Em
certo momento de seu amaríssimo livro sobre Eichmann, Hanna Arendt nota que a
linguagem usada pelo assassino estava presa ao lugar comum, às farses feitas (Redensarten). “ Minha única língua é o
oficialês (Amtssprache)” confessou ele
em Jerusalém. Mais adiante, analisa Arendt a incapacidade do funcionário alemão
para “pensar do ponto de vista de outra pessoa”. O defeito não era de um indivíduo,
adianta a filósofa, pois o clichê significa a hipocrisia com a qual “a
sociedade alemã de 80 milhões de pessoas se protegeu contra a realidade e os
fatos exatamente da mesma maneira, com o mesmo autoengano, mentira e estupidez
(....) impregnados na mentalidade de Eichmann”. A hipocrisia “passou a ser parte
integrante do caráter nacional alemão”. O uso dos clichês é arma que permite
dissimular cumplicidades, ódios, vinganças, preconceitos, ganâncias. A fala de
Eichmann e de todo um coletivo se transformou, sob o totalitarismo, num sistema
fechado de clichês: “a cabeça de
Eichmann estava cheia até a borda de frases assim”. Tal linguagem automática o
seguiu até a morte.
A
primeira lembrança diante do fato linguístico e ideológico do slogan vem das análises
feitas por Victor Klemperer sobre a sintaxe e a semântica do nazismo. Mas
autores próximos daquele universo dão seu contributo para a observação do fenômeno.
Por exemplo Carl Schmitt. Em sua defesa no tribunal de Nuremberg o jurista, ao
responder à pergunta a ele enviada por Robert W. Kempner (”Por que os Secretários
de Estado seguiram Hitler ?”) , aponta como um dos sustentos do regime “a
burocracia ministerial alemã, proveniente dos mais altos graus da carreira
empregatícia (...) expoente típico do estrato decisivo da burocracia alemã que
em 1933 se colocou, sem resistência digna de nota, ao serviço de Hitler. Para
aquela burocracia ministerial (...) a legalidade ainda não era o simples oposto
da legitimidade, mas uma forma de manifestação desta última”. Se buscarmos a
origem do certeiro diagnóstico, penetraremos nas profecias de Max Weber sobre o
mando burocrático que, na modernidade, tende a se tornar fato cósmico. O manejo
de termos reduzidos à condição de fichas (legalidade, legitimidade) na fala dos
burocratas, coincide plenamente com o “oficialês” de Eichmann. No lado contrário,
a lingua militante na URSS oferece colheita fácil de slogans tomados como
verdades estabelecidas, grande parte delas geradas pelo Agitprop.
Mas
de onde retirou Arendt os parâmetros para esmiuçar a língua de aço utilizada
por burocratas e assassinos ? A resposta é conhecida pelos....conhecedores de
sua biografia, uma resposta que incomoda os liberais, os defensores da esquerda
e da direita planetárias. A fonte da hermenêutica arendtiana sobre a
Redensarten é Martin Heidegger, sobretudo em Ser e Tempo.
De
fato, no parágrafo 35 daquele escrito, o autor enuncia as marcas do fraseado
que “se amplia ao círculo dos ouvintes, a cada vez mais numerosos, e toma um
caráter autoritário. As coisas são assim, porque dizem que elas são assim” (Das Geredete als solches
zieht weitere Kreise und übernimmt autoritativen Charakter. Die Sache
ist so, weil man es sagt). A fala maquinal corresponde à leitura maquinal que repercute no
palavrório. Esse, por sua vez, “elabora uma compreensão generalizada da qual
ninguém escapa”. E para quem ainda estranhe a pecha de “hipocrisia coletiva”
atribuída por Hanna Arendt ao povo alemão, vem a fonte heideggeriana: “O palavrório
é por natureza dissimulador porque, justamente, é próprio dele ocultar todo
retorno ao fundamento que constitui, para o discurso, aquilo do qual se fala”. É
clara a gênese de semelhante visão contrária ao palavrório que se inicia com o De
Garrulitate plutarquiano, herdeiro das invenctivas platônicas contra a
língua “democratizada”. O modo de expresar o “se” (Das man) no escrito de Hanna
Arendt, justamente na hora em que ela desafia tradições axiológicas e morais do
Ocidente com o seu juízo sobre a banalidade do mal, evidencia que ela retoma a
dura analítica de Heidegger sobre a banalização da linguagem.
O autoritário lugar comum, a frase feita, os
valores assumidos automaticamente e sem pensamento, é exorcizada pela filosofia
e nas propostas teológicas ou políticas da modernidade. Mas os slogans renascem,
poderosos, pois eles mesmos são técnicas de poder Como enuncia uma psicanalista
e crítica literária de nossos dias “toda prática linguística repetitiva veicula
uma potência de hipnose que leva o indivíduo rumo a comportamentos sociais ou
mentais estereotipados”. Todo lugar comu, todo clichê “é uma espécie de repetição
e de sugestão (...) no limite, a repetição só repete repetições; a figura
repetitiva impõe a si mesma” (Shoshana Felman, La Folie et la Chose litteraire).
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