Por: Patricia Fachin | 11 Setembro 2017
A esquerda, não só no Brasil, mas no mundo, “não tem projeto claro de futuro, a menos que se considere que o que se passa na China tem caráter democratizador e socialista, quando na verdade se trata apenas do triunfo do aspecto nacionalista da Revolução Chinesa e uma versão particular de desenvolvimento capitalista”, diz o historiador e sociólogo José Maurício Domingues à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail.
Na avaliação de Domingues, no Ocidente em geral, “a esquerda está bastante perdida”. Exemplos disso, pontua, podem ser vistos na Inglaterra, na Rússia, na França e na Espanha. “Que há desejo e espaço para participação por outro lado nos mostra a virada interna do Partido Trabalhista inglês, embora isso seja apenas um retorno a um projeto social-democrata (o mesmo que Sanders nos Estados Unidos). Na Rússia a esquerda é muito débil, na França, em que pesem aparências em contrário, a situação é dramática, enquanto na Itália nem se pode colocar a questão, com o Podemos espanhol
tendo perdido sua janela de oportunidade, em parte ao menos por querer
ser centro e esquerda ao mesmo tempo, para falar somente de países em
que a esquerda teve muita força”, avalia.
No Brasil, avalia, a “esquerda brasileira
se encontra muito fragmentada” e, por conta disso, provavelmente não
terá um bom resultado nas próximas eleições. “Muitos esperam uma polarização esquerda-direita em 2018.
Posso estar enganado, mas acho que isso não ocorrerá. Inicialmente
teremos uma grande fragmentação de candidaturas, mas o Brasil, pelo seu
tamanho, por certa inércia social, por certa mentalidade, é um país em
que o centro tem sempre um peso muito grande. Nas últimas eleições um
novo centro — Rede, PSB etc. —, diferente do PMDB, emergiu, sem conseguir superar a polarização entre PT e PSDB.
Essa polarização se esgotou e acho que esse novo centro tem mais
chances de se consolidar agora. Que características terá e com quem
preferencialmente se alinhará ainda está em aberto. É aí que as
esquerdas, sobretudo as partidárias, têm que jogar as suas cartas,
ajudando-o a se constituir e atraindo-o para seu lado”.
José Domingues | Foto: IPEA
José Maurício Domingues
é graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro - PUCRJ, mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em
Sociologia Política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de
Janeiro – IUPERJ, e doutor em Sociologia pela London School of Economics
and Political Science, Universidade de Londres. Atualmente é professor
do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro - IESP-UERJ. É autor de Esquerda: crise e futuro (2017) e O Brasil entre o presente e o futuro (2a. edição, 2015).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como o senhor está lendo a atual conjuntura política do país?
José Maurício Domingues - Nós estamos vivendo um
momento obviamente muito difícil, em particular para as camadas
populares e para parte das classes médias, assim como para quem tem uma
visão de um país mais democrático e mais justo. No fundo disto está o
fato de que o Brasil concluiu um ciclo político democratizador que começou nos anos 1970, com a luta contra a ditadura militar
e inclusive processos de modernização mais profundos. Nosso imaginário
como país se fez mais democrático nesse processo, a sociedade se
organizou e reorganizamos o sistema político, seja seu lado societal,
seja seu lado estatal. A Constituição de 1988
foi um marco fundamental nisso. O problema é que esse ciclo se esgotou,
isto é, os agentes, a agenda e mesmo em parte as instituições que
emergiram e foram centrais para esse ciclo se esgotaram. Em cima disso o
ciclo de hegemonia total do PT na esquerda também encontrou seus limites, o que se combinou com esgotamento do ciclo dos governos petistas. Com uma crise econômica complexa subjazendo a tudo isso, o impeachment/golpe parlamentar
de 2015 e a revelação da extensão da corrupção em que se baseia o
sistema político (com instituições que funcionam ocultas e
informalmente, mas estão em xeque), o resultado do fim desses ciclos
está sendo extremamente árduo. É possível pensar também que há uma crise de projeto de Brasil
que é mais profunda e para a qual ainda não despontaram soluções
efetivas, talvez sequer uma consciência clara de que isso pode estar em
questão.
IHU On-Line - Quais são as crises que marcam a República brasileira e como chegamos à atual conjuntura?
José Maurício Domingues - Começamos com uma república oligárquica
em fins do século XIX, cuja crise se deu em larga medida, mais que
pelos impactos da crise econômica iniciada em 1929, pela sua
incapacidade de incorporar novos atores ao sistema político
estatal-formal. Daí a revolução de 1930 que só se resolve em 1945, de todo modo apenas parcialmente, seguida pelo golpe militar de 1964 e a ditadura que durou até os anos 1980, dando uma solução que tentou bloquear o processo de democratização social que estava em curso, sem consegui-lo, porém. A conquista da democracia liberal
nos anos 1980 — democracia liberal mas democracia, o que não devemos de
maneira alguma perder de vista — e os governos que se seguiram, tanto
do PT quanto do PSDB, concluíram o que vinha desde os anos 1920/1930 como um projeto nacional. Se Fernando Henrique Cardoso falava em fim da era Vargas, Luiz Inácio Lula da Silva pensou em reviver aquele projeto. Nem um nem outro tiveram sucesso verdadeiramente nesse sentido, pois a sociedade rejeitou o neoliberalismo,
ao menos em sua forma aberta, sem que haja espaço para uma volta aos
anos 1940-1950, ao contrário do que alguns parecem ter suposto, na base
do improviso, ainda por cima.
O que se concluiu mesmo foi o processo de modernização conservadora
que se desdobrou desde os anos 1930, modernizando sem mudar em
particular o peso da grande propriedade agrária e a exclusão social, de
uma forma enfim que reconheceu as demandas políticas e sociais por
democracia e começou a tratar da questão social. Claro, sabemos que
houve limites severos neste sentido também. Entretanto, o projeto de
país que nos conduziu, de um jeito ou de outro, em meio a contradições e
lutas tremendas, também se esgotou, ou seja, a ideia de uma nação
moderna, integrada, industrial, democrática para alguns, para outros na
verdade não, com um papel importante para o Estado (o liberalismo
nesse sentido deu a espinha dorsal das instituições, mas manteve-se
subordinado na economia), com uma cultura popular e também mais formal
que fossem expressão disso, encontrou seus limites segundo as fórmulas
em que se expressou.
Estamos meio sem rumo, e os neoliberais,
aqueles que querem escrever uma novíssima história daqui para a frente,
acham que chegou a hora de darem o pulo do gato. Os intelectuais foram
de suma importância para pensar o Brasil nesse longo
período, mas foram de um lado marginalizados, de fato, pelos partidos e
pela mídia, e de outro se confinaram ao mundo da universidade (são só os neoliberais, sobretudo economistas, ou os novos “think tanks” de direita, que realmente têm sido valorizados). É preciso também mudar isso, inclusive dentro da esquerda. Precisamos nós mesmos pensarmos essa novíssima história do Brasil que queremos fazer daqui para diante.
IHU On-Line - Como a esquerda e a crise da esquerda se inserem na crise da República?
José Maurício Domingues - Durante todo esse processo, as diversas esquerdas brasileiras, os comunistas, do PCB e do PCdoB, bem como os trotskistas de diversos matizes, os trabalhistas à esquerda de Vargas e depois o PDT, o pequeno PSB, posteriormente o PT,
a esquerda católica pós-Concílio Vaticano II, para falar somente dos
mais importantes, assim como correntes sociais sem necessariamente
expressão direta nos partidos, encarnaram o lado democratizador desse
processo amplo de modernização (ainda que várias dessas correntes
tivessem uma relação ambígua com a democracia, rejeitando sua versão
liberal em nome de regimes autoritários que equivocadamente supunham
democratizadores).
Finalmente seus setores majoritários impulsionaram um processo em
que, em aliança com os setores liberais democráticos, de centro ou mais à
esquerda, pela primeira vez conseguimos construir um sistema
democrático estável no país. Infelizmente, o PT manejou mal sua hegemonia
e se atrapalhou muito no governo. As razões disso têm tanto a ver com o
partido em si — com uma autossuficiência e arrogância espantosas —
quanto com uma incapacidade de avançar em inovações que ele próprio
havia introduzido. Se o PCB descobriu e afirmou pela
primeira vez na esquerda a questão democrática como o eixo da luta
política, inclusive na perspectiva de construção do socialismo, o PT
estendeu isso a uma visão “basista”, em que a questão democrática tinha
de ser tratada de baixo para cima. Isso foi sendo progressivamente
abandonado, instalando-se um brutal aparelhismo e ciúmes do partido em
relação a qualquer coisa que na esquerda escapasse a seu controle (com exceção de seu fiel aliado, o PCdoB).
Além do mais, para surpresa geral, a questão nacional e o desenvolvimentismo,
com uma aliança esdrúxula e em grande medida espúria, marcada pela
corrupção, com setores nacionais da burguesia, acabaram tornando-se
centrais, de forma improvisada. Estes eram temas originalmente
fundamentais para o PCB, com a questão nacional finalmente por ele subordinada à questão democrática, ao contrário, observe-se, da perspectiva do PCdoB. Para piorar as coisas, o PT, tão plural em sua formação e orgulhoso de seu poder de mobilização popular e democrática, transformou Lula em uma espécie de Vargas aggiornato,
chegando a um samba de uma nota só. O resultado é a meu ver desastroso.
Ficamos até mesmo sem linhas de defesa razoáveis frente aos avanços da
direita, embora, felizmente, a população rejeite as reformas neoliberais
de Temer, o que os está contendo um pouco.
IHU On-Line - Alguns sociólogos avaliam que a crise da
esquerda é generalizada no mundo todo. Fazendo uma retrospectiva do
discurso e da atuação da esquerda no mundo, especialmente nos séculos
XIX e XX, como o senhor avalia o momento pelo qual passa a esquerda no
mundo? Nesse sentido, a crise da esquerda mundial pode ser explicada
pelos mesmos sintomas da crise da esquerda brasileira ou vice-versa?
José Maurício Domingues - Sem dúvida a esquerda enfrenta hoje no mundo todo uma situação muito complexa. Não tem projeto claro de futuro, a menos que se considere que o que se passa na China tem caráter democratizador e socialista, quando na verdade se trata apenas do triunfo do aspecto nacionalista da Revolução Chinesa
e uma versão particular de desenvolvimento capitalista. No “ocidente” a
esquerda está bastante perdida, ainda que a experiência da “geringonça”
em Portugal mostre
que uma unidade construída em cima de um programa, sem que as diversas
forças envolvidas no projeto percam sua identidade, pode funcionar,
ainda que neste caso timidamente. Que há desejo e espaço para
participação por outro lado nos mostra a virada interna do Partido Trabalhista inglês, embora isso seja apenas um retorno a um projeto social-democrata (o mesmo que Sanders nos Estados Unidos). Na Rússia a esquerda é muito débil, na França, em que pesem aparências em contrário, a situação é dramática, enquanto na Itália nem se pode colocar a questão, com o Podemos espanhol tendo perdido sua janela de oportunidade, em parte ao menos por querer ser centro e esquerda ao mesmo tempo, para falar somente de países em que a esquerda teve muita força.
Realmente, há uma ofensiva global neoliberal, mas sobretudo a esquerda perdeu sua imaginação,
seja para reformas moderadas, seja para um projeto de transformação
mais incisivo. E houve uma “estatalização” dos partidos quando estiveram
no poder, especialmente os social-democratas, hoje bem adaptados ao neoliberalismo.
Já os projetos comunistas (também em suas versões maoístas ou
castristas, altamente personalistas e que se combinaram com outras
tradições nacionais), na América Latina começamos bem o milênio, com o tal do “giro à esquerda”
e muito dinheiro para gastar por conta das commodities. Contudo, apesar
de certas conquistas, que espero que perdurem, a maior parte desse
esforço foi mal direcionada. Em grande medida, creio, porque a questão
democrática foi secundarizada e voltamos a discursos e projetos que já
nos anos 1980 estavam totalmente defasados, o que é claro no caso
brasileiro.
IHU On-Line - Ainda sobre a trajetória da esquerda nos
últimos dois séculos, quais diria que foram as principais pautas e
mudanças que se destacaram ao longo da sua atuação?
José Maurício Domingues - Foram várias as esquerdas
que atuaram nesse período largo a que você se refere e continuarão a
ser elas plurais no futuro. Elas foram se adaptando, mais sabiamente ou
aos trancos e barrancos, dependendo de países e conjunturas, às questões
que a vida social e as mobilizações dos movimentos traziam à baila.
Igualdade, liberdade, democracia, pluralismo, nacionalismo,
desenvolvimento, meio ambiente, questões identitárias, sexualidade(s), a
esquerda interpelou todas essas questões. Algumas vezes de maneira mais
conservadora e com reformismo muito limitado, outras de maneira
autoritária, a despeito de suas crenças sobre si mesmas, mas sempre
tentando cumprir as promessas que a modernidade nos fez e não pode
efetivar de fato, devido a estar atravessada por diversos sistemas de desigualdade e dominação.
As esquerdas tentaram cumprir então a promessa de que poderíamos todos
nos emancipar, que seríamos livres e teríamos todos o mesmo poder
social. Se bem que rapidamente os quadros políticos ou sindicais, em
especial, com frequência se tenham achado mais iguais do que os outros.
Esse amplo esforço emancipatório tem que ser retomado, com mais
confiança no desenvolvimento autônomo da sociedade, com respeito à
dinâmica das forças políticas que não se reconhecem e muitas vezes
inclusive rejeitam os partidos políticos.
Se é evidente que sem hierarquias de algum tipo, por mais reduzidas e
transitórias que sejam, que sem organizações estáveis é impossível
construir uma alternativa, não é aceitável a sua celebração acrítica.
Nem é cabível a denúncia de qualquer divergência, como se vê ainda na América Latina — no Brasil, na Bolívia, na Venezuela —, como traição, quinta-coluna ou qualquer coisa que o nacional-estalinismo sugira. Além disso, não faz muito tempo que a esquerda descobriu a questão ambiental e a necessidade de repensar o desenvolvimento,
sem contrapô-lo ao consumo popular. A questão democrática é decisiva,
além do mais porque há globalmente uma tendência à consolidação de uma oligarquia liberal
avançada, de outro tipo, capaz de conviver com eleições e mesmo
protestos, especialmente em países em que o capitalismo e o liberalismo
têm realmente hegemonia. Ela está também em vias de desenvolvimento
entre nós, ainda que com mais dificuldades. Obviamente, é fundamental
recusar decididamente as práticas neopatrimonialistas que testemunhamos
nos últimos tempos, que falsificam a vontade política popular. Por fim, a
busca por outro tipo de desenvolvimento tem que ser abraçada com
determinação, por razões substantivas e estratégicas.
IHU On-Line - Que respostas a esquerda pode oferecer para além do social-liberalismo e do neodesenvolvimentismo?
José Maurício Domingues - Direitos universais, que impliquem a desmercantilização da força de trabalho
são cruciais também: saúde, educação, cultura, assim como a expansão de
uma política forte e sustentada de renda mínima, ao lado da mudança na
lógica dos impostos no Brasil para que sejam aplicados de forma progressiva, ao contrário do que ocorre hoje. O Bolsa Família não foi inventado no Brasil e em si tem um corte social liberal que é a face mais avançada do neoliberalismo, não obstante uma maior flexibilidade e a abrangência acertada do programa sob Lula e Rousseff. É preciso avançar e mudar a lógica do programa a médio prazo, transformando-o, para além do combate à pobreza, em um imposto de renda negativo e garantindo uma renda mínima significativa a todos os cidadãos. O empreendedorismo
pode ser absorvido, mas é preciso emprestar-lhe uma lógica coletivista e
que não abranja somente os miseráveis, sem discriminar quem quer seguir
sozinho o seu caminho. Obviamente as escolhas individuais de
sexualidade e gênero têm de ser respeitadas, sem deixar de lado o
diálogo com aqueles que se sentem desconfortáveis com isso (mesmo com os
que se opõem frontalmente a isso é necessário forçar a discussão, de
modo que tenham que se justificar ante a população).
Relançar a integração latino-americana é importante,
mas buscando uma real complementação de nossas economias, pois ajuda
pouco integrar quando todos temos somente produtos primários para
exportar! Internacionalmente as respostas dizem respeito, é claro, à
trajetória de cada país, muito variadas, mas o controle sobre o capital financeiro é inadiável, seja via taxa Toubin ou outra coisa deste tipo. E, como dizia, a questão democrática é decisiva, em termos de uma democracia radical e de massas, com instituições que o Estado não possa controlar, embora a esquerda
tenha também que colonizá-lo e democratizá-lo. Trata-se de uma
democracia que incorpore as conquistas do liberalismo sem nelas
deter-se. Somente assim poderemos além do mais voltar a pensar em
controlar as grandes corporações globais, e enfim
pensar de novo em socialismo de verdade, que a esta altura está, diga-se
ou não, fora da agenda concreta que podemos abraçar, pois essas
corporações atravessam fronteiras e são muito poderosas em todos os
planos, especialmente o tecnológico. Ao lado disso é fundamental avançar
com a questão do desenvolvimento sustentável, seja chamado assim ou de
outra forma, de modo a projetar a médio e longo prazo um novo tipo de
civilização, em que a desmercantilização da natureza se combine com a desmercantilização das relações sociais,
sem achar por outro lado que vamos descartar totalmente o mercado, que
pode ter outro significado se inserido em um quadro geral diferente.
IHU On-Line - Diante da atual conjuntura, quais diria que são
os desafios postos à esquerda brasileira? Ainda nesse sentido, percebe
uma disputa entre diversos setores à esquerda para ocupar o espaço que
até então foi ocupado pelo PT? Quais são esses grupos e como eles estão
se articulando neste momento?
José Maurício Domingues - A esquerda brasileira
se encontra muito fragmentada. Não deve se sair muito bem nas próximas
eleições, mas também dentro dela as correlações de força devem se
alterar. O PT vai sofrer bastante, sua sorte é mesmo incerta, o PSOL deve crescer, mas precisa mais de uma visão estratégica, o PCdoB vai tentar se segurar, a Rede, composta por setores de centro e centro-esquerda, também deve avançar, PDT e PSB
têm trajetórias mais complicadas e heterogêneas, mas este último deve
crescer. Tudo depende muito também das candidaturas presidenciais. Além
disso, há uma esquerda social hoje bastante diferente
daquela dos anos 1980-1990, bastante autonomista e ao que parece
renascendo nas periferias das grandes cidades, que anda meio quieta mas
subsiste e deve reemergir em algum momento.
O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto - MTST em
especial é uma força importante que cresceu na última década. Em
particular é muito bom que os jovens estejam se mobilizando tanto. Essa
pluralidade em si é positiva, o que precisamos, a médio prazo ao menos, é
descobrir como imitamos à nossa maneira a geringonça, ou vai ser
difícil avançar. O PT até ontem ao menos tentava aliar-se de novo a pelo menos alguns setores do PMDB,
o que se justificou em momentos anteriores, embora não da forma como
isso foi feito, o que a esta altura já não leva a nada, nem é possível.
Nessa toada provavelmente o PT vá terminar isolado.
Embora seja razoável que queiram se construir agora e se esforcem por
ter uma identidade clara, outras forças, como o PSOL,
terão de se abrir a alianças, do contrário cultivarão também o
isolamento. Talvez tenhamos que passar por uma reorganização mais ampla
mais adiante, mas uma visão estratégica é imprescindível.
IHU On-Line - Que aspectos fundamentais deveriam compor uma agenda à esquerda para o Brasil de hoje?
José Maurício Domingues - Acho que as esquerdas têm que ter clareza que bloquear e reverter os avanços recentes do neoliberalismo é
importante, ainda que nada fácil, mas que elas precisam ter um programa
mais amplo, de médio prazo. Este deve ser vincular a luta pelos
direitos individuais e sociais a um outro tipo de desenvolvimento, a um
aprofundamento da democracia, com inclusive o combate à corrupção, fora e
dentro de todas as instâncias do Estado. Se isso é bem definido e
publicamente discutido, elas podem inclusive se aliar a forças mais ao
centro, com um cumprimento parcial desse programa, sem quererem ser
neste momento as principais protagonistas, pois não terão força para
tanto. Temos que ter em mente que há uma tendência global ao
fortalecimento de um novo tipo de oligarquia liberal,
que tem sua própria versão entre nós. É possível além disso apoiar
parcialmente um governo sem fazer parte dele. É preciso inteligência e
flexibilidade, sem transigir com programas e princípios. O que não
podemos é perseverar em sermos meramente reativos e simplesmente
barulhentos (na verdade parte das esquerdas anda meio histérica desde o
golpe de 2015).
E precisamos voltar a ter uma aliança progressista
entre os setores populares e uma grande parte da classe média, que nada
tem de fascista, abobrinha que se ouviu em vários momentos em versões
variadas. Não adianta citar Gramsci e fazer o contrário do que propunha: precisamos construir hegemonia,
ter um projeto com contornos mais claros e generosos, contemporâneos
também, por outro lado. Do contrário não convenceremos ninguém.
IHU On-Line - Que futuro vislumbra para o Brasil? Já é possível perceber alguma perspectiva política para 2018?
José Maurício Domingues - Muitos esperam uma polarização esquerda-direita em 2018. Posso estar enganado, mas acho que isso não ocorrerá. Inicialmente teremos uma grande fragmentação de candidaturas, mas o Brasil,
pelo seu tamanho, por certa inércia social, por certa mentalidade, é um
país em que o centro tem sempre um peso muito grande. Nas últimas
eleições um novo centro — Rede, PSB etc. —, diferente do PMDB, emergiu, sem conseguir superar a polarização entre PT e PSDB.
Essa polarização se esgotou e acho que esse novo centro tem mais
chances de se consolidar agora. Que características terá e com quem
preferencialmente se alinhará ainda está em aberto. É aí que as esquerdas, sobretudo as partidárias, têm que jogar as suas cartas, ajudando-o a se constituir e atraindo-o para seu lado. Construir hegemonia
é saber interpelar as forças sociais e políticas que podem participar,
em diversos momentos concretos, de projetos e processos transformadores.
IHU On-Line - De modo mais amplo, como o Brasil se insere na
geopolítica internacional e quais são os principais desafios postos ao
país nesse sentido?
José Maurício Domingues - O Brasil é um país latino-americano, de um liberalismo temperado até hoje por um projeto de coesão capitaneado pelo Estado. Ele se encontra em parte na órbita dos Estados Unidos,
mas tem tamanho e recursos, certa capacidade de autonomia no cenário
internacional e um potencial de liderança, embora sua economia esteja
regredindo pela desindustrialização sem avanços tecnológicos reais.
Apesar de seus muitos erros, a política internacional foi uma área em
que os governos Lula acertaram muito. Havia grandes
quadros a frente disso. É preciso retomar esse projeto, mas com uma
clareza muito grande de certo número de coisas que ficaram um tanto
equívocas e acabaram gerando boa parte dos problemas que o PT
e o país enfrentam hoje. Primeiro, que precisamos integrar mais
profundamente as economias latino-americanas. O Brasil tem papel
crucial, econômico e tecnológico nisso, fazendo-as mais complementares.
Mas não somos nem seremos a China, porque não fizemos
revolução nacional nem temos um Estado não liberal como o deles. Não dá
para pensar a partir daí. Enfim, se somos grandes, somos “BRICS”,
temos potencial e pudemos já exercer certa liderança, é no sentido de
pensar em uma transformação global na direção de outro tipo de
desenvolvimento, equilibrado, justo, integrado ao meio ambiente,
pacificador do mundo que a esquerda tem que apostar.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
José Maurício Domingues - Sim, está difícil agora,
pode ser que continue. Mas não há mal que dure para sempre. Ou pelo
menos não está escrito que ele continuará. Depende de nós se isso vai
acontecer ou não. Podemos dar a volta por cima se nos abrirmos para o
novo e apostarmos na criatividade, de todos e democraticamente.
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