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quinta-feira, 18 de março de 2021

Revista Adusp, março de 2000, número 19 : “A Universidade, o futuro e certo passado”. Roberto Romano

 

Revista Adusp, março de 2000, número 19 : “A Universidade, o futuro e certo passado”.

Roberto Romano.

 

 

Toda análise da universidade futura precisa se precaver contra as marcas do passado. A instituição universitária surgiu com a vida urbana, no século 12, como reação ao mundo feudal, fruto de uma lenta quebra de valores espirituais gregos e latinos. A Igreja, única instituição que manteve a língua, as normas jurídicas, as formas societárias romanas durante a primeira Idade Média, não possuía um meio amplo de se reproduzir, em termos noéticos e funcionais. As escolas dos bispados e os mosteiros, geraram as bases das futuras universidades. No fim do feudalismo, e com a gênese dos Estados nacionais e do poder absoluto dos reis a nascente universidade foi disputada pelas instituições religiosas e políticas, delas recebendo marcas indeléveis. A crônica dos campi, de Gerson (Renascimento) até Humboldt (no período romântico), mostra a perpétua oscilação entre o desejo de autonomia e a busca de recursos externos, fornecidos pela Igreja ou pelos governos. Para manter a autonomia, regras foram produzidas, mas todas esbarrando na necessária manutenção material, que limita qualquer independência. As maneiras de administrar o complexo universitário variaram relativamente pouco durante séculos. Conselhos definiam a ratio studiorum enquanto executivos acadêmicos, em certo prazo, administravam os negócios urgentes. Os mandatos dos reitores se caracterizaram por longos anos ou períodos reduzidos. Em certas universidades, o mandato reitoral chegou a se definir em termos de meses apenas. A própria complexidade dos problemas, a cada instante mais árduos, exigiu maior número de partícipes: pesquisadores, técnicos, alunos, funcionários, fornecedores de matérias primas, editores etc. Maior número de implicados e superconcentração em organismos dirigentes: nisto reside o nó górdio que ameaça estrangular as universidades.

 

 Do Renascimento até o período romântico, a crônica dos campi mostra a perpétua oscilação entre o desejo de autonomia e a busca de recursos externos fornecidos pela Igreja ou pelos governos. Para manter a autonomia regras foram produzidas, todas esbarrando na necessária manutenção material que limita qualquer independência. Imposto no século 19, o modelo napoleônico de universidade atenuou o papel dos Conselhos em proveito da iniciativa do Reitor. Este paradigma, assumido pela maioria dos campi modernos, causou desequilíbrios na condução dos assuntos científicos e acadêmicos. A própria complexidade dos problemas, a cada instante mais árduos, exigiu maior número de partícipes. Refiro-me aos pesquisadores, técnicos, alunos, funcionários, fornecedores de matérias-primas, editores, instrumentos de pesquisa e de análise, poderes e opinião públicos etc. Maior número de implicados e superconcentração em organismos dirigentes: nisto reside o nó górdio que ameaça estrangular as universidades de todos os países. Administrar um campus, hoje, não raro, é tarefa mais difícil do que reger países inteiros, dadas as múltiplas implicações políticas, ideológicas, financeiras, científicas e até mesmo religiosas da tarefa. Na verdade, os desafios universitários são a outra face dos óbices que impedem nações inteiras de se erguerem, autônomas, frente às demais. Povos sem democracia dificilmente terão universidades dignas do nome. Universidades presas ao modelo napoleônico, onde a decisão do executivo é primordial, estão se tornando enormes corpos paralíticos, acorrentados por burocracias que se afastam, céleres, das tarefas essenciais do plano intelectual. Deste modo, os governos dos campi estão travados, com seus Conselhos e demais órgãos legislativos impotentes e com sua administração submersa nos detalhes mais insignificantes e nos assuntos mais estratégicos, sem possível escolha e triagem prudente.

 

Todos os entraves (parca democracia, modelo fundamentado no Executivo universitário, pequena legitimidade dos instrumentos de consulta) fazem das nossas universidades instituições que se afastam do alvo alegado (o ensino, a pesquisa, a extensão comunitária), em proveito de uma luta sem quartel pelas posições de mando e de projeção política. Tais itens foram herdados do pretérito político e social ao longo de praticamente mil anos. É difícil corrigir semelhantes desvios. Uma radiografia dos campi brasileiros (os públicos, porque, no Brasil, salvo algumas universidades confessionais, pouquíssimas instituições privadas de ensino superior têm perfil universitário, não contando com organismos de representação reais, como Congregação, Comissões, Conselhos) mostra que hoje, dado o estrangulamento financeiro, as tarefas primordiais de produção científica e docência têm sido muito prejudicadas. Na busca de se livrar de várias despesas os governos (estaduais, municipais, federal) encontraram um ardil que se torna cada vez mais importante na captação de recursos para os docentes e pesquisadores e para as próprias reitorias. Trata-se das chamadas “consultorias” e seus convênios, através da extensão universitária. Até data recente, as pró reitorias de extensão ostentavam pequeno prestígio nos campi. Hoje, elas são as mais importantes. Diminuindo as verbas, aumentando as tarefas do corpo de professores e de cientistas, os recursos para um pagamento digno do fim universitário (quadros, compra de instrumental, livros, arquivos, etc) mostram-se insuficientes de modo absoluto.

 

Assim, os professores só vislumbram, como salvação deixar que os fundos públicos financiem a estrutura mais onerosa da universidade (prédios, salário ruim para os funcionários e manutenção de “base” para os pesquisadores), procurando aumentar os salários e os meios de trabalho nos referidos convênios, efetuados com firmas particulares ou com governos e demais instituições civis. Em certos departamentos, tudo isso é piorado pela criação de serviços “remunerados” de forma miserável. Alguns docentes, iniciantes ou não aceitam receber pouco mais de cem dólares por suas aulas. Isto, com cumplicidade dos pares que podem recorrer à “extensão”. No prisma ético, isto gera professores de classes distintas: os de “primeira”, que podem obter excelentes (em termos financeiros) convênios, os que atingem tratos menos lucrativos, e um proletariado professoral, sem direitos ou esperanças, que tende a crescer em termos numéricos. Os alunos, supostos fins do ensino, recebem, deste modo, lições de explorados do espírito, sem maiores meios de ampliar seu universo especulativo e sem horizontes práticos dignos da vida moral saudável. Será esse um caminho irreversível? Talvez. Mas tudo indica que os avanços tecnológicos, como a informática, possibilitando agilizar procedimentos (do ensino à pesquisa, passando pela administração), e demais instrumentos de comunicação e gerenciamento coletivo, podem trazer alguma forma de autonomia para a comunidade acadêmica. Por outro lado, os mesmos instrumentos podem ajudar na democratização real das decisões universitárias, interna e extra corporis.

 

Hoje, os Conselhos “empíricos” atingiram um limite a partir do qual não podem mais se ampliar. Um Conselho “virtual” pode abarcar a universidade no seu todo. Pontos a serem debatidos e votados, podem sê-lo na própria rede virtual, recolhendo as contribuições de todos os segmentos. Os votos também podem ser ampliados numericamente. As correções de rota serão facilitadas. Os problemas, notese, continuarão difíceis e sempre mais complexos. Mas será possível discuti-los de modo amplo e profundo. Ampliando-se o corpo deliberativo, é possível diminuir as funções executivas, dando-se aos docentes que hoje se empenham nas administrações a oportuna recuperação da pesquisa e docência. O tempo dos mandatos pode ser abreviado, possibilitando-se maior democracia nas decisões. Claro, todos estes elementos positivos podem-se transformar em pesadelo, com uma super concentração de poderes universitários, e o consequente exílio dos ideais democráticos no interior dos campi. Os novos meios de comunicação podem ser dirigidos para ambos os lados, a democracia ou o autoritarismo. A herança napoleônica das nossas universidades, que é a mais forte no imaginário, nos pensamentos e na prática, pode se tornar a grande vencedora, em detrimento do espírito científico e do ensino real. Mas ela pode, pela primeira vez, ser atenuada ao máximo. E isto depende não tanto de elementos especulativos, mas de vontade política, e de grande dignidade. Sem estes elementos, os integrantes éticos da vida acadêmica já estão derrotados pelas tendências burocráticas que levaram as instituições universitárias às aporias de nossos tempos.

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