Como todo projeto
político a tentativa de militarizar escolas brasileiras abrange o campo da
vontade. Como sabemos educar não significa apenas transmitir conceitos e
técnicas. Trata-se de um sistema complexo que implica ordenar atos volitivos, imaginários,
artísticos e outros. O treino da vontade é essencial. I. Kant, em trabalhos
sobre pedagogia diz que o melhor ensino para as crianças é lhes oferecer um
pedaço de madeira e nele seja esculpida uma figura qualquer. O jovem para ali aplicar
alguma figura nova precisa do aprendizado básico: obedecer a estrutura do
material. Se quiser impor formas sem a obediência ao objeto os frutos serão
nulos. A criança ao esculpir aprende a dominar o próprio desejo, sente uma
pequena abertura ao outro, alvo de todo e qualquer conhecimento teórico ou
prático. Importa distinguir o auto domínio –autonomia– e o controle da alma por
outrem, o Estado, a sociedade, a religião. Na liberdade regulada pelo sujeito a vontade segue uma disciplina. Na
heteronomia a disciplina está presa aos desígnios alheios, rege a imoralidade.
Um pensador oposto a Kant é Hegel, que defende a submissão do querer ao Estado.
Vejamos:
“A História
universal é a educação da vontade para o universal e para a liberdade subjetiva”.
(Hegel) É preciso prestar atenção ao termo germânico usado pelo filósofo.
Educação é grafado como Zucht, de campo
semântico unido ao controle repressivo das vontades individuais e coletivas.
Uma zuchthaus é a cadeia, Zuchtigen implica em açoitar, castigar. Zuchtmeister pode ser o professor ou o
carcereiro. Hegel, na concepção da cidadania e do Estado indica a perda pelos
indivíduos das veleidades sobre o próprio agir livre. Na Filosofia do Direito,
§328, lemos que o fim dos indivíduos reside na soberania do Estado que exige o
sacrifício da força pessoal. Alguém só é livre se submetido ao mecanismo da
“obediência total, renúncia à sua própria opinião e ao juízo próprio, ausência de seu próprio espírito e ao mesmo
tempo a maior determinação, o modo de agir mais hostil”. E mais adiante ele
afirma: “o princípio do mundo moderno (...) deu à coragem a mais alta figura: ela
aparece como a mais mecânica e como um ato de coragem exercido por um membro do
todo, não por este ou aquele indivíduo (...) Tal princípio contribuiu para a
descoberta da arma de fogo e não é por acaso se a invenção de tal arma mudou o
aspecto puramente pessoal da coragem num aspecto mais abstrato”. Em nota diz Hegel : “a arma de fogo é a descoberta da
morte geral, indiferente, impessoal e o que empurra ao ato de matar é a honra
nacional, não o desejo de prejudicar um indivíduo. Mas a ofensa que dá lugar à
guerra vem da indiferença completa da honra relativa a qualquer e a todo
indivíduo particular”.
Como nota o jovem
Marx, Hegel racionaliza a burocracia alemã e europeia de seus dias. Ponto
essencial da burocratização alemã reside justamente no exército. Sem
indústrias, o Estado prussiano só podia ser militarmente forte graças à uma
burocracia eficaz, disciplina racional como
paliativo contra a ausência de fábricas armamentistas. O sucesso da burocracia
militar foi tamanho que o poeta Goethe, ao visitar Berlim em 1778 disse estar
diante de uma grande máquina na qual o indivíduo era apenas uma roda sem
vontade própria, mantida em movimento graças ao governo. O Estado máquina foi
criticado pelos românticos mas se firmou até o século 20. O nazismo finaliza um
movimento que vem do século 17 na Alemanha. O solo foi construído com muita
repressão civil e militar. O ideal dos quartéis “educadores” entra no exame de
Max Weber sobre a burocracia: nos tempos modernos a política, a
economia e a religião perderam o encanto. O sagrado desaparecido teve como
sucessores mecanismos que arrancaram dos indivíduos liberdade, força volitiva,
pensamento autônomo. A burocracia, “máquina sem vida, é espírito coagulado. E
apenas porque é isto, ela tem o poder de forçar os indivíduos a servi-la e
determinar o curso cotidiano de seu trabalho vital (…) Como espírito coagulado
aquela máquina viva representa a organização burocrática com sua especialização
do trabalho profissional aprendido, sua delimitação das competências, seus regulamentos
e relações de obediência hierarquicamente graduados. Unida à máquina morta, a
viva trabalha para forçar a jaula (Gehäuse)
daquela servidão do futuro a que talvez os homens se vejam obrigados a
submeter-se impotentes, como os felás do antigo Egito”.
Karl Marx (ainda não é proibido citá-lo), na Crítica do Programa
de Gotha toma posição contrária ao Estado educador no modelo hegeliano
e burocrático. Diz ele: “Isso de ‘educação popular a cargo do Estado’ é
completamente inadmissível. Uma coisa é determinar, por meio de uma lei geral,
os recursos para as escolas públicas, as condições de capacitação do pessoal docente,
as matérias de ensino, etc., e velar pelo cumprimento destas prescrições legais
mediante inspetores do Estado, como se faz nos Estados Unidos, e outra coisa
completamente diferente é designar o Estado como educador do povo! Longe disto,
o que deve ser feito é subtrair a escola a toda influência por parte do governo
e da Igreja. Sobretudo no Império Prussiano-Alemão (...), onde, pelo contrário,
é o Estado quem necessita de receber do povo uma educação muito severa”. O
Estado educador impõe a jaula na qual prende estudantes e professores e termina
em campos de concentração com a pedagogia do terror.
No plano mais amplo
do pensamento político a disciplina da vontade se confunde com a edificação do
Estado máquina. Este procura ordenar todos os gestos dos indivíduos por um
agenciamento de funcionários –mecânicos sociais– que pouco deixam à liberdade
“selvagem” dos governados. Pensadores do século 17, quando
se firma a razão de Estado, notaram o advento da armadilha mecânica que devora
quem se julga superior aos humanos, do rei aos juízes. Trata-se da sociedade
automática descrita na Lógica de Port Royal. O poderoso almeja ser obedecido
como se as pessoas fossem ferramentas, “entièrement privées de raison et de
pensée”. Ao mesmo tempo ele deseja “mandar em homens, não em autômatos pois seu
prazer consiste na visão dos movimentos gerados pelo medo, estima, admiração
que eles geram nos outros”. O paradoxo é vivido no governo, quartéis e
tribunais. É delírio e sonho impossível. Mas nele se define o poder moderno. E
tal pesadelo impulsiona as tentativas de militarizar o ensino público no mundo
e no Brasil. A vontade dos estudantes e professores deve ser domada tendo em
vista os alvos da máquina estatal, que por sua vez serve a interesses
hegemônicos no campo econômico, político e mesmo religioso.
A lógica que visa controlar a vontade dos subjugados gerou no século 17
os jogos de guerra. Eles foram produzidos para ensinar aos cadetes das
Academias militares o jeito de se mover no espaço em tempo rápido e assim destruir
os inimigos. A natureza inteira é pensada como obstáculo ou meio para destruir
todas as vontades adversas. Os pensamentos liberais clássicos, sobretudo os do
século 19, defendem a separação entre mundo civil e universo militar. Ledo
engano. A ordem militar reside no coração da sociedade industrial. Não é
possível pensar a segunda, sem a primeira. O que servia para a educação militar
nos séculos 17 e 18 tornou-se no século 20 um fenômeno de massa, a forma
emergente do jogo bélico.
A imaginação militarizada toma conta da chamada indústria do
entretenimento. Em 1983 os dados já eram alarmantes. Entre 1978 e 1983 foram
vendidos um milhão, quinhentos e setenta e três, seiscentos e vinte e sete
jogos nos EUA, e quase dez milhões a 12 países ocidentais. Com a Internet os
jogos de guerra subiram ao plano de uma visão de mundo na qual crianças e
adultos aprendem as artes lógicas e imaginativas do aniquilamento. Longe de ser
uma atividade apenas militar, a guerra domestica pensamentos e corpos de seres
humanos aos bilhões. A mídia ajuda na tarefa, bem como Holywood cujos filmes
exaltam heróis que massacram inimigos da “civilização democrática cristã e
ocidental”. Nos Wargames o cenário é construído segundo o paradigma hipotético
(se ocorre X, então Y deve acontecer). Eles reúnem atores que usam forças,
motivos e regras para o movimento. E existem objetivos primários e secundários
e os meios adequados aos objetivos. Depois vem o espaço guerreiro totalmente
cartesiano: geométrico e sem vida, sem resíduos (ou ruídos de sentido biológico,
ético, etc.). Trata-se do espaço partilhado pelas observações policiais, os
rastreamentos. Some o espaço vivido da experiência humana que define sentidos,
livres ou apaixonados. Somem o medo, o pânico, a fuga, a deserção, o heroísmo,
o sacrifício. Todos esses fatos são “apenas interferências desprovidas de razão
com as quais não se sabe o que fazer. É significativo o status que os jogos de guerra reservam aos civis: nenhum”. Indico
aos senhores um texto já antigo, mas atualíssimo : Enrico Pozzi: “Giochi di
guerra in tempo di pace”( http://www.enricopozzi.eu/pubblicazioni/Lo%20sport%20tra%20natura%20e%20cultura/giochi_guerra.pdf). Para os jogos de guerra
cibernéticos, leia-se Fred Kaplan, Dark Territory. The Secret History of Cyber
War. E também Corey Mead: Video
Games and the future of Armed Conflict (Houghton Mifflin Harcourt, 2013),
sobretudo o capítulo “Construindo o Arsenal da Sala de aula: A influência
militar na Educação Americana”).
Como o espaço foi reduzido à geometria, o tempo entra numa sucessão
cronológica pura onde contam os segundos numa somatória de átomos temporais com
a marca de serem parceláveis quase ao infinito. O tempo também abstrai o
irracional, o vivido. Nele não existe a duração porque esta é experimentada
biológica, psicológica, eticamente, na indecisão e na reflexão. Sempre que
penso neste ponto, recordo-me de quando prestei o serviço militar. Na ordem
unida o sargento gritava alto para que não houvesse dúvidas: “rápido, ligeiro,
para não pensar, para não perder tempo”.
Temos, então, uma atividade educacional planetária que ensina as regras
da razão técnica cujo alvo é a morte de milhões, sem que nela exista sangue,
excrementos, dor, paixões, vida. É o universo dos drones e bombas inteligentes
que, segundo a propaganda imperial norte americana só atingem os terroristas,
nunca matam civis inocentes. Se acontece algo assim, é “efeito colateral”.
Passemos às Forças Armadas brasileiras, modelos que se pretende impor às
escolas. A ordem hierárquica é essencial. Após a ditadura getulista, quando
houve certa unidade de comando e obediência nas casernas, os soldados se mantiveram
na reduzida democratização do governo Dutra, nas crises do governo eleito de
Vargas, nas sucessivas formas de golpes e contragolpes de setores parlamentares
que buscavam apoio nos quartéis (as “vivandeiras”) antes de Juscelino. Em todos
esses eventos foram questionadas a unidade de comando e a hierarquia. Ocorre a
renúncia de Jânio Quadros acuado por um parlamento hostil. Com o veto do Alto
Comando à posse de Goulart e o parlamentarismo instalado pelo Congresso, surge
uma fratura perigosa aos olhos dos militares. Essa fenda ameaçaria a Federação
e a unidade das Forças Armadas. Refiro-me ao apoio do III Exército e setores
leais sob Leonel Brizola.
Dada a cura provisória, com o parlamentarismo, os militares
aparentemente aceitaram o status quo
obtido pelo Congresso. Mas a fratura nos
quartéis permanece à espera do que pode ocorrer. As insubordinações dos
soldados e patentes menores evidenciam perda da disciplina. As Forças Armadas
preparam a tomada do poder. Se o governo incentiva a rebelião, urge afastá-lo
com a parceria do mundo civil, dos empresários aos tribunais. E no plano
externo, dos Estados Unidos. A Igreja serviu como forte apoio ao golpe,
reunindo milhões nas Marchas da Família, na Cruzada do Padre Payton, procissões
contra o comunismo e o perigo à civilização cristã. Vale recordar que os
maiores movimentos militantes católicos tinham na sua estrutura a formação
militar : a Ação Católica inspirada nas hostes do império romano e as
Associações Marianas cujo hino diz tudo: “soldados do Senhor”. Uma vertente do
marianismo foi a TFP, Tradição/Família/Propriedade, cujas fileiras seguiam mais
explicitamente a organização militar.
É preciso ter uma ideia realista do militar. Ele é treinado para
executar o monopólio da força física estatal. Seu alvo é garantir a integridade
do poder com armas contra inimigos. Em conflitos internos sua função continua
tendo como essência a morte de adversários. Para que tal fim é imperativo
obedecer ordens. “Um soldado”, enuncia o reacionário Donoso Cortés, “é um
escravo em uniforme”. A frase encontra-se no Discurso sobre a Ditadura
(1849). Ali se ataca a democracia e os que confiam na Constituição. Segundo
Cortés nada no mundo garante estabilidade. O próprio Deus age por meio de
golpes —os milagres— ditatorialmente. Cito-o de propósito pois sua presença
fez-se notar nos golpes de Estado da Espanha e América do Sul, de Franco a
Pinochet. Quando Cortés diz que o soldado é escravo em uniforme ele afirma um
traço essencial no regime brasileiro de 1964.
Elias Canetti fornece a chave antropológica das Forças Armadas. A
sentinela que permanece imóvel exemplifica a constituição psíquica do soldado.
Os motivos habituais de ação como os desejos e o temor são reprimidos dentro
dele. Todo ato seu é sancionado por uma ordem. O momento vital na sua
existência é o da posição atenta diante do superior. A educação do soldado
começa no instante em que lhe são proibidas muito mais coisas do que aos demais
homens. O seu aspecto anguloso mostra que ele se adaptou aos muros como
prisioneiro satisfeito. Para ele a ordem tem valor supremo. Integra a sua
formação que ele aprenda a obedecer ordens. Os exercícios o habituam a
movimentos executados com os demais. Todos devem realizá-los de modo idêntico.
É a mesma ordem, pouco importa que seja apenas um que a recebe ou todos. O
uniforme evidencia a perfeita igualdade de todos na obediência.
A disciplina define o exército. Trata-se de uma dupla disciplina. A
declarada é a ordem. A outra é a promoção. Esta última corresponde à capacidade
de um militar para ser aguilhoado internamente pela ordem. Para cada ordem
atualizada fica nele um espinho. Se é soldado raso, ele não pode se desfazer dos
espinhos cravados em seu corpo e alma. Ele obedece e se torna sempre mais
rígido em sua obediência maquinal. Para sair desse estado só com a promoção. Se
promovido ele se desfaz —nos outros— dos seus aguilhões/ordens. A disciplina
consiste no uso dos aguilhões/ordens armazenados.
Essa disciplina responde pelo fato de os exércitos mais poderosos do
mundo terem seguido ordens genocidas, pelo menos até que vislumbrassem a
derrota, sem pestanejar. “Estou cumprindo ordens”. Sem tal frase, inexistiriam
o fascismo, o nazismo, o stalinismo. O Alto Comando é o que menos ordens recebe.
Essa cadeia verticalizada de obediência,
no caso dos soldados rasos, só explode nas situações de guerra onde o inimigo é
disseminado, como na guerrilha. Nessas horas a solidariedade horizontal conta
mais do que as ordens vindas de cima. Há um bom livro de David Hansen, The
Western Way of War: Infantry Battle in Classical Greece, que evidencia esse traço.
Um autor relevante para as questões de ética e bioética, médica e
militar, é Jonathan Moreno, filho do famoso Moreno criador do tratamento
teatral das doenças de soldados feridos na Segunda Guerra. Jonathan Moreno é
ouvido pelo Estado norte americano nas três vertentes, Executivo, Legislativo,
Judiciário. O seu livro Risco
Indevido narra as experiências feitas com soldados no campo nuclear.
Oftalmologistas colocavam soldados perto ou longe das explosões nucleares do
deserto para medir o perigo dos raios na vista das pessoas. O soldado
supostamente dava seu consentimento, mas na verdade era coagido por meios não
físicos para aceitar o papel de cobaia. Outro livro de Moreno, Guerras das Mentes,
indica dados abundantes de experimentos na engenharia genética. Cito entre
muitos os aparelhos postos nos capacetes dos soldados e controlados desde o
Pentágono, com o guerreiro no Iraque ou outra terra. Tais mecanismos medem o
grau de estresse, a disponibilidade de ataque, etc. Os cientistas do MIT que
produzem tais engenhos dizem que o seu uso deve se acompanhar da aquiescência
voluntária do soldado. Replica Moreno em tom sarcástico: “o respeito pela
autonomia é a pedra angular da moderna ética médica, princípio derivado de
muitas tradições filosóficas e religiosas pois trata do valor da pessoa humana
como agente moral cujo valor é intrínseco. Mas que papel o respeito pela pessoa
moral autônoma pode desempenhar num contexto militar?”. Lembremos Donoso
Cortés: o soldado é um escravo de uniforme. E assim temos o paradigma das
escolas militarizadas.
Na vida comum o exército segue a disciplina e a ordem das promoções.
Para que ambas existam importa a sobrevivência da hierarquia e do próprio
instituto militar. É absurdo para um soldado que cumpriu ordens e subiu ao
posto ou general imaginar que suas próprias ordens não serão obedecidas. Nesse
caso, mesmo que o Alto Comando permita a “insubordinação” e o comandante
supremo —o Chefe de Estado— assuma uma suposta “abertura democrática” face ao
exército, quebrando a ordem rígida e a disciplina, eles serão desobedecidos, na
suprema tentativa de restaurar a ordem com o golpe de Estado.
No Brasil em 1964 os militares seguiram quem lhes prometia restaurar a
ordem e manter a carreira, a promoção. Quando a sociedade ignora ameaças os
golpes militares não encontram terreno fértil, mesmo dentro do exército. Um
golpe ocorre quando às tensões externas somam-se a angústia e as incertezas
internas de manter toda uma existência baseada na disciplina, na hierarquia das
ordens, na carreira e na promoção.
A vida civil, ao contrário da militar, não aceita a disciplina escrava
que norteia os quartéis. Mas desde a Colônia,o Brasil vive sob lógica militar.
Não por acaso na ditadura de 1964 foi
criada uma quadrilha organizada por militares e policiais chamada Operação
Bandeirantes (OBAN). Os bandeirantes usaram armas e disciplina para vencer índios,
afastar os espanhóis, derrotar jesuítas ao mesmo tempo em que aumentaram os
lucros da coroa e os territórios portugueses. Tal fato gerou os mitos hoje
repetidos até por integrantes do Ministério público, sobre a “preguiça” dos
indígenas. Todos testemunhamos um procurador repetir tal certeza na semana
passada. Mais tarde as formas de repressão e bélicas estiveram nas mãos das
guardas nacionais comandadas por fazendeiros que se preocupavam com os seus
poderes e riquezas. Eles resistiram à formação do Exército nacional como corporação
do Estado. A Guarda Nacional era submissa aos alvos dos fazendeiros, os
coronéis.
Com a república se buscou fazer do Brasil um Estado máquina nas mãos dos
militares e positivistas. Estes últimos imaginavam ultrapassada a democracia liberal,
definida pela metafísica da liberdade e também a superstição católica. Com o
positivismo chegara o Estado moderno, mecânico. Não mais eleições, comícios,
balburdia, mas disciplina. A cidadania será exercida no interior das fábricas.
O Estado, dirigido por engenheiros, mecânicos do social, aplicaria técnicas
científicas e não política na solução dos problemas sociais e jurídicos. Tal
governo não vingou mas as suas consequências na vida brasileira foram
relevantes. Dele vem a tese de que a política dos partidos traz corrupção e
indisciplina. A cultura civil seria balburdia perene, caos, sujeira, falta de
honra.
Desde então é retomado o mito do Exército como poder moderador que
imporia ordem e progresso à nacionalidade. Tal prerrogativa facultou aos
militares sua parceria com setores reacionários da vida pública em golpes de
Estado sucessivos de 1930 ao AI-5. Na Constituição de 88 o “direito” das Forças
Armadas agirem como fonte da lei e da ordem interna do país marca uma derrota
das forças civis democráticas. A sua figura como elemento pacificador e
organizador da população é algo que, de tanto repetido, se tornou uma ética
pervertida: para setores armados e civis reacionários a coletividade civil é
presa da anarquia, da corrupção, da malandragem. Muito comum até hoje em
determinados lares se elogiar os jovens nos quartéis, onde supostamente
“aprenderão a ser homens”.
Um elemento estratégico, desde a era Vargas, nas tentativas de impor a
militarização escolar reside na ideologia da Segurança Nacional. O país é visto
como passível de se tornar indomável no plano interno. Daí a necessária
repressão física com torturas, exílios, cassações. O complemento ideal das
políticas repressivas e policialescas encontra-se na educação da juventude. No
período getulista as crianças aprendiam nas cartilhas do primário a idolatrar o
governante e assimilavam certas formas
de agir como a delação. As práticas militares foram impostas na escola e noções
de moral e cívica aplicadas em fortes
doses. Na ditadura de 1964 o mesmo procedimento retorna nos cursos de moral e
cívica onde se destilavam noções sobre moral, religião, segurança nacional,
etc. Fala-se do suposto herói infantil que na União Soviética delatou
familiares, recebendo estátuas pelo feito. Não se recorda que em São Paulo um
menino delatou os pais, porque eles o impediam de assistir programas na TV. O
processo só não foi avante porque restava um pouco de bom senso nos promotores
encarregados. A Doutrina de Segurança Nacional é ao mesmo tempo programa
ideológico e fonte inspiradora de iniciativas para impor a disciplina à
sociedade e à escola. Ela é poderoso
instrumento de propaganda que opera desde os anos 30 do século 20. A sua
persuasão é irmã siamesa das censuras (recordemos o DIPE varguista e a censura
a partir de 1964), prisões, exílios. Com os projetos de militarização em
andamento é reiterado o conceito de que existem inimigos internos no país, os
que ameaçam a tradição, a família e a propriedade. A proposta de excluir
ilicitudes nos assassinatos cometidos por militares, acarinhada por ruralistas,
empresários, banqueiros, pastores e padres reacionários, é um novo capítulo da tragédia
brasileira iniciada pelos Bandeirantes.
A propaganda liberticida é um dos mais relevantes monopólios do Estado
brasileiro, que os divide com a chamada sociedade civil amante dos quartéis.
Não é acaso que pesquisas de opinião sobre
instituições coloquem militares como os mais respeitados pelo coletivo
brasileiro em 2014, um ano após as grandes manifestações de massa que varreram
o país. A propaganda e a censura fazem
as Forças Armadas serem vistas como absolutamente benéficas pela população. Em
recente pesquisa elas aparecem em primeiro lugar na preferência das massas
brasileiras. A segunda, significativamente, é outro meio repressivo, a Polícia
Federal. Em terceiro lugar a OAB, o que mostra alguma esperança para quem sonha
com a democracia. A quarta predileta é a Igreja Católica seguida pelo
Judiciário, imprensa e ministério público. Depois vêm os sindicatos, os bancos
e as financeiras, as empresas estatais e a presidência da república. No décimo
primeiro lugar, a Igreja Universal do Reino de Deus e...no fundo do poço o
Congresso Nacional e os partidos políticos. Assim, para compreender o intento de
militarizar as escolas devemos examinar as doutrinas que entendem o Estado como
burocracia mecânica e as Forças Armadas como instrumentos mecânicos, escolas que servem como poderosos mecanismos
de máxima atenuação da autonomia individual e coletiva. Nossa história política
e educativa reitera a presença dos mitos militaristas e científicos que
proclamam a superioridade das técnicas de controle sobre a política e a democracia.
Temos nos projetos em pauta um novo ensaio para fazer da educação, em vez de prática
da liberdade, uma via de escravidão. Nas escolas planejadas a disciplina
militar e a delação integram o curriculum. Trata-se de uma escola onde o ideal
hegeliano é aplicado do modo mais perverso: alunos e professores serão presos
na cadeia disciplinar, soldados cuja essência é a de serem tristes escravos.
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