Flores

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quinta-feira, 1 de abril de 2021

Ditadura e Educação. Palestra feita na Faculdade de Educação da Unicamp no dia 31/03/2021. Para lembrar o que foi sofrido no mundo e no Brasil por causa de ditaduras e ditadores. Roberto Romano

 

Faculdade de Educação/Unicamp. 31/03/2021.

 

 

Como se trata de uma alocução, usei textos meus publicados em veículos diversos, sem citar as editoras, sites, etc. Deixei apenas no pé de página as citações mais prementes. Caso venha a redigir o escrito para possível publicação farei o necessário para cumprir os requisitos básicos. Roberto Romano

 

 

A ditadura em Roma. Para enfrentar dificuldades graves era nomeado um dictator, magistrado que não obedecia a colegialidade. Seu mandato era de seis meses em geral. Ele era designado pelo cônsul e pelo Senado, muito raramente eleito pelo povo. A instituição foi usada 76 vezes . Em apenas seis casos foi movida para acabar uma guerra ou insurreição.  Digamos que a ditadura tinha similaridade com o Artigo 48 da Constituição de Weimar. Ali se colocava o presidente da república como único capaz de suspender  os direitos cidadãos diante de graves perigos públicos.  Coube a Cesar abrir caminho para o sentido mais comum no mundo moderno. Ele foi nomeado ditador por um ano, depois dez anos e finalmente ditador perpétuo. E foi assassinado três meses depois de ser reconhecido assim. Os regimes autoritários e absolutistas modernos tiram de Cesar o nome e o desejo de mando irrestrito: eles se fazem chamar de Cesar, Kaiser ou Tsar.

 

Abolido o nome de ditadura em março do ano 44 antes de Cristo, ele ressurge com conotação favorável nos tempos modernos. Maquiavel, nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio adianta que toda república precisa possuir um poder ditatorial, mas previsto e regulamentado pela lei, para evitar que se transforme em despotismo. Na Revolução Francesa a ditadura liga-se à tese da salvação nacional, pública . Marx o usa para designar o poder proletário, quando o Estado burguês estiver sendo dissolvido.  O sentido péssimo da ditadura foi usado na Grécia antiga sob o nome de tirania. Mas os gregos conheciam a função ditatorial. Por volta do século VI antes de Cristo havia o indivíduo chamado aisymneta, que dispunha de poderes excepcionais, criados para resolver situações de luta interna (stasis) e para casos graves de guerra.  O remédio seria o despotismo esclarecido, tal como propõe Platão a Dionísio de Siracusa. A palavra é ignorada em grego, salvo como tradução literal do termo romano. É preciso notar que  desde a época mais recuada são bem conhecidas as formas de poder pessoal, uma das notas da ditadura. O termo “tirano”, não presente na Ilíada, enuncia um poder com as marcas de pessoalidade. “Ter muitos chefes nada vale; que um só seja o chefe, que um só seja o rei”. Como os gregos são conhecidos pelo paradoxo, na mesma Ilíada é dito que em situações críticas vale mais que sejam dois e não um só a assumir o comando.  Na Grécia arcaica (até o final do século VI AC) existiram chefes nomeados vitaliciamente ou por tempo limitado, tendo em vista resolver crises. Eles eram chamados aisymnetas (comandantes) que dispunham de poderes excepcionais, espécies de tiranos eleitos e acusados de agir com arbítrio e injustiça. O nome de basileus era dado ao rei, o qual detinha maior ou menor força, de acordo com as cidades.

 

O tirano de início é um basileus que possui amplos poderes, mas nem por isso visto como usurpador ou bandido. A evolução deste sentido ao de péssimo governante é feita em pouco tempo. Os primeiros usos do título de tirano com conotação negativa (algo debatido até hoje, se mesmo negativa ou não) vem de Arquíloco num poema mal conservado (Fragmento 15, da edição de Lasserre-Bonnard, Ed. Les Belles Lettres).  Os séculos VI e VII são férteis em governos tirânicos e populares, contrários ao poder nobre. Por volta de 430, na peça Édipo Tirano, Sófocles não emprega ainda o termo no sentido totalmente pejorativo. Em Heródoto, na segunda metade do século V, temos a questão da tirania. O historiador relata um debate sobre o poder efetivado na corte persa. Com a morte de Cambyses, sete nobres discutem o regime a estabelecer. Com a vitória da monarquia ela é entregue a Darius. Mas são discutidas a monarquia, a aristocracia e o regime popular, com seus pró e seus contra. (Heródoto, III, 80ss). () O adversário da monarquia diz que a pessoa nela investida não precisa prestar contas a ninguém e se torna próspera e orgulhosa, abusa do poder e ordena execuções sem julgamento, usa as propriedades dos governados segundo seu capricho, viola as leis e a moral. O poder absoluto leva à tirania, máxima injustiça. O regime adequado seria a democracia, na qual os integrantes política recebem tratamento isonômico. Contra semelhante requisitório, o defensor do poder absoluto diz que se o titular é bom, tal governo é o mais adequado. Ele é mais eficaz porque nele o segredo de Estado tem mais garantias (o seu titular é um só). Solon recusa a tirania que lhe foi ofertada, a considera ausência da lei, injustiça. A tirania, no seu entender, é como uma praça forte que protege, mas aprisiona quem a comanda. Solon aceitou ser árbitro por tempo limitado.

 

Em Esquilo a tirania se identifica parcialmente à barbárie dos persas vencidos em Salamina (Os Persas, 480) ou dos egípcios (As Suplicantes, 472). Prometeu encadeado é o campeão da humanidade por lutar contra Zeus tirano que impõe sua vontade arbitrária. Em Sete contra Tebas o rei é legítimo mas  Eteócles, deseja guardar o poder por tempo maior do que o legal e não pretende ceder o comando ao  irmão, conforme a alternância prevista em termos jurídicos. A imaginação teatral, ligada ao fato tirânico, se radicaliza com Eurípides (As Fenícias) o qual coloca na boca de Eteócles a confissão do ardor pelo poder exclusivo : “Subiria aos astros, o lugar onde eles se elevam ao céu, desceria à terra, se fosse capaz, para manter em minhas mãos o poder soberano, a maior divindade”. E adiante: “Se é preciso ser criminoso, que seja pelo poder soberano, o mais belo motivo dos crimes”. (As Fenícias, 504, 524). (6)

 

Se não existe ditadura na Grécia, é possível enunciar que a noção e a prática da tirania se aproxima daquele conceito. A questão do tempo de mandato, a substituição da realeza pela magistratura que não presta contas, como o rei, é imposta por um golpe de força ou astúcia, diminui a sua legitimidade. Um exemplo modelar da tirania ilegítima, desenhado por Platão na República, se tornou o grande paradigma da tirania até os nossos dias. Trata-se do anel de Giges, o pastor lídio. É bom recordar que a primeira notação sobre tirania, como foi enunciado acima, é de Arquíloco. E tal notação é referida a Giges. “Um dia, durante violenta tempestade acompanhada de abalo sísmico o solo fendeu-se e formou-se um precipício perto do local onde apascentava o seu rebanho. Cheio de assombro Giges desceu ao fundo do abismo e, entre outras maravilhas que a fábula enumera, surgiu um cavalo de bronze, oco, perfurado com pequenas aberturas; tendo-se debruçado sobre uma, percebeu dentro um cadáver de estatura maior, parece, que a de um homem, e que trazia na mão um anel de ouro, do qual ele se apoderou (…). Ora à reunião habitual dos pastores que se realizava cada mês para informar o rei do estado de seus rebanhos, ele compareceu com o anel no dedo. Tendo tomado assento no meio dos outros, voltou por acaso o engaste do anel para o interior da mão; imediatamente tornou-se invisível ) aos seus vizinhos, que começaram a falar dele como se tivesse partido. Espantado, ele manejou de novo o anel com hesitação, voltou o engaste para fora e, assim fazendo, tornou a ficar visível. Dando-se conta do fato, repetiu a experiência para verificar se o anel possuía realmente semelhante poder, o mesmo prodígio reproduziu-se: virando o engaste para dentro, ficava invisível; para fora, visível. Desde que se certificou disso, agiu de modo a figurar entre os mensageiros que se dirigiam para junto do rei. Chegando ao palácio, seduziu a rainha, tramou com ela a morte do rei, matou-o e obteve assim o poder.”.

 

A história posta na República marca os lados da visibilidade e da invisibilidade do poder e da justiça. Na divisão dos campos opostos ocorre a maravilha, o espanto. Todos os elementos narrados pelo escritor Platão no personagem Giges, encontram-se na história dos golpes de Estado e das ditaduras, após o final da república romana e o nascimento do império. Até os nossos dias, os mais importantes pensadores políticos se aplicam a captar os sentidos da história de Giges, entre eles, o republicano Jean-Jacques Rousseau.

 

Na experiência grega, além da história de Giges, o tirano é chamado lobo sanguinário por Platão que prevê a sua morte nas mãos dos adversários. Aristóteles define o tirano como pernicioso ao coletivo.  Cicero discute a tirania, e afirma que o tirano gera ódio e sempre acaba morto de maneira violenta. O escritor discute o peso do tiranicídio, em relação aos valores éticos : “Com frequência as circunstâncias tornam o que se costuma considerar torpe, como não torpe. Existe crime maior do que matar um homem, ou um amigo? No entanto, seria mesmo um criminoso quem matou um tirano, mesmo sendo ele amigo? Tal não é a opinião do povo romano. Entre as belas ações, ele considera aquele ato como o mais belo” Pode ser encontrada em Sêneca uma atitude próxima. “Se a cura (do tirano) é desesperada, com um só gesto farei um ato benemérito para todos e de restituição, para ele. Para naturezas como a sua, deixar a vida é o único remédio, a melhor escolha é ir embora, quando não é mais possível voltar a si mesmo”.

 

No século XIV ressurge o nome da tirania quando o poder é tomado pela força nas cidades italianas do Norte. Os “senhores” tentam mandar de modo irrestrito nas cidades que comandam e buscam dominar as cidades concorrentes. É assim que temos as famílias Sforza, Medicis, Gonzaga, Carrara, e outras. Como técnica de governo os tiranos na Itália usam a intriga, a negociação secreta, a corrupção, as armas. Tirano passa a ser usado para designar não todo governante, mas os péssimos. É de se notar o tipo de regime instaurado por Savonarola, o de uma ditadura revolucionária, ao contrário da ditadura instaurada na Inglaterra por Cromwell, que acabou designando a si mesmo como Protetor Perpétuo do país. Um paradoxo: Cromwell ao mesmo tempo é fruto de um movimento revolucionário contra o Antigo Regime e um imitador do mesmo Antigo Regime. Ele seria, como diz o historiador marxista Christopher Hill “ao mesmo tempo Robespierre e Napoleão”.

 

Na viragem do século 19 para o vinte, Lenine é o teórico da ditadura e da revolução. O fascismo se quer uma revolução conservadora, ele se escora na propaganda intensa e na suposta eficácia do regime. O folclórico “os trens não mais atrasam” é ampliado para toda a máquina do poder público. Tudo funcionaria bem, desde que as ordens do Duce fosse obedecidas cegamente. O nazismo transforma radicalmente o conceito de ditadura. Ele se torna modelo de autocracia. Nele há o culto do chefe, o messias, a ideia de uma nação predestinada, a ideia de uma comunidade sem fissuras, da qual a raça é o fundamento, a raça ariana, a técnica plebiscitária, uma hierarquia social mantida do Antigo Regime com a nobreza emprestando legitimidade aos bastardos do nazismo. No ápice a recusa de toda teoria democrática, de toda ciência que não fosse dirigida pelo partido e seus doutrinadores.  O conceito de ditadura em nosso tempo foi elaborado por um jurista do nazismo, Carl Schmitt em livro justamente intitulado A Ditadura. Em seus trabalhos ele defendia que as decisões no Estado, sobretudo em matéria constitucional, deveriam ser atribuídas ao presidente da república, não ao Parlamento ou às cortes de justiça. De certa forma, ele concedia perenemente ao chefe de estado governar segundo um elemento de exceção, o parágrafo 48 da Constituição de Weimar. Jurista essencial para o Reich hitleriano ele chegou a escrever que “O Führerdecide o direito”.

 

Carl Schmitt foi conhecido no Brasil antes da ditadura Vargas. Um indício o temos no livro de Sergio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, onde se faz um citação estratégica da política como criação do inimigo. Juristas como Francisco Campos, o autor da Constituição ditatorial chamada Polaca, que definiu o Estado Novo, elabora seus textos segundo os parâmetros de Carl Schmitt. O ditador salva o Estado das ameaças internas (os opositores ao governante postos como inimigos, na Lei de Segurança Nacional) e externas. Tal linha de raciocínio esteve presente em todos os Atos Institucionais da ditadura de 64, atos aqueles em que Francisco Campos colocou suas mãos, do AI-1 ao AI-5.

 

No século 20, em termos mundiais, ocorreu uma transformação nos golpes de estado e nas ditaduras por eles instituídas. Refiro-me à passagem do bastão da hegemonia mundial da Inglaterra para os EUA. Após a II Guerra Mundial, quando o campo socialista e o capitalista se uniram para derrotar o nazi-fascismo, se inicia o que se convencionou chamar Guerra Fria. A Inglaterra, exaurida economicamente pelo conflito, enfrenta a escassez de petróleo, vital para a sua produção interna e suas exportações, além do plano militar. O Irã, próximo da URSS e distante dos países costumeiramente chamados de “ocidentais” , após tempos e tempos submetido à ganância das empresas da Inglaterra no campo do petróleo, elege lideranças nacionalistas que põem em cheque a drenagem barata do combustível do solo iraniano. A Inglaterra não tem condições de intervir no interior do Irã, por motivos óbvios que residiam na sua falta de recursos bélicos e de espionagem pós conflito mundial. O receio de que a URSS poderia receber o petróleo iraniano aumentou em Londres e em Washington. É decidido que, pela primeira vez na história, uma Agência de Segurança interna dos EUA praticaria um golpe e ajudaria a instalar uma ditadura fora daquele país. É o que foi feito contra o regime de Mosadegh.

 

A CIA, no Irã, cometeu o primeiro golpe que seria acompanhado de inúmeros outros a partir de então na Ásia, na África, na própria Europa como na Grécia e na América do Sul. O modelo usado no Irã foi seguido em todos os golpes posteriores planejados pela CIA. No primeiro momento a propaganda desabrida contra o governo legalmente eleito, a formação de centros para a propaganda que se apossam da imprensa, do cinema, do rádio, transmitindo o medo da subversão comunista e do caos sanguinário dos democratas. Ao mesmo tempo clérigos se encarregam de arregimentar massas contra o governo legal, alegando “perseguição religiosa”, ameaças às famílias e aos bons costumes. No mesmo átimo, são cooptadas lideranças militares para “deter a subversão”, etc. O cenário desenhado no Irã se repetiu exaustivamente em todos os golpes de estado supostamente dados em favor da “liberdade” e da “democracia”. Embora a dominação ocidental conhecida no mundo, por exemplo no caso da China e da Índia, tenha vindo sempre sob ordens das metrópoles, os golpes do século 20 foram além do vínculo colonial. Eles expressamente designaram um plano mundial de império. Os EUA, com ajuda dos países “do Ocidente”, muitos deles antigas potencias coloniais, dão a si mesmos o direito de atacar governos eleitos livremente, governos democráticos, porque eles significavam risco para a economia e a geopolítica capitalista. Além dos golpes contra os governos legais brasileiro, chileno, uruguaio, argentino, grego e outros, o golpe mais notório dos Estados Unidos no século vinte ocorreu na Indonésia em 1965, causando cerca de 500 000 mortos. A ditadura instaurada foi dita "A Nova Ordem".Vejam como a palavra novo, nova é de preferência dos ditadores. Estado Novo, Nova Ordem...etc. Foi deposto o presidente Sukarno, seguindo-se 30 anos de uma ditadura comandada  por Suharto .

 

Documentos abertos ao público em 2017 mostram que o massacre indonésio foi nuclear na política dos Estados Unidos na Guerra Fria.  Suharto assumiu o poder com ajuda norte americana até 1998. O serviço de publicação oficial dos EUA trouxe documentos que mostram autoridades norte americana ajudaram Suharto a fazer sua purga de 500 mil vidas.   Os documentos mostram mais, as autoridades norte americanas sabiam que a maioria das vítimas não pertenciam ao Partido Comunista. Diz um jornalista que seguiu a abertura dos documentos secretos que comparado à guerra do Vietnã e dos golpes na América do Sul o golpe na Indonésia é relativamente pouco conhecido. Mas ele foi um ponto de inflexão na Guerra Fria, com ativa participação da CIA. Durante décadas antes do golpe, os EUA treinavam os militares indonésios.  Grande parte da imprensa norte aericana apoiou o massacre Termino citando Vincent Bevens, o autor de corretas análises sobre o golpe na Indonésia : “Os métodos Suharto usados por inspiração dos Estados Unidos estiveram presentes em outros golpes no mundo. Segundo muitos relatos em Santiago do Chile, nos dias anteriores ao golpe que depôs Salvador Allende, graffitis nos muros aparecem em Santiago. Referindo- se à capital indonésia os graffitis diziam: “Jakarta chegou!”. ([1])

 

 

 

 

Educação

 

A ditaduras modernas buscaram a perenidade com o uso de um instrumento, a educação. Podemos dizer da técnica educacional de ditatorial o que disse Platão na República sobre a mentira. Para fazer as pessoas obedecerem é preciso lhes contar a mentira de que todos têm origem comum, seja qual for o lugar que ocupem na vida. O interlocutor de Sócrates pergunta: “mas as pessoas acreditarão em tal mentira?”. Responde o filósofo: “na primeira geração, não. Mas na segunda, terceira, sempre repetida a mentira, acreditarão”. Da República Goebbels, nazista erudito, tirou a tese de que a mentira repetida se transforma em verdade.

 

Para que as novas gerações acreditem é vital para as ditaduras que elas recebam mentiras tecidas com método pedagógico peculiar, sobretudo o que se baseia nas imagens. Não existe reforma educacional de nenhuma ditadura que não se ocupe da política imagética. Nas ditaduras nazista e fascista a imagem a ser transmitida às crianças e aos jovens, além dos desfiles, do teatro, das festas onde se festejavam os governantes como salvadores, os livros escolares servem como  instrumento de persuasão. Existem estudos sobre o uso de livros escolares na Alemanha nazista, na Itália fascista. Neles, o Líder é apresentado como modelo perfeito das virtudes patrióticas e de todas as superioridades populares e da raça branca. Quem se coloca contra ele são inimigos do povo e devem ser expulsos do convívio social. Na Itália fascista a doutrinação segue um plano hierárquico segundo a idade. Nas cartilhas para os mais jovens as imagens preponderam, com  sugestões de culto ao líder Mussolini. À medida que a idade aumenta, as imagens são acrescidas de slogans e preconceitos contra raças inferiores (no caso da Etiópia invadida pelos italianos, a raça negra), como é o caso dos judeus. E também se insiste sobre o culto ao Duce, a entrega absoluta aos seus ditames. Tal forma de “ensinar” segue em complexidade cada vez mais até os livros universitários nos quais se misturam doutrinas filosóficas arrancadas do Hegel e de outros pensadores de quem se deturpou o pensamento. Da creche aos bancos universitários se fecha o círculo de ferro da mentira sempre retomada e aperfeiçoada. Cada indivíduo deve se espelhar no líder, assumir sua linguagem, seus ódios. O ideal é fazer da sociedade um todo sem fissuras, sem oposições, sem lutas. A ditadura seria benéfica porque impediria a contradição na vida social e do Estado. O ditador seria o benfeitor a trazer toda harmonia.  Claro que todo esse aparato esconde as torturas, os assassinatos, os exílios, as prisões, a perda da liberdade, o estupro das culturas diferenciadas, etc.

 

Na Alemanha a nazificação do ensino começa em 1933. Num primeiro momento de 1933 a 1937 o regime toma atitudes pontuais, mas sem um plano geral.  Ele começa por impor a educação física e as disciplinas que louvam a germanicidade, fazendo dos professores propagandistas do Reich. A seguir vem a centralização burocrática e normativa. A seguir vem a uniformização radical das escolas primárias e dos liceus e a adoção de manuais “unificados”(einheitlich, uniformes e homogêneos. Os dirigentes nazistas proclamam “A educação da nossa juventude segundo os princípios nacional socialistas foi amplamente realizada”.  A escola alemã segue o Führerprinzip  e uniformiza o conteúdo dos cursos e materiais pedagógicos na doutrina nazista. O material escolar exalta a discriminação contra os doentes mentais, os não sociais, os desviantes e judeus.  Foi suprimida a circulação de livros de leitura antes em uso nas escolas. O novo livro pedagógico, dizem os dirigentes nazistas devem trazer “materiais sobre a germanicidade (Volkstum), a raça e a visão de mundo do nacional socialismo, os quais devem ser inculcados à juventude alemã. A visão de mundo nacional socialista constitui o ponto central do trabalho da educação. Ela assegura a unidade. “Por meio dessa unidade cultural (...) é a unidade  völkisch posta no centro. (...) protestante ou católico, do leste ou do oeste, do norte ou do sul, o estudante encontrará assim os fundamentos do patrimônio cultural alemão da raça, o Volkstum (...) e o patrimônio literário alemão”.. Dá-se  a tarefa de limpar as prateleiras das escolas dos livros não alemães. Toda a educação passa a seguir princípios racistas. Victor Klemperer nota o traço comum na educação e cultura nazista: « o medo de quem pensa, o ódio do pensamento”. Não por acaso a educação física e os treinos correspondentes imperam nas escolas .No plano anímico toda a energia dos professores busca inculcar nos alunos a fidelidade absoluta ao Líder e ao Partido.

 

América do Sul

 

Indiquei que o jurista Carl Schmitt defendeu o predomínio do Chefe do Estado, o presidente da república, como garantia do Estado uno, da sociedade una, do pensamento uno. No livro O Guardião da Constituição ele concentra na pessoal presidencial o direito de julgar e decidir sobre tudo o que o artigo 48 da Constituição de Weimar previa como providências para arrancar direitos da cidadania em nome da ordem pública, contra revoluções. Indiquei que os textos de Schmitt eram conhecidos no Brasil antes de 1937. Francisco Campos, na Constituição de 1937 que consagra o Estado Novo coloca, em consonância com Carl Schmitt, no Chefe de Estado todo poder decisivo. Em consequência, o culto ao presidente leva o governo ditatorial a empregar a mais ampla propaganda para impor às crianças e jovens o culto do Salvador da Pátria, Getúlio Vargas. Existem muitas pesquisas elaboradas sobre livros e cartilhas educacionais que promovem a idolatria do presidente. Não irei me estender aqui em comentá-las. Indico o artigo de Zenaide Inez Schmitz e Miguel Ângelo Silva da Costa: “Educação, infância, nacionalismo: uma abordagem a partir das Cartilhas Escolares ‘Getúlio Vargas para crianças’ e ‘Getúlio Vargas : o amigo das crianças’ . Revista Linhas, facilmente localizável na Internet. ([2]) Outro trabalho fundamental é o de Maria Helena Capelato sobre as cartilhas Vargas e Perón. Uma entrevista da professora Capelato  ilustra o tema. ([3])  E também uma resenha de um livro importante da professora ([4]) : Multidões em Cena, propaganda política no varguismo e no peronismo. ([5]) Há um artigo de Capelato que resume a questão com muita competência: “A propaganda política no varguismo e no peronismo, aspectos teórico metodológicos de uma análise sobre História Política” ([6]).

 

Após a vaga getulista vem as tentativas de mudar livros pedagógicos e  o pensamento sobre a educação com Anísio Teixeira e seu trabalho extenso e profundo em todo o país. Ele e os signatários do manifesto da Escola Nova abriram sendas para a educação democrática.Os educadores enfrentaram a resistência das escolas confessionais, muito bem aquinhoadas no período Vargas devido ao apoio da Igreja Católica ao regime ditatorial. Quem se interessa pelo assunto pode consultar o livro de Romualdo Dias, Imagens de Ordem, cuja origem é uma dissertação de mestrado defendida aqui, na Faculdade de Educação da Unicamp e de um doutoramento defendido no IFCH. As batalhas de Anísio Teixeira tiveram resultado em pensadores originais como Paulo Freire com seu método de alfabetização de adultos que usa a imagem em sentido plenamente oposto à prática imagética do fascismo, nazismo, varguismo, peronismo. Em vez de realçar a figura de um salvador providencial no ápice do Estado, Freire desperta, com imagens e vocábulos, a capacidade de pensar com autonomia, de modo crítico. Não é por acaso que a ditadura de 1964 perseguiu o pensador e educador Freire.

 

A ditadura de 64 tem uma ligeira diferença com as anteriores, como a nazista, fascista e da América do Sul.  Em vez de exaltar a figura de um salvador providencial, ela colocou nas Forças Armadas todo o peso de uma suposta regeneração brasileira. Assim, o golpe foi rebatizado como “Revolução Redentora”. O redentor não foi um indivíduo, mas a instituição militar.  Os presidentes não se apresentavam de modo isolado, eles eram apenas e tão somente exemplares do soldado ideal, o soldado que pela disciplina, honestidade, liderança é o contraponto da corrupta, indisciplinada, tíbia sociedade civil.

 

A marca da ditadura de 64 se estabelece, no campo educacional, no horizonte da Guerra Fria e do alinhamento incondicional do Brasil aos EUA. Assim como os militares seriam o modelo do verdadeiro cidadão, os Estados Unidos da América seria o paradigma de todas as virtudes no âmbito do mundo “Ocidental e cristão”. Além do elo com a CIA, o FBI e outros órgãos repressivos norte americanos que passaram a atuar aqui, a educação do Norte seria uma inspiradora da regeneração educacional brasileira. Foi a época do Acordo MEC-Usaid que moldou o ensino universitário e o ensino básico no Brasil. Há um belo trabalho do professor José de Oliveira Arapiraca, da Faculdade de Educação da UFBA (infelizmente falecido) sobre as artimanhas do referido acordo. ([7]) É partir de tal acordo que se impôs a ideologia da educação como fábrica do “capital humano”. Além disso a ditadura se dedicou à tarefa de formar mentes segundo o ideal militarizado e cheio de conceitos religiosos à guisa de adesão ao regime. Surgem os manuais de Educação Moral e Cívica com seus cursos correspondentes, obrigatórios.

 

Digamos: tais iniciativas encontraram resistências na sociedade civil, alimentada por intelectuais, artistas, clero progressista, políticos de oposição ao regime. As doutrinações ditatoriais não tiveram plena voga entre estudantes, professores, jornalistas, profissionais liberais, clero comprometido com as lutas populares.

 

Mas tal doutrinação calou fundo em setores da classe média brasileira. Os que foram “educados” segundo a ideologia ditatorial nunca deixaram os preconceitos e modelos reacionários de poder e de hábitos morais pregados naquele período. Esta é uma das causas, não a única evidentemente do fato de que largos setores da classe média e da suposta elite brasileira sempre terem apoiado governos de direita após o fim oficial da ditadura. A classe média votou em Fernando Collor (que aliás colocou a educação como algo a ser reconstruído segundo padrões da direita), apoiou o governo FHC (que aliás combateu o quanto pode as escolas oficiais, sobretudo no campo universitário). Em retirada provisória durante os governos de Luís Inácio da Silva e Dilma Roussef, tal setor alimentou todo seu ódio contra as inovações e melhorias educacionais favoráveis aos “negativamente privilegiados”. A política de abertura da escola às massas até então expulsas delas gerou animosidades e discurso sobre uma suposta meritocracia no ensino. Volto um pouco à ditadura: nela foram abertas escolas aos milhares para a população mais pobre. Mas tais escolas eram desprovidas de instrumentos pedagógicos eficazes e de pessoal humano. A massa das escolas de primeiro e segundo graus esmagou as antigas escolas oficiais cujo número de alunos era bem menor e os professores bem melhor formados. Como represa contra a ascensão social das massas pobres foi reforçado nas universidades públicas o vestibular, o que exigia recursos financeiros para pagar os famosos cursinhos ou para estar em dias com as mensalidades caras das escolas privadas. Impedidos assim de modo objetivo, os alunos de origem pobre, negros, indígenas foram jogados para o domínio das universidades privadas, desprovidas intencionalmente de recursos científicos e pedagógicos para a formação superior. O programa de cotas se tornou mais um alvo a ser atacado pela classe média e pela suposta elite.

 

A imensa multidão de estudantes praticamente abandonados em escolas desprovidas de quase tudo, naturalmente, surge para os moradores dos bairros “nobres” como ameaça aos bons costumes e....aos seus privilégios. Para resolver tais incômodos, surgem nos setores mais reacionários, herdeiros da educação da ditadura de 64, os projetos de escolas militarizadas cujo alvo principal é impor disciplina e obediência cega aos ditames do poder.

 

Os princípios ideológicos da ditadura civil/militar brotam hoje nos projetos de militarizar as escolas para fazer de cada estudante um militar na alma, alguém que obedece sem contestação as ordens superiores. Não por acaso tais planos coincidem com manifestações em favor do retorno ditatorial, com o AI-5 renovado, a recusa do debate pública, o uso de armas como fator de intimidação ideológica. Não por acaso as Polícias Militares e os escalões inferiores das Forças Armadas são requeridas para destruir os resquícios de regime civil ou passavelmente democrático entre nós. A ditadura de 64 soube se perenizar pelo adestramento de massas. E ela ameaça retornar mais dura, mais impiedosa, mas desprovida de qualquer laivo de sentimento libertário.

 

 

 

 

 



[1]   What the United States Did in Indonesia A trove of recently released documents confirms that Washington’s role in the country’s 1965 massacre was part of a bigger Cold War strategy.

VINCENT BEVINS OCTOBER 20, 2017

 https://www.theatlantic.com/international/archive/2017/10/the-indonesia-documents-and-the-us-agenda/543534/

 

[5] São Paulo. Editora Papirus, 1998.

[7] A USAID e a educação brasileira: um estudo a partir de uma abordagem crítica da teoria do capital humano.

 

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