Flores

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quarta-feira, 20 de março de 2019

Sobre a Banalidade do Mal em Hanna Arendt e sua fonte. Trecho de um artigo meu publicado na Homenagem a Oswaldo Giacóia pelos seus 60 anos. Muito se fala sobre a banalidade do mal, na linha de Arendt. Pouco se procura as fontes de sua análise. Mostro, no texto, que uma das fontes essenciais é Martin Heidegger. Com ele a teórica teve um relacionamento pessoal, mas sobretudo especulativo. Como Heidegger seguiu vias complicadas, o costume é não unir seu nome a pessoas como Arendt, Marcuse e outros. Mas a precaução não pode ir até o ponto em que nexos relevantes sejam olvidados. É o que tento explicar. A edição em que meu texto foi publicado tem o seguinte título:Labirintos da Filosofia: Festschrift aos 60 anos de Oswaldo Giacóia (Ediões Ophi,2014).


Em certo momento de seu amaríssimo livro sobre Eichmann, Hanna Arendt nota que a linguagem usada pelo assassino estava presa ao lugar comum, às farses feitas (Redensarten). “ Minha única língua é o oficialês (Amtssprache)” confessou ele em Jerusalém. Mais adiante, analisa Arendt a incapacidade do funcionário alemão para “pensar do ponto de vista de outra pessoa”. O defeito não era de um indivíduo, adianta a filósofa, pois o clichê significa a hipocrisia com a qual “a sociedade alemã de 80 milhões de pessoas se protegeu contra a realidade e os fatos exatamente da mesma maneira, com o mesmo autoengano, mentira e estupidez (....) impregnados na mentalidade de Eichmann”. A hipocrisia “passou a ser parte integrante do caráter nacional alemão”. O uso dos clichês é arma que permite dissimular cumplicidades, ódios, vinganças, preconceitos, ganâncias. A fala de Eichmann e de todo um coletivo se transformou, sob o totalitarismo, num sistema fechado de clichês: “a  cabeça de Eichmann estava cheia até a borda de frases assim”. Tal linguagem automática o seguiu até a morte.

A primeira lembrança diante do fato linguístico e ideológico do slogan vem das análises feitas por Victor Klemperer sobre a sintaxe e a semântica do nazismo. Mas autores próximos daquele universo dão seu contributo para a observação do fenômeno. Por exemplo Carl Schmitt. Em sua defesa no tribunal de Nuremberg o jurista, ao responder à pergunta a ele enviada por Robert W. Kempner (”Por que os Secretários de Estado seguiram Hitler ?”) , aponta como um dos sustentos do regime “a burocracia ministerial alemã, proveniente dos mais altos graus da carreira empregatícia (...) expoente típico do estrato decisivo da burocracia alemã que em 1933 se colocou, sem resistência digna de nota, ao serviço de Hitler. Para aquela burocracia ministerial (...) a legalidade ainda não era o simples oposto da legitimidade, mas uma forma de manifestação desta última”. Se buscarmos a origem do certeiro diagnóstico, penetraremos nas profecias de Max Weber sobre o mando burocrático que, na modernidade, tende a se tornar fato cósmico. O manejo de termos reduzidos à condição de fichas (legalidade, legitimidade) na fala dos burocratas, coincide plenamente com o “oficialês” de Eichmann. No lado contrário, a lingua militante na URSS oferece colheita fácil de slogans tomados como verdades estabelecidas, grande parte delas geradas pelo Agitprop.

Mas de onde retirou Arendt os parâmetros para esmiuçar a língua de aço utilizada por burocratas e assassinos ? A resposta é conhecida pelos....conhecedores de sua biografia, uma resposta que incomoda os liberais, os defensores da esquerda e da direita planetárias. A fonte da hermenêutica arendtiana sobre a Redensarten é Martin Heidegger, sobretudo em Ser e Tempo.

De fato, no parágrafo 35 daquele escrito, o autor enuncia as marcas do fraseado que “se amplia ao círculo dos ouvintes, a cada vez mais numerosos, e toma um caráter autoritário. As coisas são assim, porque dizem que elas são assim” (Das Geredete als solches zieht weitere Kreise und übernimmt autoritativen Charakter. Die Sache ist so, weil man es sagt). A fala maquinal corresponde à leitura maquinal que repercute no palavrório. Esse, por sua vez, “elabora uma compreensão generalizada da qual ninguém escapa”. E para quem ainda estranhe a pecha de “hipocrisia coletiva” atribuída por Hanna Arendt ao povo alemão, vem a fonte heideggeriana: “O palavrório é por natureza dissimulador porque, justamente, é próprio dele ocultar todo retorno ao fundamento que constitui, para o discurso, aquilo do qual se fala”. É clara a gênese de semelhante visão contrária ao palavrório que se inicia com o De Garrulitate plutarquiano, herdeiro das invenctivas platônicas contra a língua “democratizada”. O modo de expresar o “se” (Das man) no escrito de Hanna Arendt, justamente na hora em que ela desafia tradições axiológicas e morais do Ocidente com o seu juízo sobre a banalidade do mal, evidencia que ela retoma a dura analítica de Heidegger sobre a banalização da linguagem.

O autoritário lugar comum, a frase feita, os valores assumidos automaticamente e sem pensamento, é exorcizada pela filosofia e nas propostas teológicas ou políticas da modernidade. Mas os slogans renascem, poderosos, pois eles mesmos são técnicas de poder Como enuncia uma psicanalista e crítica literária de nossos dias “toda prática linguística repetitiva veicula uma potência de hipnose que leva o indivíduo rumo a comportamentos sociais ou mentais estereotipados”. Todo lugar comu, todo clichê “é uma espécie de repetição e de sugestão (...) no limite, a repetição só repete repetições; a figura repetitiva impõe a si mesma” (Shoshana Felman, La Folie et la Chose litteraire).

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