ARTIGO
Professor Puppi, um testemunho
Professor Puppi, um testemunho
Roberto
Romano
Patet
igitur ex praedictis quod, sicut anima hominis elevabitur ad gloriam
spirituum caelestium ut Deum per essentiam videat (…) ita eius
corpus sublimabitur ad proprietates caelestium corporum, inquantum erit
clarum, impassibile, absque difficultate et labore mobile, et perfectissime
sua forma perfectum. Et propter hoc apostolus dicit resurgentium corpora
esse caelestia, non quantum ad naturam, sed quantum ad gloriam. Unde
cum dixisset quod sunt corpora caelestia, et sunt terrestria, subiungit
quod alia est caelestium gloria, alia terrestrium. Sicut autem gloria
in quam humana anima sublevatur, excedit naturalem virtutem caelestium
spirituum (…) ita gloria resurgentium corporum excedit naturalem
perfectionem caelestium corporum, ut sit maior claritas, impassibilitas
firmior, agilitas facilior et dignitas naturae perfectior. Summa contra
Gentiles De qualitate corporum glorificatorum (Liber 4, caput 86) (1)
Anjos. Esta foi a primeira palavra que ouvi, em companhia de outros jovens, de Ubaldo Puppi. A cidade era Marilia e o ano podia ser 1962 ou 1963. No Instituto Bicudo de ensino oficial secundário, numa sala de aula que reunia alguns estudantes da JEC, falava o professor de filosofia com a tranqüila seriedade dos sábios. Anjos. Risos surgiram, inevitáveis, quebrando o silêncio de um sábado modorrento, comum no interior paulista. Sem ira ou hilaridade o professor replicou : "anjos, sim". E ouvimos belíssima exposição sobre a essência dos corpos angélicos, a sua diferença em relação a nós, sua proximidade do poder divino, a pureza absoluta da mente e o controle de seu movimento. Passados muitos átimos, termina a aula. Saímos pensativos e preocupados. Anjos, quando berra a injustiça brasileira ? Anjos, quando o imperialismo ameaça a esquerda e a sociedade nacional? Anjos, quando o golpe de Estado se anuncia nas falas do IBAD e de Carlos Lacerda ? Anjos, quando as reformas (agrária e demais, anunciadas pelo governo) são indicadas pela imprensa como agressões comunistas ? Anjos…
Pouco tempo
depois escutamos o mestre, agora na Faculdade de Filosofia de Marilia.
Sua fala silenciava as realidades celestes e nos dirigia para os temas
aflitivos da política nacional : fome no campo e na cidade, exploração
imperialista, injusto usufruto das rendas, coronelato, capangagem, etc.
Tratava -se não de anjos, mas do mundo bestial, no capitalismo
sem peias. Puppi, com outro professor amigo, comandou o curso de preparação
de monitores para o método Paulo Freire. Em companhia de Antonio
Quelce Salgado, ele era a fonte onde jovens secundaristas e universitários
sorviam o pensamento mais translúcido sobre a opaca realidade
brasileira. Encontrá-lo era uma alegria: sem pedantismo, sem
nariz erguido, sem crueldade (algo muito comum na filosofia universitária),
ele respondia as perguntas e arrazoava - sempre- meditando sobre as
origens empíricas e as dificuldades lógicas dos problemas.
Ensinava da maneira eficaz, não parecia ensinar.
No curso
Paulo Freire, ou "sobre a realidade brasileira", como o chamávamos,
acotovelam-se jovens e adolescentes sequiosos de saber e justiça.
Mas também se apresentavam corações e cérebros
opaco almas sombrias movidas pelo preconceito e ódio. Duas senhoras
se notabilizaram nas palestras por suas falas conservadoras. Mas os
trabalhos seguiam um ritmo natural. Entre a leitura dos textos e o lazer,
um divertimento era seguir Puppi e seu colega, proprietário de
um carrinho velho (se bem me lembro, verde escuro) pelo "tobogã"
da Avenida São Luiz, no trecho entre a praça de São
Bento e a Faculdade de Filosofia. Na descida, muitos de nós pulavam
na boléia, rindo e aproveitando o ar livre. Na subida…não
raro o carro enguiçava e lá íamos empurrando o
heróico veículo até um ponto seguro. Dentro, nos
atirando desafios, os dois professores amigos. O nome que demos ao veículo
cômico e anacrônico? Catarina.
Chega 1964
e a tempestade de ódios e delações trazida pelo
golpe civil e militar. Aparece a prática hedionda do chamado
"dedurismo". Pessoas de bem são delatadas por pessoas
que se imaginavam de bem, mas eram diabólicas. Puppi e seu colega
foram apontados como perigosos subversivos a serviço de Moscou.
Com a maré das acusações contra eles, tentam sair
da cidade…pilotando a velha Catarina. Não foram longe.
Detidos, voltaram para Marilia onde os esperava a baixeza humana em
estado quase puro. Demitidos da Faculdade, foram obrigados a providenciar
os recursos vitais de sua família de maneira digna, mas humilhante.
Puppi vendeu produtos de consumo doméstico nas portas e procurou
vender livros aos seus antigos alunos. Conforme ele mesmo me confidenciou,
teve decepções com vários deles. Dias de sofrimento,
entretanto, que ele dominou com a fé cristã e a temperança
dos justos. Nunca o vimos desesperado ou sombrio: o sorriso gentil e
nobre manteve-se em seus lábios, intocado.
Certamente
as horas mais escuras, quando até mesmo os santos sofrem o ataque
da acedia, ele as partilhou com a companheira de todas as horas: a bela,
gentil, cultivada e fina Dona Edi. É difícil encontrar
um casal bem feito. Temos tal certeza pelos relatos sobre a gênese
do pecado (se formos cristãos) ou pelas narrativas do Banquete
platônico sobre o ser original, uno e completo, que se tornou
inimigo desde o arrogante desafio aos deuses. O casal Puppi era uma
rara exceção. Estar com os dois sempre foi uma alegria
porque o sentimento e a inteligência se manifestava em ambos,
não distribuidos segundo padrões numéricos, mas
enquanto diversas operações de corpos. O lado masculino
chamava para aspectos estratégicos da vida. Mas o feminino, suavemente,
apresentava o sentido real das coisas.
Ao retornar
às salas de aula, por ato da justiça contra o arbítrio,
Puppi retomou a brilhante carreira acadêmica. Um detalhe fundamental:
na juventude extrema, ele esteve entre os noviços dominicanos,
na França. Alí, estabeleceu os laços com a filosofia
tomista e o canto gregoriano, que dominou até os últimos
dias. Depois foi colaborador do maior pensador católico do século
20, Jacques Maritain, filósofo que buscava trazer a doutrina
social e política da Igreja para os tempos modernos, sem trair
a essência religiosa. O convívio com poderosas inteligências
e vontades retas, como as de Jacques e de Raïssa, formou o pensador
Puppi. Ao retornar ao Brasil, ele publicou alentado volume que visava
refutar a fenomenologia husserliana. Certamente o livro teve poucos
leitores. Tentei inspecionar a sua totalidade, mas desisti. Não
tinha cultura ou cabeça para seguir as agudas sentenças
e análises do autor. Só mais tarde captei, em parte, as
demontrações de Ubaldo Puppi. Mas o professor, já
naquele momento, reavaliava sua crítica à fenomenologia,
acrescentando solidez aos argumentos. Filósofo com rigoroso treino
metodológico, adquirida no tomismo, Puppi não se prendeu
à escolástica: aberto ao pensamento e ao Ser, sua pesquisa
jamais admitiu limites. É desse modo que redigiu páginas
brilhantes e finas sobre estética (certamente a companhia de
Dona Edi foi importante), ética, política, religião.
Ao retornar
para a nossa terra, o Paraná, Puppi assumiu a tarefa árdude
traduzir o pensamento para a polis democrática. Secretário
da Educação, Presidente do Conselho Estadual de Educação,
Assessor de políticos e de instituições públicas,
o mestre lutou como poucos pela ética na vida estatal. Recebeu
críticas e elogios, mas a constante maior era o respeito que
suscitava em todos. Presença relevante no Instituto Fé
e Ciência, ele encerrou com chave de ouro a sua vida pública,
ajudando a trazer a reflexão filosófica e teológica
ao mundo do saber técnico e científico.
Meu testemunho
sobre sua pessoa não pode ser entendido como o de um intimo.
Nossos encontros, após 1965, tiveram a peridicidade dos cometas.
Em 1980 convivemos no Departamento de Filosofia do qual ele era Chefe,
em Marilia. Depois, compartilhei, sob sua regência, os trabalhos
de oficialização da Unicentro, em Guarapuava, Paraná.
A justiça e a segurança de seus juizos levaram o labor
a bom termo. Nos encontramos pela última vez no Instituto Ciência
e Fé. Depois, apenas nos relacionamos pela voz, ao telefone.
Mas jamais esquecerei uma bela tarde de verão, em Marilia, na
igrejinha próxima à Faculdade de Filosofia, quando me
tornei afilhado de Crisma do casal feliz, Ubaldo e Edi. Quando recordo
aquele ato, a paz invade o meu corpo inteiro.
Anjos…hoje
Puppi vive numa glória antecipada pelos seus dias na terra. Sua
agilidade mental, sua claridade, seu domínio do corpo elegante,
todos os bens corporais e anímicos foram infinitamente potencializados
pela Graça. Esperemos receber o presente de abraçar aquela
individualidade poderosa na sua vida celeste. À Dona Edi, que
o ajudou tanto na marcha rumo ao Absoluto, nosso abraço afetuoso.
Quando ela o encontrar, a felicidade de ambos será perfeita,
porque os dois partilharam
L
´Amor che move il sole e l ´altre stelle
¹-
"Assim como a alma humana será elevada à glória
dos espíritos celestes até ver a essência de Deus,
também o corpo do homem será sublimado até possuir
as propriedades dos corpos celestes: claro e impassível, sem
dificuldade ou esforço, conduzido à mais completa perfeição.
Eis porque o Apóstolo diz dos corpos ressuscitados que eles serão
celestes, não por sua natureza, mas por sua glória. E
depois de enunciar que existem corpos celestes e terrestres, acrescenta
: uma é a glória dos corpos celestes, outra a glória
dos corpos terrestres. Assim também a glória à
qual é elevada a alma do homem ultrapassa a excelência
natural dos espíritos celestes e a glória dos corpos ressuscitados
ultrapassa a perfeição natural dos corpos celestes pela
maior clareza, impassibilidade mais firme, agilidade dos movimento e
mais elevada dignidade de natureza". Tomás de Aquino, Suma
contra os gentios, "A qualidade dos corpos glorificados",
Livro 4, capítulo 86.
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