tentei inspecionar a sua totalidade, mas desisti. Não tinha cultura ou cabeça para seguir as agudas sentenças e análises do autor. Só mais tarde captei, em parte, as demontrações de Ubaldo Puppi. Mas o professor, já naquele momento, reavaliava sua crítica à fenomenologia, acrescentando solidez aos argumentos. Filósofo com rigoroso treino metodológico, adquirida no tomismo, Puppi não se prendeu à escolástica: aberto ao pensamento e ao Ser, sua pesquisa jamais admitiu limites. É desse modo que redigiu páginas brilhantes e finas sobre estética (certamente a companhia de Dona Edi foi importante), ética, política, religião.
Ao retornar para a nossa terra, o Paraná, Puppi assumiu a tarefa árdude traduzir o pensamento para a polis democrática. Secretário da Educação, Presidente do Conselho Estadual de Educação, Assessor de políticos e de instituições públicas, o mestre lutou como poucos pela ética na vida estatal. Recebeu críticas e elogios, mas a constante maior era o respeito que suscitava em todos. Presença relevante no Instituto Fé e Ciência, ele encerrou com chave de ouro a sua vida pública, ajudando a trazer a reflexão filosófica e teológica ao mundo do saber técnico e científico. 
Meu testemunho sobre sua pessoa não pode ser entendido como o de um intimo. Nossos encontros, após 1965, tiveram a peridicidade dos cometas. Em 1980 convivemos no Departamento de Filosofia do qual ele era Chefe, em Marilia. Depois, compartilhei, sob sua regência, os trabalhos de oficialização da Unicentro, em Guarapuava, Paraná. A justiça e a segurança de seus juizos levaram o labor a bom termo. Nos encontramos pela última vez no Instituto Ciência e Fé. Depois, apenas nos relacionamos pela voz, ao telefone. Mas jamais esquecerei uma bela tarde de verão, em Marilia, na igrejinha próxima à Faculdade de Filosofia, quando me tornei afilhado de Crisma do casal feliz, Ubaldo e Edi. Quando recordo aquele ato, a paz invade o meu corpo inteiro. 
Anjos…hoje Puppi vive numa glória antecipada pelos seus dias na terra. Sua agilidade mental, sua claridade, seu domínio do corpo elegante, todos os bens corporais e anímicos foram infinitamente potencializados pela Graça. Esperemos receber o presente de abraçar aquela individualidade poderosa na sua vida celeste. À Dona Edi, que o ajudou tanto na marcha rumo ao Absoluto, nosso abraço afetuoso. Quando ela o encontrar, a felicidade de ambos será perfeita, porque os dois partilharam
L ´Amor che move il sole e l ´altre stelle
¹- "Assim como a alma humana será elevada à glória dos espíritos celestes até ver a essência de Deus, também o corpo do homem será sublimado até possuir as propriedades dos corpos celestes: claro e impassível, sem dificuldade ou esforço, conduzido à mais completa perfeição. Eis porque o Apóstolo diz dos corpos ressuscitados que eles serão celestes, não por sua natureza, mas por sua glória. E depois de enunciar que existem corpos celestes e terrestres, acrescenta : uma é a glória dos corpos celestes, outra a glória dos corpos terrestres. Assim também a glória à qual é elevada a alma do homem ultrapassa a excelência natural dos espíritos celestes e a glória dos corpos ressuscitados ultrapassa a perfeição natural dos corpos celestes pela maior clareza, impassibilidade mais firme, agilidade dos movimento e mais elevada dignidade de natureza". Tomás de Aquino, Suma contra os gentios, "A qualidade dos corpos glorificados", Livro 4, capítulo 86.


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