Flores

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sábado, 10 de março de 2018

Estado e golpes de Estado são faces de uma só moeda, sobre os golpes de Estado. Roberto Romano



Sobre os golpes de Estado.

Os cursos universitários sobre o golpe de 2016 se erguem contra o governo atual em sua política  de barrar a pesquisa e o ensino acadêmico. Como contribuição aos debates, apresento algumas reflexões, nas quais discuto os golpes nos países que produziram os primeiros regimes ditatoriais do mundo moderno. Antes e depois do Renascimento a Itália se debate entre os territórios pontifícios e as cidades republicanas. Na Alemanha, o povo  sobrevive  em áreas sob o tacão de bispos ou pequenos príncipes. Até o século 19 aqueles “Estados” geram caçoadas pelos seus domínios minúsculos (o fenômeno conhecido como Kleinstaaterei), (*) frágil moeda, alfândega, “exército”, tudo nas dimensões de Lilliput.  Eles são fósseis do regime feudal, coalhado de micro poderes e cuja única fonte de autoridade universal é a igreja romana, na instável Respublica christiana.

Seguindo as teses de Hugo de São Vítor (extraídas do Pseudo Dionísio Areopagita),  a igreja conhece duas ordens :  leigos e  padres, “dois lados do mesmo corpo”(quasi duo latera corporis unius). Os poderes regem a ordem a eles destinada. O imperador e o papa, superior ao mando laico e com duas prerrogativas para unir o corpo nos dois lados. São conhecidas as análises de Ernst kantorowicks, sobre os “dois corpos do rei”. Não insisto sobre tal ponto. Recordo apenas que a teoria do corpo uno eclesiástico, cuja cabeça é o papa, teve sua maior difusão após as crises entre igreja e corte inglesa conhecidas sobretudo com o assassinato de Tomás Becket. Um escritor próximo a ele, João de Salisbury, em livro intitulado Policraticus, amplia a metáfora corporal, de modo a acentuar o poder do Sumo Pontífice e abrir caminho para o tiranicídio aplicado aos que não se dobram à Sé romana. (1)  Cabe ao papa conferir o poder temporal e julgar seus erros. O imperador também é investido por um mando religioso, de modo a levar o povo à salvação. O pontífice é o vigia de todos (speculator omnium). Ele pode depor governos “indignos” e os excomungar, com o direito de fiscalizar reinos e feudos, Ele pode anular pactos, proibir comércio com heréticos, confiscar propriedades dos súditos e governantes. Tudo em nome da Sancta Respublica ou imperium christiano. 

Este último implode já no reino de Felipe o belo (1268/1314) e suscita documentos pontifícios delirantes, como a Unam Sanctam (1302).  Neles, Bonifácio 8 é indicado como o Sol e os soberanos laicos como a lua, cuja luz deriva do trono pontifício. A fonte da autoridade e do poder legítimo é o trono de Pedro.  Ao se insurgir contra tal imaginário a França abre a trilha galicana e unifica províncias, define padrões novos e comuns no plano jurídico, militar, político. Permita o leitor que eu retome um texto antigo de minha autoria, saído na Revista Forum. (20/10/2011) A concentração do poder religioso não se deve apenas ao papa e nem é peculiar à Igreja. Todas as formas jurídicas da história moderna vivem a superconcentração do mando e para este alvo a burocracia é de grande auxílio. Ela permite aos Estados nacionais e impérios controlar sociedades imensas. Esta técnica envolve muito cálculo e abarca as duas pontas do poder, as decisões e a execução. Ela surge, assim,  na luta entre Igreja e os governos leigos no fim da Idade Média. A burocracia independe das personalidades, pois é a arte de impor ao coletivo uma ordem hierárquica na qual o segredo é partilhado só por alguns indivíduos e grupos. Segredo e poder vertical, racionalizados pela máquina burocrática, determinam organismos complexos como o Estado e a Igreja.

O governo a partir da cúpula religiosa e política é produzido quando Igreja e Estados se expandem com a urbanização, no fim do feudalismo. A Igreja é a única comunidade externa aos feudos. Presente em toda a Europa, muito cedo ela expropria as autoridades locais (os bispos) em favor da Santa Sé. Depois a Cúria lança o projeto de arbitragem sobre os jovens entes nacionais. As fronteiras dos países e as suas formas administrativas ainda são indefinidas. A Igreja da época é um organismo mais desenvolvido do que os Estados, graças aos funcionários (bispos, frades, advogados) que formam a sua eficaz máquina de governo. Aqueles servidores aplicam o Direito Romano. A Santa Sé de então pode ser comparada a uma ONU religiosa e política. O latim internacionaliza a sua ordem, mas seus alvos internacionais ameaçam os príncipes. Nos choques entre governos e papas, os príncipes que disputam a obediência das nações lutam contra o clero. Os juristas da Santa Sé elaboram as mencionadas doutrinas sobre a superioridade do Papa em detrimento dos reis enquanto estes últimos se valem de juristas que os declaram livres dos religiosos. O direito concentra-se no Pontífice ou no Rei.

A Bula Unam Sanctam postula a eminência da autoridade pontifícia. Bonifácio VIII defende os seus direitos contra Felipe IV, da França. O texto deve-se à proibição de envio de taxas para o Vaticano. Os reis precisam daqueles recursos. A Bula os menospreza e exalta o clero, este é o pretexto para proibir o envio de tesouros para Roma. Felipe IV aprisiona o Pontífice que morre humilhado.   A Bula diz que a Igreja possui “um corpo e uma cabeça, não duas cabeças como num monstro”. A soberania pertence ao Papa. A Unam Sanctam ressurge sempre que a Santa Sé está em crise. Em 1913 diz a Enciclopédia Católica: “A Bula define as proposições dogmáticas sobre a unidade da Igreja, a exigência de a ela pertencer para atingir a salvação eterna, o lugar do Papa como suprema cabeça da Igreja, e o dever de submissão ao Papa para integrar a Igreja e, portanto, para conseguir a salvação”. O documento exalta o pontífice contra o poder civil. O rei só deve apoiar “a palavra dos padres pelo terror. O príncipe ajuda os sacerdotes inculcando o medo nos súditos”.

As coletividades civis e religiosas são pensadas como pessoas fictícias. Na Igreja, o Papa é o ator que representa visivelmente a instituição e o Estado adquire personalidade na figura do Rei. Sem essas personificações, os coletivos seriam acéfalos. Diz Leão XIII (Encíclica Immortale Dei, 1885): “A Igreja e o Estado devem se ligar um ao outro como alma e corpo, que constituem no homem um todo natural”. Esse ideário ergue-se sobre a doutrina de Tomás de Aquino, para quem o universo é linha vertical que desce do Senhor Deus, atravessa os arcanjos e anjos, chega aos sacerdotes, passa aos leigos poderosos e atinge os humildes. A escala cósmica é o eixo do catolicismo. Ela foi imaginada por Dionísio, o Pseudo Areopagita (século V ou VI da era cristã).

 Segundo Dionísio, Deus está além dos nossos sentidos. Só O atingimos pela mediação dos seres que existem entre Ele e nós. O clero situa-se entre Deus (e depois os arcanjos, anjos) e os homens. É impossível quebrar a escala que vai dos anjos aos homens e do Papa aos leigos. A democracia, sobretudo nas revoluções liberais e socialistas, recusa as teses hierárquicas. Contra a igualdade, a Igreja exaspera o espírito da Unam Sanctam. Para combater os movimentos que ameaçam a ordem, o Vaticano se apoia em governos como o fascista. No Tratado de Latrão (1929) com Mussolini, ela exige que a sua soberania seja a mais alta. Segundo Pio XI, unem-se no Tratado “duas soberanias plenas, perfeitas, cada uma em sua ordem, ordem necessariamente determinada pelos respectivos fins onde quase não é preciso dizer que a dignidade objetiva dos fins determina não menos objetivamente e necessariamente a absoluta superioridade da Igreja”. Esse ideário ordena os textos papais desde 1870. A Igreja acusa a “impiedade” da Reforma e do Renascimento, ampliada pelos movimentos democráticos. Pio IX lidera a luta contra o fim da hierarquia no Syllabus (1864). No Vaticano I (1869-70) surge a infalibilidade. A Igreja de Roma, sem territórios relevantes, postula plena soberania espiritual.
 
A Santa Sé e os Estados modernos concentram o poder no Papa ou no governante. A política da Cúria retoma a gênese da Igreja e do Estado moderno. O Vaticano II atenua a centralização eclesiástica, mas o papa congela as diretivas conciliares e reproduz a Unam Sanctam. João Paulo II chegou às bases da Igreja, onde pulsam os ideais de ordem, hierarquia, poder espiritual soberano. Com Bento XVI, o papa retoma um antigo paradigma do poder. Diz Elias Canetti: perto da Igreja, os que lideram Estados são meros diletantes. (*)


O rei confisca prerrogativas dos nobres e do clero, sobretudo sob o cardeal Richelieu. O poder central garante pouco a pouco, para si, os monopólios do Estado reunidos na força física (polícia e exército), na ordem jurídica (leis e justiça) e na taxação do excedente econômico (impostos, taxas). Essa tarefa monopolizadora não se efetiva sem violências. Aí surge um lado relevante do poder estatal que se afirma. Embora a igreja conheça conciliábulos clericais, alguns verdadeiros golpes contra o Sumo Pontífice, além da revolta perene do povo de Roma contra a Santa Sé, somando-se as lutas contra os bispos despossuídos de suas prerrogativas, a igreja garante um mínimo de estabilidade interna e social, o que resulta em instituições civis relativamente estáveis. Uma característica dos Estados modernos, desde o final da idade média, é a sua instabilidade. Garantir os três monopólios do poder central, da corte, exigiu muita guerra (a guerra religiosa francesa do século 17, as guerras das insurreições inglesas no mesmo século, a guerra de Trinta Anos, etc) é algo difícil, dadas as resistências dos nobres, do clero e da ascendente burguesia, boa parte dela entrincheirada nas cidades que guardaram as suas liberdades municipais, herdadas do império romano. Para garantir os governos reais (é a era dos monarcômacos e dos atentados letais contra os soberanos) e a nova administração, os golpes de Estado se tornam um instrumento estratégico. Desde os golpes de católicos e protestantes, até os golpes do poder estranho aos anseios sectários, como os do Cardeal Richelieu, o Estado se garante com a força, a astúcia, o segredo, o saber técnico e científico. E, claro, com a propaganda que busca disfarçar a virulência do novo mando e dissimular os coup d’État que trazem estabilidade fugaz nos vários planos do mando civil ou religioso. Existem golpes porque a instabilidade é essencial no plano político. Como sabemos, o próprio termo “estado” significa estabilidade contra as staseis, as sublevações subversivas da ordem geradas pelos partidos que disputam a hegemonia.  Estado e golpes de Estado são faces de uma só moeda.

No plano da ciência e das técnicas, a corte francesa precisa conhecer o país real e as zonas a serem integradas sob a sua égide. É preciso definir onde habitam os súditos e quem são eles. Contar a população e a superfície do território não é tranquilo nos primeiros dias da França moderna. Como os demais Estados com origem na ruptura, contra o no feudalismo, ou sob controle eclesiástico, ela tem fronteiras indefinidas e ora se expande num sentido, ora se retrai noutro. A demografia nos inícios apoia um projeto fiscal. Mas As Crônicas da França, de Pierre Desrey (1515) afirmam a existência de 1.700.000 torres de sino,   uma população por volta de 600 milhões de  habitantes ! O dado fantástico é repetido nos séculos XIV, XV, XVI. Outros escritores falam em números ao redor de 112 milhões. Com tal “saber” o fisco, a reunião de exércitos, a própria diplomacia são  inviáveis. A busca de mais arrecadação moderniza a máquina fiscal e incentiva a estatística. Esse movimento aparece nas atividades pioneiras de Jacques Coeur, (2) Os títulos de seus livros mostram bem o que ele pretende na centralização do poder : Cálculo ou enumeração do valor dos ganhos do reino de França, e também  Relatórios e instruções para administrar o estado e a casa do rei e todo o reino (3).    As guerras religiosas, a concorrência dos Estados pelo domínio territorial e os avanços da arte bélica, que incluem novas tecnologias custosas, colocam os governos na urgência de aumentar   recursos. Enquanto isso, a Assembleia dos Três Estados combate o fiscalismo dos soberanos e nada consegue pois do século XV ao XVII os impostos se multiplicam. É conhecida a crônica dos Estados na França, quando o rei pediu aumento de impostos para fins guerreiros. O Terceiro pediu uma inspeção nos cofres reais, negada pelo Clero. “As finanças reais são como o Santíssimo Sacramento no altar. Só podem delas se aproximar os consagrados”. O segredo que informa a centralização monárquica  é favorecido por reformas administrativas e contábeis. Os números arábicos, no século XV, facilitam o cálculo. A partir de 1539 anotam-se os batismos, as mortes e casamentos. O poder começa a conhecer o nome, a idade, a qualidade e o número dos súditos. Os registros também revelam as riquezas familiares. (4)

O príncipe começa a bem conhecer seus efetivos interesses. Um marco importante do fato reside no livro escrito por Henri de Rohan, De l ‘interêt des princes et des Etats de la chrétienté. O autor, grande estrategista bélico, mostra que a via para que os Estados germinem e prosperem vem do conhecimento econômico e social, além do político, religioso e geográfico de seu próprio território e dos concorrentes ou inimigos. A diplomacia não pode ser exercida na ausência de saberes fiáveis, o mesmo se diga das guerras. O escrito de Rohan entra de imediato na razão de Estado e de seus golpes. Todos os textos que tratam da matéria têm como sustento as análises propostas no pequeno volume. (5)

Norberto Elias afirma que a corte domestica os nobres e define modernos padrões civilizatórios na França, ética que se espraia pela Europa. De fato, mesmo quando visitamos os castelos de Luís II da Baviera, erguidos em pleno século 19, percebemos o quanto o modelo francês inaugura políticas e costumes originais. Versalhes é copiado da Rússia ao Mediterrâneo, bem como a sua vitoriosa centralização burocrática. A tese de Norberto Elias apresenta lados frágeis. Daniel Gordon, seguido por Emmanuel Le Roy Ladurie mostram a inconsistência de várias hipóteses suas para descrever o centralismo francês. (6) Se é verdade a frase de Francis Bacon segundo a qual knowledge and power meet in one, também é correto dizer que a domesticação que gerou o Estado e a nova ética na França antecipa procedimentos hoje em voga. Richelieu e demais estadistas não realizam o seu projeto sem golpes de Estado. É estranho constatar esse ponto, visto que imaginamos o Estado moderno como o avesso dos golpes. Mas esquecemos que semelhantes técnicas existem agora porque produziram as instituições a que nos acostumamos e recebem o nome abstrato de “Estado”. O coup d´État é irmão gêmeo do conceito estratégico   mas “esquecido”,   raison d´État. (7)

É imensa   a literatura sobre o golpe de Estado e a razão estatal. O símbolo maior de todas as análises e propostas encontra-se em Maquiavel. Não cabe neste espaço analisar todas as interpretações do Florentino e de suas fórmulas sobre o exercício do poder. O juízo de Spinoza resume o que é possível dizer sobre ele e o poderio político: “Maquiavel, agudíssimo autor, apresenta com detalhes as medidas a que um príncipe recorre, quando dominado pelo desejo de poder, para fundar e conservar o seu domínio. Mas perde-se com frequência o sentido de suas palavras. Se pensamos que ele destina aos homens uma lição útil,  provável em pessoa tão sábia, ele deseja —parece— mostrar o quanto a tentativa de suprimir brutalmente um tirano não é eficaz sem que as causas da tirania sejam suprimidas, causas que produzem a tirania do príncipe. Tais causas apenas se reforçam se o príncipe encontra motivos maiores para ter medo. É apenas a isso que a multidão chega quando ela derruba o príncipe e se gloria do assassinato de um chefe consagrado  ,  como se cometeria uma ação meritória ao praticar um parricídio. Ou talvez Maquiavel queira mostrar que a multidão livre não pode confiar sua salvação a um homem isolado. Pois ele, a menos que seja excessivamente vaidoso e imagine que pode agradar a todos os seus governados, temerá diuturnamente as suas armadilhas. Ele será obrigado a se manter alerta e jogar, por sua vez, armadilhas contra a multidão, em vez de garantir, como seria o seu dever, os interesses gerais. Esta é a intenção, no meu entender, que deveríamos emprestar ao nosso autor. Porque é muito certo que tal homem prudentíssimo amava a liberdade e apresentou salubérrimos conselhos para a sua conservação”. Num escritor decoroso como Spinoza, ressaltam os superlativos sobre Maquiavel: acutissimus, prudentissimus, saluberrima consilia. A inteligência e a cautela são as virtudes políticas mais requeridas na política, sobretudo quando se trata de impor ou derrubar governantes. Maquiavel encontra-se em todas as linhas, ou entrelinhas, do que foi chamado depois dele a razão e o golpe de Estado. (8)

O “autor prudentíssimo” foi atacado na França desde cedo. Como no prefácio ao importante Vindiciae contra tyrannos (1581) onde ficamos sabendo que as teses de Etienne Junius Brutus “são manifestamente contrárias às práticas perversas e conselhos perniciosos e também adversárias das falsas e pestíferas máximas de Nicolau Maquiavel”. Os livros do Florentino “afiam o espírito de certas pessoas para encontrar os meios de subverter o Estado, com ajuda trazida pela autoridade dos governantes. Maquiavel colocou os fundamentos da tirania nos seus livros, como é notório nos preceitos e ensinamentos detestáveis semeados por ele aqui e acolá”. A doutrina maquiavélica “é bobagem perversa e perniciosa ao gênero humano. Ela arruína a si mesma e não subsiste, mesmo sendo forte”. (9)

A mais contundente refutação de Maquiavel vem de Innocent Gentillet no Discurso sobre os meios de bem governar e manter em boa paz um reino ou principado. Dividido em três partes, a saber: sobre o Conselho, da Religião e da Política que deve manter um Príncipe. Contra Maquiavel Florentino (1576). (10)  Para os líderes políticos e intelectuais protestantes, após a Noite de São Bartolomeu (1572), a França é nutrida por Maquiavel. Entre as acusações à doutrina e à prática dos que dirigem o Estado francês, existe a denúncia de que todos eles eram ateus. “Não devemos nos maravilhar” afirma Gentillet, “se os que pertencem à nação de Maquiavel (postos no governo da França) tenham abandonado o antigo modo de governar dos nossos ancestrais franceses, para introduzir e praticar  na França a nova maneira de governar o país, ensinada por Maquiavel”. E Gentillet apoia-se no desprezo do próprio Maquiavel pela França e pelos franceses, os quais, segundo o italiano, nada entendiam dos negócios estatais.

Assim, muitos franceses (sobretudo os protestantes e os demais perseguidos pelo reino que se instalava sob os auspícios da razão e do centralismo) enxergavam nos golpes de Estado o grande e pernicioso contributo maquiavélico. Golpes brancos ou rubros de sangue, o fato é que Maquiavel teria a paternidade do monstro estatal que tudo devorava na França, da liberdade antiga às riquezas privadas que seguiam para os cofres reais. Além, naturalmente, da repressão impiedosa e do monopólio da polícia e do exército.

Maquiavel, de fato, redige páginas inteiras sobre os golpes de Estado, tanto no mundo antigo quanto na sua Itália destroçada. Ele descreve as conspirações e mostra os seus perigos, tanto para o governante quanto para os rebeldes. Dessa violência, extrai o lema famoso :  Non vive sicuro un principe in uno principato, mentre vivono coloro che ne sono stati spogliati. Mas ele aponta o outro lado da contradição : os príncipes devem saber dos graves riscos e da perda de sua coroa quando “violam as leis e os costumes sob os quais o povo vive desde longa data”. É mais fácil diz ele, ganhar o respeito e amor dos cidadãos honrados do que o dos bandidos, mais fácil submeter-se às leis do que violentá-las.

Como aproveitar a lição no caso do Brasil atual  ? Seria mais fácil ao atual governo brasileiro receber o apoio da cidadania honesta do que o amor de quem exige mesada para aprovar projetos palacianos. Os honestos não desejam golpes, os desonestos vivem apenas dos golpes, financeiros ou institucionais. Mas deixemos esse ponto e sigamos.


Na gênese do moderno Estado francês Maquiavel é estratégico, bem como a noção de golpe de Estado. O texto mais influente sobre os dois temas foi redigido por Gabriel Naudé : Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado (1679). (11) O autor apresenta o golpe como remédio a ser definido com prudência. Seguindo Charron, ele apresenta as regras dos golpes: os conspiradores devem operar no modo preventivo, jamais ofensivo. O golpe serve para que o Estado se defenda, não para aumentar os territórios, ele deve ser dado para que o país se defenda das armadilhas e não para aplicá-las. Se é verdade, segundo Aristóteles, que os governos são derrubados pela fraude, os golpistas devem agir com fraude honesta ao enfrentar as raposas com astúcia de raposas. Aqui surgem os ecos do livrinho importante de Torquato Aceto, Della dissimulazione onesta (1641), relevante nas teses sobre a razão de Estado. Os golpes são necessários para salvar o povo e o reino mas devem ser postos em movimento devagar, nunca em ritmo célere. Os meios para aplicar um golpe devem ser fáceis, jamais complicados. O governante precisa parecer atribulado ao dar um golpe e fazer como o pai que assiste a ablação de uma perna do filho : contrito e só golpeando com desprazer. Os golpes devem ser desfechados quando o governante ainda possui força suficiente para garantir o dia seguinte.

A regra maior dos golpes é extraída do pensamento romano : salus reipublicæ suprema lex. Montesquieu retoma todos os pensadores citados acima, sobretudo Maquiavel, Spinoza, Naudé. O Espírito das Leis avança, a propósito das sucessões no poder, o princípio de todos os golpes. “Quando a lei política, que estabeleceu certa ordem de sucessão no Estado torna-se destrutiva do corpo político para o qual ela foi feita, não se duvide que uma outra lei política possa mudar tal ordem; e longe da segunda lei ser oposta à primeira, ela será bem no fundo inteiramente conforme a ela, pois as duas dependerão do princípio segundo o qual a salvação do povo é a lei suprema”. (12). Embora Montesquieu esteja no fundamento de repúblicas supostamente abrigadas dos golpes de Estado, no pensamento de muitos juristas e políticos golpistas a passagem citada permanece como fonte de raciocínio e justificativa para intervenções drásticas. E sublinhemos que as piores tormentas sofridas pelos Estados encontram-se nas lutas relativas à sucessão do governo. No Brasil, a história é muito conhecida.

Para aplicar ou prevenir golpes de Estado, desde o início da instituição política, saberes são exigidos. Com as tramoias descobertas no Estado e nos partidos políticos, os amigos do Planalto e dos “cargos de confiança”, mas também das verbas milionárias, tolices ganham foros de ciência. Mas golpes e razão de Estado são permutáveis. Para saber quando é preciso redefinir a lei fundamental para deter a morte da política, ou para decidir sobre um golpe, é preciso muita prudência e conhecimento. “Ditadura” vem de Ars dictaminis, técnica retórica exigida dos governantes. A raiva contra o pensamento, comum no Brasil de hoje,  recorda o dito medieval : rex illiteratus est quasi asinus coronatus. Rei ou ministro que nada sabem sobre a gênese do Estado e da teoria golpista, praticam golpes às cegas, usam desatrosamente a força física e a censura contra o saber. Eles desejam, mas não possuem ciência para instalar uma ditadura durável. Assim, apoiam-se nas armas dos exércitos, nas censuras e nos juízes pouco esclarecidos. Ministérios sem conhecimentos recordam o que disse Julio Cesar contra os misólogos de seu tempo : Sylla nescivit literas, non potuit dictare (Sylla ignorava as letras, não podia ditar. (13)   Com sua truculência, eles solapam a confiança dos cidadãos honestos no Estado de direito. Mas o mal nem sempre dura: os que identificam as suas pessoas ao Estado e repetem no Brasil de modo hilário a tolice de Luís XIV, logo deixarão os palácios. Rumo à insignificância.

Notas
(*) Brose, E. D. : , German History 1789-1871, From the Holy Roman Empire to the Bismarckian Reich (Berghahn Books, 1997) , p. 4.

(**)
https://www.revistaforum.com.br/uma-chave-para-entender-o-governo-da-igreja/ Para toda a passagem acima, as referências encontram-se em  Karl Rahner,“Le concept d´Infaibilité dans la théologie catholique” in L´Infaibilité, son aspect philosophique et théologique. Paris, Aubier-Montaigne, 1970, p. 58. Berger, P. La Religion dans la conscience moderne. Paris, Centurion Ed., 1971, p. 182.Bettenson, H. Documents of the Christian Church. NY/London, Oxford University Press, 1947, pp. XVI1-XVI2. No debate jurídico entre Igreja e poder laico, cf. W. Ullmann, The Growth of Papal Government in the Middle Ages. A study in the ideological relation of clerical to lay power. London, Methuen & co., 1955. J.A. Watt: The theory of papal monarchy in the thirteenth century. The contribution of the canonists. NY, Fordham Univ. Press, 1965.

(1) Roberto Romano::  “Lembra-te de que és homem: governantes e juízes no Policraticus de Jean Salisbury”, in O Caldeirão de Medéia.


(2) Joseph Jacques: Le Procès de Jacques Coeur, Roanne, Souchier imprimeur, 1929). 
(3)
Cf. Jean du Castre D’Auvigny: La vie des hommes illustres de la France, Volume primeiro, Amsterdam, Desprez, MDCCLViii, p. 309

(4) Para essas referências e temas, conferir Dominique Reynié :”Le regard souverain, statistique sociale et raison d´État du XVIe au XVIIIe siècle”, in La Raison d´état: politique et rationalité. Paris, PUF, 1992. Informações importantes encontram-se em Christian Lazzeri e Dominique Reynié : Le pouvoir de la raison d´État. Paris, PUF, 1992. Análises rigorosas de Y. Ch. Zarka (org.) Raison et Déraison d´État. Paris, PUF, 1994. Cf. Roberto Romano: “Reflexões sobre impostos e razão de Estado”, Revista de Economia Mackenzie. Cf.www.mackenzie.br/editoramackenzie/revistas/economia/

(5) Há uma excelente edição de hoje, sob os cuidados e notas utilíssimas de Christian Lazzeri (Paris, PUF, 1995). Alí são expostos todos os “interesses” que levam aos golpes e justificam a razão de Estado. O comentário clássico encontra-se no volume de F. Meinecke : A idéia de razão de Estado na História, capítulo dedicado a Rohan (há tradução inglesa e francesa em edições atuai).

(6) Cf. Emmanuel Le Roy Ladurie: Saint-Simon ou o sistema da Corte. RJ, Civilização Brasileira, 2004.

(7) E. Thuau: Raison d’État et pensée politique à l ‘époque de Richelieu (Armand Colin, 1966). O autor mostra o elo estratégico entre poder de Estado, imprensa e propaganda. Noções muito úteis em nossos dias.

(8) Para uma excelente análise de Spinoza, sem os ranços demagógicos e as ideologias superficiais costumeiras, cf. Alexandre Matheron :”Passions et institutions selon Spinoza” in La raison d´État: politique et rationalité, citado acima. E também Maria Luisa Ribeiro Ferreira: A Dinâmica da Razão na filosofia de Espinosa. Lisboa, C. Gulbenkian, 1997.

(9) Etienne Junius Brutus. Vindiciae contra tyrannos. Traduction française de 1581. Genève. Droz. 1979.

(10) Innocent Gentillet : Anti-Machiavel. Edition de 1576. Genève, Droz, 1968.

(11) Gabriel Naudé : Considérations politiques sur les coups d´État. Edição de Simone Goyard Fabre. Centre de Philosophie et Politique. Université de Caen, 1989.

(12) De l´Esprit des Lois, Livro 26, cap. 23, Bibliothèque de La Pleiade, p. 774

(13) Francis Bacon: Essais, “Of Seditions And Troubles”.




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