Para Romano, a segurança econômica, “da qual fala a propaganda oficial” é uma das faces da apatia brasileira
Em entrevista ao Instituto Millenium, o professor de Filosofia Política e Ética da Unicamp, Roberto Romano,
pôde falar sobre ética, corrupção, apatia e do papel do Judiciário na
transformação da realidade política brasileira recorrendo às bases
históricas para analisar origens como a da complacência brasileira.
Para o professor, persistem no Brasil resquícios do absolutismo que
se materializam na aceitação de políticos que roubam, mas fazem. “Esta
complacência, ou cumplicidade das massas, é algo preparado com muita
técnica e ardilosidade, e tem como datas principais as mesmas que
indicam o nascimento do Estado absoluto”, afirma completando sobre as
populações: “elas aprendem uma ética contrária à república e à
democracia.”
De acordo com o professor, o Judiciário está inserido na estrutura do
Estado brasileiro, e mesmo que boa parte de seus integrantes queira
exercer a missão de julgar de acordo com os padrões republicanos e
democráticos, a instituição repete a mesma problemática de outros
setores, e com agravantes. “O debate nacional ao redor do CNJ, as
tentativas de enfraquecer o trabalho da Corregedoria daquela instituição
que deveria controlar a prática dos juízes, tudo mostra que dos três
poderes o judiciário é o mais arredio aos elementos democráticos da
transparência e da accountability”, afirma.
Apesar do quadro crítico, com o agravamento do fato de a corrupção
só enfraquecer o Estado de Direito, Romano vê vontade de transformação
nos brasileiros que lutam pela aprovação da Lei da Ficha Limpa.
O especialista do Imil também relembra o trauma gerado por anos de
inflação, defendendo a importância da estabilidade da moeda para trazer a
racionalidade à democracia do país: “ Um povo que viveu sob a inflação e
foi humilhado ao máximo por ela, se dispõe à entrega total a um líder
populista.”
Ética e educação
Instituto Millenium – Existe uma crise ética em todo o mundo, qual é a especificidade do quadro brasileiro?
Roberto Romano – Sempre existiu e sempre existirá
crise ética no mundo. A ética resulta do equilíbrio instável entre os
comportamentos (reforçados pelos valores estabelecidos) e as novas
formas de agir e pensar. Ela, portanto, supõe a crise, cujo significado
original vem do grego krisis, “instante de passagem, de escolha, de
prova, decisão”. A cada átimo os nossos hábitos sofrem o teste maior:
eles preservam a nossa vida e a existência da sociedade que nos acolhe?
Formas tradicionais de comportamento, caso não permitam responder
positivamente a tal pergunta, inevitavelmente perdem vigência em médio
ou longo prazo.
Importa recordar o significado original do termo “ética”. Na
semântica histórica o termo ressalta o sentido de “postura” (hexis).
Como a sociedade grega era guerreira, os jovens deviam aprender as
posições corretas para a corrida, o uso das lanças etc. Tal aprendizado
se fazia nas disputas, sob orientação de instrutores ou no próprio campo
de batalha (Platão diz que os meninos deveriam sentir o cheiro do
sangue, nas guerras). Era vital correr certo, pois o uso inadequado dos
pés, das pernas, de todo o corpo, faria o exército perder tempo, podendo
ser vencido. Ora, quem aprende a andar errado, repete o erro
automaticamente. Idêntico automatismo ocorre quando se adquire a posição
correta. Hexis, assim, é algo vital para a sociedade grega, sendo por
semelhante motivo valorizada a sua prática certa. O automatismo traz o
problema. Quando alguém anda ou corre erradamente, com muita dificuldade
poderá corrigir o erro que, de tanto ser repetido, torna-se
inconsciente. É preciso aprender o certo desde a mais tenra infância,
daí o fato de a ética ser ligada diretamente à educação. Com o tempo,
por metáfora, a postura passou a ser empregada para a atividade da
mente. Assim como se aprende um bom gesto físico, também se aprende um
bom raciocínio. Ou, em caso oposto, uma péssima postura na forma de
pensamento. Também aqui é estratégico que a criança aprenda a boa
postura desde a mais tenra idade, caso contrário ela aprenderá formas
erradas de imaginar, calcular, agir diante dos valores imateriais.
O problema é que a sociedade grega, apesar de sua elevação
filosófica, artística, científica, assumiu o automatismo de sua cultura,
a que dizia aos cidadãos da polis que eles eram os únicos dignos de
ostentar o título de homens, seres plenamente racionais e valorosos.
Assim nasceu o mito da autoctonia e da supremacia grega sobre os
orientais e os ocidentais do Norte europeu. Aristóteles, na “Política”,
diz que os homens do Oriente têm inteligência aguda, mas são covardes.
Os europeus do Norte são bravos, mas pouco brilhantes no pensamento. Os
gregos, bem, eles reuniriam a coragem à mente lúcida. E seriam,
propriamente, homens. Os demais povos, os bárbaros (palavra produzida
com uma onomatopéia, que imita sarcasticamente os estrangeiros
ignorantes da língua grega, sendo portanto alheios ao Logos, à razão)
tinham como destino ser dominados pelos helênicos.
Surge aí um automatismo que persegue a ética ocidental até hoje,
impedindo sua plena cooperação com outras éticas. Tal postura pode ser
grosseiramente racista, mas pode ser traduzida em pensamentos
etnocêntricos, embora refinados intelectualmente. É o caso do brilhante
historiador da cultura guerreira grega, Victor Davis Hanson em livros
como “Porque o Ocidente venceu?”. Mas a superioridade auto-atribuída
pelos ocidentais não vai além da imagem idealizada. Na realidade, mesmo a
Grécia entra no movimento geral das éticas mediterrâneas. Ela muito
aprendeu com o Egito e demais impérios do Oriente Médio e do
Mediterrâneo.
Mais adiante, a partir do século XIV (era cristã) a ética européia
foi se transformando, a cada século mais rapidamente, no trato com as do
Oriente Médio, da África, das Américas, do Extremo Oriente. O mesmo
ocorre com as últimas diante da européia. No século XX as trocas entre
as éticas regionais do planeta se tornaram a cada passo mais aceleradas,
devido, sobretudo, às tecnologias da comunicação. Do telégrafo à
Internet, o comércio espiritual entre as éticas se complexificou,
tornando-se sempre mais amplo, emaranhado, contraditório. Os movimentos
retrógrados, que insistem em conservar valores e hábitos inadequados à
nova configuração do planeta, tendem a se definir como quistos que
apenas preparam o isolamento de seus praticantes, ou seja, elas trazem a
morte próxima ou lenta de sua cultura, formas políticas, econômicas,
religiosas, estéticas e tecnológicas.
Sigo o pensamento do etnólogo André Leroi-Gourhan. Para ele, a
cultura técnica – base da ordem ética – para se reproduzir, exige das
sociedades duas forças aparentemente contrárias: a primeira é a
capacidade de inventar instrumentos, valores, hábitos; a segunda reside
na aptidão para emprestar de outras sociedades instrumentos, valores,
hábitos. Quem não consegue emprestar é incapaz de inventar e vice-versa.
É o que vemos no planeta, sobretudo após o século XVI. Os europeus
emprestaram da China, da Índia, do Japão ciências e técnicas em todos os
domínios da vida. E inventaram, a partir daí, novas técnicas, ciências,
hábitos. No campo estético tomemos, no século XVIII, no rococó, a
quantidade de formas e traços conhecidos como “chinoiserie”, ou seja,
empréstimos do Japão e da China, nas artes plásticas. No século XX,
temos o movimento amplo chamado Art Nouveau. Ele é uma síntese de
elementos orientais e do Ocidente.
O mesmo pode ser dito de toda a cultura e da ética. Gourhan mostra,
após muitas pesquisas sobre a origem e a vigência da tecnologia desde os
nossos alvores como humanidade, que nosso corpo é produto de nossa
técnica, que desde o princípio vivemos em tecnosfera.
Moldamos nosso corpo inteiro, dos pés à caixa craniana, o que
possibilitou as técnicas de manipulação e a linguagem. Mas o principal é
que o nosso corpo, base da ética, se prolonga no universo dos objetos
técnicos que produzimos, mas não criamos. É bom recordar a diferença
entre “criação” e “produção”. No pensamento judaico-cristão, existe a
idéia de um ser onipotente que gera a natureza do nada. No pensamento
grego, a natureza já está ao dispor dos deuses, que a controlam, e dos
homens que imitam os deuses, ou desafiam os deuses como Prometeu. Assim,
nesta forma de raciocinar, não existe criação, mas produção a partir e,
não raro, contra a natureza que deve ser submetida pelos nossos atos
técnicos. Se não existe criação absoluta, também não existe autoctonia
técnica plena. Cada sociedade inventa sua técnica (e nela, a sua ética)
emprestando traços de outras sociedades. Só é capaz de inventar, retomo,
quem se tornou competente para emprestar.
“Uma cultura presa em si mesma, sem choques com outras, nada acrescenta,
nada inventa no seu trato com a natureza e consigo mesma”.
Ou seja, a técnica é um movimento perene de Krisis, de decisão,
escolha, teste. O mesmo para a ética. Uma cultura presa em si mesma, sem
choques com outras, nada acrescenta, nada inventa no seu trato com a
natureza e consigo mesma. Daí, o fato de que a crise, longe de ser algo
nocivo, é essencial para a sobrevivência correta, a expansão e o
desenvolvimento da técnica e da ética. Outra noção de Krisis dá bem a
medida da coisa: para os médicos dos tratados hipocráticos (outra fonte
rica das elaborações éticas do Ocidente), a crise da doença é o momento
em que ainda não foi vencida a moléstia (a morte pode vir) e já surgem
sinais de recuperação da saúde. A crise, portanto, pode seguir para a
morte ou para a vida. Tudo depende da perícia técnica do médico, da
cooperação do adoecido, das forças que se chocam no seu corpo. Ocorre
com a crise o mesmo que se passa no plano do remédio. Os médicos gregos
nomeiam como Pharmakon os medicamentos, que podem ser remédios ou
venenos, muitas vezes dependendo da dose, do saber técnico no seu
emprego, do corpo adoecido. Assim também na ética: ficar muito tempo na
indecisão sem usar medidas técnicas para sair da crise, significa
aceitar o desaparecimento. Mas não se deve ser precipitado, pois
apressar o fim da crise antes do tempo pode ser desastroso. Esta é a
lição política ensinada pelos médicos aos teóricos da política, de
Aristóteles até Maquiavel. Trata-se da noção do Kayrós, o tempo
oportuno. Quem deseja solucionar uma crise ética ou política deve saber
qual o instante certo para decidir as coisas. Um minuto antes, um minuto
depois, pode ser a ruína de uma sociedade ou Estado. O comércio
praticado entre as éticas, desde a era antiga até a moderna, supõe a
noção de crise, de tempo oportuno, de empréstimo e invenção. Falar em
“choques” ou “guerra” de culturas e de éticas significa tomar as coisas
pela rama, ignorar o principal, a perene crise de todas as formas
culturais, aceleradas na modernidade.
O Brasil… bem, o Brasil é o amálgama de uma ética absolutista
europeia com elementos dinâmicos da modernidade. Nossa ética se
enquistou no absolutismo que ignora e mesmo combate a democracia real
(pensemos no privilégio de foro, excrescência do século XVII em pleno
século XXI brasileiro), no menosprezo pelas técnicas de ponta, na
desconfiança diante das conquista políticas mundiais, bastando ver o
ódio votado aqui à liberdade de imprensa, no veto à existência de uma
oposição efetiva, no conúbio entre o público e o privado. Emprestamos
apenas alguns elementos do processo de mundializacão técnica e ética.
Somos ainda incapazes de inventar novas éticas, o que não nos assegura
um futuro invejável, apesar de todas as nossas potencialidades e
riquezas. Se continuarmos ignorando a geração técnica, se não
investirmos em inovação em nossas indústrias e direção de empresas, se
persistirmos em viver sob uma forma de governo anacrônica (o absolutismo
dos operadores do Estado, que se julgam e agem como se não devessem
prestar contas a ninguém, sobretudo ao “cidadão comum”), setores vitais
de nossa sociedade e de nossa ética serão ainda mais fossilizados, no
mesmo passo em que outras sociedades agilizam e aproveitam com sentido
certo de tempo oportuno as suas crises, assumem novos rumos, inventam
novos valores e geram novos horizontes.
Estado e corrupção
Imil – Os constantes casos de corrupção no país são fruto de
falhas institucionais? É possível corrigir essas falhas aprimorando as
instituições?
“Os impostos, a polícia, as guerras, a administração,
tudo é razão e segredo de Estado no absolutismo”.
Neste último, as fontes públicas de recurso se concentram nas mãos
dos governantes, que as direcionam no interesse do governo, sem ouvir os
que pagam impostos. Estes, por sua vez, não têm direitos a reclamar nas
políticas públicas.
Mesmo porque a essência do poder absolutista reside na razão de
Estado que é co-natural ao segredo de Estado. Os impostos, a polícia, as
guerras, a administração, tudo é razão e segredo de Estado no
absolutismo. Certa feita o rei francês pediu um aumento de imposto à
Assembléia dos Estados (nobreza, clero, terceiro estado). Sua desculpa
era a guerra. Os representantes do terceiro estado pediram para
inspecionar as contas reais. O clero, setor mais influente na época, em
seu voto disse que as finanças do rei eram como o Santíssimo Sacramento
no cofre sagrado. Apenas os que tinham poder divino poderiam saber o que
nelas se escondia… Segredo e razão de Estado são sinônimos, em todos os
sentidos. E o governante absolutista distribuía privilégios para se
manter no comando do Estado. Dentre os privilégios, contemos os recursos
financeiros, as terras etc. O clero e os nobres eram os mais agraciados
com tais privilégios, pagos à custa dos contribuintes. Rei, clero,
nobres, nenhum deles julgava ter de prestar contas de seus atos e dos
dinheiros. Ora, quando as revoluções modernas, republicanas e
democráticas, já tinham sido efetivadas (a inglesa ainda no século XVII,
a norte-americana e a francesa no XVIII), no Brasil do século XIX se
reitera o absolutismo sob comando do príncipe Dom João, mantendo-se os
fundamentos do privilégio, do segredo, da irresponsabilidade no manejo
dos recursos públicos.
Aliás, fugido de Napoleão, que bem ou mal representava um avanço
democrático quando comparado ao Antigo Regime absolutista, Dom João fez
do Brasil um país refratário às “doutrinas infernais” da república, da
democracia etc. Foi assim que o Príncipe fez o Banco do Brasil, que
imprimiu papéis sem lastro e foi obrigado a fechar. O governante viu
apenas as suas necessidades, sem cuidar nem um pouco da accountability.
A justificativa do Poder Moderador, na Carta de 1824, encontra-se
nesta ressurreição, nos trópicos, do absolutismo. Com o Império,
concentraram-se na Corte os impostos, que os distribuía pelas províncias
e municípios conforme a sua obediência aos ditames do poder imperial.
Assim, cidades ficaram séculos sem serviços públicos elementares. É
quando os poderosos regionais se unem em oligarquias para arrancar meios
do poder central, oferecendo como troca o controle das populações e
apoio aos projetos do governo. Algo mais grave ocorre ainda no plano
ético. Como as cidades são desprovidas de recursos, os fazendeiros
(candidatos a oligarcas) que têm lugar nas Câmaras de Vereadores e na
Prefeituras, emprestam o seu próprio dinheiro (além da mão de obra
escrava que lhes pertencia e dos materiais, comprados no Rio ou São
Paulo) aos cofres municipais para obras públicas. O fato surge aos olhos
dos cidadãos como um favor prestado à coletividade. Mas breve surge a
contrapartida.
“Importa sublinhar que a passagem do ‘favor’ ao uso do dinheiro público, ocorre com aprovação
ou mesmo cumplicidade dos governados. Tal é a origem do ‘é dando que se recebe’ e do ‘rouba, mas faz’”
A professora Maria Sylvia Carvalho Franco mostra que, tempos após a
instauração de tal prática, os vereadores e prefeitos imaginaram o
processo como rua de mão dupla: “se quando o município precisa, eu
empresto, quando eu preciso…”. Temos aí o uso de confundir o dinheiro
público com o privado, usando o primeiro para ascender socialmente,
comprar postos de mando, alianças políticas, etc. Em “Homens Livres na
Ordem Escravocrata”, todo o sistema é exposto com detalhes e provas.
Importa sublinhar que a passagem do “favor” ao uso do dinheiro público,
ocorre com aprovação ou mesmo cumplicidade dos governados. Tal é a
origem do “‘é dando que se recebe” e do “rouba, mas faz”.
Mantida a concentração do poder no palácio presidencial, em
detrimento dos Estados e municípios, mantido o sistema concentrador de
impostos no poder “federal”, as populações não têm outra escolha senão
votar nos poderosos regionais, os oligarcas, que trazem obras para as
cidades. Ou seja, elas aprendem uma ética contrária à república e à
democracia. Nem os proprietários do poder central, nem os oligarcas,
imaginam ter obrigação de prestar contas de recursos aos contribuintes.
Mas exigem cada vez mais impostos para prestar “serviços” ineficientes
na saúde, educação, segurança, cultura, ciência e técnica. Eles julgam
ter direito a colocar no bolso próprio, ou de seu partido, parte do
butim, para manter os “favores”, ou seja, a realização de obras públicas
nas urbes.
E agora vem a pior parte: desafio qualquer pessoa a lançar um
candidato ético, respeitador dos dinheiros públicos, em qualquer eleição
brasileira. Se ele provar que trará, ou trouxe, obras públicas para os
eleitores, será eleito tantas vezes quanto possível o que trouxer obras
públicas. Caso contrário, receberá parcos votos.
O eleitor que, diante dos jornais, rádio ou TV diz ter nojo da
corrupção política, não sabe ou não quer saber o que os políticos
“eficientes”devem fazer, no Congresso, para conseguir os recursos. O
mínimo é praticar o “é dando, que se recebe, o toma lá dá cá”. Ou seja, a
corrupção é tridimensional: existe o corruptor de obras públicas, o
corrompido dos poderes, o eleitor… Sem uma efetiva democratização que
obrigue os gestores a prestar contas, sem uma abolição dos privilégios
(em especial o de foro), sem uma federalização que permita maior
autonomia (sobretudo financeira) aos Estados e Municípios, a fábrica da
corrupção ética e financeira estará funcionando em pleno vapor. Tenho
alguns escritos sobre o problema. Em especial, gostaria de indicar um
texto meu saído na Revista de Economia Mackenzie, cujo título é
“Impostos e Razão de Estado”.
Imil – Qual é o papel do Judiciário na mudança desse quadro?
Romano – O Judiciário está inserido na estrutura do
Estado brasileiro, ou seja, mesmo que boa parte de seus integrantes
queira exercer a missão de julgar de acordo com os padrões republicanos e
democráticos, a instituição é homóloga à dos outros setores, com
agravantes. O Executivo e o Legislativo seguem regras de transparência e
são submetidos à opinião pública, à imprensa, ao voto. Quando perdem
seus cargos, perdem a remuneração e, quando seus processos judiciais não
recebem o sinal do segredo de justiça, sua vida inteira se transforma
em objeto de análise pública. Não é assim com os magistrados. Quando
perdem seu cargo, guardam seu pagamento, são julgados pelos pares em
plano sigiloso e, quando fica evidente a sua ausência de ortodoxia ética
no cargo, não recebem punição a tempo e a hora.
O debate nacional ao redor do CNJ, as tentativas de enfraquecer o
trabalho da Corregedoria daquela instituição que deveria controlar a
prática dos juízes, tudo mostra que dos três poderes o judiciário é o
mais arredio aos elementos democráticos da transparência e da
accountability. Existem exceções, com certeza, mas a regra não é
passível de aplausos unânimes.
Modo geral, os que operam no campo do direito manifestam um alto teor
de corporativismo e, em muitos casos, de desprezo pelos “estranhos”, os
“leigos”, os “cidadãos”comuns. Eles esquecem que, num mundo altamente
dividido em especializações, o jurista também é leigo para o médico, o
engenheiro, o arquiteto, o economista, o físico, o químico, o
administrador de empresas, etc. Existem questões que vão além das
especialidades. Tais questões não admitem donos da verdade nem ditadores
da ciência, seja ela jurídica. Muitos operadores do direito, aqui
incluindo advogados e promotores além de juízes, não admitem o ponto.
Além disso, o judiciário não tem exercido o papel que lhe cabe de
morigerar os outros poderes. Haja vista a facilidade com a qual é
aplicado o privilégio de foro, sem um questionamento protocolar: ele
fere o princípio da igualdade de todos perante a lei. Quando os que
praticam improbidade com os recursos públicos fogem do juiz natural, o
da primeira instância, e são supostamente colocados sob o julgamento dos
tribunais superiores (quantas penalidades foram mesmo aplicadas até
hoje?) temos a ruptura com o regime ordenado na Constituição e
referendado pela cidadania. Esta última recusou a forma da monarquia
(com tudo o que ela implica no Brasil de privilégios, lembremos que
mesmos em países monárquicos do mundo atual, os políticos não gozam dos
privilégios que lhes são outorgados aqui), mas a justiça passa ao largo,
aceitando um ordenamento evidentemente injusto, escandaloso,
inconstitucional. O privilégio de foro não cria a corrupção, mas a
reforça e torna os improbos mais arrogantes, sem tomarem sequer nos dias
de hoje a cautela de esconder suas manobras fraudulentas. O que se
praticava dissimuladamente tempos atrás, se comete hoje em plena praça
pública.
Imil – Qual é o impacto dos constantes casos de corrupção no alto escalão do governo?
Romano – Acho mais adequado perguntar sobre o
impacto da corrupção sobre o Estado e a sociedade como um todo. O
primeiro e mais deletério é o sumiço da fé pública. E sem tal elemento
não existe Estado de direito. Se não é possível confiar nos gestores do
Estado (nos três poderes), não há motivo para obedecer a lei, pagar
impostos, servir militarmente, viver segundo as regras civilizadas.
Investir recursos privados em setores que dependem da administração
pública, quando é sabido que tais recursos irão parar nos cofres dos
partidos e dos indivíduos que operam na política, é tarefa que beira a
falta de sentido.
As pesquisas que indicam a perda progressiva de fé da cidadania no
sistema democrático deveria ser um alerta aos que ainda buscam um modo
de vida pautado pelos valores da democracia. Mas quantos, na camada
política, valorizam a república, a democracia, a responsabilidade, o
respeito às leis vigentes? Quando legisladores quebram a lei, como
ocorre com frequência terrível no Brasil, perde sentido se falar em
Estado, ou mesmo Estado de Direito.
A violência que grassa em nossa sociedade (basta ver o trânsito, 40
mil morte por ano, mais do que em muitas guerras tremendas ocorridas nos
últimos anos no planeta) mostra os efeitos da corrupção de maneira
clara. Basta dizer que os assassinos do trânsito, como os improbos,
escapam das malhas da justiça de modo fácil. É bom recordar o dito de
Diógenes: “A lei é uma teia de aranha que prende os insetos pequenos, e
não resiste à força dos grandes”, pois nela fazem buracos confortáveis.
Pelo que ocorre no Brasil, haja conforto!
Reação e mobilização
Imil – Como o senhor avalia a baixa adesão da população nas manifestações contrárias à corrupção?
Romano – Nosso sistema leva a população a aceitar
“favores” dos que operam o Estado. Se ela não identifica favores nos
oligarcas, os encontra em ações governamentais. Antes, valia como arma
política de controle o bico de pena. Hoje, o cartão magnético do Bolsa
Família e outros mais. E os setores da classe média e dos mais bem
aquinhoados temem perder algo conquistado após muito desespero, ou seja,
a inflação razoavelmente baixa e a estabilidade econômica.
Imil – Existe no país um clima de otimismo, Copa do Mundo,
Olimpíadas, uma crise econômica que parece distante… Tal quadro
dificulta o exercício e a repercussão do pensamento crítico no país?
Romano – Não podemos pensar que apenas a conjuntura
poderia explicar semelhante apatia popular diante da corrupção. Devemos,
antes de tudo, dizer que o alheamento não é absoluto, pois cerca de
dois milhões de pessoas se movimentaram para conseguir a lei da Ficha
Limpa. Esta, apesar de tudo, marca o desejo dos cidadãos de combater o
processo corrosivo que anula o Estado de direito entre nós.
Para compreender o motivo da suposta passividade do povo brasileiro
diante da corrupção, precisamos refletir sobre o peso da inflação na
vida nacional, de 1954 até o Plano Real. Um processo inflacionário como o
vivido em nossa terra corrompe valores, quebra resistências éticas,
abre caminho para o desespero de indivíduos, grupos, classes.
Permitam que eu cite um dos autores mais relevantes na análise
política e antropológica do século XX, Elias Canetti. Em sua obra lúcida
e profunda chamada “Massa e poder”, existe um capítulo fundamental
intitulado “A inflação como fenômeno de massa”. Em outros livros e
textos ele comenta o impacto da inflação na ordem social e política.
Tanto sua autobiografia (“Die Fackel im Ohr” ou “A torcha no ouvido”),
quanto “Auto-da-fé” (“Die Blendung”) trazem situações vividas durante o
tremendo processo inflacionário de Weimar. Como seu contemporâneo Georg
Simmel, que publicou um monumento teórico chamado “Filosofia do
Dinheiro” (“Philosophie des Geldes”, 1900, existe tradução inglesa da
obra, “The Philosophy of Money”), Canetti presta atenção ao papel do
dinheiro na ordem cultural moderna e na geração da identidade
psicológica das pessoas.
Ele parte de um fato incontestável: “Pode-se afirmar que nas nossas
civilizações modernas, excetuando-se as guerras e as revoluções, não
existe nada que em sua envergadura seja comparável às inflações”.
Canetti mostra como há um nexo entre o corpo do homem, a sua mão
sobretudo, e a moeda. Com o enfraquecimento deste vínculo, após o papel
moeda (embora o padrão ouro ainda garanta a confiabilidade de uma
economia), ainda permaneceu um ponto de estabilidade e confiança nos
governos democráticos. Trata-se da cifra que indica o “milhão”. Como
designação de um número, o “milhão” tanto pode referir-se ao dinheiro
como aos homens. E Canetti nos reconduz à íntima passagem entre a
inflação verbal e a econômico-política. Milhão: “O caráter duplo da
palavra pode ser analisado muito bem nos discursos políticos. O prazer
voluptuoso do número que cresce repentinamente, por exemplo, é
característico dos discursos de Hitler. Em geral, ele se refere aos
milhões de alemães que ainda vivem no exterior do Reich que ainda
precisam ser redimidos”.
Importa sublinhar: no mundo atual, massa e milhão relacionam-se
imperativamente. No processo inflacionário, entretanto, “a unidade
monetária perde repentinamente sua personalidade. Ela se transforma na
massa crescente de unidades; estas possuem cada vez menos valor à medida
que aumenta a massa. Os milhões, que tanto se quis possuir, estão
repentinamente em nossas mãos, mas já não são mais milhões, apenas se
chamam assim.
Na inflação, ocorre um elemento perverso e perversor: “O que cresce
toma-se cada vez mais fraco. O que antes era um marco é agora dez mil,
depois cem mil, depois um milhão. A identificação do homem individual
com seu dinheiro é abolida desta forma”. O homem, que antes confiava na
sua moeda ou bilhete, não “pode evitar sentir seu rebaixamento como um
rebaixamento dele próprio. (…) A inflação não abala apenas tudo
externamente; nada mais é seguro, nada permanece no mesmo local durante
uma hora; em virtude da inflação, ele mesmo, o homem, diminui. Ele
mesmo, ou o que ele foi, é nada; o milhão, que ele sempre desejou ter,
também é nada. Todos o possuem. Mas cada um é nada”.
A inflação, desse modo, pensa Canetti, é uma “desvalorização dupla
(…), o indivíduo sente-se desvalorizado, porque a unidade na qual
confiou, que ele respeitava tanto como a si mesmo, começou a deslizar
para baixo. A massa sente-se desvalorizada. (…) Como pouco se vale
sozinho, igualmente pouco se vale unido aos demais. Quando os milhões
aumentam, todo um povo de milhões se converte em nada”.
A massa, entretanto, não se esquece de sua desvalorização. “A
tendência natural, a partir daí, é a de encontrar algo que valha ainda
menos do que a própria pessoa, algo que possa ser desprezado da mesma
forma como se foi desprezado antes.” A massa, digamos, busca um bode
expiatório onde descarregar o sentimento de ser nada. Canetti aponta
para o vínculo entre a inflação alemã e os milhões de judeus,
supostamente inferiores aos arianos empobrecidos pela inflação, mortos
nos campos de extermínio.
A lição trazida pelo processo inflacionário de Weimar não foi
aprendida o bastante pelas sociedades ocidentais. O descontrole da
economia traz inflação e, com ela, massas dispostas a seguir os mais
diversos Messias, cobrando de supostos culpados toda a insegurança e
humilhação vividas. Basta ver o que se passa na suposta União Européia
nos últimos tempos. Recomendaria modestamente a leitura de um livro
relevante para os nossos políticos, magistrados, universitários,
jornalistas. Penso no volume publicado por Bernd Widdig (“Culture and
inflation in Weimar Republic”), onde inclusive existe um capítulo
inteiro dedicado às análises de Elias Canetti.
No caso brasileiro a população, desacostumada aos procedimentos
democráticos (no século XIX, os nossos governantes dificilmente poderiam
ser postos entre os campeões da democracia), algo piorado por dois
regimes de exceção no século XX, e também afeita aos favores que espera
dos que operam o Estado, não teve oportunidade de exercitar ativamente a
crítica e a cidadania. Se na Alemanha, onde o nível da participação
política das multidões foi elevado, sobretudo após 1848 (a era das
revoluções) aconteceu um descontrole econômico e político desastroso
como a inflação, conduzindo à fé cega num redentor, no caso Adolf
Hitler, não é de espantar que no Brasil tenham medrado arremedos
messiânicos como o de Jânio Quadros, José Sarney (recordemos a histeria
dos “fiscais do presidente” que invadiam supermercados, prendiam
gerentes, penetravam em fazendas na caça aos bois gordos, com base na
lei delegada etc), Fernando Collor… A cada nova onda de fé no salvador
presidencial, seguia uma onda de humilhação, perda da autoestima,
desespero diante do presente e do futuro.
Com o Plano Real, se estabelece a racionalidade política que atenuou a
inflação, conduzindo-a a níveis suportáveis. De imediato, veio a
popularidade imensa de Fernando Henrique Cardoso que o levou ao Planalto
e o elegeu novamente. Na mesma onda de fé no Salvador, foi eleito Luis
Inácio da Silva que, à diferença de Fernando Henrique Cardoso, não
apenas se adequou ao papel de redentor, como o exacerbou com poderosa
ajuda de Duda Mendonça e João Santana. “Nunca antes neste país”, é o
slogan que une a salvação da economia à pessoa do Presidente
providencial. “Marolinha” é o modo pelo qual o próprio governante
procurou exorcizar um impasse do qual ainda desconhecemos o real perigo.
E apesar dos exorcismos, a inflação cresce a olhos vistos.
A apatia que hoje se observa nas massas urbanas brasileiras tem
várias faces, sendo que a primeira é justamente a segurança econômica,
da qual fala a propaganda oficial necessariamente.
Protestar contra a corrupção parece ser algo menor, se comparado ao
pesadelo vivido antes do Plano Real. Acrescente-se que a mesma
propaganda “sequestrou” o peso dos governos Itamar Franco e Fernando
Henrique na construção daquela segurança: “nunca, antes neste país…”. A
segunda face, mais triste, é o conúbio dos eleitores com os corruptos
que lhes fazem “favores” pessoais ou coletivos (trazem obras para as
cidades etc). A terceira é o controle quase absoluto do governo federal
sobre as obras públicas no país inteiro, facilmente transformando-as em
instrumento político eleitoral. E temos várias outras faces.
Mas digamos, para encerrar esta longa resposta, que um povo que viveu
sob a inflação e foi humilhado ao máximo por ela, se dispõe à entrega
total a um líder populista. E tal fato traz muitas preocupações com o
futuro da democracia.
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