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quarta-feira, 25 de abril de 2018

Fronteiras do Pensamento. PALESTRA FEITA EM PORTO ALEGRE, POR Roberto Romano/Unicamp ELEIÇÕES, MENTIRAS, RAZÃO DE ESTADO.


Fronteiras do Pensamento.

PALESTRA FEITA EM PORTO ALEGRE, POR Roberto Romano/Unicamp

ELEIÇÕES, MENTIRAS, RAZÃO DE ESTADO.


1) Mentiras


Durante o tenso debate encenado sobre a retórica, no Górgias, Sócrates insiste: os cidadãos procuram corretamente conselhos em todas as técnicas, do campo náutico à medicina. Os retores, aproveitando tal confiança em juízos especializados, afirmam que também o seu mister é uma técnica,  persuadir os que decidem a norma política. Sócrates replica de modo direto, afirmando que, apesar dos retores, a política e a moral exigem saberes técnicos, os quais devem ser adquiridos antes que o retor ensine as pessoas a persuadir. Caso contrário, ocorre apenas que o ignorante imagine saber mais do que os especialistas. ([1]) Trata-se a retórica de um saber ou apenas de experiência, algo limitado ao incerto e inseguro campo empírico ? A resposta socrática é positiva. retórica é forma empírica de ação e pensamento. E o que se produz com ela? Certa gratificação e prazer. Quem é gratificado pela retórica? O povo. A arte de persuadir seria, então, algo belo e bom ? Longe disso. A retórica é prática que, sem poder ser considerada uma ciência, pertence a pessoas perspicazes e sem medo, superiormente dotadas para a lisonja. A retórica é uma empiría, como a arte de cozinhar.

No fim do diálogo Sócrates desafia Cálicles e sua profecia do julgamento que levou o filósofo à morte, dizendo que só um homem sem justiça (adikount´anthrôpon) o conduziria ao tribunal, pois é deslocado (atopon) que um homem justo denuncie ao tribunal um outro que não comete injustiça. Não seria de espantar se a sentença dos juízes fosse a condenação à pena capital. E Sócrates enuncia a sua auto-percepção: “Acredito que eu sou, em companhia de alguns atenienses (oimai met´oligôn Athênaiôn) o único  homem hoje ocupado em assuntos estatais. Por isto, as palavras que pronuncio não se destinam a agradar, mas dizem o que mais vale, não o mais agradável. Sou incapaz das finuras aconselhadas por você, de modo que não saberia o que dizer diante do tribunal. Eu seria julgado como seria julgado o médico que acusasse certo cozinheiro face a um tribunal de crianças. O cozinheiro poderia dizer, justificando-se : “crianças, eis um homem que lhes causa misérias. Ele machuca (…), aos lhes cortar ou queimar. Ele seca e sufoca, de modo que vocês não sabem para onde fugir. Eles lhes dá para beber o que é amaríssimo, forçando a sua fome e sede! Não comigo, que lhes dou grande quantidade de variadas guloseimas doces! Paralisado pelas necessidades de sua situação, o que poderia dizer o médico? Suponha que ele diga a verdade : ´Tudo o que fiz, era para a sua saúde !´. Alguns clamores, protestos, os juízes não seriam violentos?” . Algo análogo, diz Sócrates, enfrentarei no tribunal.

O Górgias ataca a política ateniense e os políticos. Nele, dois ideais são confrontados com a experiência. Sócrates elege o ideal que o conduz à felicidade pessoal. Atrás dele surge a imagem de Platão, destinado à política por origem familiar e pelas suas próprias inclinações. O diálogo apresenta o problema, desenvolvido na República e nas Leis, da sociedade justa ou injusta ([2]). O ataque é dirigido às cidades mal administradas, “que medem seu ´poder pelo número de navios nos portos e dólares no tesouro, o seu ´bem estar´ pelas condições de consumo dos cidadãos. Tal seria a sociedade ateniense, a de Péricles, cujos princípios corruptos conduzem à corrupção das instituições musicais, dramáticas, políticas e sociais”. ([3]) Platão condena os políticos por adular os preconceitos da massa. Sócrates diz no Górgias: “Prefiro que a lira seja desprovida de acordo e dissonância, e que o mesmo ocorra com o côro pelo qual sou responsável, e que a maioria dos homens esteja em desacordo comigo, e me contradigam, em vez de não ser, eu mesmo, consoante comigo mesmo e me contradizer”. O termo usado para falar em acordo musical e político, nesta passagem, é “homologein”, importante na ordem jurídica ocidental.

A retórica é adulação dos governados, algo que se transforma em tirania quando os demagogos atingem o poder. No processo eleitoral democrático o povo esquece o que exige na vida particular. Nesta última, quando se busca o auxílio de um médico, artesão, etc., a busca é por indivíduos técnicamente bem treinados, competentes. Nas eleições e consultas ao povo, tal elemento é afastado, salientando-se a corrente de palavras que opera com  feitiço, um encantamento dos eleitores. Assim, eles confiam a direção do Estado a pessoas incompetentes e sem retidão. No Górgias, Platão distingue as “epistemai-téknai” fúteis das sérias. Existiria uma retórica perversa e pervertida, aproximada à lisonja e à cozinha (inferior à ginástica e à medicina) e a boa retórica,  que ensina e produz a virtude, superior à ginástica e à medicina. ([4])

Não cabe aqui seguir as inspeções modernas do pensamento platônico no âmbito político. Como fruto das utopias renascentistas, do socialismo no século 19 e 20, do nazismo sobretudo, críticos de Platão indicam nele um teórico totalitário. E neste rumo, também foi acentuado a “solução” platônica que substituiria as eleições democráticas, doentes de virulenta demagogia, produtoras de servidão voluntária. Karl Popper, na conhecida obra sobre a sociedade aberta,  acusa o suposto ou real totalitário. Leo Strauss assume atitude diferente face à “noble lie”. A fórmula tem uma polissemia que exige prudência. As duas palavras  —gennaion pseudos— foram interpretadas de formas contraditórias. Sejam quais forem as exegeses, a “nobre mentira” instalou-se no mais profundo nível da Razão de Estado. Com as descrições da Guerra do Peloponeso, em especial o episódio da ilha de Melos, ela fornece a armadura dos que, dirigindo o Estado, desconfiam de eleições e debates, fogem da transparência e da “accountability”. Eleições livres (livres sobretudo de manipulações eleitorais) e razão de Estado formam um par de muito difícil consonância.

Platão imagina que determinadas situações exigem a nobre mentira. Consciente de que a educação não basta para manter três setores hierarquizados de guardiães, auxiliares e produtores na suposta “cidade bela” (Kallipolis), Sócrates afirma que os três grupos devem crer que estão em determinado grupo porque nasceram da terra. Todos os cidadãos precisam ver cada um dos outros como irmãos. Mas um grupo é misturado com ouro, outro com prata, outro com bronze. Que mentira será eficaz para conseguir a divisão entre os três setores (filósofos/reis, guardiães, trabalhadores) ? Surge a fórmula da mentira como remédio (hos pharmakon chresimon), o mais parecido com a verdade. ([5])  A tese platônica espanta porque, mesmo na democracia demagógica de Atenas, o ideal era não mentir em assuntos de Estado.


Jon Hesk, discute a tese de Platão e mostra dois exemplos de mentira condenada no campo democrático. A primeira, se passou nos EUA de nosso tempo, com o comportamento de Oliver North na crise Iran/Contras. Dois comitês do Congresso tentaram convencer North de que era errado enganar os legisladores, o povo americano e o governo iraniano. Um político diz ao militar investigado que existem vínculos essenciais entre a transparência, a honestidade e a política normativa na América, ao contrário do que se passa nas terras não democráticas. Um senador (Hamilton) se perturba com o apelo de North à noção de que ocasionalmente é necessário e justificável mentir ao povo.

Mas Demóstenes, em discursos virulentos, também denunciou a mentira e o engodo como ameaças ao processo democrático. Mentiras podem existir em regime tirânico, diz ele, ou numa oligarquia, porque tais sistemas não exigem o debate dos cidadãos e dos que decidem as políticas públicas. ([6]) O pensamento ocidental, desde o Renascimento, divide-se entre os que defendem a mentira do Estado (e a sua ordem burocrática) e os que  estabelecem, como Humboldt, os limites da ação estatal. Rousseau indica o ponto: “o pretexto do Bem Público é sempre o mais perigoso flagelo do povo”  ([7]) A fórmula da razão de Estado é simples:  “salus populi suprema lex esto”. Um comentador de Rousseau matiza o dito do genebrino: as mentiras oficiais causam danos insuspeitados. O “legislador, embora justificadamente use mentiras e outras formas de engodo para atingir as pessoas com seus propósitos, deveria persuadir em vez de forçar o povo comum a aceitar seus ditames” ([8])


2) Razão de Estado


Os comentadores da Razão de Estado indicam a inconexão nela encoberta entre quem fala com poder e quem obedece. “O político mente para ganhar eleições; o desempregado mente para conseguir emprego, e até existe quem minta exclusivamente para chamar a atenção”. Mentir é próximo de manipular, pois é um ato unilateral: “eu” engano, minto, e “eles” não devem perceber. A razão de Estado é uma política paradoxal porque tende a reduzir todo enunciado político à manipulação dos dirigidos, neles criando a aceitação temporária do que se diz e se faz. A adesão aos atos do governante é fabricada com meticulosa astúcia. A cada vez o engano deve ser retomado, sem que se acumule realmente qualquer obediência cuja origem seja a vontade efetiva do coletivo.

A razão de Estado arruina a fé pública porque é “um engano radical, uma ruptura de fé que arruina todo contrato discursivo; na mentira [e na Razão de Estado, RR] o ouvinte não é capaz de explicitar nenhuma estrutura; trata-se de um discurso ´fora da lei´”. ([9]) Quando descoberta, a mentira precisa de razões excusas para justificar seu abuso. A verdade não precisa se desculpar, salvo justamente diante da razão de Estado, como se apreende da história desta política que não ousa dizer seu nome. Os julgamentos das seções especiais de Justiça em Vichy, os julgamentos de Moscou e muitos outros julgamentos demonstram esse ponto.

Quais mentiras operam na cultura ocidental, berço da razão de Estado? Na ficção, que sem dúvida não é verdadeira mas também não é mentirosa, pois não intenta enganar.  Na lingua política comum, não presa à Razão de Estado, pois nela se encontram os eufemismos, as evasivas, os silêncios, as desinformações. Esta lingua promete sem prometer e deseja agradar e conseguir votos, persuadir mais do que convencer. Mas não pode ser dita mentirosa, e sim demagógica. Nela, os interesses pragmáticos se sobrepõem a todos os demais interesses. A lingua da publicidade exagera para persuadir, é prescritiva de modo sutil. ([10]) A fala cotidiana conta com fórmulas mentirosas, que não podem ser tomadas ao pé da letra. Assim nas desculpas, saudações, expressões de contentamento ou tristeza. “Existem classes e profissões nas quais se pressupõe, por princípio, que forçam os seus representantes a mentir, como, por exemplo, os teólogos, os políticos, as prostitutas, os diplomatas, os poetas, os jornalistas, os advogados, os artistas, os fabricantes de alimentos, os operadores da bolsa, os juízes, os médicos, os falsificadores, os gigolôs, os generais, os cozinheiros, os traficantes de vinho”. ([11]) Mas as mentiras profissionais são partilhadas. Passemos ao caso da mentira como ato de violência e poder.

A mentira real se identifica com a injustiça. Ela é  violência só  justificada pela aceitação do violentado. Nela, as duas partes —mentiroso e enganado— sabem que estão mentindo um ao outro, mas ao dirigido só resta aderir ao dominante. Na mentira real a competência linguistica é assimétrica: mente-se à criança, ao doente, ao fraco, ao vulnerável, ao que depende de tutores. A Razão de Estado se instala com a dominação assimétrica absolutista. É o caso de James I, que afirma ser o rei “accountable” apenas perante Deus. Aos súditos, ele ensina e manda sem que eles possam exigir prestações de contas. A luta contra a Razão de Estado formou as revoluções democráticas na Inglaterra, na América e na França. Na democracia, a competência lingüistica é simétrica e compartilhada.

A Razão de Estado contraria o genero humano porqueque sua mentira é injustiça que não toma governantes e governados como iguais, mas reduz o governado a meio do governante. A mentira se oculta na Razão de Estado, porque senão ela perde efeito.  Fé pública e verdade garantem deveres, leis,  contratos. Pitt Rivers ([12])  afirma que a mentira mede a hierarquia. Mentir é uma relação que se faz cima para baixo. Trata-se de saber quem possui direito à verdade. Mentira é não dizer a verdade a quem possui direito a ela. A ordem que chega de cima não é mentira, mas palavra de poder, modelo de ação para quem a recebe. Quem precisa fazer sua informação subir mente se esconde não a purifica o conveniente para o seu nível. Os totalitarismos “nunca reivindicaram a si mesmos como prováveis, mas como verdadeiros”.

3) Eleições

Se quisermos conhecer a “realidade” de um coletivo humano, as eleições ajudam bastante. Mas os escrutínios eleitorais trazem muitas incertezas. Em primeiro lugar, pensa François Dagognet ([13]), porque o poder, desde o início, “se imiscui na operação e a embrulha: ele deseja em demasia uma ´representação´que lhe seja favorável”. Nas eleições e nos escrutínios, são misturadas três imagens: “a real (se esta palavra tem algum sentido) a normativa ou potencial, pois se trata de encontrar uma direção futura, a desejada ou procurada, porque os manipuladores tendem a se perenizar e cuidam bem de desregular os indicadores”. O ponto maior é que eleições visam menos o conhecimento de ideais, ou exigências coletivas, e geram mais a afirmação de poder de grupos. Na história eleitoral os grupos poderosos reduziram o voto público (com as mãos erguidas, em voz alta, etc) em proveito do voto secreto. O voto secreto é mais indicado, quando se trata de instaurar a justiça e a liberdade? Leiamos Montesquieu: “A lei que fixa o modo de dar os bilhetes dos sufrágios  é lei fundamental na democracia. É um grande problema saber se os sufrágios devem ser públicos ou secretos. Cicero escreve que as leis que os tornaram secretos nos últimos tempos da República foram em grande parte a causa de sua queda”. ([14]) E Rousseau afirma o seguinte: “quanto à maneira de recolher os sufrágios, ela era entre os primeiros romanos tão simples quanto seus costumes, embora menos simples do que em Esparta. Cada um dava seu sufrágio em voz alta, um funcionário os anotava…Este uso era bom, enquanto reinou a honestidade entre os cidadãos e cada um tinha vergonha de fornecer publicamente seu voto a uma deliberação injusta ou assunto indigno, mas quando o povo se corrompeu e os votos passaram a ser comprados, foi conveniente que eles fossem dados em segredo”. (Contrato Social, IV, IV).


4) Justiça

Dos retores criticados no Górgias à “nobre mentira” da República, daí ao elogio da dissimulação e do engodo trazidos pela Razão de Estado, passando aos procedimentos de Goebbels e similares, para atingir a era dos que Vance Packard chamou “Os persuasores ocultos” e atualmente nas técnicas de persuasão à distância analisados por Peter Sloterdijk ([15]) ou nos laboratórios de neurotecnia que visam mover pessoas com o uso de meios eletrônicos ([16]), temos a constante busca da justiça, conduzida por alguns seres humanos, mas também a perene afirmação da injustiça, pela maior parte dos que dirigem os Estados. A democracia resistiu aos totalitarismos, mas rende-se, cada vez mais, aos encantos e facilidades de legitimação trazidos pelas eleições, ganhas na sua maioria com poderosa assessoria dos novos retores, os donos do marketing político. Se os retores gregos embelezavam as palavras com fins de persuasão, hoje os seus herdeiros embelezam todo o corpo dos políticos, fabricam seres artificiais com ajuda de todas as formas cosméticas. O Brasil foi bem servido nesta faina de cosmetizar a política para reforço da injustiça. Platão diz que a Justiça é como um bicho escondido em moitas. Ela foge das mãos e pernas dos que a procuram. Poucos podem atingi-la em tempo certo. Eleições também enganam e mostram enganos. E tudo isso pertence à ordem do poder político.





[1] Cf. Kennedy, G. A. : On Rhetoric: A Theory of Civic Discourse (Oxford University Press, 1991) ; Sarkar, H. : “Kant. Let us compare”. The Review of Metaphysic, volume 58, 2005.
[2] E.R. Dodds, Gorgias. A revised text with introduction and commentary (Oxford, Clarendon, 1992, second impression), p. 31.
[3] Dodds, op. cit. p. 33.
[4] Cf. Brès, Yvon: La Psychologie de Platon (Paris, PUF, 1973), p. 52.
[5] Cf. Hesk, J. : Deception and Democracy in Classical Athens (Cambridge, University Press, 2000), p. 154.


[6] Cf. Hesk, op. cit.
[7] Citado por Besse, G. : “J.-J. Rousseau: maître, laquais, esclave” . In Hegel et le siècle des Lumières,  livro coletivo organizado por J.  d´Hondt (Paris, PUF, 19749.
[8] Watkins, F. “Introdução” a Rousseau Political Writings (Thomas Nelson & Son Ed.) 1953.
[9] H. Parret, “Élements d´une analyse philosphique de la manipulation et du mensonge”, Documents de Travail, Università di Urbino, 1978, citado por Victoria Camps.
[10] Neste plano, o clássico de Vance Packard, The hidden persuaders (New york, David Mac Kay & Co. 1957) é a referência fundamental.
[11] Herman Kesten (Ed.) : Schwierigkeinten, heute die Wahrheit zu schreiben (Munique, 1964), citado por H. Weinrich, Metafora e menzogna; la serenità dell´arte (Bolonha, Il Mulino, 1976). Cf. Camps, p. 36.
[12] Pitt Rivers Honor and social status” . In J.G. Peristiany (Ed.), Honor and Shame: The Values of Mediterranean Society Chicago: University of Chicago Press, pp. 19-77. Citado por Amélia Valcárcel na edição espanhola : Antropologia del honor, Barcelona, Crítica, 1979, pp. 30 e ss.
[13] “Élection” in Philosophie de l´Image (Paris, Vrin, 1984), pp. 186 ss.
[14] O Espirito das Leis, II, cap. II. Citado por Dagognet.
 15 Die Verachtung der Massen (FAM, Sonderdruck, Suhrkamp, 2000).
[16] Moreno, J. D.  Mind Wars. Brain Research and National Defense (NY, Dana Press, 2005).

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