Flores

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sábado, 20 de maio de 2017

Em tempos de ideologia e de má fé, quando o mundo acadêmico se transformou em arena de "ladrões roubados "(Alexandre Kojève), ler uma resenha serena de escritos meus é um consolo. A análise abaixo é séria e justa. Discorda de mim mas não tenta reduzir argumentos. É filosófica, não sectária. Obrigado professor Bignotto!


São Paulo, domingo, 06 de janeiro de 2002


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Filosofia de guerra
Newton Bignotto

especial para a Folha
O Caldeirão de Medéia" reúne ensaios e escritos publicados em periódicos e revistas por Roberto Romano nos últimos anos. Embora não tenha sido concebido para dar ao leitor uma síntese das preocupações filosóficas e políticas do autor, o livro acaba fornecendo um painel amplo do percurso desse escritor que, desde seu primeiro livro -dedicado a estudar as relações entre a igreja e o Estado no Brasil-, sempre procurou entrelaçar questões de atualidade com estudos de problemas fundamentais da tradição filosófica.

Estudioso da filosofia moderna, Roberto Romano oferece uma visão renovada de alguns debates clássicos sobre o período em vários dos capítulos do livro. Num deles, dedicado ao problema da guerra em Hegel, percorre a tradição crítica de Meinecke a Cláudio Cesa, passando por Franz Rosenzweig e Jacques d'Hondt de maneira a fazer do recurso à tradição uma ferramenta para expor sua própria interpretação. Nesse caminho, sobressaem duas marcas constantes de seu pensamento. Em primeiro lugar, o uso da tradição interpretativa de maneira rigorosa e aberta. 
Multiplicando as referências e abandonando por vezes o campo original do problema por meio da citação de outros pensadores das mais variadas épocas, o autor aumenta em muito o âmbito no qual a questão parecia estar circunscrita. Procedendo dessa forma, no capítulo mencionado, ele não se furta a chamar de hagiografia a obra de Jacques d'Hondt e a apontar o viés conservador do trabalho de Meinecke.
Ao concluir seu ensaio, entretanto, Romano, que havia mostrado a vertente belicista e autoritária do pensamento hegeliano ou pelo menos a possibilidade de entender o filósofo alemão dessa maneira, adverte ao leitor brasileiro, que poderia se embevecer com uma crítica fácil do pensador alemão, de que "deveríamos, em vez de apontar autoritarismo no filósofo, discutir a nossa "realidade" miserável". O tom forte, por vezes polêmico, de suas interpelações de nossa "realidade" é a segunda marca de seus escritos.

Embora os autores modernos sejam os que mereçam maior atenção, mesmo nos capítulos dedicados a Diderot, Voltaire ou Hobbes proliferam as referências aos pensadores gregos e medievais assim como aos autores contemporâneos. Ao analisar o problema da sátira na obra de Voltaire, Romano conduz seu leitor por um universo habitado ao mesmo tempo por Platão, Luciano e Espinosa, para apoiar uma das teses que lhe são caras e que liga o riso e a sátira à possibilidade de realizar com êxito a crítica das mentes adormecidas pelas mais variadas formas de obscurantismo.

Buscando um Descartes diferente do sisudo pai da racionalidade contemporânea, ironizando os que aceitam a pecha de mero divulgador atribuída a Diderot ou mostrando o quanto Voltaire contribuiu para solidificar o caráter libertador do Iluminismo, ele afirma, dirigindo-se mais uma vez ao público brasileiro: "Urge purificar a fé pública e imprimir os iluministas franceses. Antes de escurecer os cérebros dos estudantes com o o lero-lero irracionalista, ponha-se diante de seus olhos a saudável irreverência das Luzes, a razão satírica que atenua a loucura séria do fanatismo".

Especialista em filosofia francesa do século 18, Romano mobiliza seus pensadores para tomar posição nos debates contemporâneos. Já no primeiro capítulo ele discute a relação entre a produção das ciências -e sua incorporação pelo Estado- e a educação do povo. Deixando de lado as idéias dos que querem isolar as camadas populares do processo de desenvolvimento da esfera técnica e científica, ele mostra que essa é uma discussão essencialmente política. 
A simples recusa de tratar da educação das massas como uma questão relevante para a vida pública traz, segundo ele, graves consequências para a afirmação da soberania popular.
Na mesma via se inscreve a crítica repetida que o autor faz do que chama de pensamento conservador, identificado como o daqueles que têm "medo de que a população estrague a festa do poder, destruindo a segurança, a propriedade, os vínculos da tradição, as inovações técnicas que só beneficiam alguns".

Pode-se discordar de algumas teses de Romano. O retrato do Brasil, esboçado em alguns capítulos, parece por demais pessimista assim como a aproximação entre realismo e reacionarismo, sugerida no final do capítulo sobre o "sublime e o prosaico", talvez seja excessiva. Seja como for, o leitor encontrará sempre a sustentar as posições explicitadas um rico conjunto de argumentos, que constituem um convite aberto para um debate de idéias fundado na liberdade e na razão, que são o ponto de partida e o eixo do processo de investigação do autor.

O Caldeirão de Medéia
440 págs., R$ 35,00
de Roberto Romano. Editora Perspectiva.

Newton Bignotto é professor de filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais e autor de "Origens do Republicanismo Moderno" (ed. UFMG).

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