Sobre a responsabilidade docente.
Ao ser convidado gentilmente para falar nesta competentee
grave Faculdade de Medicina, separei vários temas trazidos pela ética, bioética, educação e política. Precisei, no
entanto, efetivar uma escolha, a qual recaiu sobre a noção de responsabilidade.
Tenho publicações próprias sobre o problema. Mas, sem me preocupar em ser
original nos considerandos, decidi seguir extensamente dois trabalhos de
colegas europeus sobre o tema. Os ouvintes ou leitores portanto, a partir dos links
que indico abaixo –notas 7 e 10– podem
recuperar a totalidade daquelas análises, mais ricas do que sugere o meu
aproveitamento. A inspeção daqueles textos mostrará que deles fiz amplo uso,
quase uma paráfrase, porque estou mais inclinado a com eles concordar do que
discordar, dados os pontos que atraem minha atenção no delicado momento
universitário brasileiro. Roberto Romano
Sobre a responsabilidade docente (texto da conferência0.
“ O homem só pode se tornar homem pela educação. Ele só é o que dele fez a educação. É preciso bem notar que o homem só é educado por homens e por homens que foram igualmente educados. Eis porque a falta de disciplina e de instrução (...) em alguns homens faz deles péssimos educadores de seus alunos”. (Imanuel Kant, Tratado de Pedagogia).
Ao discutir os “ profetas da cátedra” e o suposto direito que possuiria o professor de apresentar opiniões pessoais na sala de aula, Max Weber afirma que “a lição (Vorlesung) deve ser diferente da conferência (Vortrag)”. A primeira exige o rigor calmo, o apego aos fatos, a sobriedade. Tais itens se perdem se nela são aceitos discursos “ao estilo da opinião pública como na imprensa”. O controle externo é apropriado nas qualificações docentes especializadas. Mas “não existe qualificação especializada para a profecia pessoal” que livre os mestres do controle. Como todo mundo, eles têm outros meios para propagar seus ideais continua Weber, mas sem exigir o bastão do governante ou reformador no seu bornal. “Na imprensa, reuniões públicas, associações, ensaios, em toda avenida aberta para qualquer cidadão ele pode e deve agir como exigem o seu Deus ou demônio”. O professor deve incentivar no aluno a força de cumprir tarefas de modo correto, identificar fatos, mesmo os pessoalmente desconfortáveis, distingui-los das próprias avaliações, subordinar a sua pessoa à faina e refrear o impulso de exibir desnecessariamente o gosto próprio ou demais sentimentos. Não é verdade –diz Weber– que uma pessoa seja ferida quando não pode mostrar a si mesma em toda ocasião. Idiossincrasias como ódio e amor precisam ser controladas no ensino da ciência. É gosto pobre misturar questões pessoais com análises especializadas. Se o culto da personalidade domina a cátedra, o ofício público se torna superficial, as consequências são nocivas. ([1])
O pior, no
pretenso direito de professar valorações em sala de aula, é que assim ficam
desacreditadas as instâncias políticas e culturais, as discussões públicas. Embora
crítico de I. Kant, Weber partilha a tese kantiana sobre o uso público e
privado da razão. “Por uso público da própria razão entendo o que qualquer um,
enquanto letrado (Gelehrter), dela faz perante a assembleia do mundo também letrado.
Chamo uso privado àquele que alguém pode fazer da sua razão num certo cargo
público ou função a ele confiada”. ([2]) O
professor, no uso público da razão, pode e deve se pronunciar sobre temas que
movem o coletivo, governo, religião, etc. No uso privado, não lhe cabe emitir
juízos de valor. Um médico do SUS, um engenheiro de trânsito, um general, e
todos os que movem serviços, podem e
devem analisar em público o funcionamento daquelas instituições. Mas no momento
em que operam como funcionários eles não podem definir normas ad hoc, oriundas apenas de seu querer,
ou de seus colegas. Pelo uso público eles têm o direito de sugerir outro
funcionamento, outras regras, até mesmo a ampliação institucional ou restrição.
No uso privado, enquanto a própria instituição não for alterada pelo Estado com
base na sociedade, cometem uma falta se negligenciam regras ou criam outras,
por eles inventadas. Se desejam mudar a vida social, exerçam o juízo público,
assumam os riscos das controvérsias, dos interesses contrariados, das angústias
inevitáveis. Mas quando se trata de aplicar o saber no cargo, que tal coisa
seja feita da maneira a mais conforme às regras de direito constitucional. O
professor tem o dever de Estado de levar os estudantes aos seus próprios
juízos, ensinando sobretudo os métodos de pesquisa e análise, de modo que os
alunos dele não dependam para pensar. De certo modo, o mesmo diz Hegel sobre o
ensino do saber: “Quando escrevo na lousa teoremas matemáticos, não estou
jogando pedras na cabeça dos alunos. Penso com os teoremas e convido os
estudantes a com eles pensar”. O que mais se deve temer em sala de aulas é a
invocação de valores que se digladiam na vida social. Numa sociedade moderna,
ao contrário do monoteísmo, ocorre o politeísmo axiológico. O professor que
assume as vestes do profeta não cumpre sua missão e, por outro lado, usurpa um
mister que não lhe cabe. A sala de aula e o laboratório, não se equiparam ao
palanque nem ao púlpito. Em tal ponto entra o princípio da responsabilidade na
docência e pesquisa.
No pretérito, as pessoas perguntavam se a culpa pelas
desgraças seria dos deuses. Hoje, elas interrogam a ciência, a técnica, os alvos
humanos. A busca de culpados mostra que tais problemas são discutidos sob o
signo das paixões e do medo. Para desculpar o ser divino foi criada uma
doutrina teológica, a Teodicéia. Nela são discutidas questões clássicas: se
Deus é bom, como pode existir o mal no mundo é uma delas. Leibniz escreveu uma
Teodicéia e nela adianta que o mal é ilusão de ótica humana. Como não podemos
abarcar o infinito, o vemos pelo prisma da finitude. Aí, a nossa carência ótica
nos dá a falsa impressão do malefício. Se bem praticarmos o cálculo, chegaremos
ao resultado da nulidade do mal. Os homens teriam desculpa? Hans Jonas reflete sobre a tragédia de
Hiroshima e Nagasaki. Longe de terem sido fatalidade guerreira, tais eventos
revelam horror no uso irresponsável das técnicas. Após a energia nuclear o
mundo passou a ser radicalmente alterado pelos homens. O que antes era um nexo
externo entre a nossa espécie e a natureza agora tem acréscimo da técnica e
resulta em desastres. Daí a proposta do “princípio responsabilidade” em nova
ética. O título do livro publicado por Jonas, O Princípio de Responsabilidade, à procura de uma ética para a
civilização tecnológica ([3]),
merece análise. Quando falamos em “responder”, de imediato vêm à tona formas
jurídicas. Respondere no
direito latino significa “garantir em troca, assegurar”. Trata-se da
responsabilidade diante de alguém que possui direitos. O vocábulo se aproxima
da fórmula democrática sobre a accountability.
Com os Levellers do século 17, autoridades do Estado e profissionais têm o
dever de prestar contas à cidadania. Os modernos Estados democráticos foram instaurados
naquela base. Após Napoleão, a ordem ética arrefeceu, fortalecendo a irresponsável
razão de Estado em vigor antes das revoluções inglesas do século 17 e das suas
congêneres norte americana e francesa, no 18.
A ética da responsabilidade é essencial na ordem efetivamente democrática
de nossos dias.
Voltemos a H. Jonas. Antes das recentes inovações
tecnológicas, o sujeito humano não podia alterar o mundo, apenas partes dele.
Autores como Karl Marx, negaram interpretar o universo, exigiram a sua
alteração. ([4])
A profecia de Marx, imoderado admirador da técnica, foi realizada na era atômica.
Com ela surge enorme aporia jamais antes proposta às mentes humanas. Não se
trata apenas do sentido de nossa existência, mas da própria existência. É
possível, com o simples manejo de botão, arrancar a vida do planeta, aniquilar
a Terra, torná-la totalmente outra.
Não só no campo bélico se instala a busca de impor outras
formas ao mundo, chegando à sua destruição. Em setores da pesquisa e da prática
existe o desejo de alterar a estrutura do próprio ente humano. No controle dos comportamentos,
na medicação, exercício da engenharia e
medicina surgem fatos que atraem os atentos. Cito, escolhendo entre muitos,
Jonathan Moreno. Especialista em bioética, consultor do Congresso e do governo
nos EUA, vem dele o alerta para as vias da pesquisa, quando se tenta modificar
corpos e almas visando a "melhoria" do padrão humano. ([5]) Realizamos
tais projetos, mas nada garante que eles estão à nossa altura, ou que temos o
direito de os efetivar. ([6])
Não podemos manter atitude despreocupada diante de façanhas técnicas. Temos o dever de preservar
a vida humana e a do planeta contra experimentos e aparelhos que não garantem o
nosso patrimônio biológico ou espiritual. Jonas não segue Rousseau e menos
ainda os ecologistas místicos. Nele não ocorrem frases ridículas sobre a
"mãe natureza" ou sentenças tolas como "os terremotos e tsunamis
têm origem no abuso humano". Seu diagnóstico é matizado e admite que a
técnica possui valor inquestionável. O perigo reside na imprudência.
Responsáveis diante de quem? Tal é a pergunta de Jonas. Não
perante a natureza, pois ela não é portadora de direitos. Somos eticamente
responsáveis pela nossa vida no uso dos recursos naturais. Não sendo possível
interromper o movimento científico e técnico, importa lutar contra a
tecnocracia. É preciso que administradores e políticos respondam diante dos governados
e de toda a humanidade. Urge que eles sigam o mandamento o qual manda agir
"de tal modo que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a
permanência de uma vida autenticamente humana na Terra, durante o maior tempo
possível". Jonas não tem fé em governos que se regem pelos alvos do poder,
mas interpela a responsabilidade de todas as pessoas. O imperativo categórico é
universal.
"A tecnologia, ao contrário da ciência, justifica a si
mesma apenas pelos seus efeitos, não por si mesma e, assim, dados certos
efeitos, avanços posteriores podem se tornar indesejáveis". (Jonas).
Diante de situações dolorosas, a responsabilidade define tarefas para os que,
sem misticismo ecológico, desejam ser sucedidos por seres humanos na partícula
do universo cujo nome é Terra, "no maior tempo possível". Sem responsabilidade,
morre a esperança.
A noção de responsabilidade, antes do século XX, significava
atribuir um ato a um agente, algo a alguém para uma sanção, negativa ou
positiva. A palavra adquiriu o sentido de um encargo: indivíduos ou grupos se
encarregam de outros devido à fraqueza ou dependência, próximos ou não. Temos a
idéia de precaução, atenuando-se a de reparação jurídica ou religiosa. Temos o
princípio da responsabilidade pelos outros. Qual é a nossa responsabilidade na
vida coletiva, eis a pergunta. Segundo Jonas, ela se extende para a humanidade
inteira, no presente e no futuro.
Quando falamos da responsabilidade como encargo, recuperamos
a noção antiga do vocábulo, grega e romana. Trata-se da solicitude para com os demais
humanos, recuperar uma ordem anterior ou reparar um dano sem que o tenhamos
produzido. O sentido mais amplo da noção encontra reúne dois elementos
importantes: o Estado e a cultura. A responsabilidade tem dupla face: a impessoal
(partilha funcional das tarefas) e a subjetiva (seres humanos vulneráveis que
devo ajudar). Na primeira, assumimos ou não as tarefas a nós atribuídas e por
nós aceitas. Podemos cumpri-las com competência ou imperícia, mas é a nossa
função pública. Se as executamos com competência, mantemos a vida pública. Se
as cumprimos de modo imperfeito, prejudicamos o Estado e a sociedade. Além da
competência precisamos garantir o trato responsável diante das pessoas
concretas que temos diante de nós.
Volto a Max Weber. Na sociedade burocrática, organizada de
modo racional, os profissionais podem reduzir sua operação, como indivíduo ou
grupo, ao funcionamento mecânico, automático. Quem assim opera segue normas e
regras, by the book, sem olhar para casos singulares com maior cautela.
Na sociedade e ou Estado burocratas juizes, diz Weber, operam como a máquina
que distribui refrigerantes : posta a moeda, vem a garrafinha. Dita a lei,
segue a sentença, sine ira et studio. O juiz máquina impõe sua figura maquinal ao
cidadão sem outras considerações sobre a validade ou sentido legítimo da lei. O
mesmo para profissões rotinizadas: perde-se nelas a responsabilidade pelo
outro. Aplicadas as regras, tudo o mais tem valor menor. O juiz máquina perde o
sentido da justiça. O pensamento jurídico anterior ao nosso corrigia o defeito
da lei mecânica com a prática da epikéia. Esta última julga caso a caso
e procura verificar os motivos de uma ação errada ou criminosa. Sem abandonar a
lei, ela corrige excessos ou defeitos do ordenamento normativo. Por exemplo:
num convento todos os frades devem acordar as 4 da madrugada para as rezas. Mas
se alguns ficam até aquela hora no estudo ou trabalho, estão dispensados do exercício coletivo. Seria
legal os punir, mas injusto. É com base na epikéia que se considera, nas
decisões judiciais, os atenuantes de um ato. É com base nela que se concede
prêmios aos que fazem mais e melhor do que manda a lei.
Prudência e precaução determinam a justiça e a
responsabilidade dos agentes. ([7])
Daí, seguimos para um antigo preceito ético, a liberdade em limites objetivos e
subjetivos. A liberdade profissional em todo campo relevante, não consiste
apenas na escolha de opções
possíveis. Ela tem origem na ação válida científicamente, com a mediação de
pessoas livres que devem consentir num trato.
Os primeiros códigos de ética médica, por exemplo, surgem
com mudanças importantes na pesquisa e no ensino, na modernidade. ([8])
Tais códigos são escritos por John Gregory (1725-1773) e Thomas Percival (1804).
De semelhantes escritos surgem os códigos das associações médicas americana e
canadense, criados em 1847 e 1867. Partindo do princípio de que a medicina
seria vocação altruísta, eles insistiam sobre a partilha da responsabilidade
entre médicos, pacientes, sociedade, criando uma identidade de coesão coletiva.
Na época e mesmo hoje, críticos enxergam naqueles documentos algo que visa
proteger os médicos da concorrência e do controle externo efetivados por leigos
ou Estado. Outros os defendem, pois eles insistiriam sobre a boa moral, o saber
científico, as competências técnicas e a compaixão, ordenada pelo juramento
hipocrático.
Os dilemas do ensino empenham numerosos atores e campos:
antropológicos, doutrinários, financeiros, políticos, econômicos, sociais, éticos.
Cada terreno é um leque de posições conflitantes. Na educação técnológica
atual, a escolha de uma via é mais cheia de riscos do que nos tempos passados.
Decidir reanimar uma pessoa queimada em demasia pode lhe trazer sequelas ou
grave desfiguração. Entramos no território da antropologia, da ordem social,
dos preconceitos, das doutrinas religiosas, sem falar nos custos. Reanimar um
bebê de 24 semanas pode acarretar sequelas neurológicas. Conceber uma criança
para salvar o irmão atingido pelo câncer, pode trazer resultados psicológicos,
por ela não ter seu nascimento desejado por si mesmo. A medicina determina os
cuidados mais próprios para certo doente, em certo contexto, em tal momento,
numa decisão partilhada com o doente ou seus próximos. O problema é o de
permanecer humano, num procedimento científico. ([9])
Volto à sala de aula. O estudante tem o direito de ser
assistido e mesmo socorrido pelos mestres. Estes últimos devem saber que excesso de confiança no próprio conhecimento
pode se transformar em arrogância o trato educacional. Aí não há resposta na
relacionamento, pois ocorre apenas uma fala, a do professor. A resposta com
humanidade parte das pessoas –mestre e
aluno– como portadoras de multiplas potencialidades, e considera os limites do ser humano,
incluindo sua conivência com o pior e o melhor. Aí se encontra o terreno mais
árduo do ensino responsável, o lugar onde decisões não podem ser tomadas by
the book, mas exigem do profissional o maior treino para a prudência. O
professor que age de modo mecânico ou pretende transformar os alunos em
suas réplicas, foge da responsabilidade.
O comportamento responsável adquire dimensões mais amplas do
que no trato interpessoal. Hoje a técnica modela corpos, tanto de indivíduos quanto de
sociedades, transforma elos sociais,
traços de poder, instituições, autoridade.
Nascimento e morte, casamentos, esportes, assessoria policial, escolas,
atividades profissionais, tratos entre indivíduos e grupos passam por crivos
psicológicos ou biológicos. Mesmo empréstimos bancários exigem garantia de vida
o bastante para pagá-los, garantia dada por exames clínicos. A gestão coletiva
da saúde governa a vida pública e se impõe como bem a não ser discutido. Há um
ideal de peso, de colesterol, tensão, equilibrio alimentar que assume o papel
de norma social. A noção de bem estar se torna imperativo moral. Não seguir
recomendações médicas assume as marcas do antigo pecado. Quem fuma, come, bebe
sem obedecer as normas, se torna “ responsável”
por sua doença. Como diz uma especialista, Dominique Folscheid, “em vez
da pessoa ser o fim da saúde a saúde passa a se tornar o fim da pessoa, no
limite, a saúde é absolutizada de tal modo que não se faz mais a diferença
entre o ‘salvamento’ médico e a salvação” religiosa. Tal culpabilização
generaliza de modo imprudente o princípio da responsabilidade. No fim, todos
são culpados e ninguém o é. ([10])
A tentação de transformar o aluno, nele inculcando os ideais
do professor, resulta em desastres. Dei tais exemplos para sugerir que o
aprendizado e o ensino se tornam ainda mais árduos em nossos tempos. Conhecemos
tragédias recentes na história da investigação e trabalho médico, os dramas
trazidos pela formação profissional competente, mas com pequeno peso da ética
da responsabilidade. No plano macro, temos o triste exemplo dos campos de
concentração onde milhões foram abatidos. Daí, para os experimentos narrados
por Jonathan Moreno em Risco Indevido, o passo é mais rápido.
Mas a crítica de Weber aos professores que julgavam seu direito transformar a
consciência dos estudantes mostrou toda acuidade nos anos duros vividos na república
de Weimar. A tarefa de fazer dos alunos seguidores de crenças professorais
resultou no morticínio massiço e no espetáculo tremendo de alunos e docentes
queimando livros em praça pública, nos auto da fé nazistas.
“Usarei meu poder para socorro do adoecido,
segundo o melhor da minha habilidade e juízo; evitarei, com ele, ferir ou
enganar todo e qualquer homem”, diz o juramento de Hipócrates. Tal
fórmula inclui o professor em sala de aula ou laboratório. A falta de responsabilidade ética
acelera a imprudência. Assim, resta a receita de Platão nas Leis,
quando se trata de formar jovens
dedicados a cuidar das mentes e corpos : é preciso mostrar a diferença entre a caça aos bichos e
a caça aos homens. A primeira é permitida para alimento. A segunda é proibida,
inclusive e sobretudo a caça ao dinheiro e à ascensão social, ou escalada
política. Cabe aos magistrados e aos professores mostrar, com exemplos
inequívocos, tal diferença. Aí começa a dificuldade do ensino, inclusive nas
melhores instituições. Termino com o desafio
de Max Weber, a diferença entre lição (Vorlesung) e conferência (Vortrag).
Até onde, no desejo de transformar
estudantes e neles estabelecer uma nova consciência ética os docentes podem ir,
ao apresentar seu ideário sobre o mundo, a sociedade, a ciência. Não se deve
impor opiniões pessoais na lição (Vorlesung) porque é preciso
apresentar aos alunos o procedimento científico de acordo com o estágio em que
se encontra o saber. Expostos os fundamentos, incentivar as interrogações, incertezas e certezas dos alunos para que eles
encontrem, no horizonte esboçado pelo docente, o seu próprio itinerário. O mais relevante alvo do ensino, inclusive
médico, é preparar estudantes para o juízo prudente e próprio, o maior esteio
da ética. Já na conferência acadêmica, onde os pares que trabalham em diversos
campos acadêmicos se reúnem em igualdade efetiva ou virtual, é dever apresentar
novas teses, meios de intervenção, idéias, polêmicas. Sim, no exercício nas
salas de aula e laboratórios, os estudantes também exercem o sentido da
pesquisa e podem explorar novos aspectos de problemas. Os profissionais do
ensino têm a responsabilidade grave de ponderar com eles, lhes apresentar dificuldades
técnicas ou éticas sem impor ideários políticos, religiosos, ideológicos. São
tarefas diante do Estado e da sociedade nas quais reside o múnus de ensinar sem
moldar ou destruir consciências, o que faz dos estudantes autômatos que
aprendem a seguir receitas by the book. Tal alvo não pertence à periferia do ensino,
mas ao seu núcleo mais espinhoso.
[1] Max Weber: Wissenschaft als Beruf, 1917-1919, Politiks
als Beruf 1919. (Tubingen,
J.C. B. Mohr, 1994) p. 109 e ss.
[2] I. Kant: « Resposta à pergunta: O que é o
esclarecimento? ». Textos seletos – Edição Bilíngue. Trad. Raimundo Vier; Floriano
de Sousa Fernandes. (Petrópolis: Vozes, 1985).
[3]
Existem várias traduções, a mais acessível é a
norte-americana : The imperative of
responsability, In search of an ethics for the Technological Age
(Univ. of Chicago Press, 1985).
[4]
“Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diversas
maneiras, mas trata-se de transformá-lo”. “Die Philosophen
haben die Welt nur verschieden interpretiert, es kommt aber darauf an, sie zu
verändern”.
[5]
Cf. Jonathan M. Moreno : Mind Wars, brain researche and National Defense e também Undue Risk, secret
experiments on humans. Sobre os mesmos temas, cf Hans Jonas :
"Philosophical Reflections on Experimenting with Human Subjects" in Daedalus, vol. 98, 2
1969, pp. 219-247).
[6] Sobre o assunto, cf. Jerôme Goffete: “Modifier les
humains, anthropotechnie versus médecine” in Jean-Noel Missa e L. Perbal
(coord.) “Enhancement” éthique et philosophie de la médecine d´amériolation
(Paris, Vrin, 2009).
[7]
Éric Gagnon e Francine Saillant, “Sources et figures de la responsabilité aujourd´hui”
revista Éthique publique vol. 6, numero 1, 2004. https://journals.openedition.org/ethiquepublique/2064
[8]
Heather MacDougall, PhD, and G. Ross Langley,
MD : L’Éthique
Médicale d´hier, d´aujourd´hui et de demain, localizável
no endereço eletrônico seguinte : pdfall.com/.../Telecharger_PDF_7.php?...l'éthique_médicale
[9] Um interessante trabalho sobre o tema foi publicado pelo médico Pedro Lain Intralgo : The Therapy of the Word in Classical Antiquity (New Haven, University of Yale, 19700.
[10]
Marie-Jo Thiel: “ L´ambiguité de la responsabilité dans les questions d´éthique
médicale” . https://journals.openedition.org/rsr/641
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